Ludovina Moutinho

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LUDOVINA MOUTINHO.


ELEGIA.


(1861.)


A bondade choremos innoccente
Cortada em flor que, pela mão da morte,
Nos foi arrebatada d'entre a gente.
Camões. — Elegias.


Se, como outr'ora, nas florestas virgens,
Nos fosse dado — o esquife que te encerra
Erguer a um galho de arvore frondosa,
Certo, não tinhas um melhor jazigo

Do que alli, ao ar livre, entro os perfumes
Da florente estação, imagem viva
De teus cortados dias, e mais perto
        Do clarão das estrellas.

Sobre teus pobres e adorados restos,
Piedosa a noite, alli derramaria
Do seus negros cabellos puro orvalho;
Á borda do teu ultimo jazigo
Os alados cantores da floresta
Iriam sempre modular seus cantos;
Nem lettra, nem lavor de emblema humano,
Relembraria a mocidade morta;
Bastava só que ao coração materno,
Ao do esposo, ao dos teus, ao dos amigos,
Um aperto, uma dôr, um pranto occulto,
Dissesse: — Dorme aqui, perto dos anjos,
A cinza de quem foi gentil transumpto
        De virtudes e graças.

Mal havia transposto da existencia
Os dourados umbraes; a vida agora
Sorria-lhe toucada dessas flores
Que o amor, que o talento e a mocidade
        Á uma repartiam.

Tudo lhe era presagio alegre e doce;
Uma nuvem sequer não sombreava,
Em sua fronte, o iris da esperança;
Era, emfim, entre os seus a copia viva
Dessa ventura que os mortaes almejam,
E que raro a fortuna, avessa ao homem,
        Deixa gozar na terra.

Mas eis que o anjo pallido da morte
A presentio feliz e bella e pura,
E, abandonando a região do olvido,
Desceu á terra, e sob a aza negra
A fronte lhe escondeu; o fragil corpo
Não pôde resistir; a noite eterna
        Veio fechar seus olhos;
        Emquanto a alma abrindo
As azas rutilantes pelo espaço,
Foi engolfar-se em luz, perpetuamente,
        No seio do infinito;
Tal a assustada pomba, que na arvore
O ninho fabricou, — se a mão do homem
Ou a impulsão do vento um dia abate
O recatado asylo, — abrindo o vôo,

        Deixa os inuteis restos
E, atravessando airosa os leves ares,
Vai buscar n'outra parte outra guarida.

Hoje, do que ora inda lembrança resta,
E que lembrança! Os olhos fatigados
Parecem ver passar a sombra delia;
O attento ouvido inda lhe escuta os passos;
E as teclas do piano, em que seus dedos
Tanta harmonia despertavam antes,
Como que soltam essas doces notas
Que outr'ora ao seu contacto respondiam.

Ah! pezava-lhe este ar da terra impura,
Faltava-lhe esse alento de outra esphera,
Onde, noiva dos anjos, a esperavam
        As palmas da virtude.

Mas, quando assim a flor da mocidade
Toda se esfolha sobre o chão de morte,
Senhor, em que firmar a segurança
Das venturas da terra? Tudo morro:
Á sentença fatal nada se esquiva,
O que é fructo e o que é flor. O homem cego
Cuida haver levantado em chão de bronze

Um edifício resistente aos tempos,
Mas lá vem dia, em que, a um leve sopro,
        O castello se abate,
Onde, doce illusão, fechado havias
Tudo o que de melhor a alma do homem
        Encerra de esperanças,

        Dorme, dorme tranquilla
Em teu ultimo asylo; e se eu não pude
Ir espargir tambem algumas flores
Sobre a lagea da tua sepultura;
Se não pude, — eu que ha pouco te saudava
Em teu erguer, estrella,- os tristes olhos
Banhar nos melancolicos fulgores,
Na triste luz do teu recente occaso,
Deixo-te ao menos nestes pobres versos
Um penhor de saudade, e lá na esphera
Aonde approuve ao Senhor chamar-te cedo,
Possas tu ler nas pallidas estrophes
        A tristeza do amigo.