Contos e phantasias (Maria Amália Vaz de Carvalho, 1905)/Uma historia verdadeira

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UMA HISTORIA VERDADEIRA


I

Era uma physionomia incaracteristica, apagada, tristissima.

Não se podia dizer a idade que tinha, nem mesmo se tinha idade.

Tanto podia ter trinta ou quarenta como setenta annos.

Curvado pela idade ou pelos desgostos? Encanecido porque os annos tinham corrido por sobre a cabeça d’elle, ou porque lhe tinham pesado duplamente sobre os hombros debeis?

Quem o podia dizer?

Era uma organisação acanhada e rachitica, podia mesmo chamar-se incompleta.

Para elle com certeza que a adolescencia não tivera as suas madrugadas azues tão gorgeadas e tão festivas, nem a virilidade tivera a fanfarra estridente dos seus clarins, a florescencia escarlate dos seus rosaes voluptuosos.

Tinha sempre vivido debaixo de uma estranha pressão dolorosa.

Dependêra de todos primeiro porque era fraco e inerme, depois porque fôra pobre, dependente, sem aquella aspera dignidade que os atrictos da vida tornam mais rude e que é a armadura moral que salvaguarda o homem nos duros combates sociaes.

Nasceu n’uma casa opulenta que lhe não pertencia, cresceu no meio de um luxo de que seus paes erão parasitas voluntarios e de que elle era... parasita inconsciente.

Começára por ter medo de tudo e de todos; um medo que não raciocinava, que não sabia, que não indagava mesmo a sua propria origem.

Nasceu assustadiço, como certos animaes silvestres, e toda a vida conservou a mesma expressão inquieta e medrosa da lebre perseguida.

Em primeiro lugar tinha medo de seu pae; um homem alto, espadaúdo, plethorico, de voz grossa e modos brutaes, que comia como um abbade, que bebia como um lansquenete, que praguejava como um carreiro, e que se vingava nos poucos entes que tinha debaixo do seu dominio, das complacencias servis que era obrigado a mostrar aos que o mantinham n’aquella farta ociosidade de commensal que só goza e não paga.

Depois tinha medo de sua tia; a dona da casa, a senhora, a suzerana ante a qual todos se curvavam submissos.

E no emtanto ella era bonita, delgada, flexivel, muito branca.

Uma figura ideal de pintor inglez.

Mas que culpa tinha elle, o pequenino parea, se os olhos d’essa graciosa e delicada senhora lhe pareciam frios e metalicos, com umas scintillações azuladas como as do aço fino? se as suas mãos esguias e brancas se lhe affiguravam duas tenazes que podiam apertal-o, apertal-o até o torcerem todo, até o esphacelarem e fazerem d’elle, do seu pequeno corpo tão fraquinho, uma grotesca massa informe, que o mundo inteiro pisasse, onde o mundo inteiro cuspisse!

Seria allucinação d’aquelle cerebro enfermo e condemnado ás scismas doentias?

Quem sabe?

O caso é que o sentia, e que nunca pudera esquivar-se a essa preoccupação intensa e dilacerante!

Um d’estes dous entes que dominaram de estranho terror a sua infancia, maltratava-o nas explosões brutaes de seu temperamento de touro bravo.

O outro — a senhora — muito altiva, muito fria, muito desdenhosa, nem sequer lhe fallava.

Olhava-o ás vezes como se olha para um animal repugnante, para um sapo, ou para uma carocha, e passava adiante, imperturbavel e olympica.

Havia, porém, um outro sêr, dos que mais em contacto estavam com elle, que nem o maltratava, nem o desprezava com a glacial frieza do seu desdem.

E comtudo era d’esse que elle tinha ainda mais medo.

Era seu tio; uma figura original, uma physionomia de titan que por um engano qualquer da natureza não pôde conseguir passar de anão.

Seu tio!... Como esta individualidade extraordinariamente accentuada, como este rosto ironico, irregular, convulsionado, dominou para sempre o destino obscuro da infeliz creança que eu conheci já velho!

Seu tio não o perseguia nem lhe manifestava uma repugnancia muda, pelo contrario.

Chamava-o continuamente para o pé de si, ensinava-lhe, quando estava só, palavras, esgares, visagens grotescas que lhe fazia repetir diante de gente, n’um côro de gargalhadas asperas e hostis como gumes de espadas!

Vestia-o de um modo desusado e extravagante, vestia-o de marujo, de escossez, com as suas pequenas pernas magras, trigueiras, ossudas, n’uma nudez friorenta que lhe doia, e o fazia tiritar; vestia-o de tyrolez, o que lhe dava um aspecto comico, que arrebentava com riso a criadagem.

Ás vezes nos seus dias de melhor humor sahia com elle, que tinha apenas sete annos de idade, de casaca, chapéo-alto, e berloques na cadeia do relogio.

Tinha tempos em que não podia passar sem a sua companhia; a creança era a unica distracção do anão.

As caricias d’esse homem singular, de olhar faiscante, de cabelladura revolta e electrica, de voz sonora e rica de inflexões estranhas, doíam, porém, ao pequeno muito mais do que os desprezos ou os máos tratos dos outros.

Ao pé d’estes sentia-se perseguido, ao pé d’aquelle sentia-se humilhado.

Um dia o marquez — o tio do pequeno Thadeu era marquez, — achou comico mandar introduzir a creança no cofre acharoado que havia junto ao fogão do gabinete de trabalho, destinado a guardar a lenha ou o carvão que se consumia.

De minuto em minuto abria-se a tampa e sahia a cara vermelha e congestionada do pequeno, uma cara de animal assustado, o que divertia extraordinariamente as visitas.

Outra vez, n’uma ceia alegre em que havia rios de champagne e risadas crystallinas de mulheres, Thadeu com um fato de meia preta a cobril-o todo e dous castiçaes nas pequenas mãos, servia de centro agachado n’uma posição grotesca no meio da meza.

Sahiu d’alli com uma febre que o teve um mez entre a morte e a vida, delirante, sem conhecer ninguem, com a mãe debulhada em lagrimas á cabeceira.

Mas Thadeu não gostava de sua mãe.

Era uma creatura tão debil como elle, pallida como uma defunta, inerme, estupida, sem vontade.

As lobas defendem os seus filhos, a mãe de Thadeu não o sabia defender!

Entregava-o ás coleras descompostas do pae; aos desprezos gelidos da tia; aos caprichos monstruosamente comicos do marquez; ás apupadas brutaes das aias e dos lacaios; aos risos das visitas; ao pasmo desprezador das outras creanças, que iam áquella casa opulenta e ruidosa acompanhadas por seus paes, vestidas de velludo, com plumas nos seus lindos chapéus, o ar grave de meninos bem creados, e que não tinham licença de brincar com aquelle pequeno histrião, feio, ridiculo, doente, com gesto de epileptico, com fatos de palhaço e com soluços de martyr.

 

II

 

Um dia, porém, fez-se na vida atormentada e tempestuosa do pequeno Thadeu uma claridade de luar, uma claridade opalisada e doce.

Houve treguas nos seus varios martyrios, e sua mãe, n’uma bella manhã de primavera em que os passaros cantavam ao desafio nas grandes arvores do jardim, levou-o pela mão, pé ante pé, a um quarto forrado de setim côr de rosa, um quarto digno de servir de habitação á fada mais linda que uma phantasia de poeta oriental houvesse imaginado.

N’aquelle quarto havia um ninho todo branco feito de rendas, de fitas de setim, de pennugem de passaros, e n’esse ninho dormia uma creancinha que parecia uma rosa.

— É tua prima; murmurou baixinho a mãe de Thadeu, emquanto este, mudo, surpreso, extasiado, fitava os seus olhos vitreos, onde o jubilo acendia uma luz desusada, nos grandes olhos luminosos e pasmados do bébé que acordára.

Oh! como Thadeu adorava aquella creança! Como na sua vida houve de repente um ficto, uma esperança, uma luz!

Sua tia, uma vez em que a bebé chorava muito nos braços da ama, dissera a Thadeu com uma voz menos glacial do que o costume:

— Thadeu, brinca com a prima a vêr se ella se cala.

E elle fizera calar a rabujenta pequerrucha.

Desde esse dia soube-se que a menina tinha o insolito capricho de adorar Thadeu, de rir quando elle estava de joelhos dobrado sobre o seu berço, de chorar quando alguem o levava d’alli para fóra.

A ama tomou o costume de o chamar e de o fazer estar horas e horas a entreter a menina.

Ao principio elle fazia-lhe carêtas e momices, como as que usava fazer para divertir seu tio; depois, sem bem perceber porque, adoptou outro systema inteiramente opposto.

Percebeu que a pequenina não queria um bôbo, como esse espirito embotado e pervertido que o victimára com os seus caprichos. O que a bebé queria, na ingenuidade adoravel do seu despotismo infantil, era um companheiro de seus brinquedos, um socio, um escravo que a adorasse.

Thadeu era tudo para ella: queria-o perto da grande tina em que tomava o seu banho de manhã; queria-o junto da pequena mesa de nacar onde a ama lhe dava as sopinhas; queria-o no berço ao adormecer; queria-o no jardim, á sombra das arvores, sobre a arêa finissima, onde se rolava, vestida de rendas brancas, a rir como uma perdida.

Chamaram-lhe Margarida.

Margarida quer dizer perola, e Thadeu, que vira muitas vezes sua tia vestida de baile, achava um nome muito bem posto áquella creança branca, transparente, loura, idealmente graciosa.

Oh! Thadeu ainda andava muita vez vestido de marujo, de granadeiro, de tyrolez e de alferes, ainda o introduziam no cofre da lenha, ainda o faziam fumar um charuto depois de jantar, cheio de ancias, de nauseas, de gritos abafados de angustia!... Mas que importava!

Logo que podia escapava-se para o quarto da fada, para o estojo côr de rosa da sua perola, da sua Margarida, e então eram risadas sem fim, eram corridas delirantes por sobre o tapete, era um papaguear de duas aves felizes.

Margarida com a idade ia-se fazendo despotica.

Pudera!

Ou ella não fosse mulher, e estremecida pelo seu humilde escravo!

Mas era assim mesmo que elle a queria.

Quando as mãosinhas polpudas e brancas de Margarida lhe batiam, Thadeu sentia-se feliz como um rei.

Quando ella o obrigava a agachar-se no chão para lhe servir de jumento, o rapazinho tinha tentações de rinchar de prazer, fazendo o passo bem ao vivo.

Porque no fim de contas, apezar de todas as suas adoraveis crueldades, Margarida gostava d’elle.

A presença de Thadeu illuminava de risos o seu rosto oval coroado de cabellos louros annellados, o seu rosto a um tempo angelico e gaiato!

Margarida não o achava feio, nem tolo, nem ridiculo, nem doente.

Não desprezava a fraqueza dos seus braços, nem a pobreza absoluta da sua imaginação.

Pelo contrario! Admirava o!

Sim; ella dera-lhe essa sensação poderosa e extraordinaria, a sensação dos que se vêem admirados com ingenua confiança.

Margarida pedia-lhe cousas enormes, com uma serenidade ineffavel de crente!

Pedira-lhe um ninho de melros, e o que é mais! conseguira que elle tão medroso, tão debil, tão assustado, trepasse pelos braços nodosos de uma grande arvore e lh’o fosse buscar lá cima.

Que triumpho este d’ella, ao ver satisfeito o seu capricho! mas que triumpho maior ainda o d’elle ao comprehender, que alcançara essa cousa prodigiosa, que nem nos sonhos mais arrojados das suas noites de febre elle ousara até ali conceber!

Um dia Margarida, em frente d’aquelle rasgo assombroso de valentia que collocara Thadeu ao lado dos maiores heroes, puzera se grave, meditativa, e apontando com serena magestade para a lua que se reflectia n’um tanque do jardim, pedira a lua ao seu amigo Thadeu!

Está claro que elle lh’a não pôde dar, mas gostou d’aquillo!

Percebeu que o julgavam capaz de cousas grandes, de levar a cabo emprezas impossiveis, e esta idéa que alguem tinha da sua força, fê-lo crescer aos seus proprios olhos.

O marquez conhecendo que o pequeno deixára de ser seu joguete, simplesmente para ser joguete de sua filha e herdeira, applaudiu-se de lhe haver dado aquella educação especial, e prohibiu que o distrahissem, fosse sob que pretexto fosse, das suas novas funcções.

Margarida era ainda muito pequenina para entreter os paes.

Elle precisava das excitações da politica, das luctas do parlamento, dos sorrisos falsos ou verdadeiros, caros ou baratos das formosas mulheres, do jogo, da ambição, do amor, da violencia corrosiva de todas as pequenas e grandes paixões!

Ella precisava do luxo, das joias que scintillam, das sedas que se quebram em ondulações brilhantes, do côro das adulações mentidas, de todas as ephemeras alegrias que só o mundo lhe podia dar.

Para ambos Margarida seria um remorso, se a não vissem tão nedia, tão roliça, tão alegre, com chispas de travessura maliciosa no olhar, sempre acompanhada do seu pequeno amigo, submisso e fiel como um cão.

Deixaram-os, pois, crescer e viver juntos sob o olhar das aias, sempre um pouco hostil para Thadeu e por isso tanto mais insuspeito.

Foi o verdadeiro paraiso que este conheceu na terra, foi a sua idade de ouro.

Ha entes que nunca nem por um instante só conheceram a completa ventura.

São de todos os mais desgraçados.

Thadeu mais tarde podia ao menos recordar-se!

E elle sabia apreciar tão bem aquellas alegrias que em manhã abençoada tinham cahido sobre a sua pobre cabeça!...

Um dia Margarida travessa e caprichosa como era, desattendendo todas as advertencias de Thadeu, deixara-se cahir dentro do tanque do jardim.

O pequeno não sabia nadar.

Que importa!

Sem premeditação, sem raciocinio, obedecendo a um instincto de dedicação inteiramente canina, deitou-se n’agua atrás d’ella.

As criadas, acudindo, tiraram do tanque as duas creanças abraçadas.

Imagine-se o que iria em casa!

Thadeu, castigado severamente, não quiz condemnar a sua amiguinha, para se salvar a si.

Foi ella que, soberba, graciosa, com a sua magestade de pequena rainha, disse aos paes:

— Não batam n’elle. Elle pediu-me que não fosse. Eu é que quiz ir.

Acharam-na adoravel; encheram-na de caricias e de gulodices, mas ninguem pensou na acção tão simples e tão heroica do pequeno Thadeu, a quem tinham posto a alcunha de medroso.

 

III

 

Foi assim que Margarida fez nove annos.

Era linda e indomita.

Tinha um corpo airoso, flexivel e forte.

Ninguem opprimira nunca aquella altiva natureza aristocratica.

D’ahi a sua isenção, a liberdade dos seus movimentos, o fulgor radioso dos seus grandes olhos azues, onde um observador veria talvez as scintillações metallicas que davam tamanha dureza ao olhar de sua mãe.

Margarida tinha uma vontade de ferro, e uns nervos de mulher caprichosa.

Quando a professora allemã que seus paes mandaram buscar, quiz sujeitar o seu espirito a uma certa disciplina, Margarida revoltou-se n’um impeto de insubordinação selvatica.

Tivera criadas que a serviam, um escravo que tremia diante d’ella, e paes que transigiam com todos os seus pequenos desejos de creança.

Dera-se bem n’aquelle meio, não queria outro, não o aceitava, nem curvaria a sua cabecinha erecta e firme com uma aureola de anneis de ouro a cerca-la, a nenhum dominio que não fosse o da sua vontade.

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Um dia Thadeu ouviu fallar vagamente n’uma viagem que seus tios iam fazer ao estrangeiro, e viu começar os preparativos para ella.

Ficou no céo.

Viveria só na grande casa com Margarida e o rancho dos criados.

Seriam livres.

Ella teria um balouço no jardim, uma rede brazileira no kiosque, e um barquinho no lago.

Eram os seus tres sonhos ainda irrealizados.

Thadeu dirigiria todos os trabalhos.

Diria aos operarios que tinha dezeseis annos, e que era sobrinho do marquez.

Os operarios haviam de respeital-o.

Elles não tinham precisão nenhuma de se rir do seu corpo enfezado e rachitico.

Não é preciso ser-se athletico para se ser respeitado pelos homens a quem se paga.

Thadeu havia de arranjar algum meio de lhes pagar.

Andava então doente, exquisito, com uma excitação nervosa que o torturava.

O seu affecto por Margarida tivera uma recrudescencia violenta e dolorosa.

Tinha vagos presentimentos que o faziam chorar.

Parecêra-lhe que sua tia, uma vez, ao encontral-o n’um corredor, olhára para elle com uma aguda ironia malevola.

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— Não sabes, Thadeu? gritou Margarida entrando como um raio de sol no quarto onde costumava brincar com o primo. Não sabes? — E atirou-lhe negligentemente aos pés com um feixe de flôres e de folhas verdes que estivera colhendo na quinta. — Tambem eu vou com o papá e a mamã. Vamos a Paris... muito longe... muito longe... Estive á escuta... percebi umas cousas mas não percebi outras. Fallaram n’um convento... no Sacré Cœur... Sabes o que é?...

Thadeu sabia.

Não disse nada, mas no outro dia não pôde levantar-se da cama.

Tinha dôres em todo o corpo e um grande cançasso, como de quem deu uma larga caminhada.

Gemia baixinho abrazado em febre, e quando pediu muito humildemente, com medo de recusa, para ver Margarida, disseram-lhe que a doença d’elle podia pegar-se e que as meninas não iam ao quarto dos homens.

Pois isto é um homem? pensava Thadeu desolado.

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Margarida de endoudecida com a mudança, com o movimento, com a espectativa de uma existencia desconhecida e nova, esqueceu-se completamente do enfermo.

Partiu sem pedir sequer para lhe dizer adeus!...

Quando Thadeu ao cabo de um mez de doença sahiu do quarto com o rosto macilento, abatido, cançado, como o de um velho, com a espinha dobrada e as magras pernas vacillantes, pediu para ir ao quarto onde brincava com a sua perola, e agachou-se a um cantinho a chorar com uns uivos dolorosos, com uns uivos caninos que faziam mal.

Sentia-se para sempre só...

 

IV

 

O marquez tinha ido sósinho para França. Fôra, ao que se dizia, buscar a filha ao Sacré-Cœur.

A educação de Margarida devia estar completa. Fôra-se embora com nove annos de idade, e haviam já passado sete depois que ella partira.

Sete annos! que longo periodo!

A casa dos marquezes era pouco mais ou menos a mesma cousa.

Thadeu perdêra sua mãe, mas aquella figura apagada, melancolica, de uma debilidade de valetudinaria, pouca falta havia feito no palacio illuminado e radioso.

O marquez aconselhado por alguma pessoa de juizo e de caridade tinha consentido a que logo depois da partida de Margarida seu sobrinho entrasse para um collegio.

Tambem já lhe não servia para nada.

Com o seu corpo magro e desengonçado, um corpo de funambulo, um corpo de grotesco, tinha melancolias quixotescas que incommodavam quem o via.

Os criados deram por mais de uma vez com o rapazola a chorar de bruços n’um recanto do jardim, chamado o canteiro de Margarida.

Era um pequeno espaço semeado de flôres, onde principalmente abundavam os malmequeres brancos que tinham o poetico nome da filha do marquez.

Havia ali uma grande arvore, um castanheiro copado cuja rama folhuda abrigava as longas scismas dolorosas de Thadeu.

Não se podia consolar!

Era ali n’aquelle sitio fresco, esmaltado de flores, exhalando um cheiro agreste e sadio, que elle se deixava ficar horas e horas esquecido de todos, n’uma especie de lethargo bestial, o lethargo de um animal ferido.

E desfiava na memoria todo o seu passado, toda a vida que vivêra, abandonado, desprezado, perseguido de chufas ou de maus tratos, de caprichos humilhantes, ou de observações glacialmente desdenhosas.

ella nunca o ferira! só ella fôra no seu viver de cão apedrejado um consolo dulcissimo! uma nesga do céo que se entreabrira!

ella nunca se tinha rido á custa d’elle, e fôra elle — o misero, o abandonado, o enfermo — que tivera o primeiro sorriso d’aquella boquinha de rosas, o primeiro beijo d’aquelles labios frescos e humidos de leite!

Era feio, era rachitico, era estupido e desastrado.

Todos o conheciam, todos o repetiam em alto e bom som para que elle o não ignorasse, mas ella amava-o; ella não o dizia, não o pensava, não o tinha notado sequer!

Para ella era forte, e grande, e poderoso!

A elle é que Margarida confiára sempre os seus desejos, os seus sonhos, os seus affectos de creança mimosa.

Ralhava-lhe ás vezes, batia-lhe, quando aspirava ao impossivel que Thadeu lhe não podia dar, mas as creanças ricas têm horas de tedio só comparaveis ás horas sinistras de um imperador romano, e Thadeu comprehendia isso tanto, que antes queria as coleras, do que os desalentos rapidos e violentissimos da sua perola.

Tudo que houvera bom na sua vida lhe tinha vindo d’ella.

Dos outros — nada!

E elle odiava todos os outros, só para poder adoral-a com um culto exclusivo de negro pelo seu fetiche.

Não perguntava noticias; para que?

Tinha a certeza intima de que lh’as não dariam completas nem verdadeiras.

Antes não queria saber nada, do que banalisar a sua idolatria, revelando-a a seus inimigos.

Ella tambem lhe não escrevêra, o que o não surprehendera nada.

Estava tão costumado a ser uma cousa inutil e desprezada, que nunca lhe viera á idéa a possibilidade sequer de possuir uma carta d’ella.

No entanto ia adoecendo, definhando, parecia uma sombra.

Um medico que o viu torceu o nariz, e deu claramente a entender que aquillo nunca chegaria a ser um homem.

Foi então que se lembraram de o mandar para um collegio, em primeiro lugar para não terem o desgosto de o vêr a cada passo, em segundo lugar para o distrahirem da idéa fixa que o estava consumindo.

No primeiro dia em que Thadeu fez a sua entrada no collegio houve uma tal galhofa, um gaudio tão extraordinario entre a rapaziada, que os professores para manterem a ordem tiveram de empregar severos castigos.

Não havia meio de o vêr sem rir.

Tinha um tic nervoso a um canto da bocca, tinha os olhos de vidro embaciado, tinha as pernas muito magras e muito cambadas, e um modo de fallar timido, acanhado, medroso que era de fazer morrer de riso os rapazes.

Os proprios mestres tinham de fazer esforço para se não rirem quando o viam.

Na hora de recreio tornou-se a victima, o bode expiatorio do collegio.

Um dia, porém, a brincadeira attingiu taes proporções que degenerou em perversa brutalidade.

Thadeu cahiu no chão extenuado a lançar jorros de sangue pelo nariz.

Do grupo estupefacto e arrependido dos collegiaes destacou-se então um, o mais velho, o mais valente o que nunca entrava n’aquellas farçadas brutaes, e disse com voz decidida:

— Tomo esse pobre diabo debaixo da minha protecção. O primeiro que lhe tocar tem os ossos n’um feixe.

Ninguem se atreveu a responder uma palavra.

Henrique de Souza era temido e respeitado.

Nas aulas era o primeiro; nas brincadeiras era o mais forte; na lucta era o mais destemido.

Orphão de pae, era sustentado no collegio pelo trabalho insano da mãe e da irmã mais velha que se haviam feito costureiras para o poderem educar.

Henrique fizera-se homem antes de tempo.

O seu pensamento fixo era poder pagar a divida sagrada que contrahira com as duas heroicas e dedicadas mulheres.

Quando Thadeu despertou do desmaio em que a fraqueza o mergulhára, fixou os seus tristes olhos esgazeados e humildes na physionomia meiga e viril de Henrique.

Comprehendeu que tinha achado um amigo e cahiu-lhe nos braços a soluçar.

 

V

 

Thadeu conservára-se cinco annos no collegio, e sahira de lá um pouco mais forte e um pouco menos desgraçado.

Henrique, que havia tres annos tinha completado a sua educação, e que agora cursava a escola de medicina, nunca deixára de o ir visitar de tempos a tempos, levando-o muitas vezes por occasião das férias a passar o dia em casa de sua mãe.

O moço estudante de medicina dava lições de francez e inglez nas horas vagas, para augmentar os minguados recursos da familia, e como um tio que morrera lhe tivesse deixado uma pequena pensão, viviam agora todos tres mais desaffogadamente.

Occupavam uma casa pequenina mas muito aceiada e quasi nova; tinham um quintal com tres gallinhas, um casal de pombos e um canteirinho semeado de flôres.

O trabalho da casa era a mãe de Henrique quem o fazia; a irmã costurava e bordava para fóra, o irmão vivia de estudar e de esperar.

Muito unidos, muito resignados; em certos momentos mesmo, muito alegres, d’uma alegria serena e doce, a alegria dos corações honrados que confiam na providencia de Deus!

Henrique era formoso sem dar por isso. O unico modo possivel de um homem ser formoso.

Joanninha, a irmã, que já fizera vinte e sete annos, era uma doce e casta physionomia de virgem que tem padecido muito.

Nos seus grandes olhos melancolicos havia a tranquilla doçura dos que repouzam depois de uma lucta esmagadora.

Tinha a certeza de que havia na terra alegrias que nunca seriam d’ella, e no entretanto não se revoltára; puzera n’outro ponto mais alto a sua mira.

Desdobrára a sua individualidade, vivia da vida e das esperanças de seu irmão.

N’este interior recolhido e casto, Thadeu sentiu pela primeira vez acordar a consciencia.

Soffria muito ali pelas comparações dolorosas que fazia, mas comprehendeu que n’esse mesmo soffrimento havia um progresso do seu espirito e affeiçoou-se ás torturas que elle lhe dava.

O trabalho era a lei d’aquella casa, e Thadeu não sabia trabalhar.

Ali concebia-se a vida de um modo elevado e justo, a dignidade do homem estava identificada com a sua independencia, e Thadeu não passava de um parasita.

Aprendeu na convivencia de Henrique e de sua mãe e irmã muito mais do que aprendêra em todos os 18 annos de sua desconsolada existencia.

Determinou ter uma occupação, um officio, exercer um trabalho qualquer, mas bem depressa adquirio a desoladora certeza de que a sua fraqueza physica o tornava incapaz de qualquer esforço aturado e violento.

Com vinte e tres annos conseguira tão sómente, por fim de porfiada lucta, ser uma especie de caixeiro de guarda-livros de seu tio.

Aprendeu a fazer bem contas, e tornou-se util n’aquella desordenada administração de uma casa collossal.

Isto não era de certo cousa que satisfizesse as ambições de outro qualquer, mas para elle isto já era uma grande, uma sublime conquista.

Ganhava o pão que comia.

Era um escripturario humilde, mas tinha direito a dizer que não dependia de ninguem.

 

VI

 

No dia em que Thadeu soube que Margarida ia chegar, a sensação que fez vibrar todo o seu sêr, foi violenta de mais para que possa ser descripta.

Acudiram-lhe em tropel, desordenadamente, n’uma confusão louca, todas as lembranças do passado, todas as queridas visões d’aquelles nove annos de extase que elle vivêra.

Estava tudo intacto n’um cantinho luminoso da sua alma, onde elle não entrava com medo de fazer fugir as avesinhas azues que eram as suas saudades.

Margarida! Bebé! A sua alegria! A loura cabecinha encaracollada, os olhos côr de azul, limpidos, transparentes, crystallinos, como um céo de primavera! os pequeninos braços gordos e nedios! a boquinha risonha! a voz musical, uma voz de cotovia acordando os écos da alvorada!

Todo aquelle conjuncto de graças ia ser d’elle outra vez.

Com que delicia soffrega elle não beijaria os pézinhos da sua fada pequenina e loura!

Como lhe contaria tudo que tinha passado longe d’ella!

As saudades sem consolo, as lagrimas que chorára, as humilhações que soffrêra no meio d’aquelles perversos de faces rosadas e imberbes, que se tinham constituido em algozes da sua fraqueza e do seu desamparo!

Oh! amal-a-hia tanto e tanto, que ella havia de dar-lhe por força um bocadinho de affecto, e esse bocadinho só bastaria a torna-lo mais feliz do que um rei.

Margarida!

E ao repetir baixinho com um calafrio de prazer este nome querido, via saltar n’um raio de sol uma figurinha esbelta, graciosa, de fato muito curto e muito simples, um vestido branco, um cinto azul, um bibe de cercadura bordada, onde as amoras colhidas por elle tinham posto uma mancha vermelha, com os espessos cabellos louros em anneis soltos, e uma risada a vibrar ainda em torno d’ella como um rosario de perolas que se desfiasse dentro de um cofre de crystal.

Henrique julgou que elle endoudecia, e Joanninha Joanninha com a sua voz velada, onde havia uns toques de doçura maternal, dizia-lhe:

— Mas olhe que ella é uma senhora! Já não póde ser a mesma. Não tenha uma esperança que vai converter-se-lhe em martyrio!

— A minha Margarida, repetia elle alheiado, meio louco! A minha filhinha adorada! Nunca tive uma alegria que d’ella me não viesse! Todos me tratavam mal, só ella gostava de mim e me queria sempre ao seu lado. Has de vêl-a, meu Henrique, verás se ha no mundo uma creança mais linda, mais mimosa, é uma fada, é uma perola, é a minha unica amiga n’este mundo!

 

VII

 

No dia seguinte á hora em que uma brilhante festa de familia, uma especie de baile muito intimo, reunia nas salas do marquez todos os parentes, alliados e amigos que vinham solemnisar a chegada da sua filha e herdeira, Thadeu na pequenina sala de jantar de Henrique, dobrado sobre o peitoril da janella n’uma postura de desolação e de abandono, soluçava baixinho, ao pé de Joanninha, que tentava em vão consolal-o.

Estava de casaca, coitadinho; Joanna não seria capaz de rir do desgraçado, mas como a casaca lhe ficava mal!

Tinha-se vestido para assistir ao jantar.

Antes do jantar não conseguira vêr Margarida.

— A sr.a D. Margarida vinha muito cançada, estava no seu quarto. Dormia. Não havia ordem de a acordar.

Eis as seccas respostas que as criadas, — aquellas perversas — tinham dado ás supplicas phreneticas do pobre Thadeu.

Emquanto a ir ao encontro d’ella como tanto sonhára, não tinha podido.

Seu tio, agora que lhe descobrira algum prestimo — muito secundario, é verdade, mas um prestimo em todo o caso — abusava d’elle horrorosamente.

Tinha-o tornado uma machina de fazer contas, contas de sommar, de repartir, de multiplicar, o inferno!

Não pudera ir, mas esperava vê-la logo que ella chegasse, vê-la só, poder beijar-lhe as mãos, a testa, os cabellos, os pés! Vesti-la toda de beijos como d’antes!

E depois sabia que tambem ella havia de ter saudades! Que tambem se havia de lembrar muito do seu amigo, do seu Thadeu, do seu cão fiel!

Estava impaciente, estava no ar. Mas quando teve a certeza de que só a veria na sala, foi vestir-se logo, envergou uma casaca de seu pae que este mandára arranjar para elle, uma casaca muito larga, já fóra da moda, de panno azulado.

Que lhe importava! Ia vê-la!

Vê-la era o céo.

Vinha-lhe á lembrança aquelle ninho de melros que apanhára um dia — sabe Deus com que trabalho — para lhe dar, e o dia em que ella lhe pedira a lua com uma gravidade tão comica, apontando para o tanque, e o balouço que ambos tinham projectado fazer, e as historias que elle lhe contava debaixo do castanheiro á tarde, emquanto que a musica do piano suspirava ao longe, e havia no ar uns rumores indefinidos de que ella lhe perguntava a explicação.

— São os passarinhos que andam a arranjar-se para se deitarem a dormir dentro dos seus ninhos — costumava dizer Thadeu.

E ella ria-se virando a cabeça muito esperta para a cupula do castanheiro, a ver se descobria como se faz a toilette nocturna dos passarinhos.

Entrára emfim na sala.

Havia grupos aqui e ali. Graves politicos que discutiam, financeiros de abdomen volumoso, matronas severas, moços elegantes, e no meio de tudo um bando de raparigas alegres, garridas, a chilrearem, a rirem e a cochicharem entre si, contentes da nova companheira que lhes chegava de longe, mas muito mais contentes ainda d’aquella atmosphera festiva e perfumada que as envolvia.

No meio d’esse grupo encantador é que ella estava de pé.

Um corpo deliciosamente modelado, de uma graça franzina e toda moderna.

Tinha um vestido de foulard muito justo, muito elegante, e no meio dos rôlos do seu crespo cabello louro aninhava-se uma rosa vermelha, uma rosa côr de sangue.

Os olhos azues, altivos e desdenhosamente fixos lembravam... os olhos metallicos de sua mãe.

Pois era aquella a sua Margarida?!

Era.

Não lhe restava a menor duvida. Apesar de todas as differenças tinha-a conhecido logo.

A sua limpida testa de creança um pouco curta, indicio de obstinação e de capricho; a sua bocca pequenina, até alguma cousa dos seus gestos antigos, tudo trouxe ao coração de Thadeu uma lufada de saudades irresistivel.

Correu para ella como doudo, atravessou pelo meio de toda aquella gente, sem a menor timidez, sem o menor receio, sem notar sequer o espanto que a sua comica apparição tinha excitado.

As raparigas que faziam um circulo em torno de Margarida separaram-se n’uma subita explosão de risadinhas, e ella, olhando muito fixa para Thadeu, exclamou rindo, rindo sem poder mais:

— Ih! credo, primo Thadeu, que casaca!... que figura!... Pelo amor de Deus vá já tirar essa casaca e venha depois!

E ria, ria sem disfarce, emquanto elle com os braços quebrados, o rosto estupido, a physionomia espavorida, sentia dentro de sua pobre alma sem consolo esphacelar-se, desfazer-se, diluir-se em lagrimas de fel a ultima esperança da sua vida!

 

VIII

 

Tres dias depois, Margarida, que se esquecêra completamente d’aquelle insignificante episodio em que Thadeu figurára, encontrou-o por acaso na Baixa, onde andava fazendo compras com sua mãe, ao lado de Henrique, que para o distrahir tinha ultimamente fingido precisar absolutamente da sua companhia.

Margarida sahia de uma loja e ia a saltar ligeira, elegante com a sua graça parisiense para dentro do coupé delicioso que, de proposito para a filha, o marquez havia encommendado mezes antes á casa Binder, e que dous finos cavallos inglezes esplendidamente ajaezados faziam voar pelas ruas da nossa pacata Lisboa.

A vista de Thadeu despertou-lhe umas poucas de idéas que ainda não lhe tinham occorrido.

Lembrou-se, por exemplo, de que não o vira mais, desde o instante em que elle se apresentára diante d’ella com uns transportes ridiculos e uma toilette horrorosa, na sala povoada pelas suas novas amigas, tão ironicas, tão cruelmente maliciosas...

Por que não tornára ella a vê-lo? Tinha-lhe esquecido perguntar por elle, fôra muito ingrata...

E sem raciocinar aquelle impulso estranho, parou, esperou em uma attitude de coquetterie irresistivel que os dous amigos se approximassem, visto que ambos caminhavam na direcção em que ella estava, e estendendo a Thadeu a sua mão esguia e fina, a sua mão de loura, enluvada de pellica côr de bronze, disse com uma expressão de finura e malicia intraduzivel:

— Então seu ingrato! Não me tem querido apparecer! Por onde tem andado?

E ficou a olhar para elle, como quem espera alguma cousa, interrogadora, fascinante, sempre aristocratica.

A marqueza, que já estava dentro do trem, murmurou levemente enfastiada:

— Então, Margarida, ficamos aqui?...

E Thadeu córando, balbuciando, resmoneava confusamente uma banal desculpa.

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Margarida saltou emfim o estribo que o criado conservava desdobrado, envolvendo n’um olhar magnetico dos seus scintillantes olhos azues, a bella e viril figura de Henrique de Sousa, que presenciára mudo aquella scena inexplicavel.

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IX

 

Uma noite em S. Carlos estreiava-se uma celebridade lyrica na Norma, que então estava muito na voga.

Henrique vivamente instado pela mãe e pela irmã e tambem um pouco pelo seu proprio desejo, determinou ir ouvir a opera adoravel, que é uma verdadeira perola musical.

Havia tempos que elle andava nervoso e inquieto.

Não sabia bem o que tinha mas sentia-se mal.

Tinha impaciencias nervosas que nunca havia conhecido no seu organismo equilibrado e harmonico.

Surprehendia-se ás vezes doentiamente, a fazer planos impossiveis antes de adormecer; a imaginar quanto seria bom ser muito rico, viver na alta roda, n’aquella esphera aristocratica e distincta em que se não trabalha, em que se falla de um modo especial e caracteristico, com termos escolhidos, com inflexões muito mais suaves, com uns certos desdens que d’antes lhe pareciam ridiculos e que lhe estavam agora parecendo superiormente requintados. Ter um palacete com alguns salões apainelados em cuja escadaria de marmore povoada de estatuas e de plantas raras, se aprumassem espadanados lacaios de farda; ter equipagens luxuosas, ter uma mulher loura, franzina, de testa curta, de olhos piscos, com um sorriso felino, quasi cruel nos labios vermelhos, e um corpo flexivel, delicado, mignon de estatueta de biscuit... Uma mulher que se chamasse Margarida.»

N’este ponto da sua scisma Henrique suspendia-se como que sentindo a estranha impressão de quem vae caminhando por uma estrada lisa e de apparencias tranquilisadoras, e encontra de repente, debaixo dos pés, quando menos o espera um reptil desconhecido.

Margarida! que tinha elle com Margarida?!

Lembrava-se que a desprezára e amaldiçoára no dia em que vira chegar a sua casa, pallido, desfeito, com uma casaca grotesca e uns olhos inchados e vermelhos de chorar, o seu pobre amigo Thadeu, que na vespera o tinha deixado tão louco de alegria e tão triumphante de felicidade!

Margarida!

Vira-a depois loura, elegante, com o seu desdenhoso olhar de myope, subir com ligeiresa fidalga o estribo de uma carruagem, descobrindo os finos bordados das suas saias, o pequeno pé primorosamente calçado, todo um poema de mysteriosas elegancias.

Nunca mais a vira, nunca mais desejára vêl-a!

Para que?

Ella lá tão em cima, elle cá em baixo lidando, tressuando, luctando para alcançar... o que talvez não tivesse nunca!

Um nome, uma posição, o pão de sua mãe e de sua irmã, sem amarguras e sem pequenas privações humilhantes!

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N’aquella noite em S. Carlos a musica sentimental e enervante de Bellini, o contacto de todo aquelle mundo ocioso e rico ainda o tornava mais nervoso e excitado. Estava quasi arrependido de ter vindo.

N’isto sentiu que lhe batiam no hombro e uma voz aflautada, uma voz tremelicante, com inflexões muito alegres, disse-lhe ao ouvido:

— Anda cá acima, pediram-me para te vir buscar, para te apresentar; gostam muito de ti! Não imaginas como és estimado pela minha querida Margarida, desde que soube que tens sido o meu unico amigo, o meu auxilio na vida, aquelle a quem mais devo depois d’ella.

E Thadeu, porque era elle, arrastava pelos corredores das frisas Henrique surprehendido, contrariado, com uma estranha sensação de desconforto a comprimir-lhe fortemente o peito.

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X

 

Na frisa, radiante de mocidade, de fina distincção, com todos os requintes da moda a fazer realçar a sua belleza moderna, fragil, quebradiça, alguma cousa amaneirada estava Margarida.

A marqueza ao lado d’ella conversava com um velho diplomata.

Á entrada dos dous a mãe teve um comprimento um pouco secco, a filha um sorriso de graça adoravel, de garridice innata mas irresistivel.

— Quiz vêl-o porque soube que tem sido muito bom para Thadeu, excellente mesmo. Elle contou-me tudo.

Pobre rapaz! poor dear boy! e sorriu-se outra vez com um aspecto bondoso e protector que a transfigurou por instantes.

— Eu tinha-me esquecido, o Thadeu é que se lembrava de tudo. Fez-me reviver a minha infancia. Sempre é bom. Agora já estou tão velha que acho immensa graça a estas recordações do passado.

E graciosa, maternal, afastando toda e qualquer idéa que não traduzisse uma solicitude encantadora para o seu companheiro da infancia, Margarida foi o que seria a noiva idealisada pelo austero coração de Henrique.

E d’ali em diante o amigo de Thadeu deixava-se arrastar de oito em oito dias até o palacete dos marquezes.

Era ali optimamente recebido.

Margarida, adorada pelos paes, dava a lei em casa. Sabiam-n’a voluntariosa, cheia de caprichos e de phantasias, tinham medo de irrital-a resistindo-lhe.

Depois, Henrique com as suas maneiras de gentleman, com a gravidade desaffectada do seu porte, com os generosos ardores da sua rica organisação, revelava-se o que era: um homem de futuro, um homem que havia de ter nome mais tarde.

O marquez, cynico como a vida o tornára, era juiz excellente n’este assumpto.

Conhecia um homem depois de duas horas de conversação.

As proprias severidades do moço, amollecidas agora ao contacto da perturbadora formosura de Margarida, agradavam ao marquez como uma cousa nova, picante, inteiramente imprevista para elle.

Thadeu nadava em um jubilo celeste.

Era muito bem tratado; Margarida tinha com elle umas garridices angelicas que ás vezes o deixavam pallido e suffocado, encostado a uma arvore ou a um banco do jardim para não cahir no meio do chão desfeito em lagrimas.

Thadeu tinha agora de vez em quando um odio selvagem á sua mesquinha e enfezada personalidade.

Se elle não fosse como era... se fosse alto, esbelto, forte... póde ser... tem-se visto tanta cousa...

E tambem ficava absorto, idiota, seguindo com um olhar esgazeado umas visões que o iam enlouquecendo.

Ella no emtanto vinha alegre, radiosa, cheia de vida, com o seu vestido de foulard côr de carne a desenhar-lhe as fórmas flexiveis, com uma rosa nos seus cabellos louros, dava-lhe o braço, e arrastava-o enlevado e estupido pelas alamedas do jardim.

— Conta-me lá o que tu fazias quando eu cá não estava! conta-me em que pensavas. Estavas muito triste? Quando é que viste pela primeira vez o teu amigo Henrique? Que lhe dizias tu de mim? E elle?... elle que idéa fazia d’esta endiabrada pessoa que tu lhe descreveste tanta vez com a tua phantasia de poeta — porque tu quando se trata de mim és poeta, meu pobre Thadeu! — Anda, falla, conta-me o que vocês faziam, gosto tanto de te ouvir!

E toda dobrada sobre o hombro d’elle, meiga, electrica, fascinadora, com meneios de serpente, levava horas passeando pelo braço de Thadeu.

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Um anno depois d’esta época, Margarida declarava terminantemente aos paes que voltava para França, que ia morrer freira no convento onde vivêra educanda, se elles a não casassem com Henrique.

E dizia-lhes estas palavras n’uma tal violencia de gritos e de soluços, tão magra, tão empallidecida n’aquella lucta intima de doze longos mezes, que o marquez encolheu os hombros com a suprema indifferença que fazia d’elle um viveur, e que a marqueza animada pela placidez do marido ao encarar esta questão magna, declarou á filha, hoje seus unicos amores, que ia fazer tudo para lhe dar o noivo da sua alma, o escolhido pela sua ardente paixão juvenil.

Teve medo de ver a filha definhar-lhe e morrer-lhe nos braços. Via-a tão abatida, tão triste, tão enfastiada da vida, que a idéa de perdêl-a sobrelevou a todos os seus escrupulos de rica e de fidalga.

Margarida auctorisada pelos paes pôde dizer a Henrique, que o amava!

Quanto amor! que enthusiasmo febril n’este sublime impudor da creança opulenta, formosa, aristocratica, disputada por dezenas de noivos tão ricos e tão nobres como ella, que vem espontaneamente offerecer a sua mão e a sua vida inteira ao obscuro plebeu que passa confundido no meio das multidões desconhecidas!

E esse impudor ninguem mais fidalga e altivamente do que Margarida o soube ter.

Sabia-se adorada, estremecida, sabia que um riso d’ella bastaria para as alegrias e para as torturas de uma semana passada por Henrique na labutação da sua mesquinha existencia; mas sabia tambem que elle era tão grande, tão forte, tão orgulhoso e digno que podia morrer, mas que morreria calado, sem que uma palavra revelasse o seu martyrio!

— Thadeu, meu querido Thadeu, meu amiguinho, tenho sido muito má, não tenho querido contar-te nada com medo de que lhe dissesses a elle alguma cousa. Eu queria ser a primeira a dizer-lh’o, queria gozar do seu sorriso, do seu olhar de anjo, de martyr beatificado, do seu olhar que me enlouqueceu para sempre... Agora digo-te, já não tenho motivo nenhum para t’o esconder.

Vou casar-me, vou ser d’elle, só d’elle... levar-te-hei comnosco... Olha que foi elle que m’o pediu... Vê como elle é bom. Eu a fallar a verdade estava tão douda que nem me lembrei de similhante cousa; mas elle fallou logo em ti, foi a sua primeira vontade! Adoro-te visto que elle é teu amigo. Has de aborrecer-me ás vezes, meu pobre Thadeu, porque nunca entendes a tempo quando deves ir-te embora, mas eu hei de educar-te. Verás! Viveremos todos tres. Nunca mais te hei de tratar mal! nunca mais me hei de rir da tua casaca. E, a proposito, tu ainda a tens, aquella malfadada casaca? Não me faças rir no dia do meu casamento, pelo amor de Deus manda fazer uma nova para esse dia. Não tenhas medo de gastar. Eu tenho muito. Sou rica, muito rica, somos todos tres muito ricos.

E douda, anhelante, no delirio da creança que venceu a sua primeira teima, na dilatação ampla de uma alma que conquistou o seu desejo supremo, Margarida expandia n’estas palavras diffusas, incoherentes, sem nexo, toda a felicidade que era hoje d’ella e que julgava eterna.

Thadeu escutava com o olhar morto e vidrado de um somnambulo.

Depois emmudecido por uma dôr aguda que lhe rasgava as carnes de todo o seu corpo como um punhal de muitas laminas, sahiu do quarto cambaleando como um ebrio.

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No dia do casamento de Henrique houve dous entes que na humilde tristeza de uma pobre casa, choravam unidos todas as lagrimas da sua alma.

A um d’esses entes pungia-o uma angustia dilacerante demais para que a palavra humana a pudesse traduzir.

A outro sobresaltava-o um presentimento horrivel, como que um dobrar de finados que lhe écoava lá dentro, e ao qual não podia fechar os ouvidos.

Esses dous entes esquecidos, voluntariamente afastados das pompas principescas d’aquelle dia, das festas d’aquella solemnidade esplendida eram Thadeu e a irmã de Henrique.

XI

 

De feito havia já cinco annos que viviam juntos em uma casa espaçosa e lindissima de Buenos-Ayres.

Henrique pedira com tão meigas e sentidas palavras a Thadeu para que elle os não deixasse, que depois da viagem de rigor feita pelos noivos á Suissa e á Italia o bom cão fiel foi viver junto d’elles.

As investigações da sciencia, o estudo paciente dos homens e das cousas, altas aspirações inspiradas pelo marquez a uma gloriosa carreira politica, absorviam Henrique, emquanto que Thadeu mais amadurecido agora pela experiencia da vida, administrava a casa, tomava contas aos feitores e criados, punha em ordem os róes, recebia os rendimentos, pagava aos fornecedores, era por assim dizer o mordomo mór da opulenta fortuna da sua companheira de infancia.

Margarida continuava a ser o enlevo e o mimo de quantos viviam junto d’ella.

De uma organisação delicada, nervosa e vibratil, com um aspecto infantil, que infundia uma vaga e doce idéa de protecção; boa, d’esta bondade superficial e egoista, que consiste em não gostar de ver ninguem triste ao pé de si, todos os seus caprichos se convertiam n’outras tantas graças, todas as suas exigencias se impunham com a tyrannia adoravel de uma supplica!

O marido tinha por Margarida aquella paixão deleteria e quasi covarde, que ella lhe inspirára logo no primeiro dia.

Não sabia resistir senão a muito custo, a um olhar d’aquelles olhos humidos e radiantes, a um sorriso d’aquelles labios vermelhos, a um gesto d’aquellas mãos finas, esguias, pallidas, da suave pallidez dos lyrios.

Não era bem amor, era uma fascinação, uma embriaguez, uma d’estas doenças que exercem no cerebro a sua acção paralysadora.

Margarida que nenhuma força superior tentava dominar, déra expansão completa a todos os caprichos da sua colorida e quente phantasia.

Adorava o luxo, as cousas d’arte, a musica, as flores raras, frequentava muito o alto mundo onde era requestadissima, vivia na perpetua idolatria de si propria, que a pouco e pouco a inutilisava para os graves deveres da vida.

Thadeu no meio da sua céga e embrutecedora adoração obedecia-lhe como um escravo. Só elle sabia as despezas collossaes, as extravagancias principescas d’aquella pequenina pessoa, activa, graciosa, phantasista como um poeta oriental.

Mas economisava ridiculamente em todas as verbas, para que ella, a rainha, a perola, a Margarita dos seus sonhos d’outro tempo não franzisse um minuto a sua testa curta, a sua testa de teimosa, na contrariedade de um desejo insaciado.

E ella estava tão habituada á submissão e á humildade d’aquelle pária, que o tratava como um traste, um objecto seu, com o qual não tinha de mostrar o minimo constrangimento, a minima attenção affectuosa.

— Thadeu, quero isto! Thadeu, quero aquillo! Thadeu, vi hoje na loja de F. um adereço de um conto de réis. Se o não mandar buscar até ámanhã vendem-n’o. Eu quero-o. Não me deixes ficar sem elle. Fazias-me chorar!

Não lhe pedia a lua como em outro tempo, mas quantas vezes lhe pedia cousas quasi tão inacessiveis como a lua!

Margarida tinha dous filhos. Um menino e uma menina. Dous cherubins.

Mais meigos do que a mãe nunca fôra, mais doceis, mais tranquillos, tendo no olhar a serenidade melancolica do olhar de seu pae!

Thadeu envelhecido, de uma velhice precoce que assombrava os que o haviam conhecido na infancia, tinha por essas duas creanças um louco amor de avô.

Aquelles quatro seres eram a sua vida.

Fundia-os a todos na mesma adoração apaixonada e timida.

Vivia d’elles e para elles.

Henrique era o seu respeito. Margarida o idolo do seu passado, os dous cherubins louros, a unica esperança suave do seu futuro.

Sacrificar-se, esquecer-se, abnegar de si, eis o modo obscuro e sublime pelo qual elle sabia querer!

Mas os dous pequeninos que não eram turbulentos nem crueis, tinham nas suas caricias inconscientes o balsamo poderoso, o balsamo divino para as chagas occultas d’aquelle coração que a vida ulcerára tanto e tanto.

 

XII

 

Desde algum tempo que Thadeu andava inquieto.

Com o seu faro finissimo de rafeiro fiel presentia no ar um perigo desconhecido, alguma cousa de mysterioso e de sinistro, que ouvia rugir ao longe como no fundo de uma voragem.

Na apparencia todos viviam tranquillos:

Henrique sempre bom, sério, pensativo, de uma indulgencia de forte, de uma doçura de heroe.

Margarida sempre buliçosa, inquieta, cheia de desejos infantis, de caprichos, de alegrias ruidosas ou de melancolias subitas que ás vezes no silencio da sala fôfa e discreta pareciam a Thadeu um grito de alarme na monotonia do deserto.

As criancinhas... sempre os seus mais dôces amores, aquelles de que jámais lhe proviera uma amargura.

Quando Thadeu pensava que podia uma fatalidade qualquer separal-o dos seus dous anjos, desatava a chorar como um perdido na solidão do seu quarto.

 

XIII

 

Elle estava sentado ao pé da mesa. Primeiro estivera fazendo contas, róes de casa, agora pendia-lhe a cabeça embevecido n’uma vaga scisma.

Sem saber explicar por que, n’aquelle dia lembravam-lhe tantas cousas do seu passado!...

Sentia dentro de si uns vagos assomos de revolta, lembrando-se das humilhações que padecêra, dos tratos com que lhe haviam enfraquecido o corpo e atrophiado a intelligencia. Depois... na sua vida, até ali obscura e dolorosa, surgia de repente envolta nas rendas brancas do seu berço uma visão deliciosa, uma pequena fada, a sua amiguinha, a sua Margarida!...

Como fôra feliz com ella e por amor d’ella...

Comtudo... pensando bem... para essa felicidade chymerica fôra elle quem fornecêra todos os elementos. Ella nunca vira no pobre Thadeu senão um instrumento dos seus caprichos, um escravo das suas vontades...

Em todas as delicias com que dourara a sua vida não havia uma só que fosse nascida da vontade de ser-lhe boa, util, consoladora!...

— É verdade, murmurava o pobre doudo, é verdade! Ella nunca teve coração!

E suspendeu-se como que aterrado d’aquella blasphemia.

N’este momento Margarida entrava pelo quarto de Thadeu, pallida como um cadaver, com os grandes olhos dilatados n’uma expressão de indescriptivel pavor.

Agarrou-se-lhe ao braço e disse lhe baixo, n’uma voz estrangulada e rouca:

— Henrique chegou da quinta. Eu não o esperava. Contava que elle viesse ámanhã. No meu gabinete ha uma pessoa que deve sahir sem que meu marido a veja. Ouves? Estou perdida... Estava perdida mas lembrei-me de ti... Salva-me...

Não me digas nem uma palavra, proseguio vendo que elle ia fallar. Uma demora de segundos perde-me sem remissão.

E sahiu com o seu passo miudinho, o seu passo chic, aprendido de passagem nos boulevards de Pariz.

Thadeu sahiu do quarto, e quando tornou a entrar ali, acompanhava-o um moço muito pallido, de bigode louro, cabello cuidadosamente frisado e toilette irreprehensivel.

Não trocaram uma palavra. Thadeu apontou-lhe para uma cadeira, fechou a porta do quarto á chave e sentou-se junto da janella, que dava sobre o jardim.

Era em plena primavera. Pela janella aberta entrava um perfume vago e subtil, um perfume de rosas, de madresilva e de baunilha em flôr.

Ouvia-se o rir e o chilrear das duas creanças, e entre as ramarias entrelaçadas dos grandes arbustos exoticos, Thadeu viu passar com os seus meneios serpentinos, o seu vestido branco, a sua cabelladura d’ouro, a figura esbelta de Margarida pendida ao braço do esposo com quem fallava baixinho.

Foi a ultima visão que teve d’ella.

Uma visão de perfidia felina e de felina formosura.

XIV

 

— Deixe-se estar quieto. Não vê que não póde sahir d’este quarto senão á noite? pronunciou a voz enrouquecida de Thadeu.

E sem dar mais attenção ao seu odioso hospede, poz-se a arranjar papeis, uma trouxa de roupa, algumas velhas reliquias, os retratos dos seus dous pequeninos, dos seus netos como elle lhes chamava.

Depois despregou da parede as duas photographias de Henrique e de Margarida. A d’elle beijou-a, e guardou-a com as dos pequeninos. A d’ella... approximou-a d’uma vela que acendêra e deixou-a arder até que ficaram só cinzas. Estava medonhamente livido.

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Era noite: sentiu o rumor conhecido da hora de jantar, esperou que o criado viesse chamal-o e respondeu-lhe:

— Diga aos senhores que jantem. Eu hoje estou convidado fóra, não os posso acompanhar.

Olhou para o homem que alli estava na mudez estupida dos malvados, que são ridiculos, e disse-lhe:

— Venha d’ahi.

Sahiram juntos.

Thadeu nunca mais voltou; não pôde.

Pediu a esmola de um agasalho á irmã de Henrique, e achou meio de fazer n’um escriptorio cópias que lhe rendem tres tostões diarios!

D’isso come e d’isso se veste.

Fingiu-se offendido com Henrique por uma duvida mesquinha de contas, que este nunca chegou a perceber.

Aceitou o papel degradante do ingrato que morde a mão que o soccorreu.

Ninguem pôde nunca arrancar-lhe nem uma palavra do seu segredo.

Tem 35 annos e dão-lhe setenta.

As poucas pessoas que o vêem ou o desprezam por absolutamente insignificante ou têm por elle a commiseração que inspira um idiota.