Echos de Pariz/XVI

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XVI

O «Salon»

 

O mez de maio, em Pariz, é dedicado á Esthetica.

Então se abre com uma certa solemnidade, em que collabora mesmo o chefe do Estado, a exposição de Bellas-Artes, a que os francezes chamam o Salão, sem duvida por causa da graça, da polidez e da sociabilidade da sua arte. Todas as classes de Pariz (com excepção dos operarios, que só se apaixonam pela politica) tomam um interesse, senão intellectual pelo menos social, n’esta abertura do Salão, mesmo aquellas que no resto do anno vivem tão indifferentes e separadas das cousas d’arte como das cousas da theologia Hindú. Ha assim, em todas as cidades, um dia tradicionalmente consagrado, ou ao Espirito, ou ao Sport, ou á Devoção, que tem o dom de reunir no mesmo enthusiasmo, ou pelo menos na mesma disposição festiva, todos os cidadãos. Em Londres, milhares de pessoas que nunca pegaram n’um remo, nem comprehendem que honra ou proveito se tire de remar com pericia, mostram, e realmente experimentam, a mais excitada sympathia pela regata classica entre as universidades de Oxford e de Cambridge. E em Lisboa, mesmo os impios, pelo ar de festa que tomam, concorrem, no devoto 13 de junho, a festejar Santo Antonio. As almas dos homens, andando hoje tão dispersas, necessitam fundir-se, ao menos uma vez por anno, n’um sentimento commum.

Accresce que o Salão, no dia ceremonioso da sua abertura, offerece dous grandes attractivos além dos quadros e das estatuas. N’esse dia os artistas expõem, não só as suas obras, mas as suas pessoas: — e contemplar um artista, o córte da barba e a fórma do chapéo do artista, é um precioso regalo para o pariziense, como já era para o grego, que vinha da Grande-Grecia e das Ilhas a Athenas, não para escutar Platão, mas para vêr Platão. No Salão, tal que apenas lança um olhar indolente ás telas de Bonnat, segue através das salas, durante uma hora, o proprio Bonnat, repastando-se com delicias na admiração do homem cuja obra lhe foi indifferente. É que para esses, a quem o bom Flaubert chamava com tão truculento rancor «os burguezes», todo o artista é um sêr excepcional, vivendo uma vida excepcional, feita de invejaveis aventuras, de estranhas festas e de voluptuosidades magnificas. Um tão grande privilegiado excita uma insaciavel curiosidade — como tudo o que, no bem ou no mal, pelo brilho ou pela força, se ergue acima do cinzento e mediocre nivel humano. E mal sabem os «burguezes» que o artista quasi sempre (a começar pelo proprio Flaubert) é tambem um burguez pacifico, sobrio, cordato e estreito.

Mas no Salão ha ainda, no dia da sua abertura, uma outra vistosa attracção que por certos lados se prende ás Bellas-Artes — a das toilettes. Com effeito, está na antiga tradição pariziense que as mulheres de luxo, aquellas para quem o luxo é um instrumento de profissão, e aquellas para quem a luxo é um habito natural, que lhes vem da riqueza, da posição, ou do gosto innato, arvorem então as modas novas de primavera, as creações mais delicadas e mais artisticas das grandes costureiras d’arte. São outros tantos quadros que circulam apparatosamente pelas salas, e que a multidão olha e admira, com muito mais curiosidade do que os outros, pregados em redor nas paredes, dentro dos seus caixilhos. E ao lado das elegantes enxameam as proprias costureiras, que vêm, exactamente como os artistas, observar com anciedade o «effeito» produzido pela composição, pelo colorido, pelo vigor ou pela finura das suas obras.

D’estas obras especiaes apenas entrevi duas com alguma fantasia e audacia. Em ambas a figura das senhoras, a sua «plastica» concorria a dar um relêvo picante e divertido á toilette e aos accessorios da ornamentação. Uma, muito delgada, bem lançada, com uma gracilidade serpentina, trazia uma saia curta, de sêda murmurosa e lustrosa, recoberta de falbalás Pompadour: os cabellos fulvos, pintados com o louro do Ticiano, cahiam em cascatas e ondas ricas sobre collo e hombros, como uma juba superiormente frisada e bem empomadada por Lentheric (o mais illustre cabelleireiro do seculo); as abas do seu chapéo eram tão vastas que sob ellas se poderia abrigar do sol ou da chuva um grupo de viajantes, com os seus cavallos e com as suas bagagens, e estavam ainda encimadas por uma triumphal montanha, fôfa e tremente, de plumas multicores: a sua mão, calçada de luva negra, bordada a ouro, e que subia amarrotada até o hombro, apoiava-se no castão de onyx de uma bengala de marfim, mais alta que um baculo ou que uma lança: a cada passo que dava, as sêdas crepitavam e lampejavam, a massa alterosa de plumas tremia e fluctuava, o conto do bengalão resoava magestosamente, e um sorriso fugia dos labios da dama, tão vermelhos que pareciam uma ferida em carne viva e sangrenta. Assim ia entre a multidão — e eu não a commento. Arredae-vos, amigos, e deixae-a passar.

A outra senhora, ainda mais pittoresca, era enorme, transbordante, construida de rôlos e bolas, com uma pelle escabrosa, a que, mesmo sob o pó d’arroz applicado sem economia, se sentia a côr de açafrão. As suas tremendas massas de carne bamboleante vinham apenas envoltas n’uma tunica diaphana, d’um amarello ardente e brilhante, como as florinhas do campo de Portugal chamadas botões de ouro, e feita certamente d’aquelle antigo tecido que se fabricava na ilha de Cós, e que pela sua transparencia e leveza aerea os poetas da Grecia diziam ser feito de luz e vento.

Como chapéo tinha apenas alguns amores perfeitos, em grinalda, tambem amarellos. Era uma nympha, e assim montanhosa, sobrancelhuda, beiçuda, de venta larga, com um saracoteio que lhe collava a tunica e lh’a enrodilhava nos vastos membros de elephante ameno, fendia soberbamente a turba, meneando um immenso leque, ainda amarello, furiosamente amarello. Taes eram estas duas parizienses, as duas obras vivas do parizianismo que mais me impressionaram n’estas festas de Santa Esthetica. Dizem que Pariz continua a impôr ao mundo a regra do gosto e do bem-vestir, e que, tendo perdido todo o predominio em materia de philosophia e de sciencia positiva, exerce ainda uma influencia intensa através das suas costureiras. Por isso traslado fielmente, para uso das raças menos inventivas, estes dous figurinos que se me affiguram consideraveis.


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Emquanto ás outras obras expostas no Salão, os quadros e as estatuas, a primeira lição que lhes tirei foi meramente sociologica; e por via d’ellas (mirabile dicta! ) mais uma vez reconheci quanto é facil governar as Democracias. O grande obstaculo, que os theoricos de temperamento timido têm antevisto á estabilidade dos agrupamentos democraticos, é a independencia da razão individual e o seu livre exercicio, garantidos por leis, tornados mesmo alicerces primordiaes da estructura publica.

Desde que não exista uma regra, como a velha regra catholico-monarchica, que obrigue todos os espiritos a ter a mesma opinião e a regularem por ella a sua conducta, não parece possivel (affirmam esses pallidos theoricos) manter em harmonia alguns milhões de cidadãos, todos elles possuidores de uma ideia original e propria, e determinados, por interesse ou por convicção, a que só ella prevaleça.

A servidão intellectual, entendida á boa e rija maneira dos Jesuitas, apparece assim como a condição suprema de toda a harmonia social.

Mas como a Democracia, de collaboração com a philosophia, tem justamente por fim abolir esta servidão, dar uma illimitada alforria aos entendimentos, ella cria desde logo e sem remedio esse estado, previsto tão melancolicamente pelo nosso velho proverbio, em que «cada cabeça dá a sua sentença». E (concluem emfim os theoricos) como não ha melhor goso para uma cabeça humana do que conceber e impôr uma sentença, resulta que, apenas se quebra o jugo salutar da Regra, todas as cabeças se sacodem desafogadamente, atiram para o ar com impeto a sua sentença e fazem uma d’essas horripilantes desafinações sociaes só comparaveis ás d’uma orchestra, sem regente e sem batuta, em que cada instrumento geme, silva, tilinta, ou rebumba uma musica diversa e contraria. Tudo isto é um erro — e os theoricos que a sustentam nunca foram, como eu, ao Salão, no dia da sua abertura, quando em materia d’Arte cada cabeça, depois de ter pago a entrada, póde liberrimamente proclamar a sua sentença. Se tivessem feito essa peregrinação instructiva, verificariam que o servilismo intellectual é no homem um vicio irreductivel, e que por mais que se lhe facilite o largo e livre exercicio da razão, e que se lhe ensine a sacudir o despotismo dos Oraculos, sempre elle por instincto, por covardia, por indolencia, por desconfiança de si proprio, abdicará o direito de pensar originalmente e se submetterá com prazer, com allivio, a toda a Auctoridade, que, á maneira de um pastor entre um rebanho, se erga, toque a buzina e lhe aponte um caminho com o cajado. Realmente a humanidade é gado — e o primeiro movimento de toda a cabeça livre é pender para o sulco aberto, enfiar para debaixo da canga.

Estas reflexões, de resto pouco novas, (miraculoso seria que ao fim de tantos seculos ainda se pudessem desenterrar novidades do fundo da indole humana) as fiz eu, com alguma tristeza misturada de muita alacridade, notando para que quadros e para que estatuas se dirigiam, no Salão, a curiosidade e a admiração do publico.

Como uma fila submissa, de bons carneiros, todos estes milhares de seres pensantes, e unicos donos do seu pensamento, marchavam arrebanhadamente para aquellas obras que, na vespera, o Estudo Critico, ou antes o Guia Critico, do Salão, publicado pelo Jornal, lhes indicava, ou melhor lhes impuzera, como as unicas deante das quaes deviam parar, e fazer ah! e sentir uma emoção e depôr um louvor. Não só o jornal previdentemente lhes apontava a obra, mas lhes ensinara mesmo a emoção que deviam experimentar, e até lhes redigira a formula laudatoria que deviam balbuciar. E os milhares de seres pensantes (muitos com o jornal na mão) lá se apinhavam, em densos magotes, deante da tela, recebendo obedientemente a emoção ensinada, recitando, sem omittir um adjectivo, a formula do louvor decretado. Um padre da Companhia de Jesus teria saboreado deliciosamente este salutar espectaculo de disciplina mental.

Todavia este povo fez, com intensa paixão, tres revoluções sangrentas para alcançar o direito de livre-exame e de livre-juizo. Essa conquista, symbolisada sempre na classica tomada da classica Bastilha, é com razão um dos seus altos orgulhos e foi ella que o auctorisou a revestir-se entre as nações do caracter messianico, e a intitular-se «redemptor dos Povos», o que tanto fazia rir o amargo Carlyle. Com effeito, a liberdade de ter uma opinião, não só em materia politica, mas mesmo em materia philosophica e esthetica, nem sempre foi garantida aos parizienses, e houve tempos (talvez ditosos) em que elle, tal qual como o habitante de Damasco ou de Bagdad, não podia, sem perigo do carcere e da tortura, divergir das opiniões dogmaticas dos seus doutores.

Quando a Faculdade de Pariz (que, segundo diz Voltaire, tão poucas faculdades possuia) lançou um decreto negando a existencia das «ideias innatas», todos os espiritos foram obrigados a repellir com nojo a abominavel noção das «ideias innatas»; e quando, annos depois, fazendo uma pirueta metaphysica, a mesma Faculdade atirou outro decreto affirmando a existencia das «ideias innatas», todos os mesmos espiritos, piruetando tambem, tiveram de proclamar com reverencia a certeza das «ideias innatas». A memoria d’essa affrontosa escravidão intellectual ainda hoje amargura o francez que em principio, theoricamente, considera a vida sem valor, logo que ella não seja acompanhada e ennobrecida pela liberdade do pensamento.

É essa liberdade, alcançada emfim tão penosamente, que constitue a sua melhor superioridade sobre o pobre homem de Bagdad ou de Ispahan, a quem ainda não é permittido raciocinar d’um modo differente do que raciocina o Cadi ou o Ulema. Elle, francez, graças ás suas tres revoluções, póde pensar como lhe aprouver sobre todas as cousas da terra e do céu. É o seu mais augusto direito. E esta certeza de o haver conquistado lhe basta largamente. Porque, de resto, para ter uma opinião, espera sempre que o seu Cadi ou o seu Ulema, dogmatisando no jornal, lhe indique a opinião que elle deve adoptar e a maneira porque a deve exprimir, ou se trate de um ministerio e o Cadi seja Magnard, do Figaro, ou se trate d’um vaudeville e o Ulema seja Sarcey, do Temps.

D’onde se poderia concluir, alargando o conceito, que o homem verdadeiramente não appetece ser livre e apenas deseja que lhe não chamem escravo. Comtanto que a sua liberdade esteja consignada em lettra redonda, algures, n’uma Constituição ou nas paredes dos edificios, elle está contente e não exige que essa liberdade se traduza realmente em factos. O distico lhe basta. Qualquer Republica se póde converter no mais rigido despotismo, comtanto que se continue a denominar «Republica». Nero, intoleravel sob o nome de Imperador, é popularmente consentido sob o nome de presidente. Em materia social é o rotulo impresso na garrafa que determina a qualidade e o sabor do vinho. O governo das sociedades parece, portanto, ser essencialmente uma questão de lexico. O melhor meio de dirigir os homens será talvez gritar-lhes com enthusiasmo: «Vós sois livres!» — e depois com um tremendo azorrague, á maneira de Xerxes, obrigal-os a marchar. E marcham contentes, sob o estalido do açoite, sem pensar mais e sem mais querer, porque a palavra essencial foi dita, elles são livres, e lá está Xerxes, no seu carro de ouro, para querer e para pensar por elles.

De resto, talvez toda esta gente ande bem avisadamente em admirar, sem iniciativa propria, as obras de arte, que os criticos lhe mandam admirar. Ha aqui uma reserva e economia de força pensante, que bem póde ser louvavel. N’esta nossa atulhada civilisação, em que tão continuos esforços são exigidos de cada homem para que lhe possa caber a sua fatia de pão no famoso «banquete da vida», parece realmente excessivo que elle se sobrecarregue ainda com o trabalho de conceber e formular opiniões estheticas. Um amanuense das finanças, que nascera com espirito, dizia outr’ora a Voltaire: — «É para mim uma grande infelicidade, mas nunca me sobrou tempo para ter bom gosto!» Palavra triste e profunda: — e que, se já era verdadeira no seculo XVIII, quanto mais exacta é no seculo XIX! Para ter um gosto proprio e julgar com alguma finura das cousas d’arte, é necessaria uma preparação, uma cultura adequada. E onde tem o homem de trabalho, no nosso tempo, vagares para essa complicada educação, que exige viagens, mil leituras e longa frequentação dos museus, todo um afinamento particular do espirito? Os proprios ociosos não têm tempo — porque, como se sabe, não ha profissão mais absorvente do que a vadiagem. Os interesses, os negocios, a loja, a repartição, a familia, a profissão liberal, os prazeres não deixam um momento para as exigencias de uma iniciação artistica: — e n’uma cidade de dous milhões de almas, como Pariz, ha por fim apenas meia duzia de almas, que possam sentir com verdade e profundidade a belleza ou a grandeza de uma obra, e que, deante d’um quadro de Velasquez e d’um quadro de Bonguereau, saibam qual pertence á Arte e qual pertence ao Artificio. Por isso a oleographia triumpha, e Ohmet e outros tiram a cem mil exemplares, e as comedias mais desprezivelmente idiotas congregam as multidões. E não é culpa da multidão. Ella póde dizer como o amanuense a Voltaire; «Não me sobra tempo para ter bom gosto!»

Por outro lado, porém, hoje, todo o homem civilisado, ou que vive n’um meio civilisado, está sob o dever de se interessar ou de parecer que se interessa pelas grandes expressões da civilisação. Sem essa manifestação de cultura, elle é considerado pelos seus visinhos como um selvagem. O desdem, ou simples indifferença pela litteratura ou pela arte, já não é permittido ao habitante d’uma capital: e os tempos vão longe em que os senhores feudaes se gabavam com orgulho de não saber lêr. Hoje, em todas as classes que estão para cima do lavrador e do carrejão, é tão indispensavel mostrar um certo gosto pelas cousas do espirito, como usar, pelo menos ao domingo, camisa engommada. É um preceito de decencia e respeitabilidade. Por mais bacalhoeiro que se seja, e enfronhado no bacalhau, e indifferente a tudo, fóra o arratel e o meio arratel, não se ousa desprezar publicamente (ainda que se desprezem em particular) as lettras e as artes, como não se ousa ir ao passeio em chinellos e sem gravata. Tudo n’este nosso seculo é toilette, dizia o velho Carlyle.

O apreço exterior pela arte é a sobrecasaca da intelligencia. Quem se quererá apresentar deante dos seus amigos com uma intelligencia núa?

N’uma cidade como Pariz, e perante um acontecimento tão artistico como é todos os annos a abertura do Salão, cada bom burguez (para usar o termo querido de Flaubert) se vê forçado pelo decôro a ter sobre tres ou quatro quadros uma opinião, uma phrase, para trocar com as suas relações no café. Mas construir essa opinião, redigir essa phrase é um trabalho que pede reflexão, tempo, um diccionario. E para quem passa o seu cançado dia no escriptorio, no armazem, na repartição, no bilhar ou na atarefada ociosidade mundana, isto desde logo se torna uma sobrecarga impraticavel. O expediente natural, portanto, é recorrer áquelles que têm por profissão e especialidade fornecer, sobre cousas d’arte, opiniões e phrases. Estes são os criticos e têm a sua loja de retalho no jornal. Nada mais commodo, mais rapido, pois, do que comprar ao critico, pela toleravel somma de dez réis, tres ou quatro opiniões, como se compram no luveiro tres ou quatro pares de luvas, escuras ou claras. Enverga-se a opinião como se calça a luva, e desde logo se fica apto a apparecer na sociedade com o ar e a elegancia moral de um sêr culto. Esta é a grande vantagem de viver nas cidades, onde tudo se fabrica e tudo se retalha. Um qualquer póde estar de manhã completamente nú, de corpo e de espirito, sem um trapo e sem uma ideia. D’ahi a um momento, dispondo de algum dinheiro, e graças ao armazem de fato feito, e ao armazem de ideias feitas (que se chama o jornal), póde estar todo e dignamente vestido, por dentro e por fóra, e sahir á rua, e ser um senhor.

Esta gente, pois, que aqui anda, com o seu jornal na mão, consultando n’elle as obras que ha-de admirar e as phrases em que ha-de moldar a sua admiração, não é talvez o rebanho humilde que marcha sob a ferula da auctoridade. É antes uma turba de amanuenses, que, como o outro do tempo de Voltaire, não tiveram vagares para adquirir bom gosto. Quando Voltaire escreveu, não havia quasi jornaes, o unico critico d’arte era Diderot e ainda se andava compilando a Encydopedia. Aquelle amanuense estava realmente muito desajudado. Hoje, com tantos e tão baratos jornaes e uma tal legião de grandes e verbosos criticos, não ha desculpa para que um amanuense, mesmo sem ter relações com Voltaire, se não forneça de dous ou tres kilos de bom gosto. E fornece, porque sabe as vantagens de ter alguma esthetica e alguma poetica, quando se vae á noite tomar chá com senhoras. Ahi os vejo todos, trazendo o jornal cheio de opiniões, como um cartucho — e, deante da estatua de Dubois ou do quadro de Bonnat, dizendo com segurança, depois de metter a mão no cartucho, o que este anno se deve decentemente dizer sobre Bonnat ou Dubois.

E aqui está como, divagando com o costumado vicio latino, através d’um portico de considerações geraes, eu vos retive, amigos, todo este tempo, á entrada do Salão, sem vos mostrar sequer um bocado de côr sobre um bocado de tela. Mas quando eu vos tivesse contado do Cavalleiro das Flores, de Rochegrosse, ou do Papa e o Imperador, de Laurens, ou da Brunehilde, de Luminais, vós apenas ganharieis algumas linhas de prosa desbotada e fugaz.

Estes quadros estão em França, vós estaes no Brazil, e de permeio ha tres mil leguas de longo e sonoro mar. É difficil sentir uma obra d’arte a tres mil leguas, através d’um mero fio de rhetorica. A pintura é, segundo todos os fortes definidores, uma imitação da Natureza. Portanto eu só vos poderia offerecer a descripção d’uma imitação da Natureza. Mas como eu proprio só conheço quasi todos estes quadros, que são tres mil, pelo que d’elles li n’uma revista, realmente, de boa fé, só vos poderia fornecer uma reproducção de uma descripção de uma imitação da Natureza. E como desconfio, além d’isso, que o estudo d’esta revista era já compilado sobre as notas de jornaes, eu, na verdade e sinceramente, só vos dava a transcripção de uma reproducção de uma descripção de uma imitação da Natureza. O que seria petulante.