Esaú e Jacó/XLIII
Natividade é que não teve distrações de espécie alguma. Toda ela estava nos filhos, e agora especialmente na carta e no discurso. Começou por não dar resposta às efusões políticas de Paulo; foi um dos conselhos do conselheiro. Quando o filho tornou pelas férias tinha esquecido a carta que escrevera.
O discurso é que ele não esqueceu, mas quem é que esquece os discursos que faz? Se são bons, a memória os grava em bronze; se ruins, deixam tal ou qual amargor que dura muito. O melhor dos remédios, no segundo caso, é supô-los excelentes, e, se a razão não aceita esta imaginação, consultar pessoas que a aceitem, e crer nelas. A opinião é um velho óleo incorruptível.
Paulo tinha talento. O discurso daquele dia podia pecar aqui ou ali por alguma ênfase, e uma ou outra idéia vulgar e exausta. Tinha talento Paulo. Em suma, o discurso era bom. Santos achou-o excelente, leu-o aos amigos e resolveu transcrevê-lo nos jornais. Natividade não se opôs, mas entendia que algumas palavras deviam ser cortadas.
— Cortadas, por quê? perguntou Santos; e ficou esperando a resposta.
— Pois você não vê, Agostinho? Estas palavras têm sentido republicano, explicou ela relendo a frase que a afligira.
Santos ouviu-as ler, leu-as para si, e não deixou de lhe achar razão. Entretanto, não havia de as suprimir.
— Pois não se transcreve o discurso.
— Ah! isso não! O discurso é magnífico, e não há de morrer em São Paulo; é preciso que a Corte o leia, e as províncias também, e até não se me daria fazê-lo traduzir em francês. Em francês, pode ser que fique ainda melhor.
— Mas, Agostinho, isto pode fazer mal à carreira do rapaz; o imperador pode ser que não goste...
Pedro, que assistia desde alguns instantes ao debate, interveio docemente para dizer que os receios da mãe não tinham base; era bom pôr a frase toda, e, a rigor, não diferia muito do que os liberais diziam em 1848.
— Um monarquista liberal pode muito bem assinar esse trecho, concluiu ele depois de reter as palavras do irmão.
— Justamente! assentiu o pai.
Natividade, que em tudo via a inimizade dos gêmeos, suspeitou que o intuito de Pedro fosse justamente comprometer Paulo. Olhou para ele a ver se lhe descobria essa intenção torcida, mas a cara do filho tinha então o aspecto do entusiasmo. Pedro lia trechos do discurso, acentuando as belezas, repetindo as frases mais novas, cantando as mais redondas, revolvendo-as na boca, tudo com tão boa sombra que a mãe perdeu a suspeita, e a impressão do discurso foi resolvida. Também se tirou uma edição em folheto, e o pai mandou encadernar ricamente sete exemplares, que levou aos ministros, e um ainda mais rico para a Regente.
— Você diga-lhe, aconselhou Natividade, que o nosso Paulo é liberal ardente...
— Liberal de 1848, completou Santos lembrando as palavras de Pedro.
Santos cumpriu à risca. A entrega se fez naturalmente, e, no palácio Isabel, a definição do "liberal de 1848" saiu mais viva que as outras palavras, ou para diminuir o cheiro revolucionário da frase condenada pela mulher, ou porque trazia valor histórico. Quando ele voltou a casa, a primeira coisa que lhe disse foi que a Regente perguntara por ela, mas apesar de lisonjeada com a lembrança, Natividade quis saber da impressão que lhe fizera o discurso, se já o lera.
— Parece que foi boa. Disse-me que já havia lido o discurso. Nem por isso deixei de lhe dizer que os sentimentos de Paulo eram bons; que, se lhe notávamos certo ardor, compreendíamos sempre que eles eram os de um liberal de 1848...
— Papai disse isso? perguntou Pedro.
— Por que não, se é verdade? Paulo é o que se pode chamar um liberal de 1848, repetiu Santos querendo convencer o filho.