Os Lusíadas/I: diferenças entre revisões
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Revisão das 05h27min de 10 de junho de 2006
- 1
- As armas e os barões assinalados,
- Que da ocidental praia Lusitana,
- Por mares nunca de antes navegados,
- Passaram ainda além da Taprobana,
- Em perigos e guerras esforçados,
- Mais do que prometia a força humana,
- E entre gente remota edificaram
- Novo Reino, que tanto sublimaram;
-
- 2
- E também as memórias gloriosas
- Daqueles Reis, que foram dilatando
- A Fé, o Império, e as terras viciosas
- De África e de Ásia andaram devastando;
- E aqueles, que por obras valerosas
- Se vão da lei da morte libertando;
- Cantando espalharei por toda parte,
- Se a tanto me ajudar o engenho e arte.
-
- 3
- Cessem do sábio Grego e do Troiano
- As navegações grandes que fizeram;
- Cale-se de Alexandro e de Trajano
- A fama das vitórias que tiveram;
- Que eu canto o peito ilustre Lusitano,
- A quem Neptuno e Marte obedeceram:
- Cesse tudo o que a Musa antiga canta,
- Que outro valor mais alto se alevanta.
-
- 4
- E vós, Tágides minhas, pois criado
- Tendes em mim um novo engenho ardente,
- Se sempre em verso humilde celebrado
- Foi de mim vosso rio alegremente,
- Dai-me agora um som alto e sublimado,
- Um estilo grandíloquo e corrente,
- Porque de vossas águas, Febo ordene
- Que não tenham inveja às de Hipocrene.
-
- 5
- Dai-me uma fúria grande e sonorosa,
- E não de agreste avena ou frauta ruda,
- Mas de tuba canora e belicosa,
- Que o peito acende e a cor ao gesto muda;
- Dai-me igual canto aos feitos da famosa
- Gente vossa, que a Marte tanto ajuda;
- Que se espalhe e se cante no universo,
- Se tão sublime preço cabe em verso.
-
- 6
- E vós, ó bem nascida segurança
- Da Lusitana antiga liberdade,
- E não menos certíssima esperança
- De aumento da pequena Cristandade;
- Vós, ó novo temor da Maura lança,
- Maravilha fatal da nossa idade,
- Dada ao mundo por Deus, que todo o mande,
- Para do mundo a Deus dar parte grande;
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- 7
- Vós, tenro e novo ramo florescente
- De uma árvore de Cristo mais amada
- Que nenhuma nascida no Ocidente,
- Cesárea ou Cristianíssima chamada;
- (Vede-o no vosso escudo, que presente
- Vos amostra a vitória já passada,
- Na qual vos deu por armas, e deixou
- As que Ele para si na Cruz tomou)
-
- 8
- Vós, poderoso Rei, cujo alto Império
- O Sol, logo em nascendo, vê primeiro;
- Vê-o também no meio do Hemisfério,
- E quando desce o deixa derradeiro;
- Vós, que esperamos jugo e vitupério
- Do torpe Ismaelita cavaleiro,
- Do Turco oriental, e do Gentio,
- Que inda bebe o licor do santo rio;
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- 9
- Inclinai por um pouco a majestade,
- Que nesse tenro gesto vos contemplo,
- Que já se mostra qual na inteira idade,
- Quando subindo ireis ao eterno templo;
- Os olhos da real benignidade
- Ponde no chão: vereis um novo exemplo
- De amor dos pátrios feitos valerosos,
- Em versos divulgado numerosos.
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- 10
- Vereis amor da pátria, não movido
- De prémio vil, mas alto e quase eterno:
- Que não é prémio vil ser conhecido
- Por um pregão do ninho meu paterno.
- Ouvi: vereis o nome engrandecido
- Daqueles de quem sois senhor superno,
- E julgareis qual é mais excelente,
- Se ser do mundo Rei, se de tal gente.
-
- 11
- Ouvi, que não vereis com vãs façanhas,
- Fantásticas, fingidas, mentirosas,
- Louvar os vossos, como nas estranhas
- Musas, de engrandecer-se desejosas:
- As verdadeiras vossas são tamanhas,
- Que excedem as sonhadas, fabulosas;
- Que excedem Rodamonte, e o vão Rugeiro,
- E Orlando, inda que fora verdadeiro,
-
- 12
- Por estes vos darei um Nuno fero,
- Que fez ao Rei o ao Reino tal serviço,
- Um Egas, e um D. Fuas, que de Homero
- A cítara para eles só cobiço.
- Pois pelos doze Pares dar-vos quero
- Os doze de Inglaterra, e o seu Magriço;
- Dou-vos também aquele ilustre Gama,
- Que para si de Eneias toma a fama.
-
- 13
- Pois se a troco de Carlos, Rei de França,
- Ou de César, quereis igual memória,
- Vede o primeiro Afonso, cuja lança
- Escura faz qualquer estranha glória;
- E aquele que a seu Reino a segurança
- Deixou com a grande e próspera vitória;
- Outro Joane, invicto cavaleiro,
- O quarto e quinto Afonsos, e o terceiro.
-
- 14
- Nem deixarão meus versos esquecidos
- Aqueles que nos Reinos lá da Aurora
- Fizeram, só por armas tão subidos,
- Vossa bandeira sempre vencedora:
- Um Pacheco fortíssimo, e os temidos
- Almeidas, por quem sempre o Tejo chora;
- Albuquerque terríbil, Castro forte,
- E outros em quem poder não teve a morte.
-
- 15
- E enquanto eu estes canto, e a vós não posso,
- Sublime Rei, que não me atrevo a tanto,
- Tomai as rédeas vós do Reino vosso:
- Dareis matéria a nunca ouvido canto.
- Comecem a sentir o peso grosso
- (Que pelo mundo todo faça espanto)
- De exércitos e feitos singulares,
- De África as terras, e do Oriente os marços,
-
- 16
- Em vós os olhos tem o Mouro frio,
- Em quem vê seu exício afigurado;
- Só com vos ver o bárbaro Gentio
- Mostra o pescoço ao jugo já inclinado;
- Tethys todo o cerúleo senhorio
- Tem para vós por dote aparelhado;
- Que afeiçoada ao gesto belo e tenro,
- Deseja de comprar-vos para genro.
-
- 17
- Em vós se vêm da olímpica morada
- Dos dois avós as almas cá famosas,
- Uma na paz angélica dourada,
- Outra pelas batalhas sanguinosas;
- Em vós esperam ver-se renovada
- Sua memória e obras valerosas;
- E lá vos tem lugar, no fim da idade,
- No templo da suprema Eternidade.
-
- 18
- Mas enquanto este tempo passa lento
- De regerdes os povos, que o desejam,
- Dai vós favor ao novo atrevimento,
- Para que estes meus versos vossos sejam;
- E vereis ir cortando o salso argento
- Os vossos Argonautas, por que vejam
- Que são vistos de vós no mar irado,
- E costumai-vos já a ser invocado.
-
- 19
- Já no largo Oceano navegavam,
- As inquietas ondas apartando;
- Os ventos brandamente respiravam,
- Das naus as velas côncavas inchando;
- Da branca escuma os mares se mostravam
- Cobertos, onde as proas vão cortando
- As marítimas águas consagradas,
- Que do gado de Próteo são cortadas
-
- 20
- Quando os Deuses no Olimpo luminoso,
- Onde o governo está da humana gente,
- Se ajuntam em concílio glorioso
- Sobre as cousas futuras do Oriente.
- Pisando o cristalino Céu formoso,
- Vêm pela Via-Láctea juntamente,
- Convocados da parte do Tonante,
- Pelo neto gentil do velho Atlante.
-
- 21
- Deixam dos sete Céus o regimento,
- Que do poder mais alto lhe foi dado,
- Alto poder, que só co'o pensamento
- Governa o Céu, a Terra, e o Mar irado.
- Ali se acharam juntos num momento
- Os que habitam o Arcturo congelado,
- E os que o Austro tem, e as partes onde
- A Aurora nasce, e o claro Sol se esconde.
-
- 22
- Estava o Padre ali sublime e dino,
- Que vibra os feros raios de Vulcano,
- Num assento de estrelas cristalino,
- Com gesto alto, severo e soberano.
- Do rosto respirava um ar divino,
- Que divino tornara um corpo humano;
- Com uma coroa e ceptro rutilante,
-
- 23
- Em luzentes assentos, marchetados
- De ouro e de perlas, mais abaixo estavam
- Os outros Deuses todos assentados,
- Como a razão e a ordem concertavam:
- Precedem os antíguos mais honrados;
- Mais abaixo os menores se assentavam;
- Quando Júpiter alto, assim dizendo,
- C'um tom de voz começa, grave e horrendo:
-
- 24
- "Eternos moradores do luzente
- Estelífero pólo, e claro assento,
- Se do grande valor da forte gente
- De Luso não perdeis o pensamento,
- Deveis de ter sabido claramente,
- Como é dos fados grandes certo intento,
- Que por ela se esqueçam os humanos
- De Assírios, Persas, Gregos e Romanos.
-
- 25
- "Já lhe foi (bem o vistes) concedido
- C'um poder tão singelo e tão pequeno,
- Tomar ao Mouro forte e guarnecido
- Toda a terra, que rega o Tejo ameno:
- Pois contra o Castelhano tão temido,
- Sempre alcançou favor do Céu sereno.
- Assim que sempre, enfim, com fama e glória,
- Teve os troféus pendentes da vitória.
-
- 26
- "Deixo, Deuses, atrás a fama antiga,
- Que coa gente de Rómulo alcançaram,
- Quando com Viriato, na inimiga
- Guerra romana tanto se afamaram;
- Também deixo a memória, que os obriga
- A grande nome, quando alevantaram
- Um por seu capitão, que peregrino
- Fingiu na cerva espírito divino.
-
- 27
- "Agora vedes bem que, cometendo
- O duvidoso mar num lenho leve,
- Por vias nunca usadas, não temendo
- De Áf rico e Noto a força, a mais se atreve:
- Que havendo tanto já que as partes vendo
- Onde o dia é comprido e onde breve,
- Inclinam seu propósito e porfia
- A ver os berços onde nasce o dia.
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- 28
- "Prometido lhe está do Fado eterno,
- Cuja alta Lei não pode ser quebrada,
- Que tenham longos tempos o governo
- Do mar, que vê do Sol a roxa entrada.
- Nas águas têm passado o duro inverno;
- A gente vem perdida e trabalhada;
- Já parece bem feito que lhe seja
- Mostrada a nova terra, que deseja.
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- 29
- "E porque, como vistes, têm passados
- Na viagem tão ásperos perigos,
- Tantos climas e céus experimentados,
- Tanto furor de ventos inimigos,
- Que sejam, determino, agasalhados
- Nesta costa africana, como amigos.
- E tendo guarnecida a lassa frota,
- Tornarão a seguir sua longa rota."
-
- 30
- Estas palavras Júpiter dizia,
- Quando os Deuses por ordem respondendo,
- Na sentença um do outro diferia,
- Razões diversas dando e recebendo.
- O padre Baco ali não consentia
- No que Júpiter disse, conhecendo
- Que esquecerão seus feitos no Oriente,
- Se lá passar a Lusitana gente.
-
- 31
- Ouvido tinha aos Fados que viria
- Uma gente fortíssima de Espanha
- Pelo mar alto, a qual sujeitaria
- Da índia tudo quanto Dóris banha,
- E com novas vitórias venceria
- A fama antiga, ou sua, ou fosse estranha.
- Altamente lhe dói perder a glória,
- De que Nisa celebra inda a memória.
-
- 32
- Vê que já teve o Indo sojugado,
- E nunca lhe tirou Fortuna, ou caso,
- Por vencedor da Índia ser cantado
- De quantos bebem a água de Parnaso.
- Teme agora que seja sepultado
- Seu tão célebre nome em negro vaso
- D'água do esquecimento, se lá chegam
- Os fortes Portugueses, que navegam.
-
- 33
- Sustentava contra ele Vénus bela,
- Afeiçoada à gente Lusitana,
- Por quantas qualidades via nela
- Da antiga tão amada sua Romana;
- Nos fortes corações, na grande estrela,
- Que mostraram na terra Tingitana,
- E na língua, na qual quando imagina,
- Com pouca corrupção crê que é a Latina.
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- 34
- Estas causas moviam Citereia,
- E mais, porque das Parcas claro entende
- Que há de ser celebrada a clara Deia,
- Onde a gente belígera se estende.
- Assim que, um pela infâmia, que arreceia,
- E o outro pelas honras, que pretende,
- Debatem, e na porfia permanecem;
- A qualquer seus amigos favorecem.
-
- 35
- Qual Austro fero, ou Bóreas na espessura
- De silvestre arvoredo abastecida,
- Rompendo os ramos vão da mata escura,
- Com ímpeto e braveza desmedida;
- Brama toda a montanha, o som murmura,
- Rompem-se as folhas, ferve a serra erguida:
- Tal andava o tumulto levantado,
- Entre os Deuses, no Olimpo consagrado.
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- 36
- Mas Marte, que da Deusa sustentava
- Entre todos as partes em porfia,
- Ou porque o amor antigo o obrigava,
- Ou porque a gente forte o merecia,
- De entre os Deuses em pé se levantava:
- Merencório no gesto parecia;
- O forte escudo ao colo pendurado
- Deitando para trás, medonho e irado,
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- 37
- A viseira do elmo de diamante
- Alevantando um pouco, mui seguro,
- Por dar seu parecer, se pôs diante
- De Júpiter, armado, forte e duro:
- E dando uma pancada penetrante,
- Com o conto do bastão no sólio puro,
- O Céu tremeu, e Apolo, de torvado,
- Um pouco a luz perdeu, como enfiado.
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- 38
- E disse assim: "Ó Padre, a cujo império
- Tudo aquilo obedece, que criaste,
- Se esta gente, que busca outro hemisfério,
- Cuja valia, e obras tanto amaste,
- Não queres que padeçam vitupério,
- Como há já tanto tempo que ordenaste,
- Não onças mais, pois és juiz direito,
- Razões de quem parece que é suspeito.
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- 39
- "Que, se aqui a razão se não mostrasse
- Vencida do temor demasiado,
- Bem fora que aqui Baco os sustentasse,
- Pois que de Luso vem, seu tão privado;
- Mas esta tenção sua agora passe,
- Porque enfim vem de estâmago danado;
- Que nunca tirará alheia inveja
- O bem, que outrem merece, e o Céu deseja.
-
- 40
- "E tu, Padre de grande fortaleza,
- Da determinação, que tens tomada,
- Não tornes por detrás, pois é fraqueza
- Desistir-se da cousa começada.
- Mercúrio, pois excede em ligeireza
- Ao vento leve, e à seta bem talhada,
- Lhe vá mostrar a terra, onde se informe
- Da índia, e onde a gente se reforme."
-
- 41
- Como isto disse, o Padre poderoso,
- A cabeça inclinando, consentiu
- No que disse Mavorte valeroso,
- E néctar sobre todos esparziu.
- Pelo caminho Lácteo glorioso
- Logo cada um dos Deuses se partiu,
- Fazendo seus reais acatamentos,
- Para os determinados aposentos.
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- 42
- Enquanto isto se passa na formosa
- Casa etérea do Olimpo onipotente,
- Cortava o mar a gente belicosa,
- Já lá da banda do Austro e do Oriente,
- Entre a costa Etiópica e a famosa
- Ilha de São Lourenço; e o Sol ardente
- Queimava então os Deuses, que Tifeu
- Com o temor grande em peixes converteu.
-
- 43
- Tão brandamente os ventos os levavam,
- Como quem o céu tinha por amigo:
- Sereno o ar, e os tempos se mostravam
- Sem nuvens, sem receio de perigo.
- O promontório Prasso já passavam,
- Na costa de Etiópia, nome antigo,
- Quando o mar descobrindo lhe mostrava
- Novas ilhas, que em torno cerca e lava.
-
- 44
- Vasco da Gama, o forte capitão,
- Que a tamanhas empresas se oferece,
- De soberbo e de altivo coração,
- A quem Fortuna sempre favorece,
- Para se aqui deter não vê razão,
- Que inabitada a terra lhe parece:
- Por diante passar determinava;
- Mas não lhe sucedeu como cuidava.
-
- 45
- Eis aparecem logo em companhia
- Uns pequenos batéis, que vêm daquela
- Que mais chegada à terra parecia,
- Cortando o longo mar com larga vela.
- A gente se alvoroça, e de alegria
- Não sabe mais que olhar a causa dela.
- Que gente será esta, em si diziam,
- Que costumes, que Lei, que Rei teriam?
-
- 46
- As embarcações eram, na maneira,
- Mui veloces, estreitas e compridas:
- As velas, com que, vêm, eram de esteira
- Dumas folhas de palma, bem tecidas;
- A gente da cor era verdadeira,
- Que Faeton, nas terras acendidas,
- Ao mundo deu, de ousado, o não prudente:
- O Pado o sabe, o Lampetusa o sente.
-
- 47
- De panos de algodão vinham vestidos,
- De várias cores, brancos e listrados:
- Uns trazem derredor de si cingidos,
- Outros em modo airoso sobraçados:
- Da cinta para cima vêm despidos;
- Por armas têm adargas o terçados;
- Com toucas na cabeça; e navegando,
- Anafis sonoros vão tocando.
-
- 48
- Co'os panos e co'os braços acenavam
- As gentes Lusitanas, que esperassem;
- Mas já as proas ligeiras se inclinavam
- Para que junto às ilhas amainassem.
- A ,ente e marinheiros trabalhavam,
- Como se aqui os trabalhos se acabassem;
- Tomam velas; amaina-se a verga alta;
- Da âncora, o mar ferido, em cima salta.
-
- 49
- Não eram ancorados, quando a gente
- Estranha pelas cordas já subia.
- No gesto ledos vêm, e humanamente
- O Capitão sublime os recebia:
- As mesas manda pôr em continente;
- Do licor que Lieo prantado havia
- Enchem vasos de vidro, e do que deitam,
- Os de Faeton queimados nada enjeitam.
-
- 50
- Comendo alegremente perguntavam,
- Pela Arábica língua, donde vinham,
- Quem eram, de que terra, que buscavam,
- Ou que partes do mar corrido tinham?
- Os fortes Lusitanos lhe tornavam
- As discretas respostas, que convinham:
- "Os Portugueses somos do Ocidente,
- Imos buscando as terras do Oriente.
-
- 51
- "Do mar temos corrido e navegado
- Toda a parte do Antártico e Calisto,
- Toda a costa Africana rodeado,
- Diversos céus e terras temos visto;
- Dum Rei potente somos, tão amado,
- Tão querido de todos, e benquisto,
- Que não no largo mar, com leda fronte,
- Mas no lago entraremos de Aqueronte.
-
- 52
- "E por mandado seu, buscando andamos
- A terra Oriental que o Indo rega;
- Por ele, o mar remoto navegamos,
- Que só dos feios focas se navega.
- Mas já razão parece que saibamos,
- Se entre vós a verdade não se nega,
- Quem sois, que terra é esta que habitais,
- Ou se tendes da Índia alguns sinais?"
-
- 53
- "Somos, um dos das ilhas lhe tornou,
- Estrangeiros na terra, Lei e nação;
- Que os próprios são aqueles, que criou
- A natura sem Lei e sem razão.
- Nós temos a Lei certa, que ensinou
- O claro descendente de Abraão
- Que agora tem do mundo o senhorio,
- A mãe Hebréia teve, e o pai Gentio.
- Informações. A Ilha de Moçambique.
-
- 54
- "Esta ilha pequena, que habitamos,
- em toda esta terra certa escala
- De todos os que as ondas navegamos
- De Quíloa, de Mombaça e de Sofala;
- E, por ser necessária, procuramos,
- Como próprios da terra, de habitá-la;
- E por que tudo enfim vos notifique,
- Chama-se a pequena ilha Moçambique.
-
- 55
- "E já que de tão longe navegais,
- Buscando o Indo Idaspe e terra ardente,
- Piloto aqui tereis, por quem sejais
- Guiados pelas ondas sabiamente.
- Também será bem feito que tenhais
- Da terra algum refresco, e que o Regente
- Que esta terra governa, que vos veja,
- E do mais necessário vos proveja."
-
- 56
- Isto dizendo, o Mouro se tornou
- A seus batéis com toda a companhia;
- Do Capitão e gente se apartou
- Com mostras de devida cortesia.
- Nisto Febo nas águas encerrou,
- Co'o carro de cristal, o claro dia,
- Dando cargo à irmã, que alumiasse
- O largo mundo, enquanto repousasse.
-
- 57
- A noite se passou na lassa frota
- Com estranha alegria, e não cuidada,
- Por acharem da terra tão remota
- Nova de tanto tempo desejada.
- Qualquer então consigo cuida e nota
- Na gente e na maneira desusada,
- E como os que na errada Seita creram,
- Tanto por todo o mundo se estenderam,
-
- 58
- Da Lua os claros raios rutilavam
- Pelas argênteas ondas Neptuninas,
- As estrelas os Céus acompanhavam,
- Qual campo revestido de boninas;
- Os furiosos ventos repousavam
- Pelas covas escuras peregrinas;
- Porém da armada a gente vigiava,
- Como por longo tempo costumava.
-
- 59
- Mas assim como a Aurora marchetada
- Os formosos cabelos espalhou
- No Céu sereno, abrindo a roxa entrada
- Ao claro Hiperiónio, que acordou,
- Começa a embandeirar-se toda a armada,
- E de toldos alegres se adornou,
- Por receber com festas e alegria
- O Regedor das ilhas, que partia.
-
- 60
- Partia alegremente navegando,
- A ver as naus ligeiras Lusitanas,
- Com refresco da terra, em si cuidando
- Que são aquelas gentes inumanas,
- Que, os aposentos cáspios habitando,
- A conquistar as terras Asianas
- Vieram; e por ordem do Destino,
- O Império tomaram a Constantino.
-
- 61
- Recebe o Capitão alegremente
- O Mouro, e toda a sua companhia;
- Dá-lhe de ricas peças um presente,
- Que só para este efeito já trazia;
- Dá-lhe conserva doce, e dá-lhe o ardente
- Não usado licor, que dá alegria.
- Tudo o Mouro contente bem recebe;
- E muito mais contente come e bebe.
-
- 62
- Está a gente marítima de Luso
- Subida pela enxárcia, de admirada,
- Notando o estrangeiro modo e uso,
- E a linguagem tão bárbara e enleada.
- Também o Mouro astuto está confuso,
- Olhando a cor, o trajo, e a forte armada;
- E perguntando tudo, lhe dizia
- "Se por ventura vinham de Turquia?"
-
- 63
- E mais lhe diz também, que ver deseja
- Os livros de sua Lei, preceito eu fé,
- Para ver se conforme à sua seja,
- Ou se são dos de Cristo, como Crê.
- E porque tudo note e tudo veja,
- Ao Capitão pedia que lhe dê
- Mostra das fortes armas de que usavam,
- Quando co'os inimigos pelejavam.
-
- 64
- Responde o valeroso Capitão
- Por um, que a língua escura bem sabia:
- "Dar-te-ei, Senhor ilustre, relação
- De mim, da Lei, das armas que trazia.
- Nem sou da terra, nem da geração
- Das gentes enojosas de Turquia:
- Mas sou da forte Europa belicosa,
- Busco as terras da índia tão famosa.
-
- 65
- A lei tenho daquele, a cujo império
- Obedece o visíbil e ínvisíbil
- Aquele que criou todo o Hemisfério,
- Tudo o que sente, o todo o insensíbil;
- Que padeceu desonra e vitupério,
- Sofrendo morte injusta e insofríbil,
- E que do Céu à Terra, enfim desceu,
- Por subir os mortais da Terra ao Céu.
-
- 66
- Deste Deus-Homem, alto e infinito,
- Os livros, que tu pedes não trazia,
- Que bem posso escusar trazer escrito
- Em papel o que na alma andar devia.
- Se as armas queres ver, como tens dito,
- Cumprido esse desejo te seria;
- Como amigo as verás; porque eu me obrigo,
- Que nunca as queiras ver como inimigo."
-
- 67
- Isto dizendo, manda os diligentes
- Ministros amostrar as armaduras:
- Vêm arneses, e peitos reluzentes,
- Malhas finas, e lâminas seguras,
- Escudos de pinturas diferentes,
- Pelouros, espingardas de aço puras,
- Arcos, e sagitíferas aljavas,
- Partazanas agudas, chuças bravas:
-
- 68
- As bombas vêm de fogo, e juntamente
- As panelas sulfúreas, tão danosas;
- Porém aos de Vulcano não consente
- Que dêem fogo às bombardas temerosas;
- Porque o generoso ânimo e valente,
- Entre gentes tão poucas e medrosas,
- Não mostra quanto pode, e com razão,
- Que é fraqueza entre ovelhas ser leão.
-
- 69
- Porém disto, que o Mouro aqui notou,
- E de tudo o que viu com olho atento
- Um ódio certo na alma lhe ficou,
- Uma vontade má de pensamento.
- Nas mostras e no gesto o não mostrou;
- Mas com risonho e ledo fingimento
- Tratá-los brandamente determina,
- Até que mostrar possa o que imagina.
-
- 70
- Pilotos lhe pedia o Capitão,
- Por quem pudesse à Índia ser levado;
- Diz-lhe que o largo prémio levarão
- Do trabalho que nisso for tomado.
- Promete-lhos o Mouro, com tenção
- De peito venenoso, e tão danado,
- Que a morte, se pudesse, neste dia,
- Em lugar de pilotos lhe daria.
-
- 71
- Tamanho o ódio foi, e a má vontade,
- Que aos estrangeiros súbito tomou,
- Sabendo ser sequazes da verdade,
- Que o Filho de David nos ensinou.
- ó segredos daquela Eternidade,
- A quem juízo algum nunca alcançou!
- Que nunca falte um pérfido inimigo
- Aqueles de quem foste tanto amigo!
-
- 72
- Partiu-se Disto enfim coa companhia,
- Das naus o falso Mouro despedido,
- Com enganosa e grande cortesia,
- Com gesto ledo a todos, e fingido.
- Cortaram os batéis a curta via
- Das águas de Neptuno, e recebido
- Na terra do obsequente ajuntamento
- Se foi o Mouro ao cógnito aposento.
-
- 73
- Do claro assento etóreo o grão Tebano,
- Que da paternal coxa foi nascido,
- Olhando o ajuntamento Lusitano
- Ao Mouro ser molesto e avorrecido,
- No pensamento cuida um falso engano,
- Com que seja de todo destruído.
- E enquanto isto só na alma imaginava,
- Consigo estas palavras praticava:
-
- 74
- "Está do fado já determinado,
- Que tamanhas vitórias, tão famosas,
- Hajam os Portugueses alcançado
- Das Indianas gentes belicosas.
- E eu só, filho do Padre sublimado,
- Com tantas qualidades generosas,
- Hei de sofrer que o fado favoreça
- Outrem, por quem meu nome se escureça?
-
- 75
- "Já quiseram os Deuses que tivesse
- O filho de Filipo nesta parte
- Tanto poder, que tudo submetesse
- Debaixo de seu jugo o fero Marte.
- Mas há-se de sofrer que o fado desse
- A tão poucos tamanho esforço e arte,
- Que eu co'o grão Macedónio, e o Romano,
- Demos lugar ao nome Lusitano?
-
- 76
- "Não será assim, porque antes que chegado
- Seja este Capitão, astutamente
- Lhe será tanto engano fabricados
- Que nunca veja as partes do Oriente.
- Eu descerei à Terra, e o indignado
- Peito revolverei da Maura gente;
- Porque sempre por via irá direita
- Quem do oportuno tempo se aproveita."
-
- 77
- Isto dizendo, irado e quase insano,
- Sobre a terra africana descendeu,
- Onde vestindo a forma e gesto humano,
- Para o Prasso sabido se moveu.
- E por melhor tecer o astuto engano,
- No gesto natural se converteu
- Dum Mouro, em Moçambique conhecido
- Velho, sábio, e co'o Xeque mui valido.
-
- 78
- E entrando assim a falar-lhe a tempo e horas
- A sua falsidade acomodadas,
- Lhe diz como eram gentes roubadoras,
- Estas que ora de novo são chegadas;
- Que das nações na costa moradoras
- Correndo a fama veio que roubadas
- Foram por estes homens que passavam,
- Que com pactos de paz sempre ancoravam.
-
- 79
- E sabe mais, lhe diz, como entendido
- Tenho destes cristãos sanguinolentos,
- Que quase todo o mar têm destruído
- Com roubos, com incêndios violentos;
- E trazem já de longe engano urdido
- Contra nós; e que todos seus intentos
- São para nos matarem e roubarem,
- E mulheres e filhos cativarem.
-
- 80
- "E também sei que tem determinado
- De vir por água a terra muito cedo
- O Capitão dos seus acompanhado,
- Que da tensão danada nasce o medo.
- Tu deves de ir também co'os teus armado
- Esperá-lo em cilada, oculto e quedo;
- Porque, saindo a gente descuidada,
- Cairão facilmente na cilada.
-
- 81
- "E se inda não ficarem deste jeito
- Destruídos, ou mortos totalmente
- Eu tenho imaginado no conceito
- Outra manha e ardil, que te contente:
- Manda-lhe dar piloto, que de jeito
- Seja astuto no engano, e tão prudente,
- Que os leve aonde sejam destruídos,
- Desbaratados, mortos, ou perdidos."
-
- 82
- Tanto que estas palavras acabou,
- O Mouro, nos tais casos sábio e velho,
- Os braços pelo colo lhe lançou,
- Agradecendo muito o tal conselho;
- E logo nesse instante concertou
- Para a guerra o belígero aparelho,
- Para que ao Português se lhe tornasse
- Em roxo sangue a água, que buscasse.
-
- 83
- E busca mais, para o cuidado engano,
- Mouro, que por piloto à nau lhe mande,
- Sagaz, astuto, e sábio em todo o dano,
- De quem fiar-se possa um feito grande.
- Diz-lhe que acompanhando o Lusitano,
- Por tais costas e mares com ele ande,
- Que, se daqui escapar, que lá diante
- Vá cair onde nunca se alevante.
-
- 84
- Já o raio Apolíneo visitava
- Os montes Nabatêos acendido,
- Quando o Gama, colos seus determinava
- De vir por água a terra apercebido.
- A gente nos batéis se concertava,
- Como se fosse o engano já sabido:
- Mas pode suspeitar-se facilmente,
- Que o coração pressago nunca mente.
-
- 85
- E mais também mandado tinha a terra,
- De antes, pelo piloto necessário,
- E foi-lhe respondido em som de guerra,
- Caso do que cuidava mui contrário;
- Por isto, e porque sabe quanto erra
- Quem se crê de seu pérfido adversário,
- Apercebido vai como podia,
- Em três batéis somente que trazia.
-
- 86
- Mas os Mouros que andavam pela praia,
- Por lhe defender a água desejada,
- Um de escudo embraçado e de azagaia,
- Outro de arco encurvado e seta ervada,
- Esperam que a guerreira gente saia,
- Outros muitos já postos em cilada.
- E, porque o caso leve se lhe faça,
- Põem uns poucos diante por negaça,
-
- 87
- Andam pela ribeira alva, arenosa,
- Os belicosos Mouros acenando
- Com a adarga e co'a hástia perigosa,
- Os fortes Portugueses incitando.
- Não sofre muito a gente generosa
- Andar-lhe os cães os dentes amostrando.
- Qualquer em terra salta tão ligeiro,
- Que nenhum dizer pode que é primeiro.
-
- 88
- Qual no corro sanguino o ledo amante,
- Vendo a formosa dama desejada,
- O touro busca, e pondo-se diante,
- Salta, corre, sibila, acena, e brada,
- Mas o animal atroce, nesse instante,
- Com a fronte cornígera inclinada,
- Bramando duro corre, e os olhos cerra,
- Derriba, fere e mata, e põe por terra:
-
- 89
- Eis nos batéis o fogo se levanta
- Na furiosa e dura artilharia,
- A plúmbea péla mata, o brado espanta,
- Ferido o ar retumba e assovia:
- O coração dos Mouros se quebranta,
- O temor grande o sangue lhe resfria.
- Já foge o escondido de medroso,
- E morre o descoberto aventuroso.
-
- 90
- Não se contenta a gente Portuguesa,
- Mas seguindo a vitória estrui e mata;
- A povoação, sem muro e sem defesa,
- Esbombardeia, acende e desbarata.
- Da cavalgada ao Mouro já lhe pesa,
- Que bem cuidou comprá-la mais barata;
- Já blasfema da guerra, e maldizia,
- O velho inerte, e a mãe que o filho cria.
-
- 91
- Fugindo, a seta o Mouro vai tirando
- Sem força, de covarde e de apressado,
- A pedra, o pau, e o canto arremessando;
- Dá-lhe armas o furor desatinado.
- Já a ilha e todo o mais desemparando,
- A terra firme foge amedrontado;
- Passa e corta do mar o estreito braço,
- Que a ilha em torno cerca, em pouco espaço
-
- 92
- Uns vão nas almadias carregadas,
- Um corta o mar a nado diligente,
- Quem se afoga nas ondas encurvadas,
- Quem bebe o mar, e o deita juntamente.
- Arrombam as miúdas bombardadas
- Os pangaios subtis da bruta gente:
- Desta arte o Português enfim castiga
- A vil malícia, pérfida, inimiga.
-
- 93
- Tornam vitoriosos para a armada,
- Co'o despojo da guerra e rica presa,
- E vão a seu prazer fazer aguada,
- Sem achar resistência, nem defesa.
- Ficava a Maura gente magoada,
- No ódio antigo mais que nunca acesa;
- E vendo sem vingança tanto dano,
- Somente estriba no segundo engano.
-
- 94
- Pazes cometer manda arrependido
- O Regedor daquela iníqua terra,
- Sem ser dos Lusitanos entendido,
- Que em figura de paz lhe manda guerra;
- Porque o piloto falso prometido,
- Que toda a má tenção no peito encerra,
- Para os guiar à morte lhe mandava,
- Como em sinal das pazes que tratava.
-
- 95
- O Capitão, que já lhe então convinha
- Tornar a seu caminho acostumado,
- Que tempo concertado e ventos tinha
- Para ir buscar o Indo desejado,
- Recebendo o piloto, que lhe vinha,
- Foi dele alegremente agasalhado;
- E respondendo ao mensageiro a tento,
- As velas manda dar ao largo vento.
-
- 96
- Desta arte despedida a forte armada,
- As ondas de Anfitrite dividia,
- Das filhas de Nereu acompanhada,
- Fiel, alegre e doce companhia.
- O Capitão, que não caía em nada
- Do enganoso ardil, que o Mouro urdia,
- Dele mui largamente se informava
- Da Índia toda, e costas que passava.
-
- 97
- Mas o Mouro, instruído nos enganos
- Que o malévolo Baco lhe ensinara,
- De morte ou cativeiro novos danos,
- Antes que à Índia chegue, lhe prepara:
- Dando razões dos portos Indianos,
- Também tudo o que pede lhe declara,
- Que, havendo por verdade o que dizia,
- De nada a forte gente se temia.
-
- 98
- E diz-lhe mais, com o falso pensamento
- Com que Sinon os Frígios enganou:
- Que perto está uma ilha, cujo assento
- Povo antigo cristão sempre habitou.
- O Capitão, que a tudo estava a tento,
- Tanto com estas novas se alegrou,
- Que com dádivas grandes lhe rogava,
- Que o leve à terra onde esta gente estava.
-
- 99
- O mesmo o falso Mouro determina,
- Que o seguro Cristão lhe manda e pede;
- Que a ilha é possuída da malina
- Gente que segue o torpe Mahamede.
- Aqui o engano e morte lhe imagina,
- Porque em poder e forças muito excede
- A Moçambique esta ilha, que se chama
- Quíloa, mui conhecida pela fama.
-
- 100
- Para lá se inclinava a leda frota;
- Mas a Deusa em Citere celebrada,
- Vendo como deixava a certa rota
- Por ir buscar a morte não cuidada,
- Não consente que em terra tão remota
- Se perca a gente dela tanto amada.
- E com ventos contrários a desvia
- Donde o piloto falso a leva e guia.
-
- 101
- Mas o malvado Mouro, não podendo
- Tal determinação levar avante,
- Outra maldade iníqua cometendo,
- Ainda em seu propósito constante,
- Lhe diz que, pois as águas discorrendo
- Os levaram por força por diante,
- Que outra ilha tem perto, cuja gente
- Eram Cristãos com Mouros juntamente.
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- 102
- Também nestas palavras lhe mentia,
- Como por regimento enfim levava,
- Que aqui gente de Cristo não havia,
- Mas a que a Mahamede celebrava.
- O Capitão, que em tudo o Mouro cria,
- Virando as velas, a ilha demandava;
- Mas, não querendo a Deusa guardadora,
- Não entra pela barra, e surge fora.
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- 103
- Estava a ilha à terra tão chegada,
- Que um estreito pequeno a dividia;
- Uma cidade nela situada,
- Que na fronte do mar aparecia,
- De nobres edifícios fabricada,
- Como por fora ao longe descobria,
- Regida por um Rei de antiga idade:
- Mombaça é o nome da ilha e da cidade.
-
- 104
- E sendo a ela o Capitão chegado,
- Estranhamente ledo, porque espera
- De poder ver o povo batizado,
- Como o falso piloto lhe dissera,
- Eis vêm batéis da terra com recado
- Do Rei, que já sabia a gente que era:
- Que Baco muito de antes o avisara,
- Na forma doutro Mouro, que tomara.
-
- 105
- O recado que trazem é de amigos,
- Mas debaixo o veneno vem coberto;
- Que os pensamentos eram de inimigos,
- Segundo foi o engano descoberto.
- Ó grandes e gravíssimos perigos!
- Ó caminho de vida nunca certo:
- Que aonde a gente põe sua esperança,
- Tenha a vida tão pouca segurança!
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- 106
- No mar tanta tormenta, e tanto dano,
- Tantas vezes a morte apercebida!
- Na terra tanta guerra, tanto engano,
- Tanta necessidade avorrecida!
- Onde pode acolher-se um fraco humano,
- Onde terá segura a curta vida,
- Que não se arme, e se indigne o Céu sereno
- Contra um bicho da terra tão pequeno?