Discurso de D. João Peculiar (30 de junho de 1147)

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O Deus de paz e de amor retire dos vossos corações a venda do erro e vos converta a si.

É que nós viemos ao vosso encontro para vos falarmos de paz. Com a concórdia, efectivamente, as coisas pequenas crescem, com a discórdia as maiores definham. Ora para que esta não reine entre nós por todo o sempre é que vimos ter aqui convosco a fim de chegarmos a uma conciliação.

Efectivamente, a natureza gerou-nos a todos de um só e mesmo princípio, de tal modo que não ficaria bem que, estando ligados por um pacto de solidariedade humana e por um vínculo de concórdia da mãe de todos, nós vivêssemos desagradados uns com os outros.

Nós, pela nossa parte, não vimos a esta cidade, que está na vossa posse, para vos lançar fora daqui nem para vos espoliar. Uma coisa tem, efectivamente, sempre consigo a inata benignidade dos cristãos, é que, embora reivindique o que é seu, não rouba o alheio. O território desta cidade reivindicamo-lo como sendo nosso por direito; e, por certo, se em vós alguma vez tivesse medrado a justiça natural, sem vos fazerdes rogados, com as vossas bagagens, com haveres e pecúlios, com mulheres e crianças, vos poríeis a caminho da terra dos mouros de onde viestes, deixando a nossa para nós.

É-nos, pelo contrário, sobejamente conhecido que só a contragosto ou forçados a isso o fareis. No entanto, procurai fazê-lo por vossa iniciativa, pois se aceitardes de boa mente o que vos rogamos, estareis imediatamente a salvo das consequências mais amargas do que pretendemos. Que tipo de conciliação se possa estabelecer entre nós não o sei, pois a sorte que há-de caber a cada um não está garantida a ninguém, à partida. Fostes vós que viestes da terra dos mouros e dos moabitas e raptastes fraudulentamente o reino da Lusitânia a um rei vosso e nosso. São inúmeras as depredações que se fizeram e continuam ainda a fazer sobre cidades e aldeias com as suas igrejas desde esse tempo até hoje. Por uma parte, ficou em causa a vossa lealdade, por outra parte, ficou lesado o convívio em sociedade.

Há já uns 358 anos ou até mais que tendes ilegitimamente nas vossas mãos cidades que são nossas e a posse das nossas terras, anteriormente a vós habitadas por cristãos a quem nenhuma espada de exactor forçou a abraçar a fé, mas só a palavra da pregação tornou filhos adoptivos de Deus, no tempo do nosso apóstolo Santiago e dos seus discípulos, Donato, Torquato, Secundo, Indalécio, Eufrásio, Tesifonte, Victor, Pelágio e muitos outros assinalados varões apostólicos. Temos nesta cidade como testemunho o sangue derramado pelo nome de Cristo no tempo do governador romano Daciano por parte de mártires como Máxima, Veríssimo e a virgem Júlia. Consultai o concílio de Toledo celebrado no tempo de Sisebuto, glorioso rei nosso e também vosso; é-nos testemunha Isidoro, arcebispo de Sevilha, e o bispo de Lisboa desse tempo, Viérico, com mais de duzentos bispos de toda a Hispânia. Atestam-no ainda nas cidades sinais manifestos das ruínas das igrejas.

Mas, dado que tendes mantido a cidade ocupada em uso longo com propagação das vossas estirpes, usaremos para convosco do habitual sentimento de bondade. Entregai nas nossas mãos a guarnição do vosso castelo. Cada um de vós terá as liberdades que tem tido até aqui. Não queremos, efectivamente, expulsar-vos dos vossos assentamentos tão antigos; viva cada um segundo os seus costumes, a não ser que espontaneamente queira vir aumentar a Igreja de Deus.

Como observamos, é riquíssima e bastante próspera a vossa cidade, mas está exposta à avidez de muitos. Efectivamente, quantos arraiais, quantos navios, que multidão de gente está em conjura contra vós! Tende em atenção a devastação dos campos e dos seus frutos. Tende em atenção o vosso dinheiro. Tende ao menos em atenção o vosso sangue. Aceitai a paz enquanto vos é favorável, pois é bem verdade que é mais útil uma paz nunca posta em causa que outra que se refaz com muito sangue; de facto, é mais agradável a saúde nunca alquebrada que a que foi recuperada depois de graves doenças e sob ameaças de medidas forçadas e exigências extremas para ficar a salvo. É grave e fatal a doença que vos atinge; outra virá se não tomardes uma resolução salutar: ou ela se extingue ou vós sereis extintos. Tomai cuidado, pois a rapidez apressa o fim. Cuidai da vossa segurança enquanto tendes tempo.

Antigo, na verdade, é o provérbio que diz: «na arena é que o gladiador forma o seu plano». A partir de agora a resposta pertence-vos a vós, se assim vos aprouver".