Esfinge (Coelho Neto)/VI
“Os poetas não mentem quando afirmam que os seres sobrenaturais aspiram, com ânsia, a vida contingente dos efêmeros”.
A ondina, ao sombrear da tarde, surge à tona d’agua e queda no açucenal flutuante à espreita do viador. Se o avista, seja fidalgo airoso ou rude zagal maltrapilho, exalta-se, estua-lhe, com o pulsar do desejo, o colo túrgido, acendem-se-lhe os olhos verdes, tingem-se-lhe de rosa as faces alvas e, quando o vê perto, saltando aligera sobre as alpondras, passando ligeira entre as ramagens densas, rompe esbelta na veiga e de pé, arqueando o busto em atitude imponente, afastando para as costas os cabelos gotejantes, mostra-se-lhe toda nua, invida-o com voz lânguida, sédulo com lascivo gesto e, se o colhe às mãos, abraça-se com desespero nele, cinge-o voluptuosamente à sua carne e, colando-lhe à boca os lábios frios, suga-lhe a vida em beijos.
É porque lhe faltam amantes no límpido retiro que sabe a busca-los na terra? Que respondam as moças aldeãs que não se arriscam, depois do toque de acolher, a abeirar-se do rio para que as não traia o ondino que se agacha nas ervas das margens úmidas.
As fadas, a cujo prestigio toda a natureza obedece, refogem, com aborrecimento, ao amor dos gênios. É vê-las ao luar friíssimo, errando voláteis na bruma, bailando em ronda à volta dos lagos, cantando e tangendo instrumentos sútis.
Desejam os amores ardentes da terra e atraem, com sortilégios, os seres mortais, buscando neles o que não encontram nos silfos e nos elfos, a volúpia que enerva, a volúpia irmã da Morte, mais violenta do que o frio e infecundo amor dos imortais.
Sempre o oposto é preferido — o desejo é ave solta e caprichosa que voa para o contraste.
Quanta vez, olhando do alto da torre esplêndida, onde todos os gozos me cercavam, eu invejava a sorte triste do pastorinho que passava no Vale, embiocado no gabão poído, pisando a neve, na áspera trilha que levava à granja ou à arribana misérrima, descolmada e sem lume?
Afeito ao prodígio já me não causavam surpresa os lances mais extraordinários da minha vida cativa.
Ver, como vi, no esmaecer de um crepúsculo, a sombra imensa de um pássaro cujas plumas irradiavam; vê-lo investir de arremesso à ogiva, inflama-la com a poupa em chama, raspar-lhe os vidrais com as garras de ouro e abalar estrepitosamente deixando no espaço um rastro de lume, foi, para mim, espetáculo tão vulgar como o jorrar das gárgulas nos dias de chuva. Mais me distraia e enlevava o voo lento dos patos bravos, que subiam dos lagos em bandos e desapareciam por trás das colinas, destacando-se, um momento, em pontos negros, sobre o fundo esbraseado do ocaso.
Que eram maravilhas para quem nelas vivia, se os meus dias e as minhas noites foram sempre um continuado prodígio?
Assim, a primeira impressão que tive ao passar da câmara ao salão cujas janelas, largamente abertas, respirando um ar puro e fresco, recebiam o sol alegre e o perfume dos prados florescidos e davam aos olhos a delícia da contemplação do céu azul a que se sobrepunha, em relevo, o recorte dos montes, foi apenas de gozo logo, porém, recordando a véspera de agreste invernia, noite de vento e neve, e lembrando-me da aparição lúgubre que me tomara o passo, estremeci.
Como se fundira em horas a espessa nevada? Como abonançara em brisa afagante o desabrido vento? Como se refizera o arvoredo esmarrido que lá fora boleava a coma, ioda enfolhada e em flor? Como do inverno estéril passaram, no correr de um sono, para a beleza e o viço da primavera céus e terra?
Olhava, enleado, quando ouvi passos e logo senti o aroma adorado de Maya. Voltei-me: era ela. Sorria, linda com uma rosa ao colo e à cinta, graciosamente posto, um molho de cravos amarelos. Interroguei-a sobre a transição que, tão rápida, se efetuara e ela disse serenamente:
— Se houve prodígio, esse foi o vosso sono de três meses. Adormecestes quando ainda os corvos esgaravatavam a neve. Vieram as primeiras andorinhas e encontraram-vos dormindo. A voz da cotovia não vos despertou, nem o rouxinol, trilando nos balseiros, conseguiu tirar-vos do letargo em que caístes. Campos e outeiros reverdeciam, árvores e seres cobriam-se de flores, derivavam ligeiros, com pressa festiva, os ribeiros que havíeis deixado retransidos. Enxames de abelhas invadiam os aposentos, borboletas acatasoladas vinham adejar em torno do vosso leito e... Dormíeis. Três meses longos dormistes.
— E porque durou tanto o meu sono?
— Porque descobristes a face da Morte. Estas palavras, pronunciadas em tom misterioso, deixaram-me aturdido e afluiu-me à memória, sem omissão de uma minúcia, toda a cena da minha última noite — a peregrinação receiosa através das salas fulgentes, o funéreo e pavoroso espetáculo do esquife, o cadáver de Arhat, a aparição à entrada dos meus aposentos.
Arrepiado, sentindo um frio agudo como de ferro que me traspassasse o peito, hirto, quase sem voz, perguntei pelo estranho homem.
— Espera-vos, disse a donzela fitando em mim, com tristeza, os olhos que se anuviavam. Vinde comigo e despedido de tudo que vos cerca e de mim, que vos amo, porque nunca mais tornareis a ver o que ides deixar. Vai abrir-se o casulo à borboleta livre. Ides conhecer o que almejais. Vinde! E, sem mais palavra, adiantou-se lesta, atravessou a porta, seguiu pela galeria, desceu a longa e retorcida escada e eu em pós dela.
Em baixo, no pátio dos ídolos, deteve-se, estendeu-me a mão fria e os seus olhos lindos — que ainda alumiam minha alma como as estreitas mortas brilham no fundo do céu — pareciam diluir-se em lágrimas.
Um momento as nossas mãos unidas apertaram-se, olhavamo-nos em silêncio, mas um vulto apareceu entre as heras que recobriam a ogiva da portaria de pedra e bronze e eu nele reconheci Arhat, em cuja mão oscilava, em haste longa, um lírio de alvura incomparável.
Estremeci. A um aceno imperativo do homem dominador deixei as mãos frias e trêmulas de Maya e segui submisso na direção do prestigio.
Lado a lado caminhamos.
O parque resplandecia em pleno sol, reviçava em todos os seus meandros; o perfume subia com exalação suave, impregnando o ar.
Vaidosamente, narcisando-se, com a matizada cauda aberta em fúlgido flabelo, pavões jaziam imóveis à beira do lago onde airosos cisnes alvos, palmilhando as águas lentamente, deslizavam serenos como se os levasse a brisa.
Faisões alavam-se de ramo a ramo com um lampejo das penas iriadas; e daqui, dali, dalhures cruzando o voo, eram aves, cuja plumagem varia coruscava, borboletas, abelhas, todos os seres alados gozando a luz, sob a poeira vivida do sol, como num batismo ardente de fecundidade.
Arhat caminhava abstraído, o olhar em arroubo. A espaços, aspirava o lírio a sorvos sôfregos e longos.
Ainda que seguíssemos por um caminho areado, donde os meus passos tiravam crepitações, o andar do Mestre era silencioso e um momento como ficássemos ombro a ombro, não lhe senti o corpo, mas um brando, agradável calor como de raio de sol a que me chegasse; sombra, só uma, fronteira a mim, enegrecia a terra; do lado de Arhat, precedendo-o, luzia uma claridade e em torno dele as folhas resplandeciam como a um fulgor misterioso.
Atravessamos vagarosamente uma recolhida alameda cujo saibro micante cintilava e chegamos à clareira onde a erva fina alastrava em alcatifa tão aveludada que andar por ela era pura delícia.
Não raro, por entre as ramas, dois grandes olhos, úmidos e meigos, espreitavam-nos: algum antílope ou corça.
Os galhos ringiam em alor mole, à aragem, e um cheiro acre, silvestre, picava o ambiente como o perfumoso hálito das árvores sadias.
Não havia viva alma, só os animais gozavam a beleza daquela manhã fulgurante no viçor do parque cujos aspectos variavam, à medida que avançávamos, deixando a um e a outro lado profundezas sombrias de bosques ou lisuras vastas de chans, lagos espelhentos ou levadías de águas espumantes acachoando em pedras eriçadas de ervas, um colmaço ou uma gruta, boscarejos ou suaves boleios de colinas de tão macia relva sob o matiz das flores que nelas, ao primeiro lance de olhos, logo se, sentia o trabalho, o cuidado caprichoso do homem.
Bandos de veadinhos vingavam às sebes, atravessavam as veredas aos pinchos atropelando-se e eram ruflos dazas em abalada arisca, galreios de aves alarmadas, voos de insetos, farfalhos das versas sob o coleio dos lezardos e longe, à sombra de ramalhoso carvalho, repousavam cervos ruminando e um à frente, a cabeça firme e altaneira, olhava hostil como se nos espiasse os passos, pronto a investir em defesa da tribo de que parecia o chefe poderoso.
Mas Arhat prosseguia e eu, sem ânimo de falar, ia-lhe na trilha, preocupado, senão medroso, a imaginar absurdos.
Avizinhando-nos de uma fonte, que murmurava escondida entre mimosas plantas, úmidas do rorejo contínuo, ele deteve-se de olhos em terra, quieto, a cabeça pendida em pensamento.
Ao cabo de um instante voltou-se encarando comigo, acenou para que me sentasse em uma pedra, sentando-se em outra e, depois de aspirar o lírio, disse:
“Uma tarde — eu então residia em um subúrbio de Londres — era no começo do inverno, a noite descia cedo — estudava solitário quando ouvi um vozeirar na rua, exclamações aterradas, gritos espavoridos. Precipitei-me para a janela e, abrindo-a, vi no lodo negro, a que se juntavam golfões de sangue, dois corpos escabujando. Um carrejão desaparecia em disparada fuga perseguido pelo clamor público e, como era a hora da saída das fábricas e das oficinas, em pouco tempo formou-se uma densa multidão no lugar do desastre”.
Tinha em minha companhia um colosso tibetano que me servia com dedicação e culto. Chamei-o e, mostrando-lhe os cadáveres, ordenei que me os trouxesse. Não sei como se houve, mas não gastou no ir e vir mais que o tempo necessário à corrida.
Recolhi com os despojos ao meu gabinete de estudo e, examinando atentamente os corpos, reconheci que um era de menino, a esse a cabeça ficara em pasta informe; o outro, de menina, tinha o peito esmagado: era uma massa de carne espontada de astilhas de ossos, sangrando a jorros.
Valendo-me das noções que possuo da Magna ciência, como ainda encontrasse vestígios, ou melhor: manifestações da presença dos sete princípios, retive a força de jiva, ou princípio vital, fazendo com que ele atraísse os restantes que circulavam, em aura, em torno da carne e, com a pressa que urgia, aproveitei dos corpos o que não fora atingido. Tomando a cabeça da menina e adaptando-a ao corpo do menino restabeleci a circulação, reavivei os fluídos e assim, retendo os princípios, desde o Athma, que é a própria essência divina, refiz uma vida, em um corpo de homem, que és tu.
Tão estranha revelação feita em tom sereno, com a simplicidade de uma natural conversa abalou-me de tal modo que me senti como esvaído e em trevas, mas um aroma sútil, penetrando-me docemente, restituiu-me o alento. Reabri os olhos: Arhat estava a meu lado inclinando sobre o meu rosto o lírio cujo perfume me deliciava.
Ouve, continuou. O mistério não o direi, está escrito: aqui o tens. Curvou-se e, apartando as folhagens que galeavam a fonte, apanhou uma caixa de cedro laminada de prata, abriu-a e tirou um livro que me entregou.
Eu pretendia dar-te o conhecimento do que se acha exposto neste volume, que é a tua Bíblia, precipitaste o meu trânsito com a curiosidade, tive de volver em “aura” do Além para acudir ao corpo, que ainda era meu e que profanaste com o olhar imprudente.
O teu castigo foi benigno: três meses nas prisões da Morte, mas o que perdeste é inestimável. A mim beneficiaste aligeirando as horas da grande e definitiva Renúncia.
Antes que o sol toque o pino do céu ter-me-ei libertado deste passo de angústia integrando-me no Athma. Sendo o corpo terra que é a vida mais do que uma prisão em sepulcro? Abreviaste a hora da minha ascensão.
A vida é uma sequência de atividade e inércia, um colar em que se intercalam contas negras e luminosas, dias e noites. Cada noite que escoa faz-te entrar em nova manhã. As reencarnações são grandes dias em que nos purificamos, passamos de um a outro pela sombra da morte, que é a noite ao termo da qual esplende a alvorada. O dia sem fim, luz a pino, claro e sereno e infinito dia, esse só alvorece depois de completar-se o ciclo das existências materiais — quando a pureza, por expiação, tornar-se igual à da iniciação — quando a candura da anciania se iguale à candura do berço.
Do sono que dormes passas para a manhã com a memória, que é a consciência do passado: a morte, que é um sono mais longo, apaga esse vestígio da vida, de sorte que nas reencarnações, há vagas reminiscências, certeza não pode haver: perduram estigmas, mas a lembrança esvai-se.
Aspirou o lírio longamente e prosseguiu: Está por pouco o meu degredo, devo, portanto, ser breve e tão claro quanto me o permita a palavra. Tens neste livro toda a tua vida, mas o ideograma em que foi escrito só poderá ser decifrado por alguém que haja atingido a perfeição.
Se conseguires descobrir uma inteligência previlegiada que interprete os símbolos serás no mundo como um anjo entre os homens, senhor de todas as graças, de todo o prestígio, uma vontade soberana em um espírito maravilhoso: se, porém, não obtiveres a chave do arcano, ai! De ti.
Pôs a fito em meu rosto os olhos agudíssimos, e largo tempo esteve a contemplar-me. Imóvel, só o lírio balanceava em sua mão em ritmo de pêndulo.
Após um instante continuou: Na mesma noite em que consegui realizar a conjunção dos dois corpos, que eram da Morte e que reintegrei na Vida, cedendo à terra o tributo que lhe cabia, porque os tassalhos foram sepultados pelo meu servo fiel, deixei a casa vindo habitar este antigo castelo onde, à custa da minha própria essência, com prejuízo da minha energia, fui alimentando a vida que hoje tens, dando-te o meu fluido com o mesmo amoroso desinteresse com que a ave maternal encrava as garras no peito, esborcina a chaga a bicadas fazendo rebentar o sangue com que ciba o ninho.
És verdadeiramente o filho da minha alma.
Logo, porém, que te firmaste na vida assaltou-me uma dúvida incoercível sobre a alma que devia influir na tua existência, imprimindo-lhe a feição moral.
Duas erravam em volta dos destroços da carne, obedecendo ao prestígio do Karma, que é a força da integração, uma só, porém, havia de prevalecer visto como das duas vidas independentes uma apenas podia subsistir. Desde que se manifestaram no corpo refeito os indícios da ação dos sete princípios que agem sobre a matéria estava evidentemente provada a existência de uma alma. Qual delas seria a vitoriosa — a do menino ou a da menina?
Todas as minhas tentativas atinentes à descoberta desse mistério faliram. Velei noites longas, perdi largos e seguidos dias inclinado sobre o teu berço, lançando inculcas em vão. Os meus sentidos aguçaram-se de balde e que poderia eu obter da inércia psíquica de um infante?
Dorka, que te acompanhou desde as primeiras horas, atenta, com a solicitude de sacerdotisa à espera de um oráculo, morreu na incerteza, sem conseguir sequer um indício que lhe desse ansa à mais leve suspeita.
Insisti pondo a teu lado os dois sexos, procurando exemplares os mais perfeitos da beleza e da graça, da flexibilidade e do aprumo, da meiguice e do garbo, da frágil candura que se entrega e da força altaneira que domina: Siva e Maya. Vendo-os convenci-me de que a alma que te assiste, qualquer que ela fosse, traíria a sua natureza inclinando-se ao contato.
Oscilava em afeição efêmera, em caprichos mais de estesia do que propriamente de amor. Nunca demonstraste predileção e a carne conservou-se impassível na presença quer de um, quer de outro, ainda que o olhar, por vezes, se exaltasse apenas admirando, extasiado na beleza, com o mesmo enlevo com que se embebia na paisagem ou nas cores vivas do céu ao dealbar e à tarde.
No teu rosto acentuava-se a mais e mais a beleza feminina, mas o corpo robustecia-se em másculo vigor e o coracão mantinha-se sempre mudo, inerte, indiferente, a ouro fio entre os dois sexos que se emparelhavam disputando-o.
Talvez só agora se te defina o ser. Entraste na puberdade que é a sazão em que a alma desabotoa revelando-se amorosa, acendendo na carne os fogos da volúpia.
Se em ti predominar o feminino que transluz na beleza do teu rosto, o rosto de tua irmã, serás um monstro: se vencer o espírito do homem, como faz acreditar o vigor dos teus músculos, serás como um imã de lascívia: mas infeliz serás como ainda não houve outro no mundo se as duas almas que pairavam sobre a carne rediviva lograram insinuar-se nela.
O Linga-sharira, ou corpo astral, “aura” ambiente, que circula, em auréola, em torno da cabeça é o último princípio que abandona o corpo e a lua cabeça é feminina. Será o coração viril?
Desventurado de ti se os dois princípios conseguiram penetrar-te — a discórdia andará contigo como a sombra acompanha o corpo. Amando, terás ciúme e nojo de ti mesmo. Serás uma anomalia incoerente: querendo com o coração e detestando com a cabeça e vice-versa. A tua mão direita declarará guerra à sinistra, uma das tuas faces incendiar-se-á de vergonha e asco quando a outra inflamar-se no pudor que é a florescência do desejo. Viverás entre dois inimigos encarniçados.
Ai! De ti... Dize: onde te leva o coração? Que reclamam os teus sentidos? Onde se demoram, com mais encanto, os teus olhos enevoados de sonho?
Encarou comigo interrogativamente e, como não obtivesse palavra do meu silêncio aterrado, estremeceu e houve um relâmpago cerúleo como se uma grande ametista houvesse instantaneamente eclipsado o sol.
É tarde! Suspirou por fim, e disse com melancolia: O lírio começa a esmaecer e pende. É a vida que se esvai!
Eu carecia de um corpo que me servisse de apoio como a ave precisa de um galho para pousar, escolhi a flor e a flor fenece.
Efetivamente o lírio inclinava-se lânguido, e dobrava-se na haste, mole, amarelecendo e Arhat, como para aproveitar os últimos instantes, precipitava as palavras pronunciando-as pungitivamente:
— Adeus! Preveni tudo para que não sofresses. Sofrimento basta o que em ti trazes. Hás de encontrar quem te guie os primeiros passos fora do teu paraíso. A fortuna que te lego garante-te os gozos da vida e o servilismo dos homens. Vê-los-ás curvarem-se ante ti como um campo de trigo ao vento e passarás calcando os preconceitos e as convenções, a honra, o amor, a justiça e as leis, a força e o brio, a inocência e a miséria e, longe de bradarem contra o opróbrio, os nobres, os honestos, os puros, os esposos ultrajados, as virgens infamadas, os juízes, os patriotas convertidos à infâmia pelo teu suborno bendirão a afronta e tanto mais apregoarão a tua virtude quanto mais os atascares no lameiro de ouro.
O ouro vil! Faze com ele o que faz o sol com a chama: luz, claridade, calor, vida. O ouro da mina é o verdadeiro fogo da região maldita, fal-o tu sol, luz celeste aplicando-o ao bem. Ser bom.
Uma moeda é a roda que leva a toda a infâmia e à salvação: posta à beira do abismo precipita-se, atirada ao céu é um astro. Ser bom.
Vai e procura pela terra vasta quem te dê a chave do segredo que encerra o livro místico. Agora segue-me. Quero deixar-te onde convém que fiques para que te encontre o teu guia.
Adiantou-se, tomou a frente e eu vi que, à medida que se afastava, ia com ele o clarão que iluminava o bosque, onde baixavam sombras e o frio das tardes invernais.
A luz deslocava-se acompanhando o homem como se dele irradiasse e, sucedendo passarmos junto de uma acácia florida, ao meneio dos ramos acenosos, entrou a árvore a esparzir toda a riqueza dos seus corimbos e as flores, caindo sobre o Mestre, passavam-lhe em chuva de ouro através do corpo e assim borboletas e abelhas e todas resplandeciam como o pólen aéreo quando entra na zona de um raio de sol.
Não era o seu corpo empeço à visão da paisagem que toda se me mostrava através dele como vista por um vidral dourado. Os ramos iluminavam-se ao clarão do seu peito, os seus pés eram dois esplendores que faziam rebrilhar o saibro, as suas mãos refrangiam raios iriados clareando os arbustos sobre que pairavam.
Diáfano e luminoso, achegando-se a mim, deu-me apenas uma suave sensação de calor. Por vezes confundia-se comigo ou eu entrava por ele e sentia-me como em pleno sol e a minha sombra desaparecia na terra.
O lírio murchava. Arhat, taciturno, parecia flutuar em arejo — seus pés juntos, imóveis nem roçavam o solo e direito, inflexível, a cabeça ereta e fulgurante, seguia a meu lado como um ser etéreo que se libertava do que nele havia de humano, adquirido na Humanidade, alijando dos olhos fitos, pela face esplêndida, lágrimas grossas que rolavam, luziam diamantinas, caiam na areia ou na relva e ficavam brilhando.
Chegamos a uma clareira. Ele fez com o braço hirto um gesto lampejante indicando-me um caminho revolto, por onde segui curvando-me como a uma ameaça.
A poucos passos andados todo me arrepiei ouvindo um longo, arrancado suspiro — uma força reteve-me: voltei-me e, maravilhado, estarrecido, vi o vulto luminoso do Mestre que se elevava em lenta ascensão e esmaecia, a pouco e pouco esvaia-se — apenas uma tremulina translúcida, como a exalação da terra calcinada nas horas mais estivas, pairava, mas volatilizando-se, subtilizando-se de todo sumiu. O lírio apenas, solitário, ficou suspenso no ar, a oscilar de leve. Súbito, como uma ave ferida, precipitou-se e, tocando em terra, desfez-se. Instantaneamente vibraram em concerto trilos e rouxinoleios de aves, os cervos bramaram árdegos entre as carvalheiras sombrias e o ar embalsamou-se de um aroma suave.
Quanto a mim, foi como se me houvessem cegado, amordaçado, tolhido. Mergulhei em trevas abruptas, sem fôlego, paralisado, sentindo-me atordoar por uma zoada soturna como se me houvessem adaptado uma concha aos ouvidos ou jazesse prisioneiro nas galerias ecoantes e tenebrosas de uma catacumba. Que houve? Não sei.
Quando dei acordo de mim atravessava, em sege, a trote largo, uma estrada lisa e branca, entre sebes floridas e cotáges agasalhados em sombras de árvores.
A tarde macia era toda aroma: e no ar quieto, a espaços, cantava um sino religioso. Andorinhas esvoaçavam e sob a névoa azulada os campos adormeciam.
Diante de mim, imóvel e grave, um homem louro, de suíças ralas, conservava sobre os joelhos uma caixa na qual imediatamente reconheci o estojo do livro do meu destino.
Ocorreram-me de pronto, como se estivessem atentas na memória à espera do meu apelo, as palavras de Arhat: “Quero deixar-te onde convém que fiques para que te encontre o teu guia”.
Assim, era aquele o homem que me devia, com segurança, introduzir no mundo que já se me afigurava complicado e hostil.
Como em resposta à interrogação do meu olhar inclinou de leve a cabeça e murmurou: “Sullivan”. Eia o seu nome e logo, como para aliviar-se de um peso incômodo, tirou do bolso uma atochada carteira de couro negro e entregou-me a, explicando: “Sobre o Banco de Inglaterra”. Milhões, a fortuna de Arhat.
E até Londres, onde chegamos com a noite, não trocamos mais palavra.
Descemos no Hotel dos embaixadores onde já nos esperavam com os mais amplos aposentos alfaiados suntuosamente. E começou para mim a vida real.
Comparando-a, nos meus concentrados e saudosos silêncios, com a que eu deixara para o todo sempre, pareceu-me mais extraordinária e prodigiosa.
Os meus dias no solar perdido discorriam dormentes com a monotonia com que rolam as águas de um rio claro, formoso, mas sempre, invariavelmente sereno, com o mesmo choroso murmúrio, com as mesmas cândidas flores carreadas no curso, as mesmas verdes ramas retratando-se-lhe na superfície lisa e no turbilhão em que eu me precipitara as surpresas sucediam-se com os minutos.
Os quatro primeiros dias da minha nova existência foram, a bem dizer, mais cheios do que os quietos dezoito anos jazidos no solar merencório do vale triste.
Sulivan tudo mostrou-me: o fausto mais imponente e a miséria mais comovedora e sórdida.
Vi cortejos de príncipes e levas de galés, uns e outros entre armas. Ouvi coros em catedrais, vastas como cidades, e ouvi o arquejo dos bateleiros que cruzam o rio, o canto triste dos operários à volta das oficinas. Ouvi tinir o ouro e o ferro. Percorri a cidade e as suas entranhas — ora à flor da terra, podendo olhar o céu, ora em subterrâneos com uma abobada de túmulo pesando-me sobre o peito. E vi, com verdadeiro assombro e revoltada piedade, a máquina, vencedora do homem, a máquina a fazer miséria, a triturar o pobre para locupletar o rico; a máquina que vai relegando o esforço, como a pólvora inutilizou a bravura.
A água, o fogo, a centelha etérea, todas as forças puras combinavam-se para o crime, roubando o pão ao pobre, despindo-o, tomando-lhe o lar, lançando-o na estrada tão nu e tão desprovido como na hora amargurada do nascimento.
Visitei fábricas e oficinas e comovi-me diante dos engenhos desumanos que, assim como o arado, revolvendo, sulcando a terra, mata as ervas humildes para que a seara do pão cresça sem parasitas, assim vão eles desalojando os fracos em benefício dos fortes. Tudo vi.
Saíamos dos squares opulentos e chafurdávamos nas vielas nojosas onde vermina um povo lúgubre, espectral, doloroso: homens, mulheres, crianças arrepanhando farrapos imundos à nudez macilenta, estendendo a mão descarnada, cercando-nos, a alrotar pedidos, investindo com feição sinistra ou rastejando, a chorar.
Seres hediondos que desbordavam das baiucas lôbregas, uns esquálidos, tiritando de febre, outros de um roxo apoplético, cambaleando ébrios, rouquejando torpezas ou vociferando pragas; pequenitas impúberes, esfarrapadas, que nos tomavam pelo braço com cinismo devasso — crianças que não conheceram a inocência — esbagaxando os peitos esqueléticos, quebrando concupiscentemente os olhos lânguidos, mordicando com descaro os beiços lívidos.
Fugíamos acossados pelos maltrapidos e, em breve, emergíamos no esplendor da cidade.
Ficava-me na alma, de tais visões, um sabor amargo. E só verdadeiramente, compreendi o sobrenatural.
O “natural” devia ser a vida feliz que eu levara junto do Mestre, servido por todas as forças maravilhosas do céu e da terra, atendido em todos os meus desejos, consolado nos meus pesares, acoberto do frio, defendido do sol, forte e sadio e vendo, à volta de mim, no mais agro inverno, as flores abrolhando, os frutos amadurecendo e ouvindo, deliciado, o canto meigo dos passarinhos. O natural lá ficara com os encantamentos, com os prodígios realçados pela Bondade.
O sobrenatural só então me aparecia à sombra dos templos de Deus, aos pés esmagadores da inflexível Justiça: era aquilo — uma balança com as duas conchas opostas: em uma pesando, para guindar a outra à felicidade, a miséria, lágrimas, só lágrimas. O sobrenatural era aquilo.
No vasto salão do hotel, ao fulgor ofuscante das luzes que se reproduziam nos tremós e lampejavam nos mármores, por entre as mesas floridas onde a baixela fulgia e os cristais chispavam, era incessante a afluência: homens, trajando a rigor, com grandes rosas à botoeira, mulheres em decotes que lhes despiam esgargaladamente o colo e o dorso. Uma orquestra oculta executava com suavidade.
Sulivan, sempre impassível, era indiferente ao trabalho, ao trabalho que me aturdia e enervava.
Lá fora, á noite, o babarizo crescia através de um rumor contínuo e escachoante. A todo o momento, no falário alegre, por entre risos casquinados detonavam garrafas.
Era a hora abundante do regalo — o ouro fundia-se em gozo. E no square os carros passavam por entre alas de miseráveis que esmolavam, corriam com a pureza ao vício ou espreitavam o momento oportuno do furto ou do assalto violento, à mão armada, na sombra.
Sulivan, mal terminávamos o jantar melancólico, convidava-me para os “divertimentos da noite”. Íamos aos teatros, às salas de concerto, aos circos colossais, aos cafés eróticos. Eu seguia-o arrastado. No primeiro instante tudo me deslumbrava, mas a admiração dissolvia-se em tédio como a poeira que um vento levanta da estrada e, um momento, ondula, brilha dourada ao sol e logo recai no chão.
O silêncio atraia-me. Um tímido, irritado vexame fazia-me recuar, fugir à vista afrontosa dos curiosos, notando despudor aviltante na insistência maliciosa com que me encaravam os homens, impudência lúbrica no êxtase das mulheres que punham os olhos a fito no meu rosto, com escândalo.
Vi o orgiar noturno, o estadeio do vício sob todas as formas: na libertinagem solta em que se rojavam mulheres e mancebos, na ebriez despeiada, na tavolagem infrene e depois, pela treva silente, em passos que chapinhavam, vultos trôpegos fariscando, revolvendo entulhos, disputando aos cães o dejeto das copas.
Recolhendo ao hotel com o coração eivado de tristeza, não conseguia conciliar o sono e debruçava-me ao balcão contemplando a cidade vasta, esplêndida de luzes, cuja miséria eu surpreendera em toda a hediondez e ficavame a pensar no horror daquele corpo ulcerado, resplandecendo sob as arrecadas de luz como uma podridão que se resolvesse em centelhas, uma imensa carniça exalando o luminoso miasma do fogo fátuo.
O sobrenatural!
Iam-se-me as preocupações sempre que meus olhos encontravam o livro estranho. Então, recordando as palavras de Arhat, concentrava a atenção nos símbolos buscando esvurmar-lhes o segredo, interrogando-os com ânsia desesperada.
Quantas vezes adormeci sobre as páginas impenetráveis!
Um dia resolvi consultar os mais apregoados sábios que se diziam conhecedores da ciência velada e, durante meses, andei por palácios e mansardas com o livro selado, ouvindo notabilidades e modestos investigadores e todos devolviam-me ao horror em que vivo agravando-o ainda mais, com as suas palavras, que me levavam toda a esperança.
Sulivan, apesar dos modos graves, da severa aparência de austeridade, só se comprazia nos prazeres mundanos e, todas as manhãs, ainda que eu não tivesse relações na cidade, trazia-me uma farta correspondência e eu, abrindo, ao acaso, as cartas, lia convites para festas, queixas de misérias, propostas lúbricas, requestas de manejadores de ouro e as mãos saíam-me daquela papelada como úmidas de lágrimas e maculadas de lodo.
Sulivan não dizia palavra, mas sorria às seduções que me assediavam, eu sentia-lhe o incentivo com que me impelia às torpezas repugnantes.
Um dia, enojado do homem material que se me apegara à vida e ardendo mais intensamente na ânsia de conhecer o meu destino, decidi sair pelo mundo, peregrinar longamente, percorrer todas as sedes da Antiga ciência onde, talvez, encontrasse o predestinado que me havia de entregar a chave do arcano.
Despedi o meu guia com um cheque sobre o Banco de Inglaterra que lhe assegurava, à farta, os meios para refocilar no gozo e embarquei, filo ao Oriente. Dois anos, sem repouso de um dia, andei por montes ásperos e brenhas agressivas, perlustrei, de mar a mar, a grande Ásia, visitando os recessos dos contemplativos, consultando sábios e penitentes, saindo da floresta para entrar na dagóba. Aprofundei-me na antiga Thessalia agreste. Andei pelas isbas do país da neve; dormi nos tépidos oásis da África arenosa; ouvi sibilas e videntes: conversei os místicos do Norte gelado onde, ao livor dos ice-bergs, pela algidez das noites brancas, voejam diáfanos espíritos e só encontrei no homem o conhecimento superficial da vida. E minha alma? Ai! De mim.
Foi em Estocolmo que senti a minha desventura amando pela primeira vez e esse amor... Esse amor só podia gerar-se em alma feminina.
Assim... É minha irmã a vitoriosa em mim.
Acolhido carinhosamente na intimidade de uma família nobre, cujo brasão rememora séculos, achei nos jovens representantes dessa casa augusta os melhores amigos que se me têm deparado.
Eram gêmeos e lindos! O amor entrou comigo no coração virginal da donzela, era, porém, ao mancebo que minha alma se dedicava, ao mancebo que fizera de mim o confidente do seu amor.
Minha alma debatia-se em ansiedade sôfrega se o não sentia, tanto, porém, que ele aparecia eu exaltava-me em furor violento odiando-o, detestando-o e execrando a mim mesmo, com asco, como se me sentisse poluído.
As suas confidências pungiam-me acerbamente e cada palavra de ternura com que ele aludia ao seu afeto doía-me como um dardo que se me cravasse no coração e o nome só da sua noiva era um suplício que me excruciava. Pobre de mim!
Oh! Minha alma forte, minha alma viril onde estarás tu que me não defendes?
Fugia do meigo casal de irmãos, fugia da meiguice, do amor cândido, envergonhado como um torpe, e infeliz daquele amor vedado. E, encerrando-me, abria agoniadamente o volume cravando os olhos nos símbolos para tirar deles a Verdade, qualquer que fosse, a solução do problema terrível, da minha alma ou das almas geminadas que se degladiam na arena revolta que é o meu coração mísero.
Parti. Desde então o meu viver tornou-se insuportável. O sofrimento encarregou-se da interpretação dos símbolos: sei que sou um desgraçado, aquele de quem disse Arhat: “infeliz serás como ainda não houve outro no mundo”.
Cada flor tem o seu perfume próprio, uma vida não pode obedecer a dois ritmos. Duas almas em luta, sentindo diversamente, inutilizam o instinto que é o princípio da atração.
Um monstro, um monstro que se devora a si mesmo, eis o que sou.
O livro não pode dizer mais — é isto só e é o horror.
Imaginai uma ave que, ao abalar do ninho, sentisse os pés enleados em atilhos de aro e, ansiosa, atraída pelo azul, batesse as asas até morrer exausta. Assim hei de eu acabar no vácuo, voando cativo, nem do céu nem da terra, nem da árvore nem do ether, preso no espaço e no ramo... O absurdo, a incongruência, o inconcebível — sou eu”.