Discurso do Presidente Tancredo Neves no Colégio Eleitoral (15 de janeiro de 1985)

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Brasileiros, neste momento, alto na História, orgulhamo-nos de pertencer a um povo que não se abate, que sabe afastar o medo e não aceita acolher o ódio. A Nação inteira comunga deste ato de esperança. Reencontramos, depois de ilusões perdidas e pesados sacrifícios, o bom e velho caminho democrático. Não há Pátria onde falta democracia.

A Pátria não é mera organização de homens em Estados, mas sentimento e consciência, em cada um deles, de que lhe pertencem o corpo e o espírito da Nação. Sentimento e consciência da intransferível responsabilidade por sua coesão e seu destino.

A Pátria é escolhida, feita na razão e na liberdade. Não basta a circunstância do nascimento para criar esta profunda ligação entre o indivíduo e sua comunidade.

Não teremos a Pátria que Deus nos destinou enquanto não formos capazes de fazer de cada brasileiro um cidadão, com plena consciência dessa dignidade.

Assim sendo, a Pátria não é o passado, mas o futuro que construímos com o presente. Não é a aposentadoria dos heróis, mas tarefa a cumprir; é a promoção da justiça, e a justiça se promove com liberdade. Na vida das nações, todos os dias são dias de história, e todos os dias são difíceis. A paz é sempre esquiva conquista da razão política. É para mantê-la, em sua perene precariedade, que o homem criou as instituições do Estado, e luta constantemente para aprimorá-las.

Não há desânimo nessa condição essencial do homem. Por mais pesadas que sejam as sombras totalitárias ou mais desatadas as paixões anárquicas, o instinto de liberdade e o apego à ordem justa trabalham para restabelecer o equilíbrio social.

No conceito que fazemos do Estado democrático, há saudável contradição: quanto mais democrática for uma sociedade, mais frágil será o Estado. Seu poder de coação só se entende no cumprimento da lei. Quanto mais fraterna for a sociedade, menor será a presença do Estado.

Brasileiros:

A primeira tarefa de meu governo é a de promover a organização institucional do Estado. Se, para isso, devemos recorrer à experiência histórica, cabe-nos também compreender que vamos criar um Estado moderno, apto a administrar a Nação no futuro dinâmico que está sendo construído.

Sem abandonar os deveres e preocupações de cada dia, temos de concentrar os nossos esforços na busca de consenso básico à nova Carta Política.

Convoco-vos ao grande debate constitucional. Deveis, nos próximos meses, discutir em todos os auditórios, na imprensa e nas ruas, nos partidos e nos parlamentos, nas universidades e nos sindicatos, os grandes problemas nacionais e os legítimos interesses de cada grupo social.

É nessa discussão ampla que ireis identificar os vossos delegados ao Poder Constituinte e lhes atribuir o mandato de redigir a Lei Fundamental do País. A Constituição não é assunto restrito aos juristas, aos sábios ou aos políticos. Não pode ser ato de algumas elites. É responsabilidade de todo o povo. Daí a preocupação de que ela não surja no açodamento, mas resulte de uma profunda reflexão nacional.

Os deputados constituintes, mandatários da soberania popular, saberão redigir uma Carta Política ajustada às circunstâncias históricas. Clara e imperativa em seus princípios, a Constituição deverá ser flexível quanto ao modo, para que as crises políticas conjunturais sejam contidas na inteligência da lei.

Presidente eleito do Brasil, busco no coração e na consciência as palavras de agradecimento profundo aos correligionários da Aliança Democrática, o valente e fiel PMDB, sob o comando do deputado Ulysses Guimarães, o recém-fundado Partido da Frente Liberal, sob a liderança de Aureliano Chaves, Marco Maciel e meu companheiro vice-presidente, José Sarney. Aos integrantes do PDT, PT, PTB, dissidentes do PDS que, por decisão partidária ou pessoal, me entregam a mais alta e difícil responsabilidade da minha vida pública.

Creio não poder fazê-lo de melhor forma do que, perante Deus e perante a Nação, nesta hora inicial de itinerário comum, reafirmar o compromisso de resgatar duas aspirações que, nos últimos vinte anos, sustentaram, como penosa obstinação, a esperança do povo:


esta foi a última eleição indireta do País; venho para realizar urgentes e corajosas mudanças políticas, sociais e econômicas, indispensáveis ao bem-estar do povo.

Não foi fácil chegar até aqui. Nem mesmo a antecipação da certeza da vitória, nos últimos meses, apaga as cicatrizes e os sacrifícios que marcaram a história da luta que agora se encerra.

Não há por que negar que houve muitos momentos de desalento e cansaço, em que cada um de nós se indagava se valia a pena lutar. Mas, cada vez que essa tentação nos assaltava, a visão emocionante do povo resistindo e esperando, recriava em todos nós energias que supúnhamos extintas e recomeçávamos, no dia seguinte, como se nada houvesse sido perdido.

A história da Pátria, que se iluminou através dos séculos com o martírio da Inconfidência Mineira; que registra, com orgulho, a força do sentimento de unidade nacional sobre as insurreições libertárias durante o Império; que fixou, para admiração dos pósteros, a bravura de brasileiros que pegaram em armas na defesa de postulados cívicos contra os vícios da Primeira República, a História situará na eternidade o espetáculo inesquecível das grandes multidões que, em atos pacíficos de participação e de esperança, vieram para as ruas reivindicar a devolução do voto popular na escolha direta para a Presidência da República. Frustradas nos resultados imediatos dessa campanha memorável, as multidões não desesperaram, nem cruzaram os braços. Convocaram-nos a que viéssemos ao colégio eleitoral e fizéssemos dele o instrumento de sua própria perempção, criando, com as armas que não se rendiam, o governo que restaurasse a plenitude democrática.

Na análise desses dois grandes movimentos cívicos não sei avaliar quando o povo foi maior, se quando rompeu as barreiras da repressão e veio para as ruas gritar pelas eleições diretas, ou se quando, mesmo vencido, não se submeteu, e com extrema maturidade política exigiu que agíssemos dentro de regras impostas, exatamente para revogá-las e destruí-las.

É inegável que o processo de transição teve contribuições isoladas que não podem ser omitidas:

a do Poder Legislativo, que, muitas vezes mutilado em sua constituição e nas suas faculdades, conservou acesa a chama votiva da representação popular como última sentinela do campo da batalha democrática; a do Poder Judiciário, que se manteve imune à influência dos casuísmos, para, na atual conjuntura, fazer prevalecer o espírito de reordenação democrática; a da Igreja, que, com sua autoridade exponencial no campo espiritual e na ação social e educativa, lutou na defesa dos perseguidos, e pregou a necessidade da opção preferencial pelos pobres, com base na democracia moderna; a do homens e mulheres do nosso povo, principalmente as mães de família, que arrostaram as duras dificuldades do desemprego e da carestia em seus lares e lutaram, com denodo, pela anistia, pelos direitos humanos e pelas liberdades políticas; a da imprensa – jornais, emissoras de rádio e televisão –, que, sob a censura policial, a coação política e econômica, ousou bravamente enfrentar o poder para servir à liberdade do povo; a da sociedade civil como um todo, em suas muitas instituições: a Ordem dos Advogados do Brasil, a Associação Brasileira de Imprensa, as entidades de classes patronais, de empregados, de profissionais liberais, as organizações estudantis, as universidades, e tantas outras, com sua participação, muitas vezes, sob pressões inqualificáveis, nesse mutirão cívico da reconstrução nacional; a das Forças Armadas, na sua decisão de se manterem alheias ao processo político, respeitando os seus desdobramentos até a alternativa do poder; a de Sua Excelência o presidente João Figueiredo, que, prosseguindo na tarefa iniciada com a revogação dos atos institucionais, ajudou, com a anistia política, a devolução da liberdade de imprensa, as eleições diretas de 1982, o desenvolvimento normal da sucessão presidencial.

Graças a toda essa imensa e inesquecível mobilização popular, chegamos, agora, ao limiar da Nova República.

Venho em nome da conciliação.

Não podemos, neste fim de século e de milênio, quando, crescendo em seu poder, o homem cresce em suas ambições e em suas angústias, permanecer divididos dentro de nossas fronteiras.

Se não vemos as outras nações como inimigas, e não as vemos assim, devemos ter a consciência de que o mundo se contrai diante da árdua competição internacional. Acentua-se a luta pelo domínio de mercados, pelo controle de matérias-primas, pela hegemonia política. As ideologias, tão fortes no século passado e na metade do século XX, empalidecem, frente a um novo nacionalismo.

Ao mesmo tempo, fenômeno típico do desenvolvimento industrial e da expansão do capitalismo, surge nova realidade supranacional nas grandes corporações empresariais. Aparentemente desvinculadas de suas pátrias de origem, tais organizações servem, fundamentalmente, a seus interesses.

Brasileiros:

Ao lado da ordem constitucional, que é tarefa prioritária, temos de cuidar da situação econômica. A inflação é a manifestação mais clara da desordem na economia nacional. Iremos enfrentá-la desde o primeiro dia.

Não cairemos no erro grosseiro de recorrer à recessão como instrumento inflacionário. Ao contrário, vamos promover a retomada do crescimento, estimulando o risco empresarial e eliminando, gradativamente, a hipertrofia do egoísmo e da ganância. O ritmo de nossa ação saneadora dependerá unicamente da colaboração que nos prestarem os setores interessados. Contamos, para isso, com o patriotismo de todos.

Retomar o crescimento é criar empregos. Toda a política econômica do meu governo estará subordinada a esse dever social. Enquanto houver, neste País, um só homem sem trabalho, sem pão, sem teto e sem letras, toda prosperidade será falsa.

Cabe acentuar que o desenvolvimento social não pode ser considerado mera decorrência do desenvolvimento econômico. A Nação é essencialmente constituída pelas pessoas que a integram, de modo que cada vida humana vale muito mais do que a elevação de um índice estatístico. Preservá-la constitui, portanto, um dever que transcende a recomendação de caráter econômico, tão declinável quanto a defesa das nossas fronteiras. Nessas condições, temos de reconhecer e admitir, como objetivo básico da segurança nacional, a garantia de alimento, saúde, habitação, educação e transporte para todos os brasileiros.

O bem-estar que pretendemos para a sociedade brasileira deve assentar-se sobre a livre iniciativa e a propriedade privada. Exatamente por isso, adotaremos medidas que venham a democratizar o acesso à propriedade, atitude que não pode ser confundida, como muitos o fazem, com a proteção aos privilégios de forças econômicas e financeiras. Defender a livre iniciativa e a propriedade privada é defendê-las dos monopólios e do latifúndio.

Brasileiros:

O entendimento nacional não exclui o confronto das ideias, a defesa de doutrinas políticas divergentes, a pluralidade de opiniões. Não pretendemos entendimento que signifique capitulação, nem um morno encontro dos antagonistas políticos em região de imobilismo e apatia. O entendimento se faz em torno de razões maiores, as da preservação da integridade e da soberania nacionais.

Dentro dessa ordem de ideias, a conciliação, instruindo o entendimento, deve ser vista como convênio destinado a administrar a transição rumo à nova e duradoura institucionalização do Estado.

Faz algumas semanas, eu anunciava, em Vitória, a construção de uma Nova República. Vejo, nesta fase da vida nacional, a grande oportunidade histórica de nosso povo.

As crises por que temos passado, desde a Independência, podem ser atribuídas às dificuldades normais em um processo de formação de nacionalidade. Hoje, no entanto, encontram-se vencidas as etapas mais duras. Mantivemos a integridade política da Nação, graças à habilidade do Segundo Reinado que soube exercer a tolerância nos momentos certos, evitando que das insurreições liberais vencidas ficassem cicatrizes históricas.

Com a ocupação da Amazônia e do Oeste, concluídas nos últimos decênios, chegamos ao fim da tarefa iniciada pelos bandeirantes e desenvolvida por pioneiros intrépidos e desbravadores audazes, pelo gênio político de Rio Branco e pela bravura nacionalista do marechal Rondon.

Deixamos, há muito, de ser, aos olhos estrangeiros, exótica nação dos trópicos; incluímo-nos entre os países economicamente mais desenvolvidos. Nossa cultura é admirada internacionalmente. Traduzem-se os nossos escritores em todas as línguas; a música brasileira é conhecida e o desempenho de nossos artistas de teatro, de cinema e de televisão recebem o aplauso de espectadores de inúmeros países.

Na pesquisa científica, apesar dos poucos recursos públicos, temos obtido excepcionais resultados. Nossos homens de ciência têm o seu trabalho admirado nos principais centros mundiais.

Brasileiros:

Sabeis que os homens públicos não se fazem de especial natureza. Eles se encontram sujeitos à fragilidade da condição humana. Quando um povo escolhe o chefe de Estado, não elege o mais sábio dos seus compatriotas, e é possível que não eleja o mais virtuoso deles. Tais qualidades, que só o juízo subjetivo consegue atribuir, não podem ser medidas.

Ao nomear, com o seu voto, o presidente da República, a Nação expressa a confiança de que ele saberá conduzi-la na busca do bem comum.

Consciente desta realidade, concito-vos ao grande mutirão nacional. Não há um só de vós que pode ser dispensado desta convocação. A cidadania não é atitude passiva, mas a ação permanente em favor da comunidade.

Faço meu apelo aos homens públicos. A política, tal como a entendemos, é a mais nobre e recompensadora das atividades humanas. Servir ao povo reclama dedicação incansável, noites indormidas, o peso abrasador das emoções. São muitos os que sucumbem em pleno combate, legando-nos o exemplo de seu sacrifício pela Pátria.

“Com o êxtase e o terror de haver sido o escolhido”, como diria Verlaine, entrego-me, hoje, ao serviço da Nação.

Nesta hora de forte exigência interior, recorro à memória de Minas, na inspiração familiar e na fé revelada na paz das igrejas de São João del-Rei. Tantas vezes renovada em minha vida, é a esta memória, com sua inspiração e sua fé, que recorrerei, se a tentação do desalento vier a assaltar-me.

Fui chamado na hora em que se realizava a grande aspiração política de minha vida, que era a honra de administrar o meu Estado, a grande e generosa terra de Minas Gerais, e procurava colocar a sua renascente força política a serviço da causa da Federação, hoje distorcida, esvaziada, humilhada.

Não deixaria ao meio o mandato que o povo mineiro me confiou, para assumir o Supremo Poder da Nação, apenas pelo gosto do poder, que nem sempre é glória ou alegria.

Vim para promover as mudanças, mudanças políticas, mudanças econômicas, mudanças reais, efetivas, corajosas, irreversíveis. Nunca o País dependeu tanto da atividade política. Dirijo-me, pois, a todos vós que a exerceis, aos que serviram ao meu governo com o seu apoio e aos que a ele prestaram a vigilância de opositores. Não aspiro à unanimidade, nem postulo a conciliação subalterna, que se manifesta no aplauso inconsequente do aulicismo. A conciliação se faz em torno de princípios, e ninguém poderá inquinar, na injustiça e na maledicência, os que nos reuniram nesta vitoriosa aliança de forças democráticas.

Quero a conciliação para a defesa da soberania do povo, para a restauração democrática, para o combate à inflação, para que haja trabalho e prosperidade em nossa Pátria. Vamos promover o entendimento entre o povo e o governo, a Nação e o Estado.

Rejeitaria, se houvesse quem a pretendesse, a conciliação entre elites, o ajuste que visasse à continuação dos privilégios, à manutenção da injustiça, ao enriquecimento sobre a fome.

Para a conciliação maior, sem prejuízo dos compromissos de partido e de doutrina, convoco os homens públicos brasileiros e todos os cidadãos de boa-fé. No serviço da Pátria há lugar para todos.

Tenho uma palavra especial para os trabalhadores. É às suas mãos que muito devemos e é em suas mãos que está o futuro do nosso País.

Desde o primeiro passo de minha vida pública, tenho contado com o apoio dos trabalhadores. Elegi-me vereador em São João del-Rei com os votos dos ferroviários e nunca deixei de lhes merecer a confiança política.

Uma Nação evolui na mesma medida em que cresce a sua participação na divisão de renda e na direção dos negócios públicos.

Ao prestar minha homenagem a esses brasileiros, que são a maioria de nosso povo, reafirmo-lhes o compromisso de dedicar todo o meu esforço para que se ampliem e se respeitem os seus direitos.

A reconstrução democrática do País significa o retorno, em toda a liberdade, dos trabalhadores à vida política. Sem seu apoio, nenhum governo poderá cumprir suas tarefas constitucionais.

Brasileiros:

Esta memorável campanha confirmou a ilimitada fé que tenho em nosso povo. Nunca, em nossa história, tivemos tanta gente nas ruas, para reclamar a recuperação dos direitos de cidadania e manifestar seu apoio a um candidato.

Em todo o País foi o mesmo entusiasmo. De Rio Branco a Natal, de Belém a Porto Alegre, as multidões se reuniram, em paz, cantando, para dizer que era preciso mudar, que a Nação, cansada do arbítrio, não admitia mais as manobras que protelassem o retorno das liberdades democráticas.

Não vamos nos dispersar. Continuemos reunidos, como nas praças públicas, com a mesma emoção, a mesma dignidade e a mesma decisão.

Se todos quisermos, dizia-nos, há quase duzentos anos, Tiradentes, aquele herói enlouquecido de esperança, poderemos fazer deste País uma grande Nação.

Vamos fazê-la.