Discurso de Tomada de Posse do Presidente Getúlio Vargas (3 de novembro de 1930)

Wikisource, a biblioteca livre

DISCURSO PRONUNCIADO

PELO

DR. GETÚLIO VARGAS

POR OCASIÃO DE SUA POSSE COMO CHEFE DO GOVERNO PROVISÓRIO DA REPÚBLICA

3 de novembro de 1930


O movimento revolucionário, iniciado vitoriosamente a 3 de outubro, no sul, centro e norte do país, e triunfante a 24, nesta capital, foi a afirmação mais positiva, que até hoje tivemos, da nossa existência, como nacionalidade. Em toda nossa historia política, não há, sob esse aspecto, acontecimento semelhante. Ele é, efetivamente, a expressão viva e palpitante da vontade do povo brasileiro, afinal senhor de seus destinos e supremo arbitro de suas finalidades coletivas.

No fundo e na forma, a revolução escapou, por isso mesmo, ao exclusivismo de determinadas classes. Nem os elementos civis venceram as classes armadas, nem estas impuseram àqueles o fato consumado. Todas as categorias sociais, de alto a baixo, sem diferença de idade e de sexo, comungaram em um idêntico pensamento fraterno e dominador: — a construção de uma Pátria nova, igualmente acolhedora para grandes e pequenos, aberta à colaboração de todos os seus filhos.

O Rio Grande do Sul, ao transpor as suas fronteiras, rumo a Itararé, já trazia consigo mais da metade do nosso glorioso Exército. Por toda parte, como mais tarde na capital da República, a alma popular confraternizava com os representantes das classes armadas, em uma admirável unidade de sentimentos e aspirações.

Realizamos, pois, um movimento eminentemente nacional.

Essa, a nossa maior satisfação, a nossa maior gloria e a base invulnerável sobre que assenta a confiança de que estamos possuídos para a efetivação dos superiores objetivos da revolução brasileira.

Quando, nesta cidade, as forças armadas e o povo depuseram o Governo Federal, o movimento regenerador já estava virtualmente triunfante em todo o país. A nação, em armas, acorria de todos os pontos do território nacional. No prazo de duas ou três semanas, as legiões do norte, do centro e do sul bateriam às portas da capital da República.

Não seria difícil prever o desfecho dessa marcha inevitável. A' aproximação das forças libertadoras, o povo do Rio de Janeiro, de cujos sentimentos revolucionários ninguém poderia duvidar, se levantaria em massa, para bater, no seu último reduto, a prepotência inativa e vacilante.

Mas era bem possível que o governo, já em agonia, apegado às posições e teimando em manter uma autoridade inexistente de fato, tentasse sacrificar, nas chamas da luta fratricida, seus escassos e derradeiros amigos.

Compreendestes, senhores da Junta Governativa, a delicadeza da situação e com os vossos valorosos auxiliares desfechastes patrioticamente sobre o simulacro daquela autoridade claudicante o golpe de graça.

Os resultados benéficos dessa atitude constituem legitima credencial dos vossos sentimentos cívicos: integrastes definitivamente o restante das classes armadas na causa da revolução, poupastes à Pátria sacrifícios maiores de vidas e recursos materiais e resguardastes esta maravilhosa capital de danos incalculáveis.

Justo é proclamar, entretanto, senhores da Junta Governativa, que não foram somente esses os motivos que assim vos levaram a proceder. Preponderava sobre eles o impulso superior do vosso pensamento, já irmanado ao da revolução. Era vossa, também, a convicção de que só pelas armas seria possível restituir a liberdade ao povo brasileiro, sanear o ambiente moral da Pátria, livrando-a da camarilha que a explorava, arrancar a mascara de legalidade com que se rotulavam os maiores atentados à lei e à justiça — abater a hipocrisia, a farsa e o embuste. E, finalmente, era vossa, também, a convicção de que urgia substituir o regime de ficção democrática, em que vivíamos por outro de realidade e confiança.

Passado, agora, o momento das legitimas expansões pela vitoria alcançada, precisamos refletir, maduramente, sobre a obra de reconstrução que nos cumpre realizar.

Para não defraudarmos a expectativa alentadora do povo brasileiro, para que este continue a nos dar seu apoio e colaboração, devemos estar á altura da missão que nos foi por ele confiada.

Ela é de iniludível responsabilidade.

Tenhamos a coragem de levá-la a seu termo definitivo, sem violências desnecessárias, mas sem contemplações de qualquer espécie.

O trabalho de reconstrução, que nos espera, não admite medidas contemporizadoras. Implica o reajustamento social e econômico de todos os rumos até aqui seguidos. Não tenhamos medo à verdade. Precisamos, por atos e não por palavras, cimentar a confiança da opinião pública no regime que se inicia. Comecemos por desmontar a maquina do filhotismo parasitário, com toda a sua descendência espúria. Para o exercício das funções públicas, não deve mais prevalecer o critério puramente político. Confiemo-las aos homens capazes e de reconhecida idoneidade moral. A vocação burocrática e a caça ao emprego público, em um país de imensas possibilidades — verdadeiro campo aberto a todas as iniciativas do trabalho — não se justificam. Esse, com o caciquismo eleitoral, são males que têm de ser combatidos, tenazmente.

No terreno financeiro e econômico ha toda uma ordem de providencias essenciais a executar, desde a restauração do credito público ao fortalecimento das fontes produtoras, abandonadas ás suas dificuldades e asfixiadas sob o peso de tributações de exclusiva finalidade fiscal.

Resumindo as ideias centrais do nosso programa de reconstrução nacional, podemos destacar, como mais oportunas e de imediata utilidade:

1) concessão de anistia; 2) saneamento moral e físico, extirpando ou inutilizando os agentes de corrupção, por todos os meios adequados a uma campanha sistemática de defesa social e educação sanitária; 3) difusão intensiva do ensino público, principalmente tecnico-profissional, estabelecendo, para isso, um sistema de estimulo e colaboração direta com os Estados. Para ambas finalidades, justificar-se-ia a criação de um Ministério de Instrução e Saúde Pública, sem aumento de despesas; 4) instituição de um Conselho Consultivo, composto de individualidades eminentes, e sinceramente integradas na corrente das ideias novas; 5) nomeação de comissões de sindicâncias, para apurarem a responsabilidade dos governos depostos e de seus agentes, relativamente ao emprego dos dinheiros públicos; 6) remodelação do Exército e da Armada, de acordo com as necessidades da defesa nacional; 7) reforma do sistema eleitoral, tendo em vista, precipuamente, a garantia do voto; 8) reorganização do aparelho judiciário, no sentido de tornar uma realidade a independência moral e material da magistratura, que terá competência para conhecer do processo eleitoral em todas as suas fases; 9) feita a reforma eleitoral,consultar a nação sobre a escolha de seus representantes, com poderes amplos de constituintes, afim de procederem à revisão do Estatuto Federal, melhor amparando as liberdades, públicas e individuais, e garantindo a autonomia dos Estados contra as violações do governo central; 10) consolidação das normas administrativas, com o intuito de simplificar a confusa e complicada legislação vigorante, bem como de refundir os quadros do funcionalismo, que deverá ser reduzido ao indispensável, suprimindo-se os adidos e excedentes; 11) manter uma administração de rigorosa economia, cortando todas as despesas improdutivas e suntuarias — único meio eficiente de restaurar as nossas finanças e conseguir saldos orçamentários reais; 12) reorganização do Ministério da Agricultura, aparelho atualmente rígido e inoperante, para adaptá-lo ás necessidades do problema agrícola brasileiro; 13) intensificar a produção pela policultura e adotar uma política internacional de aproximação econômica, facilitando o escoamento das nossas sobras exportáveis; 14) rever o sistema tributário, de modo a amparar a produção nacional, abandonando o protecionismo dispensado ás industrias artificiais, que não utilizam matéria prima do país e mais contribuem para encarecer a vida e fomentar o contrabando; 15) instituir o Ministério do Trabalho, destinado a superintender a questão social, o amparo e defesa do operariado urbano e rural; 16) promover, sem violência, a extinção progressiva do latifúndio, protegendo a organização da pequena propriedade, mediante a transferência direta de lotes de terra de cultura ao trabalhador agrícola, preferentemente ao nacional, estimulando-o a construir com as próprias mãos, em terra própria, o edifício de sua prosperidade; 17) organizar um plano geral, ferroviário e rodoviário, para todo o país, afim de ser executado gradualmente, segundo as necessidades públicas e não ao sabor de interesses de ocasião.

Como vedes, temos vasto campo de ação, cujo perímetro pode ainda alargar-se em mais de um sentido, si nos for permitido desenvolver o máximo de nossas atividades.

Mas, para que tal aconteça, para que tudo isso se realize, torna-se indispensável, antes de mais nada, trabalhar com fé, animo decidido e dedicação.

Quanto aos motivos que atiraram o povo brasileiro à revolução, supérfluo seria analisá-los, depois de, tão exata e brilhantemente, tê-lo feito, em nome da Junta Governativa, o Sr. General Tasso Fragoso, homem de pensamento e de ação, e que, a par de sua cultura e superioridade moral, pode invocar o honroso titulo de discípulo do grande Benjamin Constant.

Através da palavra do ilustre militar, apreende-se a mesma impressão panorâmica dos acontecimentos, que vos desenhei, já, a largos traços: — a revolução foi a marcha incoercível e complexa da nacionalidade, a torrente impetuosa da vontade popular, quebrando todas as resistências, arrastando todos os obstáculos, à procura de um rumo novo, na encruzilhada dos erros do passado.

Senhores da Junta Governativa.

Assumo, provisoriamente, o governo da República, como delegado da revolução, em nome do Exército, da Marinha e do povo brasileiro, e agradeço os inesquecíveis serviços que prestastes à nação, com a vossa nobre e corajosa atitude, correspondendo, assim, aos altos destinos da Pátria.