De Magistro/Comentos do tradutor

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Comentos do tradutor

A tradução anotada e comentada de Aurélio Agostinho — De Magistro do ano de 389, que aqui exibo é, na verdade, uma releitura barroquiana, da tradução que levei a cabo na dissertação que apresentei em 2009, ao curso de Pós-Graduação em Estudos da Tradução, da Universidade Federal de Santa Catarina, como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Estudos da Tradução.

O corpus de análise pertence a B I B L I O T H E C AA V G V S T A N A — Biblioteca virtual da Fachhochschule AugsburgUniversity of Applied Sciences, conhecida por The Residence of the Gods, um acervo de alta credibilidade, que contém obras em latim, grego, alemão, inglês, francês, italiano, espanhol, polonês, russo e iídiche; mantida pelo Prof. Ulrich Harsch, trabalho pelo qual recebe respeitáveis referências no meio acadêmico internacional (HARSCH, 2007).

Os fundamentos de teoria do conhecimento de Agostinho aparecem em De Magistro como um tratado pedagógico, na forma de colóquio pelo qual o pai Aurélio Agostinho, aclara a seu filho Adeodato que, somente no mundo divino poderia existir a perfeição do ser e a luz do verdadeiro conhecimento.

Último diálogo filosófico de Agostinho, redigido após a morte prematura do filho, que então contava com dezesseis anos, mostra a dependência recíproca da palavra e do pensamento, ao tratar da questão da linguagem na comunicação entre os homens, contudo, conceitua principalmente aspectos pedagógicos ligados a linguagem do pensamento interior. Sobre a obra, em uma conversa com o amigo Alípio, expressou:

Juntamos a nós o menino Adeodato, filho carnal de meu pecado. Aquele que muito bem me transformou. Com quase quinze anos e grande talento estava adiante de muitos homens idosos e doutos(...) Existe um livro nosso que se intitula De Magistro, onde ele dialoga comigo. Sabeis que todas as apreciações que ali se inserem, são atribuídas ao meu interlocutor, quando contava com dezesseis anos. Nele observei coisas ainda mais prodigiosas...[1] (m.t.) (in CONFESSIONVM Liber XIII - IX 6.14).


No diálogo, o pai, professor de retórica durante a juventude, enceta uma análise ampla que envolve a linguagem e o signo, o significado dos signos, as palavras como signos e, os objetivos da linguagem, todos evidenciados na gramática e na semântica. Para tanto, o retor parte do inferior para o superior, do exterior para o interior e, nesta interioridade antevê o encontro com o verdadeiro Mestre, o único a ensinar a verdade das coisas; foco este determinante na definição do nome da obra, retirado da Sagrada Escritura: [...] vós não vos façais chamar mestre, porque um só é vosso Mestre, e vós sois todos irmãos[2] (Mt 23.10).

Agostinho, no diálogo, partiu de um argumento retirado do Mito de Er, o qual serve a Platão para explanar sua Teoria da Reminiscência, que pressupõe um saber inato, do qual o conhecer se dá no rememorar; a conhecida anamnese platônica (PLATÃO in Diálogos LIVRO X, 1971).

Agostinho concorda parcialmente com reminiscência platônica ao admitir que as verdades não sejam transmitidas, mas rememorizadas.

Quando a própria memória perde alguma coisa, como acontece quando esquecemos e procuramos lembrar, onde é que a procuramos, a não ser na própria memória? Se esta apresenta uma coisa por outra a rejeitamos até que nos ocorra o que buscávamos. E quando isto ocorre, dizemos: É isto! Que não diríamos se não a conhecêssemos, e nem a reconheceríamos se dela não nos lembrasse[3] (in CONFESSIONVM Liber XIII-X.19.28).


A ideia de recordar do verbo latino recordari está ligada a anamnese, lembrar de algo que já se sabia, o que leva a considerar o rememorar como evocar algo desconhecido à consciência e que estava armazenado no recôndito da alma; portanto, ensinar é fazer aprender, e aprender não seria mais do que rememorar.

Agostinho, porém, só admite a reminiscência associada à ideia de iluminação, por isso eterna e universal. Assim, afirma que os sentidos só possam comunicar verdades absolutas. Errados seriam os juízos interpretados pela razão a partir de meras percepções.

Agostinho via o sentido interior, como um juiz:


Assim dizemos que todo aquele dotado de sensação é melhor do que aquilo que o faz sentir, o que talvez nos levasse a conceder também que todo ser dotado de inteligência seria melhor do que objeto de sua intelecção, o que seria falso. Com efeito, o homem compreende o que é sapiência e, contudo, não é superior a ela[4] (in DE LIBERO ARBITRIO Liber V.12).


Agostinho tinha como iluminação as revelações de verdades inteligíveis, eternas e universais. Agostinho acrescenta que o aprender se dá no descobrir em si próprio as verdades eternas e imutáveis, num influxo imanente de Deus sobre a inteligência, desta forma, reifica a teoria platônica e deriva sua natureza para uma episteme-teológica-filosófica, que serviu de base para sua Teoria da Iluminação Divina. Sobre seus objetivos com a obra, relatou:


No mesmo período escrevi um livro intitulado De Magistro. Nele se discute e se indaga a si mesmo, e se descobre que o Mestre que ensina todo o conhecimento ao homem não é outro a não ser Deus, segundo o que está escrito no Evangelho: Seu único Mestre é Cristo[5] (in RETRACTATIONVM Liber I.12).


De Magistro, obra do latim tardio (200 a 500), pós época clássica, reflete o período em que a língua passou por miscigenações das mais diversas, em face da expansão do domínio romano, com o escambo cultural entre povos vencidos e vencedores. Há ainda, que considerar em sua tradução, uma acrescência cultural determinante: a vida de Agostinho e do filho deu-se em um mundo repleto de signos e significados, no qual as palavras não se encontravam apenas na conjuntura de um dicionário, mas circunscritas a um contexto sócio-político em permanente estado de convulsão, dado vivenciarem exatamente a era derradeira do império romano.

Influências das mais diversas guiaram Agostinho a um movimento pendular, conforme descreve Peterson: passou de uma vida mundana para a monástica, do maniqueísmo ao ceticismo acadêmico, de antigo e notável professor de retórica a escritor e Pai da Igreja cristã latina no ano de 386 (1981, pp. 59-64).

A eloquência do retor Agostinho, como admitiu, há de ser creditada à grande influência nele exercida por Cícero (106 - 43 a.C.):


Entre estes eu, ainda fraco de espírito me instruía em livros de eloqüência, nos quais desejava sobressair-me, com a intenção condenável e vã de saborear a vaidade humana, segundo o uso disposto cheguei de algum modo ao livro de Cícero, cuja linguagem digna de admiração transporta à sede do coração e da alma. Todavia, aquele livro chamado Hortênsio continha em si uma exortação ao estudo da filosofia. Ele na verdade mudou minhas afeições e encaminhou-me para Vós, Senhor, e transformou minhas preces em promessas e por outro lado fez meus desejos serem outros[6] (in CONFESSIONVM Liber III - 4.7).


Cícero, na verdade, representou um primeiro momento da nova vida de Agostinho, mas outros o seguiram, como Ambrósio de Milão (340-397), ministrante de seu batismo, neoplatônico, estudioso da gramática, da retórica, da literatura greco-romana e do direito; considerado um dos quatro máximos doutores da Igreja cristã:

E, ao vir a Milão para ver o Bispo Ambrósio, notório em todos os cantos da terra por seus excepcionais predicados e vosso mui respeitoso servidor, cujo vigor de sua eloqüência diligentemente alimentava a ti [...] zelosamente o ouvia quando pregava ao povo, não com a intenção de obrigação, mas para explorar a sua facilidade em falar e ver se correspondia a notoriedade; conforme assentava a sua fama; se realmente era uma sumidade ou se seria indigno da reputação em oratória que lhe predicavam [...] deleitava-me com a suavidade do sermão, tanto quanto com a sua erudição, muito maior que a de Fausto[7] (in CONFESSIONVM Liber V - XIII.23).


Agostinho, a partir dos ensinamentos da Sagrada Escritura recebidos de Ambrósio, pôde vivenciar o sentido da transcendência cristã:


[...] frequentemente ouvia Ambrosio dirigir-se ao povo em copiosos sermões; [...] A letra mata, por outro lado o espírito vivifica [...] removido o véu místico do que foi dito e me agravou, a espiritualidade se desvela, dado que se porventura não se falasse, a verdade até agora fosse ignorada[8] (in CONFESSIONVM Liber VI - IV.6).


A influência neoplatônica, segundo Costa (2002), deu-se pelas traduções latinas de Victorino (285-362); entres outras, a Ysagoge de Porfírio, as Categorias de Aristóteles e as Enéadas de Plotino. Desta última, Agostinho inferiu a relação entre Deus e o Verbum:


[..] nelas li não com estas mesmas palavras, mas provado com muitos e numerosos argumentos, que no princípio era o Verbum e o Verbum estava em Deus e Deus era o Verbum. no princípio este existia em Deus; todas as coisas foram feitas por Ele, e sem Ele nada seria criado; o que foi feito, nele é a vida, e a vida era a luz dos homens; a luz brilha nas trevas, e as trevas não a compreenderam; a alma do homem, ainda que testemunhe a Luz, não é, porém, a própria Luz, mas o Verbum próprio de Deus, que é a luz verdadeira que ilumina todo homem que vem a este mundo?[9] (in CONFESSIONVM Liber XII — IX.13).


A Victorino[10], Agostinho nutria profunda admiração e a ele se referiu:


[...] aquele em alto grau e doutíssimo ancião, exímio em todas as ciências liberais, leitor que tantas obras filosóficas que ajuizou e ensinou tantos senadores egrégios e que pelo seu insigne e notável magistério, merecera ter acolhida sua escultura no foro romano, a honraria que os cidadãos deste mundo têm por mais excelsa[11] (in CONFESSIONVM Liber VIII — II.3).


Agostinho registra a influência neoplatônica a que se submeteu quando a retrata de um diálogo que manteve com Simpliciano:


Ao consultar a Simpliciano, instituidor do Bispo Ambrósio na concessão da graça, que em verdade o amava como a um pai, narrei-lhe o período do meu erro. E quando, lhe disse que lera os livros platônicos vertidos para o latim por Victorino — outrora retor em Roma, e de quem eu ouvira dizer ter morrido cristão — ele deu-me os parabéns por não pender aos escritos de outros filósofos, cheios de falácias e enganos [...] nestes, de todos os modos encontramos Deus e sua palavra[12] (in CONFESSIONVM Liber VIII — II.3).


Entrementes à leitura da Sagrada Escritura sob a tutela de Ambrósio, acrescida de livros platônicos e, o contato com a filosofia de Plotino, superou o ceticismo; posição filosófica que afirmava a impossibilidade do conhecimento e do juízo de valor como conclusão, conforme testemunhou: Por outro lado li alguns livros de Plotino, a quem estimo com justiça por ser muito diligente, e confrontava quando podia, o valor de tais considerações, com aquelas autoridades que nos transmitem os divinos mistérios[13] (in DE BEATA VITA Liber I — 1.4).

Agostinho, no entanto, tinha reservas à teoria de Plotino, principalmente a respeito do dogma da encarnação e ressurreição de Cristo, que para ele era, ao mesmo tempo, homem e Deus, o Verbo seria criador de si e seu filho Cristo, nada mais seria que o verbo encarnado, a fala de Deus feita homem:


Da mesma forma li nesse lugar que o Verbum de Deus não nasceu da came, nem de sangue, nem da vontade do homem, mas de Deus. Porém, que o Verbum tenha se feito homem e habitado entre nós, lá isso não li[14] (in CONFESSIONVM Liber XII — IX.14).


As Enéadas principalmente, levaram Agostinho a entender o princípio da substância una e imaterial, contraditória à concepção material e dual presente no emanatismo maniqueísta. Por elas, teve noção da precariedade de seu racionalismo e pôde perceber o erro em que incidia o maniqueísmo ao impor materialidade à existência de Deus. À idéia de substância espiritual presente no homem, até então desconhecida de Agostinho, apresentava um novo juízo à afirmação: O homem foi criado por Vós a vossa imagem[15] (in CONFESSIONVM Liber VI — III.4).

Tal constatação levou-o a combater o maniqueísmo em inúmeras obras posteriores: De Utilitate credendi ad Honoratum teber uns; Contra Epistolam Manichaei quam vocant Fundamenti liber unus; Contra Adimantum Manichaei discipulum tiber wunus; Contra Faustum Manichaeum libri triginta tres; Contra Felicem Manichacum libri duo; Contra Secundinum Manicaeum liber unus; De Natura Boni contra Manichaeos tiber unus; De Duabus Animabus contra Manichasos liber nus Acta sem disputatio contra Fortunatum Manichacurm, liber umas.

Esta distenção ficou patente no incidente que teve com o Bispo maniqueu:


[..] Hipona era uma cidade de 40.000 habitantes, constituída por uma maioria pagã e maniqueus. Existia apenas uma igreja católica e pequeno número de fiéis. O bispo maniqueu, era um tal de Fortunato, pregador eficaz e cheio de ardor. Agostinho desafiou-o para um debate público, que se realizou em frente de numerosa multidão, durou dois dias. Fortunato foi literalmente esmagado pelo ímpeto oratório do rival. Descendo do púlpito debaixo das vaias e chufas dos espectadores; o infeliz foi obrigado a fugir de Hipona (MONTANELLI e GERVASO, 1967, p. 167)


Tão quão se deu a influência do pensamento aristotélico, com a leitura das Categorias traduzidas por Victorino, porém de forma débil, por Agostinho não acessar a totalidade das obras de Aristóteles e pela impossibilidade de ler a obra no original, pois não dominava o grego, o que lhe proporcionou um estudo muito mais pragmático, em que a formalidade lógica foi restringida à aplicação do raciocínio a coisas quantificáveis, conforme assumiu:


E o que a mim se adiantava, quando contava aproximadamente com vinte anos, quando em minhas mãos vieram certa Aristotelica, aquelas que chamavam de dez categorias — [...] pareciam-me falar claramente da substância: como o homem; do que nele existia enquanto um esboço de homem, tais como; a estatura, quantos pés mede; ou seu parentesco, de quem é irmão; onde se encontra; se está calçado ou então armado; ou se faz alguma coisa ou padece de algo; e tudo o mais que se encontra nesses nove gêneros que aqui exemplifiquei, graças àquilo que possuem, como reconhecidos e enumerados na própria substância do gênero[16] (in CONFESSIONVM Liber IV — XVL.28).


A tradução desta obra, à época, apresentou um caráter insólito, posto seguisse uma lógica particular. As Categorias foram aplicadas ao raciocínio e levaram Agostinho a pensar em formas organizadas de raciocinar: substância, qualidade, relação, quantidade, lugar, tempo. Elas se prestaram à organização do raciocínio agostiniano a refletir as percepções proporcionadas pela matéria.

A influência da academia, em Agostinho, derivou do período pós-socrático, séc. IV a.C. e, se tornou conhecida pela visão platônica e cética que admitia a impossibilidade do conhecimento a obter das coisas naturais, pois que este estava envolto em erros da percepção.

A academia platônica, depois de Platão, perdeu seu caráter metafísico, mas continou existindo como uma escola de céticos, então os acadêmicos. Conhecida inicialmente como academia antiga, teve em Arcesilao de Pitane no séc. III a.C., seu digno representante do ceticismo contra o dogmatismo dos estóicos. Arcesilao, ante o impasse em alcançar a certeza dado a falta de evidências, admitiu a razoabilidade como possibilidade de verdade e estabeleceu uma nova visão ao ceticismo probabilista, originando a academia nova, ou dos neo-acadêmicos.

Agostinho mostrou que o probabilismo dos acadêmicos evocara feroz crítica àquilo que defendiam, sobretudo do estoicismo; levado a escrever um tratado contra os acadêmicos, mais precisamente contra os platonizantes, posto considerasse não serem platonistas, assim, declarou que a academia nova ao se afastar do platonismo, tornara-se limitada pelo ceticismo ortodoxo:


[...] àqueles puros e lúcidos em filosofia platônica, apartados e elevados às nuvens do erro, avançados em Plotino, filósofo platônico julgado tão semelhante a Platão, que se diria terem vividos em um mesmo tempo, tal a crer-se nele ter revivido[17] (in CONTRA ACADEMICOS Liber XVIII — 41).


A influência dos estóicos em Agostinho foi fundante ao possibilitar-lhe inferir os postulados semióticos assentidos em De Magistro, como escopo de sua teoria da linguagem. Quando o Império Romano anexou a Grécia ao seu território, pôde contatar, estudos gramaticais do Estoicismo[18], escola fundada por Zenão de Cítia, no Século IV a.C. que cultivava uma teoria que estudava a natureza da linguagem e de seus signos, mais tarde revivida pelos gramáticos romanos.

Todas as influências aqui esclarecidas levaram Peterson a concluir que Agostinho, ao propor uma Verdade inteligível e eterna, tenha atingido o cerne da consciência humana em seus mistérios, ao enveredar pelo neoplatonismo cristão, que influenciou e, ainda hoje, influencia todo o pensamento teológico e filosófico ocidental:


Foi este homem que, mais do que qualquer outro, influenciou o pensamento da Igreja do período, ajudando a formular sua filosofia e teologia para o presente e o futuro. Na Cristandade latina, o nome de Agostinho sobressai como o maior, tanto do ponto de vista teológico, quanto no sentido literário, nome que dominou o pensamento ocidental até o Século XIII e que jamais perderá seu brilho. Era figura riquíssima no sentido intelectual e prolífica em produção de livros, a maior parte deles em estilo latino, inspirados em problemas específicos que preocupavam a Igreja da época (1981, p. 62).


Agostinho foi muito mais um cristão a utilizar idéias neoplatônicas, quando convinham ao teocentrismo cristão que propriamente um defensor do neoplatonismo. Isto ficou patente quando, ao tratar da interioridade exposta em Soliloquiorum, seu alter-ego o questiona: Mas deixe de lado e responde a isto: Supondo que seja verdade o que de Deus disseram Platão e Plotino, a ti seria suficiente aquela ciência divina?[19] (in SOLILOQUIORVM Liber I — 4.9).

A pedagogia de Agostinho permuta a percepção física e pragmática, pela apreensão senciente. À primeira imperfeita e mutável que advém das percepções ordenadas por necessidades imediatistas; a segunda, perfeita, derivada do conhecimento das essências imutáveis, que não se apresenta diretamente, mas, que pela inteligibilidade, pode ser encontrada pelos sentidos, na transcendência ao invisível que se sobrepõe ao visível. Expõe seus argumentos em forma metafórica, como procedeu no entendimento de senciência a partir da metáfora da navegação, explorada principalmente em De Beata Vita, comparando os sentidos a um barco que levasse os homens ao encontro da sapiência:


Até este ponto os sentidos têm me servido como barcos. Pois quando me transportaram até o ponto que almejava, ali os deixei. Assim assentado em terra firme, comecei a analisá-los com o pensamento, o que abalou meus fundamentos por muito tempo[20] (in SOLILOQUIORVM Liber I.4.9).

A metáfora da navegação pressupõe não somente a busca do lugar a que se quer chegar, mas também o caminho, que, por sua vez, se constitui de etapas planejadas, ou seja, o caminho é o próprio método.[21] Agostinho entende que não deveríamos dizer isto é branco, mas sim compreendo que isto é branco:


Ainda que me engane se afirmar algo pelos sentidos, os sentidos enquanto em si não se mostram de pequeno valor a persuassão, não se constituem em engano. Certamente compreendo que de nenhum modo o Acadêmico refutará aquele que diz: Por isso, compreendo que a mim parece branco; por isso entendo que minha compreensão foi seduzida; por isso compreendo que me agrada aquilo que é evidente e não pode ser negado; por isso compreendo que me agrada conhecer [...][22] (in CONTRA ACADEMICOS Liber III.11.26).


A realidade intrincada da vida vivida por Agostinho levou Hannah Arendt (2000), em sua tese de doutoramento, que versou sobre a experiência do amor na obra de Agostinho, a escrever que não considerar as transformações que aqui menciono na análise de sua obra, seria uma irresponsabilidade.

Assumir a tradução de De Magistro significou pesquisar um fenômeno de comunicação humana, considerado um marco na filosofia da linguagem. A obra problematiza a questão da linguagem ao refletir sobre os objetivos e a utilidade da fala. Num primeiro momento toma a linguagem a partir da dimensão humana; para num segundo, referir a linguagem interior, que ligada ao pensamento precede à verbalização, e investe numa concepção semiótica, que explora os signos linguísticos que servem à e se instituem pela razão iluminada. Tal especificidade articula esta pesquisa, principalmente, a pressupostos hermenêuticos estudados pelos teóricos da tradução, Steiner e Schleiermacher e com os filósofos que discutem a tradução, Ricoeur, Ladrière e Ortega y Gasset.

Certamente, não se pode mensurar a magnitude do conhecimento do professor Agostinho apenas por esta obra, que versa com o filho sobre postulados de base A interpenetração conceitual em De Magistro está intimamente ligada à vida integral de Agostinho, que na tradução, para evitar a incompletude do sentido, requisitou a análise intertextual com obras correlatas deste autor; as que a precederam e as que lhe sucederam, disponibilizadas entre um vasto acervo com mais de 400 sermões, 270 tratados teológicos, 9 diálogos filosóficos e 150 livros.

O fenômeno da intertextualidade exigiu um acentuado, mas necessário incremento de citações, interrelacionados com textos do corpus de tradução, às quais considerei corpus oriundos da fonte de De Magistro, que traduzi no corpo da dissertação, enquanto os textos originais foram alocados em notas de rodapé. Os intertextos derivam das obras: Soliloquiorum LIBRI II (386); Contra Academicos LIBRI III (386); De Beata Vita Liber I (386); De Dialectica Liber I (387); De Quantitate Anima Liber I (388); De Vera Religione Liber I (389 — 391); De Libero Arbitrio LIBRI III (388 — 395); Doctrina Christiana LIBRI IV (396 — 397); Confessionum LIBRI XIII (397 — 401); De Trinitaie LIBRI XV (399 — 419); De Civitate Dei LIBRI XXII (413 — 426); Retractationum LIBRI II (428) e, De Ordine LIBRI II (386).

Conexões intertextuais com a Sagrada Escritura, igualmente se fizeram necessárias, a que ponderei o mesmo critério. Não obstante a fraterna querela entre Augustini e Hieronimus, como indica Francisco Moreno (1992), no que envolvia as traduções do texto hebraico e grego, dado Augustini dominar predominantemente a língua latina, considerei que seus estudos bíblicos fundamentaram-se na Vulgata, conforme admitiu: “Por isso, que a nossa fraqueza não nos permitia encontrar a Verdade com a ajuda da razão pura e, deste modo, nós tínhamos a necessidade da autoridade da Sagrada Escritura”[23] (m.t.) (in CONFESSIONVM Liber VI.8).

Hieronymus, preocupado com a excessiva liberdade de interpretação existente à epoca, afirmou:


[...] é tarefa árdua traduzir de maneira tal que se reproduza plenamente o pensamento e se salve, simultaneamente, a nobreza da expressão, porque cada língua apresenta peculiaridades lexicais e estruturais próprias: a tradução demasiadamente literal dá a impressão de mesquinhez, a interpretativa peca por excessiva liberdade relativamente ao texto original. (in FURLAN, 1984, p. 164)


O texto da Vulgata, quando necessário, ocupa as notas de rodapé, enquanto o corpo da dissertação recebe o texto em português com tradução dos originais, mediante a versão dos Monges Beneditinos de Maredsous — Bélgica, efetuada pelo Centro Bíblico Católico de São Paulo. No prólogo desta edição encontramos:


A autoridade da Vulgata em matéria de doutrina não impede, antes, nos nossos dias quase exige que a mesma doutrina se prove e confirme também com os textos originais, e que se recorra aos mesmos textos para encontrar e explicar cada vez melhor o verdadeiro sentido da Sagrada Escritura (PAPA PIO XII in Encíclica Divino Afflante Spiritu, 1943).

Há de se considerar que linguagem e pensamento em Agostinho estão tão íntima e reciprocamente ligados, que ao se referir a uma, estamos, necessariamente nos referindo ao outro. Isto posto, igualmente, a busca hermenêutica do sentido de minha tradução de De Magistro considerou as recomendações de Arendt, entendendo o implícito no indizível de Agostinho.Assim, a tradução que empreendi, destarte, apresenta uma proposta distintiva a partir de uma análise crítica, filológica e hermenêutica, ao considerar especificidades culturais, históricas e ideológicas.

De Magistro Princeps Edetio foi redigida em forma cursiva e não tem originariamente capítulos e subcapítulos, conquanto, mantive na tradução a numeração dos textos do corpus; os titulei a fim de lhes situar comentários que julquei pertinentes. Constam desta obra quatorze capítulos, divididos em três partes.

A primeira parte com os capítulos I-VII, contém um estudo da linguagem e dos signos que a compõe. No capítulo 1, Agostinho trata do propósito da fala com o objetivo de ensinar ou aprender; no capítulo II, relaciona as palavras a signos; no capítulo III, apresenta sua primeira proposição, e afirma que nada pode ser mostrado sem um signo, mas que podemos mostrá-lo se estamos executando o ato sobre o qual nos interpelam; e, nos capítulos IV a VII, estabelece a reciprocidade dos signos.

Na segunda parte, capítulos VIII-X, Agostinho procede a análise dos significados: Em VIII, analisa a necessidade de refletir sobre a coisa significada; em XIX, afirma que o conhecimento das coisas é mais importante que seus signos; e, no X, apresenta sua segunda proposição, e afirma não existe nenhuma comunicação verbalizada de ideéias e juízos sem signos, exceto certos fenômenos naturais e ações em espetáculos teatrais, que se dão sem o uso das palavras.

Na terceira e última parte, nos capítulos XI-XIV, Agostinho expõe suas reflexões pedagógicas. Em XII, afirma que as palavras não introduzem verdades novas em nossas mentes e que, mesmo com palavras, não ensinamos; em XIII, adverte-nos a buscar a Verdade em nosso interior e, em XIV, conclui que aos homens não se deve nominar professores porque Cristo é o único Mestre.

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  1. Adiunximus etiam nobis puerum Adeodatum ex me natum carnaliter de peccato meo. Tu bene feceras eum. Annorum erat ferme quindecim et ingenio praeveniebat multos graves et doctos viros. Est liber noster, qui inscribitur de Magistro: ipse ibi mecum loquitur. Tu scis illius esse sensa omnia, quae inseruntur ibi ex persona conlocutoris mei, cum esset in annis sedecim. Multa eius alia mirabiliora expertus sum.
  2. [...] nec vocemini magistri quia magister vester unus est Christus.
  3. Quid? Cum ipsa memoria perdit aliquid, sicut fit, cum obliviscimur et quaerimus, ut recordemur, ubi tandem quaerimus nisi in ipsa memoria? Et ibi si aliud pro alio forte offeratur, respuimus, donec illud occurrat quod quaerimus. Et cum occurrit, dicimus: "Hoc est"; quod non diceremus, nisi agnosceremus, nec agnosceremus, nisi meminissemus.
  4. [...] Si enim dixeris, quia ille istum sentit, non te credo inventurum regulam qua fidere possimus, omne sentiens melius esse quam id quod ab eo sentitur, ne fortassis ex hoc etiam cogamur dicere, omne intellegens melius esse quam id quod ab eo intellegitur. Hoc enim falsum est; quia homo intellegit sapientiam, et non est melior quam ipsa sapientia.
  5. Per idem tempus scripsi librum cuius est titulus: De magistro, in quo disputatur et quaeritur et invenitur, magistrum non esse qui docet hominem scientiam nisi Deum, secundum illud etiam quod in Evangelio scriptum est: Unus est Magister vester Christus.
  6. Inter hos ego imbecilla tunc aetate discebam libros eloquentiae, in qua eminere cupiebam fine damnabili et ventoso per gaudia vanitatis humanae, et usitato iam discendi ordine perveneram in librum cuiusdam Ciceronis, cuius linguam fere omnes mirantur, pectus non ita. Sed liber ille ipsius exhortationem continet ad philosophiam et vocatur Hortensius. Ille vero liber mutavit affectum meum et ad te ipsum, Domine, mutavit preces meas et vota ac desideria mea fecit alia.
  7. [...] et ueni Mediolanium ad Ambrosium episcopum, in optimis notum orbi terrae, pium cultorem tuum, cuius tunc eloquia strenue ministrabant adipem frumenti tui [...] studiose audebam disputantem in populo, non intentione, qua debui, sed quasi explorans eius facundiam, utrum conueniret famae suae, an maior minorue proflueret, quam praedicabatur [...] et delectabar sermonis suauitate, quamquam eruditioris, minus tamen hilarescentis atque mulcentis, quam Fausti erat.
  8. [...] saepe in popularibus sermonibus suis dicentem Ambrosium laetus audiebam: Littera occidit, spiritus autem uiuificat, cum ea [...] remoto mystico uelamento spiritaliter aperiret, non dicens quod me offenderet, quamuis ea diceret, quae utrum uera essent adhuc ignorarem.
  9. [..] et ibi legi non quidem his uerbis, sed hoc idem omnino multis et multiplicibus suaderi rationibus, quod in principio erat uerbum etuerbum erat apud deum et deus erat uerbum: hoc erat in principio apud deum; Omnia per ipsum facta sunt, et sine ipso factum est nihil; quod factum est, in eo uita est, et uita erat lux hominum; et lux in tenebris lucet, et tenebrae eam non conprehenderunt; et quia hominis anima, quamuis testimonium perhibeat de lumine, non est tamen ipsa lumen, sed uerbum, deus ipse, est lumen uerum, quod inluminat omnem hominem uenientem in hunc mundum.
  10. O filósofo Caius Marius Victorino foi responsável pela tradução para o latim de diversas obras gregas. Converteu-se ao cristianismo, tornando-se um exemplo de pensador e cristão.
  11. [...] quemadmodum ille doctissimus senex, et omnium liberalium doctrinarum peritissimus, quique philosophorum tam multa legerat et ditudicauerat, doctor tot nobilium senatorum, qui etiam ob insigne praeclari magisterii, quod ciues huius mundi eximium putant, statuam Romano foro mezuerat et acceperat [...]
  12. Perrexi ergo ad Simplicianum, patrem in accipienda gratia tunc episcopi Ambrosii, et quem uere ut patrem diligebat. Narraui ei circuitus erroris mei. Ubi autem commemoraui legisse me quosdam libros Platonicorum, quos Victorinus, quondam rhetor urbis Romae, quem Christianum defunctum esse audieram, in Latinam linguam transtulisset, gratulatus est mihi, quod non in aliorum philosophorum scripta incidissem, plena fallaciarum et deceptionum [...] in istis autem omnibus modis insinuari deum et eius uerbum [...]
  13. Lectis autem Plotini paucissimis libris, cuius te esse studiosissimum accepi, collataque cum eis, quantum potui, etiam illorum auctoritate qui divina mysteria tradiderunt [...]
  14. Item legi ibi, quia uerbum, deus, non ex carne, non ex sanguine, neque ex uoluntate uiri, neque ex uoluntate carnis, sed ex deo natus est; sed quia uerbum caro factus est et habitauit in nobis, non ibi legi.
  15. [.] tamen fecisti hominem ad imaginem tuam...
  16. Et quid mihi proderat, quod annos natus ferme uiginti, cum in manus meas uenissent Aristotelica quaedam, quas appellant decem categorias [...] et satis aperte mihi uidebantur loquentes de substantiis, sicuti est homo, et quae in illis essent, sicuti est figura hominis, qualis sit, et statura, quot pedum sit, aut cognatio, cuius frater sit, aut ubi sit constitutus aut quando natus, aut stet an sedeat, aut calciatus uel armatus sit, aut aliquid faciat aut patiatur aliquid, et quaecumque in his nouem generibus, quorum exempli gratia quaedam possui, uel in ipso substantiae genere innumerabilia reperiuntur.
  17. [...] os ilud Platonis quod in philosophia purgatissimum est et lucidissimum, dimotis nubibus erroris emicuit, maxime in Plotino, qui platonicus philosophus ita elus similis judicatus est, ut simul eos vixisse, tantum autem interest temporis ut in hoc ille revixisse putandus sit.
  18. Escola filosófica que pregava um ideal de austera virtude definido pela atarexia e resumido na máxima: Abstém-se e suporta. (JOLIVET, 1975, p.85)
  19. Sed quid ad nos? Nunc illud responde: si ea quae de Deo dixerunt Plato et Plotinus vera sunt, satisne tibi est ita Deum scire, ut illi sciebant?
  20. Imo sensus in hoc negotio quasi navim sum expertus. Nam cum ipsi me ad locum quo tendebam pervexerint, ubi cos dimisi, et iam velut in solo positus coepi cogitatione ista volvere, diu mihi vestigia titubarunt.
  21. Método tem sua origem etimológica pela junção dos elementos gregos metá, que siginifica através de, por meio de, e bodós que significa caminho.
  22. Ego tamen fallor, si assentiar, ait quispiam. Noli plus assentiri, quam ut ita tibi apparere persuadeas; et nulla deceptio est. Non enim video, quomodo refellat Academicus eum qui dicit: Hoc mihi candidum videri scio; hoc auditum meum delectari scio; hoc mihi iucunde olere scio; hoc mihi sapere dulciter scio.
  23. [..] ideoque cum essemus infirmi ad inveniendam liquida ratione veritatem et ob hoc novis opus esset auctoritate sanctarum Litterarum.