Contos paraenses/A Licção de "Paleographo"

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A licção de "Paleographo"


A Heliodoro de Brito
 

I

 

A escrava Josepha teve, n’aquelle dia, um grande sentimento. Sua alma confrangeu-se toda, ante-soffrendo as trêdas amarguras do largo e profundo golpe que breve teria de receber-lhe o amantíssimo coração de mãe. — O commendador Pereira de Castro, que d’ali a dias seguiria para a Europa, de concomitancia com toda a familia, annunciara-lhe a sua resolução de levar comsigo a pequena Isaura, a sua querida filha, a mulatinha amimada, cria de casa, prenda favorita de todas as pessoas d’aquella abastada familia actualmente em vesperas de viagem.

E ella, a mãe extremosa, que só vivia do tenro affecto suavíssimo da filha, na tenebrosa passividade do seu captiveiro, — não obstante a bondade com que era tratada por todos, — teria de ficar no Pará, separada do pequenino ente que deslaçava-lhe o espirito em fulgidas chiméras de loiras phantasias, em meio ao triste vegetar da sua existencia!

Uma dôr profunda empolgou-lhe tyrannamente a alma e seus olhos, outrora privados de lágrymas sob o látego inclemente do seu primeiro senhor, antes de ser vendida ao velho Pereira de Castro, verteram largo pranto silencioso por toda a noite passada em claro após a declaração ouvida pela manhã.

Só a lembrança de tão rude separação fazia-a soffrer tanto; o que não seria a crua realidade?

Mas o commendador, ao vel-a concentrada e soluçando a furto, no dia seguinte, — com os olhos, mudamente cheios de quérulas expressões, fitos na rapariguinha, — acercou-se-lhe paternal e, com a voz molhada de benevolencias, consolou-a a meio.

— Que se não affligisse, ponderou. A pequena voltaria com elle e com a familia, d’ali a annos. E com quanta vantagem para ella! Promettia trazer-lh’a instruida, educada, elegante e feliz, — uma verdadeira senhora. Até ella, Josepha, se arrependeria então da sua tolice actual, porque reconheceria os beneficios que tinham querido fazer-lhe á filha. Pois não era certo que todos ali tratavam-n’as tão bem, á mãe e á filha e que esta era tida menos como uma ingênua do que como se, realmente, fosse originaria do casamento d’elle commendador com sua esposa? Confiasse a Josepha em seus senhores e o futuro mostrar-lhe-ia com exuberancia a justeza do seu proceder.

Estas palavras acalmaram um tanto a febricitante agonia da escrava. Eliminal-a, porém, d’alma, era impossivel, que não póde um coração de mãe deixar que a sorte, em qualquer de suas innumeraveis manifestações, lhe roube o ente dilecto por excellencia, sem estalar todo nos loucos frémitos delirantes da mais intensa dôr.

II

 
A familia do commendador Pereira de Castro seguiu viagem e, com ella, a pequena Isaura.

Josepha, a escrava, transportada ao cumulo das grandes e mudas afflicções, não pareceu viver desde a partida da filha. Viam-n’a as outras escravas atravessar calada os aposentos desertos, alheiada de tudo, olhando em frente, como se divisando estivesse nos curtos longes do horisonte limitado uma visão, só para ella creada, a attrair-lhe poderosamente o olhar, a absorver-lhe todas as forças vivas do espirito e da razão.

Mas um dia, trez annos depois, o socio do commendador mandou chamal-a ás pressas. Acudiu indifferente, sem mau modo nem solicitude na expressão do rosto, como quem está acostumado a pensar e agir por vontade de outrem.

O socio e procurador do velho Castro entregou-lhe, a sorrir, uma carta. Bateu desusadamente o coração da preta. Aquelle papel não poderia ser senão da sua Isaura: o commendador, de tempos a tempos escrevendo ao socio, pedia-lhe sempre informasse á Josepha estar a filha d’esta com saude, muito desenvolvida e bastante adeantada nos estudos. Segurou a carta a tremer, e ficou-se a olhar longamente aquelle homem, que sorria-lhe docemente, compadecidamente.

— Anda, vae, disse elle; é uma carta de tua filha.... escripta por ella propria.

Escorreram lágrymas jubilosas dos olhos da escrava. Uma alegria sem fim dava-lhe precipitados pulos ao coração. Conservou-se, todavia, immovel deante do branco, e olhava para elle, como desejando dizer-lhe alguma coisa.

Elle pareceu comprehendel-a:

— Queres que a leia?

— Sim, sinhô, respondeu Josepha, entregando-lhe apressada a carta e preparando-se para ouvil-a, para saborear-lhe o gosto transcendente dos sentidos, a divina musica ignorada das dôces palavras escriptas pela mão infantil da filha.

O socio do Castro leu:

 

MINHA QUERIDA MÃE,

Escrevo-lhe de Paris, onde estou aprendendo n’um collegio e d’onde lhe envio milhares de beijos n’esta carta, a primeira que por meu punho escrevo, para lhe contar, se podesse, as muitas saudades que tenho da minha santa mãe e o grande desejo que sinto de estudar muito, para voltar depressa para onde está a mãesinha do meu coração. Ante-hontem fiz dez annos e o meu protector offereceu-me uma bonita penna d’ouro, dizendo-me que com ella deveria escrever-lhe esta carta, minha boa mãe. Tenho passeado muito e gostado immenso d’esta bella cidade, onde o meu prazer seria completo se a senhora aqui estivesse junto da sua filha.

Abençôe-me e receba mil beijos que lhe envia

 

ISAURA.

Paris, 30 de dezembro de 1887.

 

Josepha chorava, soluçando, quando ouviu o nome que rematava a carta, — simples linhas banaes, cheias de phrases feitas, possuidoras, comtudo, do grande merecimento de virem de parte da sua querida Isaura.

III

 

Era o dia 13 de maio de 1888. As ruas do Pará tinham festiva apparencia, transbordando de povo rejubilado pelo conhecimento da lei que extinguira a escravidão no Brazil. Cruzavam-se no ar o esfusiamento de grandes girandolas de foguetes e o écco ingente de milhares de vozes bramindo enthusiasmadas louvores e vivas em honra ao glorioso successo. Galhardetes e corêtos erguiam-se pelas ruas. Bandas marciaes diffundiam no espaço alegres harmonias de cálidos hymnos excitantes.

Da casa do commendador Pereira de Castro correram para a rua todos os pretos, afim de lhes ser dada a parte a que tinham direito no geral regosijo.

Alguem ficou, todavia, indifferente aos sons exteriores do contentamento publico. Uma preta deixou-se estar na cosinha e espreitava agora para todos os lados, temendo fossem surprehendel-a.

Quando teve a certeza de estar bem só, esboçou nos roxos labios um sorriso espiritualisado e, tirando do seio um velho Paleographo, abriu-o nas primeiras paginas murmurando commovida:

— Vamo’ estudá a licção. Nhô Manduca, disse que p’r’ó mez que vem já posso lê a carta da minha filhinha. Quando chega esse dia, meu Deus?

E curvou a cabeça para o livro, na obstinação das grandes vontades vencedoras.