Eneida Brazileira/Notas ao Livro I

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NOTAS AO LIVRO I.


1. — 1. — Alguns excluem o que precede á proposição. Se nas Georgicas menciona Virgilio as Bucolicas, não he müito que falle aqui não só destas como das Georgicas, composição que sabia ser das suas a melhor acabada. Camões nos Lusiadas allude ás poesias várias; e Menezes na Malaca ás amatorias que escrevera.

18. — 21. — O Tibre tem duas fozes: os que verteram ostia por um singular, ou os que, como Delille, o omittem, foram inexactos.

24. — 31. — Explico o sic volvere parcas como Ferreira na egloga Archigamia. Este sabio, imitando a Virgilio, exprimiu todo o sentido do latim. Em portuguez verteu bem só Barreto Fêo, postoque em sobejas palavras.

42. — 43. — Mr. Villenave descobre contradicção em queixar-se a deusa de não poder afastar os Troianos do Lacio, tendo dito o poeta que do Lacio andavam arredios pelo odio de Juno. Virgilio, que toma a peito a causa do heroe, refere o facto de errarem os Troianos longamente; mas Juno, que os via seguir o seu caminho apezar dos embaraços que lhes suscitava, julga não ter feito assás: cada um falla segundo o seu interêsse. Contradicção fôra se Juno he que tivesse dito uma e outra cousa.

62. — 69. — O Ni faciat contêm um como desafio: reflicta-se na fôrça que tem o presente do subjunctivo. O aliás insigne literato João Franco traduziu: Se assim não fôra; no que se aparta do original. Nem Delille, nem Bondi, nem Dryden, nem mesmo o exacto Annibal Caro, ou algum dos que consultei, foram mais felizes que João Franco.

96. — 105. — Nos Études sur Virgile, increpa-se o receio de Enéas. A esta crítica, já antiga, La Rue (chamam-no em nossas escolas Carlos Rueu) brevemente responde: «Aqui alguns accusam Enéas de pusillanime, mas temerariamente; elle não recêa a morte, sim a morte ingloria e inutil.» Mr. Tissot excusa o mesmo receio em Achilles e Ulysses: «D’ailleurs leur faiblesse, si c’en est une, repose encore sur la crainte de mourir d’une mort obscure, sans tombeau et sans apothéose.» De tempos a esta parte, os criticos amam achar máo em Virgilio o que louvam em Homero; meio modernissimo de alcançar fama de espirito profundo. Isto me faz lembrar dos beatos que, para camparem de religiosos, gostam só das tragedias de Racine e Corneille, e não soffrem a Merope e o Orphão da China, nem se commovem em Zaíra[1] e em Mahomet, por serem de Voltaire.

106-123. — 116-136. — Mr. Nisard do Instituto de França, na sua estimavel obra sôbre os poetas latinos da decadencia, compara esta tempestade com a do livro XII da Odysséa, e tem que em Virgilio: «les Troyens sont presque moins intéressants que les effets de coups et d’hémistiches du poëte. Virgile, diz elle[2], sait déjà qu’une tempête est un morceau à effet, sur lequel on compte; il y met du soin, de la coquetterie; il ne croit pas qu’Eole pût faire assez bien les choses; il vient à son aide, il emploie tous les artifices du style: præruptus aquæ mons; Hi summo in fluctu pendent; Volvitur in caput. Le tout afin qu’un professeur de grammaire dise quelquefois: «Ne vous semble-t-il pas voir la montagne d’eau s’écrouler sur le vaisseau d’Oronte?... et ses navires ne sont-ils pas suspendus sur la crête des flots?... Le tableau, pour vouloir être plus complet, est plus vague; l’expression même est molle quelquefois. J’ai souligné le mot insequitur, qui vient deux fois, quoique ce soit le mot qui dise le moins de choses: il s’applique au temps, mais point aux objets... L’image du pilote tombant la tête la primière ne touche point, d’abord parce que c’est un incident imité d’Homère, ensuite parce que la circonstance qui amène cette mort est vague; on ne se figure pas bien un vaisseau soulevé par la poupe et qui verse dans la mer son pilote par la proue, au lieu qu’on se figure très-bien un mât fracassé qui écrase en tombant la tête du pilote et le précipite dans les flots. Ipsius ante oculos ne fait ressortir que davantage le peu de précision du détail de Virgile; ear on se demande naturellement: qu’est-ce donc que voit Oronte? est-ce la vague qui vient prendre son vaisseau en poupe? Mais il est si naturel qu’il la voie, qu’il l’est par trop de le dire. Virgile a mis une variante à la catastrophe d’Homère, qui ne me paraît pas heureuse: il fait disparaître dans un tourbillon le vaisseau d’Oronte. Homère s’inquiète peu du vaisseau d’Ulysse, une fois que tout ce qui s’y trouvait d’êtres vivants a péri, et qu’il en a un débris, sur lequel Ulysse se sauvera du naufrage. Virgile ne baisse pas la toile sur ces Troyens qui nagent sur la lame immense; il trouve encore un désastre plus grand, et ce désastre, c’est la perte des armes, des planchers, des richesses troyennes, qui flottent sur les ondes.» - Peço venia para uma quasi dissertação: tenho de refutar a Mr. Nisard, escritor douto e espirituoso, e no seu arrezoado mũitos sam os reparos contra esta passagem, admirada ha mais de 18 seculos. Concordo com elle no louvor ao pae da poesia epica: nada ha mais simples e preciso do que essa descripção na Odysséa. O crítico porêm não considerou a differença do assumpto: Ulysses, ainda que a Ithaca chegasse nu, como arribara á ilha dos Pheaces, tinha comsigo tudo que havia mister para attingir o seu fim, isto he para castigar os pretendentes e tomar conta de seu reino; mas Enéas, que ia fundar um imperio, se nu abordasse a Italia, sem gente, sem o que a tanto custo salvara das ruínas de Troia, nada poderia obter, e estava gorada a Eneida. Esta reflexão basta para justificar o poeta de julgar lamentavel a perda des richesses troyennes qui flottent sur les ondes: as riquezas, entre as quaes iam alfaias, armaduras e mil objectos, pertencentes a amigos e a guerreiros troianos, alêm de serem necessarias aos fugitivos, eram outras tantas lembranças da patria, cuja perda se devia lastimar. Assim, a lamentação de Virgilio, que se põe no lugar do heroe, não recahe sôbre cousas inanimadas de preferencia à ces Troyens qui nagent sur la lame immense, mas sôbre as pessoas queridas que esses objectos representavam, mas sôbre toda a sociedade troiana. Virgilio morreu sem limar a sua obra, e só a communicava a poucos: em sua vida pois não houve professor de grammatica que dicesse a seus discipulos: Ne vous semble-t-il pas voir la montagne d’eau s’écrouler sur le vaisseau d’Oronte? Não houve então ninguem que dicesse o mais que Mr. Nisard, com uma especie de fino gracejo, põe na bôca dos mestres de latim: o crítico deixou o seculo de Augusto, e collocou-se no nosso entre os pedantes das escolas; sem reflectir que esses hemistichios foram sempre saboreados pelos homens de melhor tacto em todos os seculos, e que a admiração que taes bellezas inspiram, passou dos sabios aos espiritos ordinarios. — Não vejo tambem porque l’image du pilote tombant la tête la première ne touche point, d’abord parce que c’est un incident imité d’Homère. He por ventura da natureza da imitação o nunca poder commover? Não pensaram assim Ovidio, Dante, Camões, Tasso, Milton, Voltaire, Chateaubriand; e o voto de ingenhos taes he para mim da maior excepção. Mr. Nisard não entendeu o ingens a vertice pontus: creu que a mareta veio da pôpa. Virgilio, que em não poucas viagens tinha observado os phenomenos do mar, sabia como o escarcéo que vem d’avante he mais perigoso, e quanto he raro sossobrar a embarcação que as vagas batem em pôpa. — Para justificar o poeta marinheiro, como o denomina M. Jal, autor da Archéologie navale, deixemos fallar este erudito, na sua breve mas profunda obra o Virgilius nauticus: {{lang|fr|«Il s’agit cette fois d’une lame immense qui, venant de la proue du navire d’Oronte, et tombant de haut (a vertice me paraît avoir ce double sens; il fortifie ingens, em même temps qu’il est en opposition avec puppim, comme extrémité du vaisseau), déferle sur la poupe, ébranle le capitaine, qui, au mouvement de tangage, est dèjá penché en avant (pronus), et le fait tomber roulant sur lui-même, la tête la première... Quant à vertice, quelques-uns y ont vu la proue, d’autres ne se sont pas préoccupés de ce détail, et j’aime mieux leur oubli qu’un contre-sens comme celui qui a échappé à Servius. Cet illustre commentateur veut que a vertice soit synonyme de a puppi; il ne réfléchit pas que, si la vague se dressant derrière la poupe était entrée dans le navire par l’arrière, ce n’est pas assurément sur la tête que serait tombé Oronte. Virgile a rendu avec sa rare habileté de poëte marin l’effet du tangage et l’embarquement par l’avant de cet effroyable paquet de mer qui couvre le vaisseau, et l’engloutit dans un tourbillon où il sombre, la proue en avant, en tournant trois fois sur lui-même.}} — Nem o texto, nem M. Jal com toda a competencia na materia, falla em Oronte cahir no mar; elle morreu com a tripulação n’um vortice do navio; cahiu no convez, por effeito da arfagem, e não fóra da embarcação: o poeta pinta phenomenos interessantes aos que tem feito maiores viagens que as dos batéis do Sena, e que talvez não sam aos que nunca viram uma tempestade no oceano ou junto de uma costa brava. — O ipsius ante oculos foi mal interpretado por M. Nisard: refere o ipsius a Oronte, devendo referil-o a Enéas. E porque diz o texto que era ante os olhos de Enéas? Eis-aqui: uma tempestade não dá com a mesma fôrça em todos os navios da mesma conserva, carrega mais em uns que nos outros; e, collocando-se a nau do chefe proxima da que sossobrou, mostra-se o perigo eminente do heroe; o que concorre para o interêsse da situação. Pode ainda tirar-se uma illação; isto he que, se não pereceu tambem a capitânea, Enéas o deveu á experiencia e cautelas do piloto mais perito da frota, o velho Palinuro, que estava a seu bórdo. — Das censuras só resta uma, o verbo insequitur duas vezes na mesma descripção: defeito levissimo, que não pode afeiar uma tam formosa passagem. Ainda assim, nesta justa censura ha duas inexactidões: o insequitur não he tam fraco como Mr. Nisard imagina, significa tambem instar, perseguir, e o crítico parece discorrer antes sôbre o simples sequitur do que sôbre o composto, a que a preposição in imprime uma fôrça maior; nem o verbo somente s’aplique au temps, mais point aux objets; o contrário se vê em Cicero, Philip. 2: [3]Si tum occisus est, quum tu illum in foro spectante populo romano gladio stricto insecutus es. — O praeruptus aquae mons acaba em um monosyllabo, como para mostrar o cimo da montanha d’agua. O nosso vocabulo monte he dissyllabo; e, se nelle terminasse o verso portuguez, não tinha a mesma graça: terminei-o no pronome se monosyllabico, referindo-se a monte, e obtive assim a vantagem do latino. Os que sentem as bellezas da versificação, creio, devem gostar do esdruxulo; que, tendo mais uma syllaba, parece augmentar a altura da vaga.

139-149. — 151-160. — Vaga de per si quer dizer onda agitada; omitti pois motos. Em semelhantes casos assim o faço; o que torna esta traducção a mais concisa de quantas tenho examindado. — Lançar-se o mar por abonançar he dos bons antigos. Desengasgar, postoque portuguez e vulgar, falta nos nossos melhores diccionarios.

163. — 175. — Chateaubriand, no Itinerario, he da opinião do doutor Shaw, de que esta bahia não existiu só na cabeça de Virgilio, mas ao pé de Carthago. Assemelha-se todavia ao pôrto de Phorcyna em Homero.

183. — 195. — Naquella epoca não se usava de fermento para levedar o pão, nem havia moínhos; torravam-se os grãos e quebravam-se em pedra. Quando imprimi este livro em separado, usei mal do vocabulo . João Franco usa do vocabulo pedra; mas accrescentando o adjectivo orbicular, parece ter tido o mesmo engano que eu. O Snr. Lima Leitão pondo , o Snr. João Gualberto e Barreto Fêo pondo moer, tambem se enganaram.

186. — 199. — Caíco tinha mais de um navio sob as suas ordens immediatas, o que indica o plural puppibus. Sigo a La Rue e Mr. Jal na opinião de que arma não sam bandeiras, nem armas pintadas, mas broquéis, lanças, que se suspendiam no alto das pôpas. Annibal Caro e João Franco traduzem arma por bandeiras.

210. — 223. — Este verso, exprimindo a prudencia do chefe que suffoca seus temores, tem merecido a approvação geral; mas Mr. Tissot o acha máo, porque Enéas desespera da sua fortuna e desconfia dos deuses, e um tal varão não he feito pour gouverner les passions et les volontés de ses semblables. Enéas, bem que pio, he natural que ás vezes desconfiasse dos oraculos, e ainda mais da sua fortuna; e se nunca tivesse tal desconfiança, crendo que o fado o ajudava em todas as empresas, a certeza de obter tudo com o favor supremo diminuiria o preço da sua coragem pessoal: as mais das vezes porêm he a confiança nos deuses que o acorçoava. O poeta conhecia melhor a nossa natureza do que os seus criticos, e não exagerava os sentimentos; folgava de deixar vêr o homem no heroe.

215-228. — 224-228. — Observe-se a brevidade e concisão do portuguez: o nosso esfolar verte fielmente o tergora diripiunt costis; o nosso espostejar, o in frustra secant; o nosso desentranhar, o viscera nudant. Para o verubusque trementia[4] figunt servi-me de quasi um verso do harmonioso e correctissimo Garção. Conservo o epitheto velivolum, postoque Mr. Villenave o tenha, com razão, por menos bem applicado a mare do que aos barcos, preferindo o emprêgo que delle fez Ovidio, nas Pont., liv IV, epist.5.

251-252. — 262- 263. — Antenor fundou Padua, a qual primeiro denominou Troia, e alli estabeleceu a pequena colonia dos Antenoridas; Enéas foi quem ao Lacio conduziu o grosso da nação: he por isso que, fallando de Antenor, digo deu casa a Teucros, e fallando de Enéas, direi deu casa aos Teucros. Distincção não feita pelos traductores, talvez minuciosa, mas tendente á exactidão e á clareza.

290-291. — 302-304. — Mr. Tissot, a proposito desta passagem, sentencêa que o poeta, en donnant toutes les perfections à ses principaux personages, Auguste et Énée, a méconnu la nature et s’est privé des ressources que lui aurait fournies une imitation plus fidèle de la vérité. Parece incrivel que seja isto de quem ha pouco vimos tachando o heroe troiano de não ser para governar as paixões e vontades de seus semelhantes; o peior defeito de um chefe. Para confutar a Mr. Tissot, recorro a Mr. Tissot. — Se fôssem verdadeiras as baldas que á Eneida assacam, não digo os Zoilos, mas os seus mesmos apaixonados, seria ella o mais reles dos poemas. Assim, o pintor que expunha um gabado quadro para colher as críticas e aperfeiçoal-o, viu que o público o admirava; porêm que tantos eram os defeitos que lhe achavam os admiradores, que melhor seria ou ficar o quadro como estava, ou borral-o e compôr outro. Assim, a môça formosa, a quem todo o rancho dos gamenhos applaude, quando as invejosas lhe analysam a belleza, bem que em geral não lhe neguem o merecimento, sam taes os senões que nella cada uma encontra, que a pobre se deveria ir esconder, como a coruja mais feia e hedionda.

317. — 335. — Em vez de Hebrum leio Eurum, com Heyne e outros; porque, exagerando-se a carreira de Harpalyce, nada admiraria que ella a cavallo vencesse o curso de um rio; tanto mais, que o Hebro da Thracia não he impetuoso. Assim, cahe por si mesma a censura de Heliez, na sua Geographia de Virgilio, de que as Amazonas sam collocadas na Thracia européa, sendo habitadoras da asiatica. Compuz alifugo para exprimir o volucrem fuga.

347. — 362. — Alguns substituem ditissimus agri por ditissimus auri, contra a lição antiga, com o fundamento de que os Phenicios, ricos em commercio, o eram pouco em lavras; o que não basta a justificar a emenda: o terem sido os Phenicios mediocres na agricultura nada obsta a que Sicheu entre eles fôsse o mais opulento em bens territoriaes.

368. — 384. — Dux femina facti verteu João Franco: «Do feito a Dido sam as honras dadas.» He obvio que femina he essencial: a ousadia da empresa mais sobresahe por ser mulher quem a effeituou.

382-383. — 398-400. — Na antiguidade, os homens illustres se gabavam sem offenderem o decoro e o costume geral: como Ulysses na Odysséa; como ao depois Horacio e Ovidio; como, entre os modernos, Camões, Ercilla, Cervantes, Corneille, Antonio Diniz; como, em nossos dias, Bocage, Chateaubriand, Mr. de Lamartine, e outros: nota-se porêm que os mais chegados a nós o fazem com mais cautela e menos claramente. He a justificação de Virgilio e de Enéas.

434-440. — 452-459. — «A comparação, diz Delille, teria mais justeza e graça, a reconhecerem as abelhas de Virgilio, em vez de um rei, uma raínha.» O texto não falla de rei nem raínha: Delille he que em sua traducção introduz um rei das abelhas. Este engano veio de que o poeta romano nas Georgicas dá um rei com effeito ás abelhas; êrro do seu tempo, que foi reconhecido por experiencias modernas.

466. — 487. — «On ne peut que sentir ce vers, diz Mr. Villenave, en désespérant de le traduire. Si le poëte eût dit: sunt res lacrimabiles, c’eût été la même pensée; mais le sentiment se fût affaibli, une touchante image eût disparu. Il est donc des pensées communes qui deviennent grandes par la place d’un mot.» Concordo com a observação geral, não com o sentido em que he tomado sunt lacrimae rerum. Não significa só que ha cousas lagrimaveis, sim que das cousas restam lagrimas, ou por outra, que alli choravam-se as desgraças passadas e dellas fallavam os monumentos publicos; prova de que os Troianos estavam em terra policiada, e não em brenhas, como receara Enéas. Os selvagens, os barbaros, prantêam as desgraças presentes e lamentam seus males; mas sós os que já tem um certo grau de civilisação he que a seus monumentos encommendam o passado, e a perfeição dos monumentos segue a perfeição da intelligencia dos povos. Se pois o poeta, em vez de sunt lacrimae rerum, tivesse dito sunt res lacrimabiles, não desapparecia unicamente a imagem, desapparecia tambem o pensamento. Esta passagem, das mais sensiveis e maviosas que se encontram nos poetas sublimes, encerra ainda um acabado elogio das bellas artes, escolhido um só traço, mas o principal. — Camões, ingenho quasi igual a Virgilio, dice no mesmo sentido: «De que a memoria em lagrimas existe.» Ferreira, alma propria para sentir as bellezas dos antigos, dice: «Que ficam, senão prantos e saudades tristes, Daquellas cousas grandes que acabaram?» Ha um resaibo do mesmo pensamento no verso de Petrarca: «Ahi! null’altro che pianto al mondo dura.» Sam os melhores commentadores de Virgilio, em primeiro lugar Virgilio mesmo, sendo bem estudado, e em segundo lugar os verdadeiros poetas que o sentiram e imitaram.

588. — 613. — M. Villenave censura a Delille, Binet, de Guerle, por terem referido unus abest a socios, e não ao navio. A construção da phrase, como elle confessa, a tal opinião os levou, e muito bem, porque o masculino unus não pode concordar com classem, nem com navem que se subentenda. Verdade he que não foi só Oronte que pereceu, foi conjuntamente a nau; o que não obsta a que unus se refira ao commandante. Sendo vista aquella desgraça por Achates e Enéas, basta que se falle do commandante para, por associação de idéas, vir á memoria a nau. Quanto á fidelidade, vale tanto uma como a outra cousa; poisque a subversão da nau lembra a de Oronte, e vice versa.

634. — 661-662. — Pondera Chateaubriand, no Genio do christianismo, que Virgilio amava exprimir-se negativamente, o que concorre para a melancolia dos seus versos; cuida que esta maneira lhe nasceu dos desgostos que o poeta provavelmente experimentou em seus amores. Fóra a conjectura, fica-nos a observação verdadeira de que elle emprega frequentes negativas, o que augmenta a melancolia que inspiram suas obras. Não direi que o traductor infallivelmente verta essas negativas; sim que em geral o deve de fazer, a fim de conservar mais uma propriedade do seu estilo divino, como lhe chama o mesmo Chateaubriand. Neste non ignara[5] mali a negativa por certo vem muito a proposito. Nem Delille, nem o Snr. Lima Leitão que o imitou, João Franco, nem o Snr. João Gualberto, nem algum dos outros que consultei, fizeram caso desta particularidade; exceptos Iriarte e Mr. Villenave. Mais ainda me agrada a traducção do último; porque o Hespanhol põe no plural disgracias, e o Francez emprega o singular malheur: postoque o verso do poeta contenha uma maxima geral, Dido não a proferiu como tal; no mali especialmente allude ao exilio da patria, no que o seu fado assemelha o de Enéas.

693-698. — 721-726. — Para doçura e harmonia, aqui se empregam líquidas e vogaes: a nossa lingua poude em versos iguaes traduzir essas bellezas, o que talvez não consiga outra alguma das vivas da Europa; ao menos ainda não o fizeram as duas mais suaves, a hespanhola e a italiana.

703-710. — 729-738. — Julga Delille que o banquete poderia ser descripto com mais imaginação e poesia, e não nos diz o como; accusa o poeta de nimia sobriedade, e affirma que o festim cessou com o hymno solemne de Iopas, quando só terminou com a narrativa de Enéas, que toma os livros II e III. Não reflectiu que he a descripção completa, e que Virgilio fundiu muito em pouco: a prataria das mesas e bofetes, as peças de ouro esculpidas com a historia de Tyro e a serie dos avós da raínha, o luxo dos tapetes, dos leitos, dos coxins, tudo mostra a magnificencia do banquete e o esplendor do serão. Que tal devera ser, quando era servido por cem mòços e cem mòças, e destas havia dentro cincoenta para incensar os penates e arrumar frutas e viandas! Delille, censor de Lucano em theorica, he um dos que mais poseram em voga as descripções estiradas: varios modernos, que o reprehendem pela mania de fugir da palavra propria e por suas periphrases, delle sam discipulos na longura insaciavel das taes descripções. — Na crítica deste festim sobejamente se desmandou Mr. Tissot: «Froid, silencieux, Énée assite au festin, et ne prend part à rien, parce que rien ne le touche; il ne paraît pas s’apercevoir de l’attention passionnée dont il est l’objet.... Virgile ne nous donne qu’une exquisse, à la place d’un tableau. Ce n’est pas avec cette négligence et cette froideur que Fénelon a représenté la passion naissante de Calypso, et son ardeur à connaître et à écouter les aventures du jeune héros en qui elle retrouve l’image d’Ulysse. Milton exprime avec bien plus de grâce, de chaleur et de retenue, le désir qu’Adam et Ève éprouvent d’entendre, de la bouche de Raphaël, le récit des merveilles de la création.» - Havia poucas horas que se tinha Dido encontrado com Enéas no templo; acolhe-o com agrado, e lhe dá um festim, que durou muito alêm da meia noite: o principe troiano não podia s’apercevoir de l’attention passionnée dont il est l’objet; ainda não se cria, nem se devia crer o objecto de uma paixão amorosa, sim de uma delicada attenção da parte da raínha para com um guerreiro da sua ordem, da casa de Priamo e de sangue divino. Se cuidasse Enéas que Dido, assimque o viu, perdeu-se de amores por elle, fôra vaidade mal assente em um varão grave, só propria de um dos nossos leões ou adamados casquilhos: dias depois he que deu por esse amor, em que tanto influiu a narração posterior dos seus trabalhos. Se para desculpar a paixão de Dido o poeta imagina o engano de Cupido, transformado em Ascanio, e sem embargo affectados, que fingem desconhecer neste ponto a humana fraqueza, acham-na por extremo repentina; que se não diria do heroe se, não tendo a excusa de ser incitado pela propria Venus, começasse logo a dizer finezas á raínha de Carthago? Tam contagiosa he a doença dos adocicados romances (não trato aqui dos de Fielding, Scott, Lesage, e de outros ingenhos desta têmpera), que até homens da melhor doutrina literaria se deixam levar do exemplo. — Quanto ao silencio de Enéas, he a arguição mais destituida de fundamento que dar-se pode: o poeta, que tinha de fechar o serão com a narrativa, de preferencia pinta a nascente paixão da raínha; pois em dous livros inteiros iria Enéas apparecer em todo o brilho. Postoque não venha expresso, bem se conhece que o heroe conversou muito com Dido, que frequentemente o interrogava sôbre Heitor, Priamo, Memnon, Diomedes e Achilles: se não se referem as respotas, he porque, tendo Enéas de obedecer á raínha que lhe pede a narração completa, basta que ahi venham todas ellas. — Na confrontação de Virgilio com Fenelon, esqueceu-se Mr. Tissot de que não era com Enéas, mas com Dido, que devera comparar Calypso, na sua paixão nascente e no ardor de conhecer e escutar as aventuras do joven Telemaco; pois na Eneida he Dido quem escuta, e he Enéas quem narra. Se Fenelon resuscitasse, havia de pasmar de se vêr preferido ao mestre cujas pisadas seguia, a este mestre sublime e profundo no desinvolver e pintar o amor, sem igual na antiguidade, nunca excedido pelos modernos, os quaes nesta parte vencem aos antigos. Mme de Staël, a quem lhe impugnava esta opinião com os exemplos da Eneida, responde: «Eu pudera recusar uma objecção tirada de Virgilio, poisque o citei como o poeta mais sensivel.» E quem o diz he a autora de Corinna. - Não foi mais feliz M. Tissot com a allegação de Milton: não he Enéas, he Dido que elle devera confrontar com Adam e Eva; Enéas he quem ia narrar, como Raphael. Sem dúvida Milton, quando pinta os amores dos nossos primeiros paes, não he inferior a Virgilio; os dous genios tiraram toda a vantagem do assumpto, bem que diffiram muito: um, sob a influencia paganismo, não podia pintar o amor com os toques do outro, inspirado pelas idéas do velho e do novo testamento: cada um escreve conforme aos tempos e ás crenças. Nem o primeiro amor de uma virgem, ignorante e simples, devera ser tratado como o de uma viuva de trinta annos.

743. — 773. — Conservei a audacia do original, que diz : pleno proluit auro. O modo por que me exprimo, não he mais atrevido que o lugar de Ferreira, na formosissima elegia a Maio; onde, com o seu vigor e costumada energia, assim falla de Venus, que se despe e sólta os cabellos para se banhar: «Ella a neve descobre e sólta o ouro; Banham-na as Graças na mais clara fonte: Apparece de amor rico thesouro.»



  1. Possívelmente, um erro tipográfico. O título original é Zaïre.
  2. Esta incisiva, que não faz sentido algum, foi suprimida na segunda edição.
  3. Na primeira edição, aparecem, aqui, aspas que não são fechadas ao final da citação, e que foram suprimidas na segunda edição.
  4. termentia no texto original, erro tipográfico.
  5. No original, ignora.