Eneida Brazileira/X

Wikisource, a biblioteca livre

LIVRO X.


De par em par o omnipotente Olympo,
Concílio o pae divino e rei dos homens
Chama á siderea côrte; excelso as terras
Fita e o campo troiano e os lacios povos.
5Sentam-se; elle nas salas bipatentes
A mão tomou: «Celícolas egregios,
Porque, mudados, contendeis iniquos?
Vedei guerra entre os Italos e os Phrygios,
E revéis a soprais? Que medo uns e outros
10Compelle ás armas e provoca o ferro?
Não vos anticipeis, que em Roma altiva
Um dia soltará Carthago fera
Exicio grande e os devassados Alpes:
Odios então permitto e o saque e os prelios;
15Quero hoje paz, condescendei comigo.»
  Breve Jupiter foi; mas Venus linda
Não breve o contestou: «Poder eterno
De humanos e immortaes (pois que outro apoio
Implorar devo?), a rutula insolencia
20Notas, padre, e o ruído com que Turno
Campêa tumido em propicio marte:
Vallo ou muralha os Phrygios não resguarda;
Dentro e nos bastiões pelejas travam;
Sangue os fossos inunda. Ausente Enéas
25O ignora. O sítio nunca mais levantas?
Ilio nascente os inimigos forçam;
Outro exército avança, e de Arpo etolia
Ameaça os Teucros outravez Tydides.
Certo me aguardam, penso, outras feridas;
30Mortaes armas receio, eu prole tua.

Se a teu pezar estam na Hesperia os Troas,
Não m’os ajudes, seu delicto expurguem;
Se lei cumprem superna e a voz dos manes,
Como inda ha quem transverta as ordens tuas
35E reforme o destino? As naus combustas
De Eryx na praia, o rei das tempestades
Cabe allegar na Eolia concitado,
E Iris do céo baixando? Ora até move
(Restava este recurso) o mesmo inferno,
40De chofre acima remettendo Alecto,
Que a debacchar a Italia contamina.
Já de imperios prescindo: isso esperámos
Em melhor quadra; vença quem te agrade.
Se, dura aos nossos, tua espôsa nega
45Na terra um canto, pelo exicio de Ilio
Fumante obsecro, do conflicto o neto
Incólume apartar me outorga, ó padre.
Bote-se Enéas por ignotos mares
Á mercê da fortuna: eu valha ao menos
50De impio combate a subtrahir Ascanio.
Tenho Idalio, Amathunta e a celsa Paphos,
Mais Cythera, onde obscuro imbelle viva:
Deixa que Tyro atroz a Ausonia opprima;
Elle nada obsta ao punico dominio.
55Que monta que, evadido á peste argiva,
Das chammas se livrasse? que, em demanda
Da recidiva Pérgamo, os perigos
De immenso mundo e pélago exhaurisse?
Porque sob patrias cinzas não ficaram?
60Miseros, peço, os rende ao Xantho e Símois;
Tornem, padre, a versar de Troia os casos.»
Juno régia, o rancor não mais contendo:
«Pois a romper e a divulgar me obrigas
A silente ima dôr? Que deus ou que homem
65Fez que a Latino o surrateiro Enéas

Hostilizasse? Á Italia, fado seja,
Foi-se a impulsos das furias de Cassandra:
Nós o forçámos a largar a praça,
A vida entregue aos ventos? a um menino
70Confiar o commando? a fé tyrrhena
E a paz turbar dos povos? A taes faltas
Qual nume o arrasta, qual dureza nossa?
Iris baixou do céo, entra aqui Juno?
He mao que Ilio nascente as flammas cinjam,
75E ao paiz ame Turno, o de Venilia
Deusa nado e tresneto de Pilumno:
Que importa que atro facho Ilio sacuda,
Subjugue o Lacio, atheios campos tale?
Que sogros fraude, a noivos tire noivas?
80Que armas nas pôpas fixe e o ramo arvore?
Roubar da achiva garra o filho podes,
Por vã nevoa trocal-o; a frota em nymphas
Tu podes converter: um pouco a Turno
Soccorrermos he crime. Enéas tudo
85Ausente ignora: pois ignore ausente.
Que! tens Paphos, Cythera, Idalio; e tentas
Um chão de guerras prenhe e a peitos feros?
Nós de Ilio os debeis restos subvertemos,
Ou quem miseros Troas contra os Gregos
90Assulou? Foi por nós que o rapto armado
Solvera de Asia e Europa as allianças?
Que o Phrygio adultero espugnara Espartha?
Eu lides fomentei com paixões torpes?
Teu medo então convinha: tarde surges
95Com injusto queixume e futil bulha.»
Juno orava; os celícolas sussurram
Com vário assenso, qual primeiro os sopros
Na mata a murmurar voltêam cegos,
Annúncio da procella ao marinheiro.
100Do arbitro poderoso ao grave accento,

Cala a diva morada, o ar summo cala,
Nos eixos treme a terra, amaina o pégo,
Zephyros socegando: «Ouvi-me, e n’alma
A sentença imprimi. Já que he defeso
105Teucros e Ausonios congraçar, nem finda
Vossa discordia, esperançoso corra
Seus fados cada qual, desde hoje trato
Sem differença a Rutulo ou Dardanio;
Quer á Hesperia nocivo ature o assedio,
110Quer por êrro de agouro em mal de Troia,
Jogado o lanço foi: rei justo ás partes,
Jupiter os destinos não desliga;
Estes rumo acharão.» Pela do estygio
Irmão picea torrente e negro abysmo
115Jura, e ao nuto estremece o Olympo todo.
Fecha o concílio: ergueu-se do aureo throno;
E ao limiar os deuses o acompanham.
Insta o Rutulo emtanto á roda e ás portas,
Mata, incendeia, estraga. Atêm-se aos vallos
120A encerrada legião, sem mais refúgio:
Rara os muros coroa, e as tôrres altas
Ah! mal guarnece. Á testa Asio Imbracides,
Os Assaracos dous, o Hicetaonio
Thymetes, e Castor e o velho Thymbris
125Estam; mais Claro e Hemon da nobre Lycia,
De Sarpédon germanos. Gran’ penedo,
Viva lasca do monte, Acmon Lyrnessio
Deita ás costas, e iguala a seu pae Clycio
E a Mnestheu seu irmão no esfôrço e arrôjo.
130Com zagaias, com pedras se defendem;
Remessam fogo, ao nervo adaptam settas.
Da Cypria ancia e cuidado, alli no meio
Brilha sem casco o bello adolescente;
Na cerviz lactea o crino desparzido,
135Molle círculo de ouro o ata e apanha:

Dest’ arte, em fulvo engaste a gemma adorna
Fronte ou collo, e embutida eburnea peça
No orício terebintho ou buxo esplende.
Viram-te, Ismaro, as gentes valorosas
140Despedir frechas de veneno armadas,
Garfo brioso da Meonia fertil;
Onde agros o Pactolo irriga de ouro.
Mnestheu não falha, a quem sublima a glória
De haver a Turno da bastida expulso;
145E Capys, de quem teve o nome Capua.
Da guerra o cargo repartiu-se entre elles;
De vólta, rasga o heroe nocturnas vagas.
De Evandro assimque passa ao rei da Etruria,
Quem era expoz, a que ia, em que he prestante;
150Quanto auxílio grangêa o cru Mezencio,
Quam violento o rei Turno, quam fallivel
A sorte humana; e preces intermeia:
Tárchon allia sem demora as fôrças,
E os pactos fere. Sôlto o fado, os Lydios
155Com chefe externo, por querer divino,
Se embarcam. Vai diante a pôpa eneia,
Phrygios leões ao beque, e na bandeira
O Ida, enlêvos dos prófugos Troianos.
Sentado Enéas, volve em si tam varios
160Eventos; e Pallante, á sestra, inquire
Já do sidereo curso e opaca noite,
Já dos trabalhos delle em mar e em terra.
Abri-me o Helicon, Musas; descantai-me
Que tusca multidão, munindo os lenhos,
165Vogue na azul campina. Após Enéas,
Massico vem na Tigre eri-chapeada,
Com bravos moços mil de Clusio e Cosas,
De arco letal ao hombro e de polido
Sagittífero coldre. O brusco Abante
170A par, a gente relumbrava, e á pôpa

Dourado Apollo: Populonia madre
Mancebos destros lhe fiou seiscentos;
Trezentos Ilva, de metal chalybio
Fecunda ilha inexhausta. O mago Asylas,
175A quem o humano e o divinal descobrem
Astros, fibras de rezes, linguas de aves
E o presago fulgor, conduz terceiro
De hastatos mil espesso horrendo bando;
Que lh’os subordinou, de alphéa origem,
180Pisa etrusca. Pulchérrimo, em cambiante
Arnez afouto e em seu corsel, trezentos
Astur ajunta (um mesmo ardor em todos)
Na patria Cérete, em minionias margens,
Pestífera Gravisca e Pyrgo-Vedra.
185Não te omitto, ó Cyniras, bellacissimo
Rei da Liguria; e a ti, que poucos mandas
E has no tope, Cupavo, cysneas pennas:
Foi culpa aos vossos a amizade, a insignia
He da paterna fórma. Cycno, contam,
190Saudoso de Phaeton, quando entre choupos,
Das irmãs deste á sombra, o amor em nenias
E o lucto consolava, em brandas plumas,
Qual velho encanecendo, ao céo cantando
Se elevou. Na companha iguaes pennachos,
195Rema o filho alta nau, donde um centauro
Arduo com pedra enorme acena ás aguas,
Arando o buco longo o plaino equoreo.
Tambem da patria move as turmas Ocno,
Prole da vate Manto e um tusco rio,
200Que o nome da mãe deu-te e muros, Mantua;
Mantua, rica de avós, não de uma estirpe,
De tribus tres, por tribu quatro curias,
Es cabeça, e te alenta o sangue etrusco.
Dalli contra Mezencio, em pinho infesto,
205Do pae Benaco o Mincio, de arundineo

Verdoengo véo, despeja mais quinhentos;
Auletes serio os guia, e vira e açouta
De arvores cento o marmore espumoso:
Tral-o immano tritão, que os váos ceruleos
210A buzio aterra, humano híspido o rosto,
De ceto o immerso ventre, ao semiféro
A vaga sob o peito alveja e estoura.
O thetio sal com bronze, em baixéis trinta,
A pró de Troia cabos taes retalham:
215A alma Phebe, o Sol posto, meio Olympo
Já no carro noctívago attingia.
O cauto Enéas, sem dormir cuidoso,
Prosegue dirigindo o leme e as vélas:
Eis um côro de nymphas lhe apparece,
220Naus suas que a benéfica Cybele
Deusas do ponto fez; a nado o sulcam
Tantas emparelhadas, quantas ereas
Proas retinha a praia, e apercebendo
A seu senhor, com dansas o circundam.
225Atrás Cymódoce, a melhor fallante,
Na dextra a pôpa tendo, altêa a espadoa,
Sorrema com a esquerda as ondas mudas;
Ignaro o adverte: «Enéas, tu vigias?
Vigia, ó divo, ao panno escotas larga.
230Do cume sacro ideu somos teus pinhos:
Do Rutulo a perfidia a ferro e fogo
Nos apertava, e amarras nós invitas
Quebrando á pressa, em tua busca andamos;
Que em fluctícolas deusas compassiva
235Aviventou-nos Rhéa. Ascanio, saibas,
Dos rojões do latino feio marte
A custo se defende; já da Arcadia
Junta a cavallaria ao Tusco extrénuo
Postou-se onde marcaste, e firme a que elles
240Se approximem da praça oppõe-se Turno:

Sus, na alvorada a l’arma soar manda;
O invicto escudo embraça de orlas de ouro,
Primor do Ignipotente. Em mim se crêres,
Será crástina a luz espectadora
245De rutula estupenda mortualha.»
Então, não pêca no mister, a pôpa
Celsa empurrando, pelas ondas foge,
Ligeira como a frecha ou leve xara:
As mais tambem. Estupefacto o Anchíseo,
250Comtudo anima os seus com tal presagio,
E ora curto, encarando o azul convexo:
«Divina genitriz, que as tôrres prezas,
Leões cangas e enfreias; pois me induzes
Á guerra, ó Dyndimene, o agouro aspira,
255Com pé vem protector, assiste aos Phrygios.»
Al não dice; e, á carreira o Sol tornando,
Com lume já maduro espanca a treva.
Logo Enéas, bandeiras despregadas,
Arma, apresta, acorçoa. D’alta pôpa
260Seus arraiaes contempla, e ao braço esquerdo
Exalça o ígneo broquel. Do muro os Teucros,
Voz em grita (a esperança esperta as iras)
Jaculam tiros: quaes sob um nublado
Grasnam strymonios grous, que a Nôto esquivos,
265Dando ledos a senha, os ares tranam.
Turno e os seus o estranhavam, té que enxergam,
Pôpas vôltas á praia, o mar coalhando,
A frota prolongar-se. Arde a celada,
Lampeja a Enéas o cocar, do escudo
270O diamante flammívomo centelha:
Lugubre assim rubeja em lenta noite
O sanguíneo cometa; ou, sêde e morbos
Dardejando aos mortaes, fervente Sirio
Com funesto luzir contrista o pólo.
275Nada esmorece a Turno; apoderar-se

Da praia intenta e obstar ao desembarque.
Incita, exhorta: «O ensejo desejado
Eil-o, varões; obrai, que o marte mesmo
Se vos entrega: espôsa e lar vos lembrem,
280Lembrem-vos patrios feitos gloriosos;
Accorramos á borda e os encontremos,
Trépido o passo emquanto lhes vacilla:
Audazes a fortuna favorece.»
Nisto, elege os que o sigam nesta empresa,
285Outros incumbe de manter o assédio.
Já lá das pôpas lança o Teucro pranchas.
Taes á espera do languido refluxo,
Taes os remos fincando, aos baixos pulam.
Onde nem brotam váos, nem rechassada
290Remuge a onda, mas se alisa mansa
Do fluxo no montar, observa Tárchon;
Rapido as proas vira, e aos nautas insta:
«Picai voga, eia, alçai-vos, gente forte,
Impelli-me os baixéis; que os rostros fendam
295O solo hostil, e sulco se abra a quilha.
He nada o naufragar, se pojo em terra.»
Elle ordena, e estribando ao remo investem;
Os barcos a espumar direito abicam,
Até que os esporões em sêcco varam,
300E illesos cascos assentaram, menos
A tua pôpa, Tárchon; pois de iniquo
Dorso encalhada pende, um tempo nuta,
Maretas cansam-na, e desfeita vasa
N’agua a turba varoil, que fracturados
305Bancos e remos á matroca impedem,
E a ressaca a repulsa e os pés lhe embarga.
Nada ignavo, o acre Turno contra os Phrygios
A hoste arremessa toda, e a praia occupa.
Toca á degolla. Enéas fausto a enceta
310Sôbre o agreste esquadrão; rompe os Latinos,

Morto o maior, Theron, que ousa arrostal-o:
Penetrando o eneo escudo e auri-escamosa
Tunica, a espada lhe embebeu na ilharga.
Seu ferro a Lichas prostra, que a ti sacro,
315Phebo, da extincta mãe sacado infante,
Poude ao ferro escapar. Não longe o duro
Cisseu derriba e o corpulento Gyas,
Que a turmas esmagavam: não lhes presta
Clava, nem pulso herculeo, e o pae Melampo,
320Socio nos transes do lidado Alcides.
A Pharon, que jactancias vociféra,
Na bôca um dardo retorcendo enfia.
E tu, pobre Cydon, que ias trás Clycio,
Teu novo gôsto, em cujas faces punge
325Lanugem loura, á troica mão cahiras,
Quite do insano amor que aos jovens tinhas;
Se em mó, de Phorco nados, não sahissem
Irmãos sete que arrojam sete lanças:
Parte, as rebate o escudo e o capacete;
330Parte a soslaio o alcança, e as torce Venus.
«Hastas, Enéas brada, hastas, amigo,
Das que em Troia preguei no corpo aos Gregos;
Aos Rutulos nenhuma irá frustanea.»
Péga uma ingente, que a voar a adarga
335Bronzea a Meon traspassa e a malha e os peitos.
Corre Alcanor, sustenta o irmão que tomba:
O lagarto lhe encrava outro arremêsso,
Que progrede cruento; e pelos nervos
Da espadoa o braço moribundo pende.
340Eis do irmão Numitor a farpa arranca,
E a revira ao heroe; mas não lhe coube
Tocal-o, e a coxa ao grande Achates roça.
Clauso de Cures, no verdor fiado,
Lá vibra a Dryope um zarguncho rijo
345Sob o queixo, e lhe tronca a falla e a vida,

Rôta a guela; em terra a testa bate,
E a bôca lhe vomita em grumos sangue.
Destroça vário a Thraces tres, prosapia
De Boreas digna, e a tres de ismara patria,
350Que Idas padre enviou. Com seus Auruncos
Acode Haleso; acode o equite insigne
Messapo de Neptuno: ora uns, ora outros,
No umbral da Ausonia a combater, se expellem.
No espaço a pleitear discordes ventos,
355Em fôrça e ânimo iguaes, entre si luctam,
Nuvem nem mar cedendo; e renitentes,
Dubio a durar o prelio, a tudo affrontam:
Dest’ arte os Phrygios travam-se e os Latinos,
Pé com pé, rosto a rosto, arca por arca.
360Pallante alhures, onde ampla torrente
Seixos rola e arvoredos extirpados,
Vendo os Arcades seus, que, se apeando
Pelo aspero terreno, desafeitos
Á pedestre contenda, ao sequaz Lacio
365Voltam costas; segundo as occurrencias,
Roga, invectiva, os brios reaccende:
«Fugis, irmãos? por vós, por vossos feitos,
Pela do caro Evandro invicta glória
E a que nutro esperança de emulal-o,
370Não confieis nos pés: que a ferro entremos
Por onde espesso engloba-se o inimigo,
Alto a Pallante e a vós prescreve a patria.
Não divos, sam mortaes que a mortaes urgem;
Mãos tambem e almas temos. Golpho immenso
375Nos obsta; á fuga terra já nos falta:
Buscaremos o pégo ou teucros muros?»
Cessa, e por densos batalhões prorompe.
Lago, oh desgraça! o topa; e, emquanto lasca
Pesada rocha, de travez Pallante
380Finca-lhe, onde o espinhaço as costas parte,

E extrahe a choupa aos ossos adherente.
Cuida Hisbon sorprendel-o; e quando, cego
Do cruel fim do amigo, em furia salta,
No inchado bofe o heroe some-lhe o estoque.
385Vai-se depois a Sténelo, e á de Rheto
Vetusta raça, Anchêmolo, que o tóro
Da madrasta incestou desaforado.
Tymbro e Laryda, o pó mordestes gemeos,
Daucia prole simíllima e indistincta,
390Aos paes êrro suave: o gume arcadio
Vos poz duro descrime; a ti cercêa,
Tymbro, a cabeça; e a dextra mutilada,
Larida, a procurar-te, o ferro aperta
Nos semiâmines dedos palpitantes.
395A voz do chefe, o exemplo, dôr, vergonha
Os Arcades inflamma, que arremettem.
Mata o moço a Rheteu, que em biga, ó nobres
Irmãos Tyres e Teuthras, vos fugia:
A Ilo, a quem salva o espaço, longe atira
400Válida hasta, que em meio a Rheteu colhe;
Do carro ao chão resvala, e semivivo
Calca e percute a rutula campanha.
No estio, ao sôpro de anhelantes ventos,
Quando em selva o pastor semêa incendios,
405No âmago lavram e horridos propagam
Em largo plaino exercitos vulcanios;
Elle altivo contempla ovantes chammas:
Os teus para ajudar-te assim, Pallante,
Unem-se em feixe. O ardido Haleso contra
410Rue, na armadura involto: immola a Pheres,
Demodoco e Ladon; seu talho a dextra
A Strymonio decepa, que ao pescoço
Leva-lhe a adaga; a seixo o craneo a Thoas
Racha e esmigalha o cerebro sanguento.
415Presago o pae de Haleso o teve em brenhas:

A Parca o prêa e sagra á lança evandria,
Solvendo ao velho os desmaiados lumes;
Pallante o aggrede, orando: «Ó Tiberino,
O remessão que libro, alado o emprega
420Do atroz varão no seio: um teu carvalho
Terá delle os despojos e estas armas.»
O deus o ouviu; que Haleso ao bote certo,
No cobrir a Imaon, descobre o lado.
Lauso, um pilar da guerra, os seus não deixa
425De um tal golpe assustar-se: a Abante opposto,
Do combate eixo e nó, destroe; prosterna
Tuscos, Arcadios; nem vos poupa, ó Troas,
Poupados por Ageus. Travam-se, em cabos
E em fôrça iguaes: baralham-se as fileiras;
430Os tiros e o manejo o apêrto empacha.
Cá Lauso se afervora, alêm Pallante,
Ambos equevos quasi, ambos formosos;
Mas a patria revêr lhes nega o fado:
Não quiz do Olympo o rei que ás mãos viessem;
435Mór inimigo talhará seus dias.
Eis, da irmã por conselho, em veloz coche
Turno, a Lauso acodindo, as filas corta:
«Parai, socios; recebo eu só Pallante,
Pallante a mim se deve: oh! se aqui fôra
440Testemunha seu pae!» Cedem-lhe o passo:
Admira o moço a obediencia prompta,
Mede ao suberbo[1] o talhe formidavel,
Rodêa ao longe a furibunda vista,
E ao tyranno responde: «Ou morte nobre,
445Ou vai despôjo opímo honrar meu nome;
Sorte igual a meu pae: não feros, obras!»
Fallando ao plaino marcha: coalha o sangue
Nos corações arcadios. Pula Turno
Da biga, a pé remette; imagem propria
450Do rompente leão que ao touro voa,

A quem de alto covil descobre em luctas
No prado a meditar. Ao crêl-o a tiro
De hasta, avança Pallante; a audacia invoca
No desigual partido, e ao céo recorre:
455«Se hóspede, Hercules, fôste á patria mesa,
Na acção me assiste; eu rubras tire as armas
A Turno semimorto; olhe penando
Seu vencedor no bocejar supremo.»
Alcides o escutou; fundo ai comprime,
460Vãs lagrimas vertendo. Ao filho Jove:
«Cada qual, diz benigno, tem seu dia;
A vida he breve e irreparavel tempo;
Mas rasgos de virtude a fama exalçam.
Quanta em Ilio cahiu divina prole!
465Té Sarpédon meu sangue! Á meta chega
Turno tambem, e o chamam já seus fados.»
E foi do Lacio desviando os olhos.
Já teso a lança vibra, e da baínha
Pallante puxa a lamina fulgente:
470De vôo a ponta encaixa onde a espaldeira
Péga o braçal; do escudo as orlas passa,
Do hombro ao Rutulo ingente a cutis fere.
Turno pujante aqui de choupa aguda
Sopesa um roble, e grita: «Vê se o nosso
475Rojão melhor penetra.» E a coruscante
Farpa o broquel de ferreas e eneas pranchas,
De coiro taureo em dobras reforçado,
Rasga, os empeços da loriga fura
E o peito heroico. Em balde a quente choupa
480Do rombo extrahe: em sangue a alma esvaindo,
Por cima ao revoltar-se da ferida,
Sôbre-soam-lhe as armas, e expirando
A bôca o solo hostil beija cruenta.
Salta-lhe ao corpo Turno: «Arcades, grita,
485Não vos esqueça a Evandro o referil-o:

Qual mereceu, remetto-lhe Pallante;
De o tumular com pompa o allívio outorgo:
Caro a hospedagem pagará de Enéas.»
Então senta no morto a planta esquerda:
490Rouba o talim de pêso, e nelle impressos
Do morticínio os thalamos sangrentos
Em jugal noite; culpa atroz, gravada
Pelo Eurytides Clono em chapas de ouro.
Turno com isto exulta: oh! mente humana,
495Fera e descomedida na bonança,
Do porvir nescia! intacto inda a Pallante
Vir-lhe-á tempo que almeje a todo o preço,
E este espólio e façanha elle abomine.
Gemebundos e em pranto, os companheiros
500O cadaver carregam sôbre o escudo.
Oh! vóltas a teu pae, dôr grande e glória!
Deu-te um só dia á guerra e ao passamento;
Mas que montões de Rutulos deixaste!
A Enéas, não a fama, um messageiro
505De mal tamanho informa; e trasmalhados
Soccorra os seus, que estavam por um fio.
Quanto encontra, arrombada a larga turba,
A gladio ceifa ardendo; achar-te anceia,
Turno ufanoso da recente morte.
510Ante si tudo tem, Pallante, Evandro,
A hospitaleira mesa, a dextra amiga.
Vivos quatro a Sulmon, a Ufente agarra
Quatro alumnos que immole á sombra, e reguem
Do seu captivo sangue a rogal chamma.
515Sobrevoa esgrimida a tremente hasta
A Mago astuto, que se agacha ao bote,
E supplicante abraça-lhe os joelhos:
«Pelo medrado Iulo e anchíseos manes,
A meu pae me conserves e a meu filho.
520Muita prata em moeda, bruto e em obra

Soterrei cópia de ouro, em meu palacio:
Não libra em mim dos Teucros a victoria;
Nada empece uma vida.» Enéas presto:
«Guarda essa prata, esse ouro bruto e em obra
525Para teus filhos: com matar Pallante
Aboliu Turno as transacções da guerra.
Isto, Anchises o approva, Ascanio o sente.»
E a sestra no elmo, atrás lhe dobra o collo,
Onde a espada lhe enterra até aos punhos.
530Perto o Hemonio, de Phebe e Apollo antiste,
Com sacra fita ás fontes presa a faxa,
Luzia na armadura e insignes vestes:
O heroe o acossa, abate, o immola, o cobre
Da ampla sombra; Seresto apanha as armas,
535E em trophéo t’as carrega, ó rei Gradivo.
A pugna instauram, de vulcania estirpe
Ceculo, e Umbro das marsicas montanhas.
Enfurece o Dardanio; á esquerda logo
A Anxur talha e desfaz rodela ferrea:
540Sonhava elle proezas, e esforçar-se
Com vozes crendo, e ao céo talvez se alando,
Brancas se promettia e longos annos.
De agreste fauno e dryope gerado,
Tarquito refulgindo enresta a lança:
545O heroe torcendo-a empece-lhe a coiraça
E o pesado pavez; descabeçando-o,
Lhe frustra a prece e o que dizer queria;
Revolve o tronco tepido por terra,
Com ânimo inimigo assim prorompe:
550«Jaze ahi, valentão; nem madre nympha
No patrio solo inhumará teus membros:
Serás de abutres pasto; ou, submergido,
Te ham-de a chaga lamber famintos peixes.»
Persegue, na vanguarda, ao forte Numa,
555Lycas e Anteu, Camertes, louro filho

Do riquissimo em lavras nobre Ausonio,
Volscente, o rei de Amyclas taciturna.
De cem braços e mãos Egeon, narram,
Fogo expirava de cincoenta fauces,
560Com cincoenta broquéis tinnindo, espadas
Cincoenta a menear contra o Tonante:
Não menos, dêsque o Phrygio aquece o gume,
Bravo campêa. De Nipheu remette,
Peito a peito, á quadriga; e, assimque os brutos
565Bramindo o avistam fero, amedrontados,
Retrocedendo rapidos, ás praias
O coche rojam, seu senhor despejam.
Eis Lugo se apresenta em alva biga,
Mais o irmão Liger, que os frisões governa;
570Lugo acerrimo esgrime o iroso ferro.
Tal furia ao Teucro azéda; rue terrivel
De hasta apontada. E Liger: «Não diomedios
Corséis, carros achilleos, phrygios campos,
Tens aqui; vês a morte e o fim da guerra.»
575Das fanfurias, que em ar se desvanecem,
Em trôco Enéas lhes revira um dardo.
Prono Lugo, a pender nos loros, pica
Da arma os cavallos; por bater-se, adianta
O sestro pé: do aheneo escudo as orlas
580Entra a ponta e a virilha esquerda fura:
Do carro a baixo moribundo róla.
E amaro o pio heroe: «Nem tarda a biga
Falsou-te, ou sombras vãs a afugentaram;
Tu sim, Lugo, de um salto a abandonaste.»
585Nisto, a parelha empolga. O irmão, coitado!
Desmontando estendia inermes palmas:
«Por ti, varão por teus progenitores,
Deixa-me a vida, abrandem-te meus rogos.»
«Diverso, o atalha Enéas, blasonavas;
590Morre; irmão não he bem que o desampares.»

E estoquêa-lhe o peito, encêrro da alma.
Qual tufão grosso ou turbida torrente,
Feraes damnos o Dárdano espalhava.
Rompe emfim da muralha o moço Ascanio,
595Com seus guerreiros por demais cercados.
A Juno emtanto Jupiter: «He Venus,
Nem te enganas, consorte e irmã querida,
Que os Troianos sustenta: eil-os cobardes,
Sem denodo ou constancia nos perigos.»
600Aqui Juno submissa: «Ó doce espôso,
Temo os remoques teus, porque me apuras?
Se inda, como convinha, o amor d’outrora
Eu te inspirasse, um dom não me negaras,
Omnipotente: incólume ao pae Dauno
605Guarde eu Turno da acção... Mas que! pereça,
Devoto sangue aos Troas laste as penas.
Deduz comtudo o nome e origem nossa
Do tresavô Pilumno, e com frequencia
A plenas mãos cumula-te os altares.»
610Breve replíca o rei do Olympo ethereo:
«Se a Turno queres que eu prolongue os dias
E achas que o posso; pela fuga o salves
De instantes fados: atéqui me cabe
Condescender. Se encobres nessas preces
615Mór graça, e a guerra trastornar concebes;
Apascentas baldias esperanças.»
E ella em chôro: «O que a voz me cede a custo,
Se d’alma o désses, vida cheia a Turno!...
Mas transe o espera indigno, ou eu me illudo:
620Oxalá sejam falsos meus temores,
E tu, que o podes, a melhor te inclines.»
Dice, e de lá despara; de nevoeiros
Cingida, uma borrasca a precedel-a,
Baixa entre o campo ilíaco e Laurento.
625Logo em feição de Enéas, oh prodigio!

Fraca de vácua nuvem sombra tenue
Arma á troiana; o escudo, as cristas finge
Da cabeça divina; oucas palavras,
Som lhe empresta sem mente, o andar e o gesto:
630Como, he voz, do finado erra a figura;
Ou qual sonham sopitos os sentidos.
Ante as fileiras jubilando a imagem,
Dardos em punho, desafia a Turno.
Este, irritando-se, a estridente lança
635Arremessa: o phantasma as costas vólta.
Creu Turno em fuga a Enéas, e se rega
Alvoroçado em frivola esperança:
«Onde vais, Teucro? os thalamos desprezas?
Toma a terra, eu t’a dou, por mar buscada.»
640E, após clamando, o gladio nu brandia,
Sem vêr que he seu prazer seguir o vento.
Á saxea ribanceira, expostas inda
Pranchas e escadas, o navio estava
Que a Osinio rei de Clusio transportara.
645Alli pavido o esquivo simulacro
Deita a esconder-se; vence estorvos Turno,
Salta as pontes. A proa mal que attinge,
Rebenta os cabos Juno, arranca o lenho,
Pelas vagas revôltas o arrebata.
650Por seu rival bramando, o vero Enéas
Na homecida carreira proseguia;
Já não se occulta, voa o aereo vulto,
E em negrume cerrado se confunde;
Pelas ondas a Turno um tufão leva.
655Inscio, ingrato á mercê, contempla em roda,
Ao céo levanta as mãos: «Jupiter summo,
Digno me julgas de desar tamanho?
Que punição? Para onde me conduzem?
Donde vim? Quem sou eu com tal fugida?
660Como a Laurento e aos muros tornar posso?

Que dirão meus soldados? Oh vergonha!
Deixal-os eu na lucta agonizantes!
Vejo-os daqui vagar, seus ais escuto.
Que farei? não me engole e some a terra?
665Ventos, piedade! recebei meu culto
Voluntario: o baixel a váos e escolhos,
A syrtes arrojai-me, onde nem saibam
Os Rutulos de mim, nem reste a fama.»
Tal discursava, e aqui e alli fluctua;
670Nem atina se enterre a crua espada
E em tanta affronta as costas se atravesse,
Ou se, entre os escarcéos, á curva praia
Nade e se restitua ás teucras armas.
Tres vezes foi tental-o, tres conteve-o
675A soberana Juno condoída.
O alto sulcando com maré propícia,
Na côrte do pae Dauno antiga aporta.
Já Mezencio cruel, de Jove a impulsos,
Lhe succede, e acommette ovantes hostes.
680Encontram-no aggravados os Tyrrhenos;
Alvo he dos golpes todos. Como rocha
Está, que, protendida ao mar e aos sopros,
Os embates resiste e os ameaços
Do céo violento e furibundo pégo.
685A Hebro Dolichaonio o varão prostra,
Mais a Latago e Palmo fugitivo:
A Latago um fragmento da montanha
Esmecha e esmaga o rosto: a rôjo Palmo
Rola dejarretado: a Lauso doa
690O arnez que hombrêe, as plumas com que se orne.
Escala o Phrygio Evante e o caro a Páris
Mimas, filho de Amyco, por Theano
Parido á noite que abortou Cisseide,
Prenhe de um facho: Páris jaz na patria;
695Mimas, que o não cuidava, em lacia borda.

Como o javardo, em cannavial nutrido,
Que a dente correm cães, sobejo espaço
No pinífero Vésulo acoutado
E em laurencia lagôa, ao dar nas redes
700Pára, em roncos escuma, ouriça as cerdas;
Ninguem lhe ousa achegar, distantes raivam,
Em seguro gritando e a garrochal-o;
Elle, impavido e attento, os queixos range,
Cospe do lombo a chuva de arremessos:
705Taes, não com ferro em punho, mas de longe,
Desse odioso Mezencio os inimigos
Com rojões e alarida o desafiam.
Prófugo, a velha Córyto e imperfeitas
Nupcias largando o Graio Acron, purpúreo
710Nas galas e cocar, da noiva mimos,
Descose as turmas: o tyrano o enxerga.
Se o leão, que em jejum com fome ronda
Alto curral, fugaz a corça avista
Ou cervo de arduos cornos; sevo e hiante
715Folga, hirta a juba, ás visceras deitado
Ferra-se, e em negro sangue as fauces lava:
Dest’arte vem Mezencio e a chusma ataca.
Tomba expirando Acron, e ao debater-se
Calca o atro chão, cruenta as rôtas armas.
720Ferir desdenha a Orodes que se evade,
Remetter-lhe desdenha um bote cego;
Não destro nos ardis quanto era forte,
Adverso o alcança, mão por mão o aterra;
N’hasta apoiado, o pé lhe imprime sôbre:
725«Eil-o, varões, o heroe da guerra esteio.»
E os seus com elle entoam ledo péan.
Orodes a arquejar: «Serei vingado,
Nem longo exultarás; meu fim te espera,
Este pó vais morder.» Com riso amargo
730O ímpio então: «Morre já; de mim disponha

Esse teu pae divino e rei dos homens.»
Dice, e lhe extrahe do corpo o tenaz pique:
Urge-o repouso duro e ferreo somno,
E em noite fecha eterna os baços lumes.
735A Hydaspes Sacrator, a Alcatho Cédico,
Rapon tronca a Parthenio e o válido Orses;
Messapo a Clonio e o Arcade Ericetes:
Um do infrene corsel, derriba o outro
Pedestre a pé. Soccorre-os Agis Lycio,
740Talha-o Valero com denodo avíto;
A Thronio Salio; a Salio o bom Nealces
Em dardo ou setta ao longe traiçoeira.
O lucto e os funeraes Marte equilibra:
Morrem, matam, vencidos, vencedores;
745Não se rendem, não cedem, não fraquêam.
Tanta ância nos mortaes, e de uns e de outros
O vão furor a Jove e ao céo compunge:
Aqui Venus attenta, alli Saturnia.
Pallida a Erynnis[2] urra e assanha as turbas.
750Torvo, a librar Mezencio enorme lança,
Entra em campo, e se mostra em vastas armas:
Como Orion, de espadoas fóra d’agua,
Rasga a pé de Nereu o immenso lago;
Ou, dos serros trazendo o annoso freixo,
755Anda em terra, e nublada a fronte esconde.
Enéas, que o lubriga, avança prestes.
Firme em seu pêso, intrepido elle aguarda
O brioso adversario; de olhos mede
Assás distancia ao tiro: «Agora, exclama,
760Deus he meu braço e o remessão que vibro.
Do salteador Enéas eu te voto,
Lauso, em trophéo, do espólio seu vestido.»
Hasta eis voa estridente; que, do escudo
Repulsa, aos hypocondrios vai pregar-se
765Do egregio Antor, de Alcides companheiro;

Antor Argivo, que, adherindo á Evandro,
Na Italia se ficou. Precipitado
He de alheia ferida; e, ao céo fitando,
Ah! lembra-lhe ao morrer sua doce Argos.
770Joga Enéas um dardo, que a rodela
Triple erea penetrou, por líneas fraldas,
Por taureos forros tres; e amortecido
Á virilha se apega. Ao ver-lhe o sangue,
Puxa o ferro da cinta alegre o Teucro,
775Férvido ao Tusco titubante corre.
Nisto, em lagrimas Lauso debulhado,
Por amor de seu pae geme profundo.
Teu mesto fim, teu brio e feito heroico,
Se o futuro crêr pode empresa tanta,
780Celebrarei, mancebo memorando.
Fraco e impedido, a se arredar Mezencio,
Prêso arrasta no escudo o hastil infesto.
De chofre o joven, interposto ás armas,
A mão de Enéas, que desfecha o talho,
785Susta e o reteve: em grita os seus o acclamam,
E emtanto o genitor se evade á sombra
Da rodela do filho; empacha a Enéas
Bateria de frechas e arremessos:
Cobre-se elle a bramir. Quando em saraiva
790Desata a chuva, o lavrador se esgarra,
Em guarida se alberga o viandante,
Em lapa de ribeira ou cava penha,
Até que, abrindo o Sol, o dia exerçam;
Oppresso o Teucro assim da marcia nuvem,
795Á espera está que a trovoada amaine;
Commina e avisa a Lauso, a Lauso increpa:
«Temerario, onde vens? mediste as fôças?
Engana-te a piedade.» Elle não menos
Demente assalta: o estame curto as Parcas
800A Lauso colhem; do dardanio chefe

Se irrita a colera, a possante espada
No moço enterra; a ponta a leve adarga
E a tunica passou, que a mãe fiara
De ouro subtil; em borbotões o sangue
805Alaga o seio; e a vida pelas auras
Triste aos manes se afunda e o corpo larga.
Pallida a face, moribundo o gesto
Ao vêr-lhe o Anchíseo, compassivo e grave
Suspira, dá-lhe a dextra; á mente a imagem
810Sobe do patrio amor: «Que digno premio
Dessa rara virtude o pio Enéas
Te prestará, mesquinho? As armas tenhas,
Teu gôsto em vida: eu rendo-te ao jazigo
E ás cinzas dos avós, se disto curas.
815Console-te infeliz do grande Enéas
Ás mãos cahir.» E exprobra os tardos socios,
Do chão levanta o corpo, cujas tranças
Atiladas á moda o sangue afeia.
Mezencio, ao pé do Tibre, emtanto os golpes
820Lava e estanca, e arrimado se conforta
A arboreo tronco: ao longe está n’um ramo
O eneo casco, e na relva o arnez pesado.
Egro, anhelante, o colo desafoga,
Aos peitos se diffunde a larga barba.
825Cercam-no os seus: do filho indaga afflicto,
Manda que o chamem e amiuda as ordens.
Mas sôbre o escudo em pranto já traziam
Morto do grande bote o grande Lauso:
O pae nesse carpir seu mal pressente:
830De pó deforma as cãs, e as palmas ambas
Dirige aos céos, e apega-se ao cadaver:
«Quiz tanto á vida, ó filho, que ao trespasso
Expuz a quem gerei? Por tua morte
Vive teu pae, salvou-me essa ferida?
835A minha agora se me aggrava e sangra,

Ai! doe-me agora o misero destêrro!
Manchei teu nome, Lauso, eu por taes crimes
E odios expulso do paterno solio:
Eu só pagar devera aos meus e á patria,
840Por mil mortes render est’ alma infame;
Respiro, e inda não deixo a luz e os homens?
Eu deixarei.» Na perna a custo se ergue,
Sem da chaga o abater a dôr violenta;
Pede o corsel, da glória companheiro,
845Consôlo seu, que vencedor com elle
Das batalhas sahia, e ao pobre afala:
«Rhebo, ha muito durâmos, se he que muito
Dura cousa mortal: hoje a cabeça
Trarás de Enéas e o cruento espólio,
850E as de Lauso agonias vingaremos;
Ou, se impossivel he, morramos juntos:
Não soffrerás altivo, eu creio e espero,
Mandos alheios nem senhor troiano.»
Monta, e acceita-lhe o bruto a usada carga;
855Onera as duas mãos de agudas hastes;
O elmo reluz, de equina hirsuta coma.
Veloz galopa: o lucto, a insania, o pêjo
No coração referve; agitam furias
O amor paterno, a conscia valentia.
860«Enéas! grita, Enéas!» Ledo Enéas
O reconhece e impreca: «O pae supremo
Queira com Phebo que o duello encetes!»
E, de hasta em reste, avança. Então Mezencio:
«Roubado o filho, aterras-me, assassino?
865O só meio esse foi de me acabares.
Nem temo os deuses, nem me assustam Parcas:
Morrer venho, recebe a despedida.»
Lesto um dardo lhe prega, outro e mais outro,
Em vólta ingente; mas rechassa-os todos
870A aurea copa do escudo. Pela esquerda,

Contra o parado heroe tirando sempre,
Trota em gyro tres vezes; tres no bronze
Roda comsigo o Teucro a basta selva.
De extrahir tanta farpa emfim se enoja,
875E da tardança e desigual peleja;
Meditabundo rompe, a lança expede
Ás fontes cavas do bellaz ginete:
O quadrupede em gemeas, o ar a couces
Depois zimbra, sacode e implica o dono,
880E cahe de bruços lhe opprimindo a espadoa.
Lacio e troico alarido os céos estruge.
Voa sôbre elle o heroe, despindo o gladio:
«Que he do feroz Mezencio? onde os seus brios?»
O Etrusco os olhos alça, haurindo as auras,
885E, recolhendo o alento: «Ameaças morte?
Porque me insultas, figadal contrario?
Vim perecer, não péccas em matar-me,
Nem meu Lauso ajustou que me poupasses.
Vencido, se jus tenho, eu só te rógo
890Ao corpo alguma terra: a circumdar-me
Freme o rancor dos meus; tu me defendas,
N’um sepulcro me encerres com meu filho.»
Sciente, elle o pescoço[3] ao gume inclina,
A alma derrama e em sangue inunda as armas




  1. suberto no original, erro tipográfico.
  2. No original, está Erynnnis.
  3. pescoso no texto original; erro tipográfico.