Diva/VII

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A casa do Sr. Duarte acabava de sofrer uma transformação completa.

Quando eu a conheci, e mesmo ainda depois de minha volta, era um velho prédio, feio e irregular, construído numa das abas da mon tanha que cinge os amenos vales de Catumbi e Rio Comprido. A chácara coberta de arvoredo estendia-se pelas encostas até as pitorescas eminências de Santa Teresa.

Gozava-se aí de uma vista magnífica, de bons ares e sombras deliciosas. O arrabalde era naquele tempo mais campo do que é hoje. Ainda a fouce exterminadora da civilização não esmoutara os bosques que revestiam os flancos da montanha. A rua, esse braço mil do centauro cidade, só anos depois espreguiçando pelas encostas fisgou as garras nos cimos frondosos das colinas. Elas foram outrora, essas lindas colinas, a verde coroa da jovem Guanabara, hoje velha regateira, calva de suas matas, nua de seus prados.

Caminhos íngremes e sinuosas veredas serpejavam então pelas faldas sombrias da montanha, e prendiam como num abraço as raras habitações que alvejavam de longe em longe entre o arvoredo. Límpidas correntes, que a sede febril do gigante urbano ainda não estancara, rolavam trépidas pela escarpa, saltavam de cascata em cascata, e iam fugindo e garrulando conchegar-se nas alvas bacias debruadas de relva.

As paineiras em flor meneavam à doce brisa da tarde os brilhantes penachos, como numa festa da roça as mais belas raparigas, soberbas de seus enfeites, balançam airosas ao som da música as frontes toucadas de nastros (sic) de fitas.

Cresciam ali bosques espessos de bambus que ciciavam brandamente, enquanto os leques das palmeiras vibrados pelo vento arpejavam como frauta rústica.

Naqueles lugares nascera Emília e se criara. Eles foram o molde de sua alma, formada ao contato dessa alpestre natureza cheia de fragosidades e umbrosas espessuras.

A primeira vez que a tímida menina ousou penetrar esse mato esquecido às abas da cidade, tinha ela onze anos. Até então vivera à sombra materna, como flor que se planta em vaso de porcelana e vegeta nos terraços. Do colo passara ao regaço; quando principiou a andar, coseu-se à falda do vestido de sua mãe.

Com os hábitos sedentários que tinha a senhora, a órbita do seu giro não se estendia além da beira da casa e do estreito jardim, que uma cerca de tábuas separava da chácara inculta e abandonada; porém mesmo de longe Emília enfiava os olhos por entre os grupos de árvores.

Vinham dali rumores vagos e estranhos mistérios que a estremeciam. Logo presa de grande pavor, fugia a abrigar-se no colo materno.

Um dia venceu a tentação. A menina avançou afouta, cuidando encontrar perto a professora. Não a viu; quis retroceder e não teve ânimo; tornou a avançar; o menor ruído a assustava, a mais leve sombra lhe incutia terrores e vertigens. Até que sucumbiu num ataque de nervos.

Emília esteve dois dias de cama. A mãe declarou-a doente por uma semana. Houve larga discussão a respeito do grave acontecimento; um mês durante não se falou de outra coisa. Julinha foi estar algum tempo com a prima para distraí-la; e a medrosa menina se viu cercada dos maiores desvelos.

Tudo isto produziu efeito oposto ao que esperava a mãe. Cuidava ela conservar assim aquela natureza frágil, tímida e melindrosa, que só podia viver elada ao seio materno, como hera ao tronco. Que bem sabia do gérmen funesto que lançara na alma tenra da filha!

Foi a semente da primeira rebelião. Emília teve grande vergonha de seu pânico. Um sentir novo e estranho, que não era desejo, nem raiva, pesar ou contentamento, porém um misto de tudo isso, a intumescer-lhe a alma; um sentir nunca sentido turbou a inocência da menina.

Muita vez a sós as faces lhe ardiam, o sangue fervia dentro, as lágrimas saltavam dos olhos; súbito erguia-se, com o talhe ereto, a cabeça desafrontada, o olhar aceso, e um sorriso — que sorriso! — mordido no lábio túrgido. Erguia-se para bater com o pé no chão e desafiar do gesto uma visão de sua fantasia.

A teima infantil, que devia ser orgulho na mulher, estava-se gerando naquele coração de menina.

Uma noite, ao deitar, Emília jurou que arrostaria tudo para atravessar ela só a alameda da chácara. Seu dito, seu feito, e logo feito. Os primeiros albores do dia a acharam já pronta. À exceção de alguns escravos, todos dormiam na casa.

Esgueirou-se furtivamente pelas escadas e ganhou a cerca. Da cancela até o fim da alameda foi uma corrida só e de olhos fechados. Lá parou, tomou fôlego e correu a vista espavorida pelas densas e escuras ramadas. Disparou nova corrida, mas já senhora de si. Assim percorreu duas ou três vezes a alameda. Quando o sol nasceu, entrava ela sem ter sido pressentida, e metia-se na cama, onde sua mãe com pouco a foi despertar.

Nesse dia Emília esteve de uma alegria que não mostrara recebendo a mais enfeitada de suas bonecas. Saltava de contente; a ponta de seu pé calcava mais firme o chão como se o quisera repelir, tanto o passo era firme e altivo. A luz filtrava mais viva na pupila negra; a mão tinha tais ímpetos nervosos que partia as penas escrevendo, e amarrotava a costura.

— Foi essa minha primeira travessura — me dizia ela contando as suas recordações de infância. Daí em diante a minha afouteza foi em progresso. Um ano depois o mato já não tinha segredos para mim; eu conhecia todos os trilhos e veredas, sabia onde estava a melhor goiabeira, o cajueiro mais doce, e o coco de indaiá, de que eu era muito gulosa! Eu mesma... O senhor acredita?... trepava nas árvores, pendurava-me aos ramos, e saltava pelas ladeiras as mais íngremes.

— E sua mãe consentia nisso? perguntava-lhe eu.

— Não consentia, não! Pobre mãe! Nunca ela o soube. Eu aproveitava as horas de estudo em que me deixavam só. A sala dava para o jardim; numa volta ou noutra eu ganhava a chácara, sem que me vissem. Demais, sonsa como era então, ninguém em casa podia desconfiar das minhas travessuras. Diante de gente tinha tal acanhamento que até já aborrecia. Minha mestra chamava a isso com muita graça a minha ferocidade caseira!

Fora assim, Paulo, que se formara essa natureza tímida ao mesmo tempo que audaz. Havia nela a transfusão de duas almas, uma alma de criança e outra alma de heroína. Só em face da natureza, a agreste poesia daqueles ermos comunicava com seu espírito e o enchia de arrojos admiráveis. Em presença de alguém a vida soldava-se no íntimo como num invólucro impenetrável; restava apenas na superfície uma sensibilidade irritável.

Com a idade essa menina assumira a pouco e pouco o governo despótico da casa e da família. Desde o pai até o último dos escravos todos lhe obedeciam cegamente. Ela recebia com gentileza de moça e dignidade de senhora a homenagem devida à superioridade do seu espírito.

Um dia, Emília, que já começara a freqüentar a sociedade, surpreendeu sua alma triste e desconsolada no meio daquela velha habitação; pareceu-lhe isso um degredo dos ricos salões onde algumas noites se expandia a sua beleza.

Disse então uma palavra. De repente o feio edifício surgiu das ruínas maior e suntuoso, entre jardins, mármores e repuxos; foi coberto de vasos, pinturas e tapeçarias; encheu-se de ricas mobílias; teve grande trem, numerosa criadagem e serviço magnífico à européia.

Um dos novos criados, que não me conhecia, levara meu cartão de visita. Esperando, eu observava pelas janelas, à luz frouxa das estrelas, os tabuleiros de relva e os alvos passeios que se recortavam na areia da chácara. Nada sabendo ainda, sentia em tudo quanto me cercava o tato delicado das mãos de Emília.

Ouvi perto de mim a voz do Sr. Duarte.

— Bem aparecido, doutor, nesta sua casa! Cuidei que estava mal com ela!

O negociante conduziu-me, através de grandes salas, que estavam acabando de decorar, a uma saleta do lado oposto do edifício.

D. Leocádia cosia junto à mesa; Emília estava ao piano; mas vendo-me entrar, levantou-se, correspondeu com a costumada frieza ao meu cumprimento, e foi recostar-se à sacada.