A Divina Comédia (Xavier Pinheiro)/grafia atualizada/Inferno/XXIV: diferenças entre revisões

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Já de outro acima me avisava atento.
Já de outro acima me avisava atento.
“Mais alto agora sobe” — me dizia —
“Mais alto agora sobe” — me dizia —
“Vê se a rocha está firme! Toma tento!”
“Vê se a rocha está firme! Toma tento!”


De capa ali ninguém transitaria;
De capa ali ninguém transitaria;
Linha 71: Linha 71:
Sentei-me então na inanição suprema.
Sentei-me então na inanição suprema.


“Eia! toda a fraqueza em ti se mude!
“Eia! toda a fraqueza em ti se mude!
Em ócio” — disse o Mestre — “ou sobre a pluma
Em ócio” — disse o Mestre — “ou sobre a pluma
Prêmios ninguém conquista da virtude.
Prêmios ninguém conquista da virtude.


“Aquele que a existência assim consuma,
“Aquele que a existência assim consuma,
Tal vestígio de si deixa na terra,
Tal vestígio de si deixa na terra,
Como o fumo no ar e na água a espuma.
Como o fumo no ar e na água a espuma.


“Ergue-te, pois! Torpor de ti desterra!
“Ergue-te, pois! Torpor de ti desterra!
Recobra o esforço que os perigos vence!
Recobra o esforço que os perigos vence!
Impere alma no corpo em que se encerra!
Impere alma no corpo em que se encerra!


“Que vais subir muito alto a mente pense;
“Que vais subir muito alto a mente pense;
Desse abismo não basta haver saído.
Desse abismo não basta haver saído.
Será teu prol, se a minha voz convence”.
Será teu prol, se a minha voz convence”.


Alço-me então, mostrando-me impelido
Alço-me então, mostrando-me impelido
De alento, que não tinha; e ao Mestre digo:
De alento, que não tinha; e ao Mestre digo:
“Avante! Forte já me sinto e ardido!”
“Avante! Forte já me sinto e ardido!”


Pela rocha asperíssima prossigo
Pela rocha asperíssima prossigo
Linha 105: Linha 105:
Curvei-me para ver no fosso hiante,
Curvei-me para ver no fosso hiante,
Mas alcançar não pude o fundo escuro.
Mas alcançar não pude o fundo escuro.
Ao Mestre disse então. “Se apraz-te, avante
Ao Mestre disse então. “Se apraz-te, avante


Passando, desceremos deste muro;
Passando, desceremos deste muro;
Daqui ouço uma voz, mas não a entendo;
Daqui ouço uma voz, mas não a entendo;
Fito os olhos, mas nada me afiguro”.
Fito os olhos, mas nada me afiguro”.


“Respondo aos teus desejos, acedendo;
“Respondo aos teus desejos, acedendo;
Que o pedido discreto assim declaro
Que o pedido discreto assim declaro
Se cumpre, não falando, mas fazendo”.
Se cumpre, não falando, mas fazendo”.


Fomos da ponte à parte, donde é claro
Fomos da ponte à parte, donde é claro
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Quem fora inquire o Mestre, e dele alcança
Quem fora inquire o Mestre, e dele alcança
Estas vozes: — “Há pouco, da Toscana
Estas vozes: — “Há pouco, da Toscana
Chovi no abismo, onde ninguém descansa.
Chovi no abismo, onde ninguém descansa.


“Vida brutal vivi, não vida humana.
“Vida brutal vivi, não vida humana.
Chamei-me Vanni Fucci<ref>Vanni Fucci, ribaldo que roubou o tesouro de S. Jacopo em Pistóía. [N. T.]</ref>, híbrida besta;
Chamei-me Vanni Fucci<ref>Vanni Fucci, ribaldo que roubou o tesouro de S. Jacopo em Pistóía. [N. T.]</ref>, híbrida besta;
Pistóia, meu covil, de mim se ufana”.
Pistóia, meu covil, de mim se ufana&#0148;.


Ao Mestre eu disse: &mdash; “Referir-nos resta
Ao Mestre eu disse: &mdash; &#0147;Referir-nos resta
O crime, que deu causa à morte sua:
O crime, que deu causa à morte sua:
Sei que em sangue banhara a mão funesta”.
Sei que em sangue banhara a mão funesta&#0148;.


O pecador, que me ouve, não se amua:
O pecador, que me ouve, não se amua:
Linha 187: Linha 187:
Com sinais de vergonha se insinua
Com sinais de vergonha se insinua


E diz: &mdash; “Sinto da dor mais a aspereza,
E diz: &mdash; &#0147;Sinto da dor mais a aspereza,
Porque em miséria tanta me vês posto,
Porque em miséria tanta me vês posto,
Do que quando da morte hei sido a presa.
Do que quando da morte hei sido a presa.


“Ao que exiges respondo com desgosto:
&#0147;Ao que exiges respondo com desgosto:
Por ter roubado alfaias e ornamento
Por ter roubado alfaias e ornamento
Da igreja, aqui estou, sendo meu gosto
Da igreja, aqui estou, sendo meu gosto


“Que pelo crime houvesse outro tormento.
&#0147;Que pelo crime houvesse outro tormento.
Se deste antro saíres algum dia,
Se deste antro saíres algum dia,
Por que não sejas do meu mal contento,
Por que não sejas do meu mal contento,


“Ouve bem o que a voz minha anuncia:
&#0147;Ouve bem o que a voz minha anuncia:
De si Pistóia os Negros expulsando,
De si Pistóia os Negros expulsando,
Povo, modos, Florença então cambia.
Povo, modos, Florença então cambia.


“Vapor de Val de Magra Marte alçando,
&#0147;Vapor de Val de Magra Marte alçando,
O traz em torvas nuvens envolvido;
O traz em torvas nuvens envolvido;
E, enquanto a tempestade está raivando,
E, enquanto a tempestade está raivando,


“No campo de Picen será ferido
&#0147;No campo de Picen será ferido
Combate; a névoa logo se esvaece;
Combate; a névoa logo se esvaece;
Dos Brancos cada qual será batido<ref>Vanni Fucci sabendo que Dante era do partido dos Brancos, lhe prediz que os Brancos serão exilados de Florença e, depois, derrotados em Campopiano. [N. T.]</ref>.
Dos Brancos cada qual será batido<ref>Vanni Fucci sabendo que Dante era do partido dos Brancos, lhe prediz que os Brancos serão exilados de Florença e, depois, derrotados em Campopiano. [N. T.]</ref>.


“Sabe-o, pois: certo, a nova te entristece”.
&#0147;Sabe-o, pois: certo, a nova te entristece&#0148;.
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Revisão das 01h35min de 11 de outubro de 2008

Encaminham-se os Poetas pelo rochedo e chegam ao sétimo compartimento no qual estão os ladrões, os quais, picados por serpentes horríveis, inflamam-se e, depois, ressurgem das cinzas. Entre eles Dante reconhece Vanni Fucci, o qual por desafogar o despeito de ser colhido em tal vergonha e miséria, prediz-lhe a derrota dos Brancos.

Naquela parte do ano incipiente,
Em que as comas do sol se fortalecem
No Aquário, e a noite iguala o dia ausente,

Quando as geadas matinais parecem
Da alva irmã figurar a imagem pura,
Mas tais feições em breve se esvaecem.

Campino, que a indigência já tortura,
Ergue-se, e vendo o prado embranquecido.
No coração calar sente a amargura.

Torna ao tugúrio e carpe-se abatido,
Como quem toda a esp’rança já perdera;
Mas vendo em breve o campo estar despido

Do triste manto, o alento recupera.
Revigorado então, corre ao cajado
E as ovelhas ao pascigo acelera.

De temor me senti, dessa arte, entrado
Do mestre merencóreo ante o semblante;
Mas logo ao mal foi bálsamo aplicado.

À ruína chegamos: nesse instante
Virgílio volve àquele doce gesto,
Que eu da colina ao pé vira ofegante.

Reflete um pouco, o estado manifesto
Da rocha examinando: eis-me, estendendo
Os braços, resoluto ergueu-me presto.

Como aquele que uma obra entre mãos tendo.
Logo noutra tarefa põe o intento,
Num rochedo Virgílio me sustendo,

Já de outro acima me avisava atento.
&#0147;Mais alto agora sobe&#0148; — me dizia —
&#0147;Vê se a rocha está firme! Toma tento!&#0148;

De capa ali ninguém transitaria;
Pois nós, leves e eu sempre transportado,
Subíamos a custo a penedia.

Se mais alto o declive do outro lado
Não fora do que esse outro, em que ora estamos,
— Dele não sei — ficara eu lá prostrado.

Que Malebolge inclina-se notamos
À boca enorme do profundo poço;
As encostas, são tais — expr’imentamos —

Que uma é baixa, outra excelsa em cada fosso.
Vimos, enfim, do topo à roca extrema,
Dessa ruína ao último destroço.

Lá chegado, afã tanto o peito prema,
Que avante um passo dar eu mais não pude;
Sentei-me então na inanição suprema.

&#0147;Eia! toda a fraqueza em ti se mude!
Em ócio&#0148; — disse o Mestre — &#0147;ou sobre a pluma
Prêmios ninguém conquista da virtude.

&#0147;Aquele que a existência assim consuma,
Tal vestígio de si deixa na terra,
Como o fumo no ar e na água a espuma.

&#0147;Ergue-te, pois! Torpor de ti desterra!
Recobra o esforço que os perigos vence!
Impere alma no corpo em que se encerra!

&#0147;Que vais subir muito alto a mente pense;
Desse abismo não basta haver saído.
Será teu prol, se a minha voz convence&#0148;.

Alço-me então, mostrando-me impelido
De alento, que não tinha; e ao Mestre digo:
&#0147;Avante! Forte já me sinto e ardido!&#0148;

Pela rocha asperíssima prossigo
Mais estreita, inda menos acessível
Que a outra: os passos de Virgílio sigo.

Por provar-me às fadigas insensível
Falando andava. Eis ouço de outra cava
Ressoar voz bem pouco perceptível.

O que disse não sei, posto me achava
Da ponte sobre a parte culminante;
Mais parecia iroso quem falava.

Curvei-me para ver no fosso hiante,
Mas alcançar não pude o fundo escuro.
Ao Mestre disse então. &#0147;Se apraz-te, avante

Passando, desceremos deste muro;
Daqui ouço uma voz, mas não a entendo;
Fito os olhos, mas nada me afiguro&#0148;.

&#0147;Respondo aos teus desejos, acedendo;
Que o pedido discreto assim declaro
Se cumpre, não falando, mas fazendo&#0148;.

Fomos da ponte à parte, donde é claro
Que se vai ter à ribanceira oitava:
Ficou patente a cava ao meu reparo.

De serpes tal cardume se enroscava,
Horríficas na infinda variedade,
Que ao sangue, inda ao lembrar, terror me trava.

Não tenha a Líbia de criar vaidade,
De quersos, fares, cencris no seu seio
E anfisbenas, tamanha quantidade.

Nem do mar Roxo em plagas[1], nem no meio
Da Etiópia, tropel tão pavoroso
De flagelos jamais a lume veio:

Por entre o enxame atroce e temeroso
Almas corriam nuas e transidas,
Heliotrópia não sperando ou pouso.

Atrás as mãos por serpes são tolhidas,
Que, transpassando os rins, cauda e cabeça,
Lhes tinham por diante em laços unidas.

Eis uma de repente se arremessa
Ao prescito, que perto nos demora:
Morde-lhe o colo aonde a espádua cessa.

Um O traçar ou I mais custa agora
Do que ser o mesquinho incendiado:
Em cinzas cai o pecador, que chora.

Stando em terra desta arte derribado,
Juntando-se a cinza e logo reformou-se,
Como de antes, o triste condenado.

Dos sábios na escritura já narrou-se
Que a Fênix morre e logo após renasce,
Quando aos anos quinhentos acercou-se.

Viva, já nunca em cibo ela se pasce,
Em lágrimas, porém, de incenso e amono;
De nardo e mirra em ninho extremo apraz-se.

Como aquele que cai sem saber como,
Do demônio ao poder, que à terra o tira,
Ou de outra opilação sentindo o assomo;

Levantando-se, em torno a si remira,
Da angústia inda aturdido, que o mordera,
E, em seu soçobro, pávido suspira:

Assim parece o pecador, que ardera.
Contra os pecados na final vingança,
Ó Justiça de Deus, quanto és severa!

Quem fora inquire o Mestre, e dele alcança
Estas vozes: — &#0147;Há pouco, da Toscana
Chovi no abismo, onde ninguém descansa.

&#0147;Vida brutal vivi, não vida humana.
Chamei-me Vanni Fucci[2], híbrida besta;
Pistóia, meu covil, de mim se ufana&#0148;.

Ao Mestre eu disse: — &#0147;Referir-nos resta
O crime, que deu causa à morte sua:
Sei que em sangue banhara a mão funesta&#0148;.

O pecador, que me ouve, não se amua:
Volta-me presto a cara, em que a tristeza
Com sinais de vergonha se insinua

E diz: — &#0147;Sinto da dor mais a aspereza,
Porque em miséria tanta me vês posto,
Do que quando da morte hei sido a presa.

&#0147;Ao que exiges respondo com desgosto:
Por ter roubado alfaias e ornamento
Da igreja, aqui estou, sendo meu gosto

&#0147;Que pelo crime houvesse outro tormento.
Se deste antro saíres algum dia,
Por que não sejas do meu mal contento,

&#0147;Ouve bem o que a voz minha anuncia:
De si Pistóia os Negros expulsando,
Povo, modos, Florença então cambia.

&#0147;Vapor de Val de Magra Marte alçando,
O traz em torvas nuvens envolvido;
E, enquanto a tempestade está raivando,

&#0147;No campo de Picen será ferido
Combate; a névoa logo se esvaece;
Dos Brancos cada qual será batido[3].

&#0147;Sabe-o, pois: certo, a nova te entristece&#0148;.

Notas

  1. Nem do mar Roxo em plagas é a versão pela qual o trecho che sopra al Mar Rosso aparenta ter sido traduzido do italiano. Rosso, em italiano, significa vermelho.
  2. Vanni Fucci, ribaldo que roubou o tesouro de S. Jacopo em Pistóía. [N. T.]
  3. Vanni Fucci sabendo que Dante era do partido dos Brancos, lhe prediz que os Brancos serão exilados de Florença e, depois, derrotados em Campopiano. [N. T.]