As Asas de um Anjo/Prólogo: diferenças entre revisões

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Revisão das 17h03min de 15 de janeiro de 2009

Em casa de ANTÔNIO. Sala pobre.

CENA PRIMEIRA

CAROLINA, MARGARIDA e ANTÔNIO

(CAROLINA defronte de um espelho, deitando nos cabelos dois grandes laços de fita azul. MARGARIDA cosendo junto à janela. ANTÔNIO sentado num mocho, pensativo.)

CAROLINA - É quase noite!...

MARGARIDA - Que fazes aí, Carolina? Já acabaste a tua obra?... Prometeste dá-la pronta hoje.

CAROLINA - Já vou, mãezinha; falta apenas tirar o alinhavo. Olhe! Não fico bonita com os meus laços de fita azul?

MARGARIDA - Tu és sempre bonita; mas realmente essas fitas nos cabelos dão-te uma graça!... Pareces um daqueles anjinhos de Nossa Senhora da Conceição.

CAROLINA - É o que disse LUÍS, quando as trouxe da loja. Tínhamos ido na véspera à missa e ele viu lá um anjinho que tinha as asas tão azuis, cor do céu! Então lembrou-se de dar-me estes laços... Assentam-me tão bem; não é verdade?

MARGARIDA - Sim; mas não sei para que te foste vestir e pentear a esta hora: já está escuro para chegares à janela.

CAROLINA - Foi para experimentar o meu vestido novo, mãezinha... Quis ver como hei de ficar quando formos domingo ao Passeio Público...

MARGARIDA - Ora, ainda hoje é terça-feira.

CAROLINA - Que mal faz!

MARGARIDA - Está bom, vai aprontar a obra; a moça não deve tardar.

CAROLINA - É verdade!

CENA II

MARGARIDA e ANTÔNIO

MARGARIDA - Não sei o que tem esta nossa filha! Às vezes anda tão distraída...

ANTÔNIO - Quantos são hoje do mês, Margarida? MARGARIDA - Pois não sabes? Vinte e seis.

ANTÔNIO (contando pelos dedos) - Diabo! Ainda faltam quatro dias para acabar! Precisava receber uns cobres que tenho na mão do mestre e só no fim da semana... Que maçada!

MARGARIDA - Não te agonies, homem! O dinheiro que deste ainda não se acabou; e hoje mesmo aquela moça deve vir buscar os vestidos que mandou fazer por Carolina.

ANTÔNIO - Quanto tem ela de dar?

MARGARIDA - Três vestidos a cinco mil-réis... Faz a conta.

ANTÔNIO - Quinze mil-réis, não é?

MARGARIDA - Quinze justos. Já vês que não nos faltará dinheiro; podes dormir descansado que amanhã terás o teu vinho ao almoço.

ANTÔNIO - Ora Deus! Quem te fala agora em vinho? Não é para ti, nem para mim, que preciso de dinheiro. (MARGARIDA acende a vela com fósforos.)

MARGARIDA - Para quem é então, homem?

ANTÔNIO - Para Carolina.

MARGARIDA - Ah! Queres fazer-lhe um presente?

ANTÔNIO - Tens idéias! Não!... Sim... (Rindo) É um presente que ela há de estimar.

MARGARIDA - Não; sim... Explica-te, se queres que te entenda.

ANTÔNIO - Lá vai. Há muitos dias que ando para te falar nisto; mas gosto de negócio dito e feito. Estive a esperar o fim do mês pela razão que sabes, do dinheiro; e o fim do mês sem chegar. Enfim hoje, já que tocamos no ponto, vou contar-te tudo. (Chega-se à porta da esquerda.)

MARGARIDA - Carolina está lá dentro; podes falar.

ANTÔNIO - Não reparaste ainda numa coisa?

MARGARIDA - Em quê?

ANTÔNIO - Nos modos de LUÍS para a pequena. Como ele a trata.

MARGARIDA - Quer dizer que LUÍS é um rapaz sisudo e trabalhador.

ANTÔNIO - Só?... Mais nada!

MARGARIDA - Não sei que mais se possa ver em uma coisa tão natural.

ANTÔNIO - Escuta, Margarida, tu te lembras quando eu era aprendiz de marceneiro, e que te via em casa de teu pai, que Deus tenha em sua glória. Tu te lembras?... Também te tratava sério.

MARGARIDA - Então pensas que LUÍS tem o mesmo motivo?...

ANTÔNIO - Penso; e eu cá sei por que penso.

MARGARIDA - Descobriste alguma coisa?

ANTÔNIO - Oh! se descobri! um companheiro lá da tipografia muito seu amigo me contou que ele tinha uma paixão forte por uma moça que se chama Carolina.

MARGARIDA - Ah! Anda espalhando!...

ANTÔNIO - Não estejas já a acusar o pobre rapaz; ele não disse a ninguém. Um dia no trabalho... Mas tu sabes como é o trabalho dele?

MARGARIDA - Não; nunca vi.

ANTÔNIO - Nem eu; porém disseram que é fazer com umas letras de chumbo o mesmo que escreve o homem do jornal. Pois nesse dia, LUÍS que estava com o juízo cá na pequena, que havia de fazer?...

MARGARIDA - O quê?

ANTÔNIO - Em vez do que estava escrito deitou Carolina, Carolina, Carolina... Uma folha cheia de Carolina, mulher! No dia seguinte a nossa filha andava com o jornal por essas ruas!

MARGARIDA - Santa Maria! Que desgraça, Antônio! ANTÔNIO - Espera, Margarida; ouve até o fim. Tem lá um homem, o contramestre da tipografia, que se chama revisor; assim que ele viu a nossa filha, quero dizer o nome, pôs as mãos na cabeça; houve grande barulho; mas como o rapaz é bom trabalhador acomodou-se tudo. É daí que o companheiro soube e me disse.

MARGARIDA - Psiu!... Ai vem ela.

ANTÔNIO - Melhor! Acaba-se com isto de uma vez.

MARGARIDA - Não lhe fales assim de repente.

ANTÔNIO - Por quê? Gosto de negócio dito e feito.

MARGARIDA - Mas Antônio...

ANTÔNIO - Não quero ouvir razões. (Entra CAROLINA com uma pequena bandeja cheia de vestidos.)

CENA III

Os mesmos e CAROLINA

CAROLINA - Ainda cose, mãezinha? Isto cansa-lhe a vista.

MARGARIDA - Estou acabando; pouco falta.

ANTÔNIO - Vem cá. Tenho que te dizer uma coisa.

CAROLINA - Ah! Quer ralhar comigo, não é?

ANTÔNIO - E muito, muito; porque ainda hoje não te vieste sentar perto de mim como é teu costume para me contares uma dessas histórias bonitas que lês no jornal de LUÍS.

CAROLINA - Estive trabalhando; mas agora... Aqui estou. Quer saber as novidades?

ANTÔNIO - Não; hoje sou eu que te vou contar uma novidade; mas uma novidade...

CAROLINA - Qual é? Quero saber.

ANTÔNIO - Já estás curiosa! Quanto mais se adivinhasses...

CAROLINA - Ora diga!

ANTÔNIO - Esta mãozinha pequenina que escreve e borda tão bem, precisa de outra mão forte que trabalhe e aperte ela assim.

CAROLINA - Que quer dizer, meu pai?

ANTÔNIO - Não te assustes. As moças hoje já não se assustam quando se lhes fala em casamento.

CAROLINA - Casamento!... Eu, meu pai?... Nunca!...

ANTÔNIO - Então hás de ficar sempre solteira?

CAROLINA - Mas eu não desejo casar-me agora. Mãezinha, eu lhe peço!...

MARGARIDA - Ninguém te obriga; ouve o que diz teu pai; se não quiseres, está acabado. Não é assim, Antônio?

ANTÔNIO - Decerto. (À CAROLINA) Tu bem sabes que eu não faço nada que não seja do teu gosto.

CAROLINA - Pois não me fale mais de casamento: fico logo triste.

MARGARIDA - Por que, Carolina? É com a idéia de nos deixares?

CAROLINA - Sim, mãezinha: vivo tão bem aqui.

ANTÔNIO - Pois continuarás a viver: Luís mora conosco.

CAROLINA - Como, meu pai!... É ele... É Luís que...

ANTÔNIO - É ele que eu quero dar-te por marido. Gosta muito de ti e além disto é teu parente.

CAROLINA - Meu Deus!

MARGARIDA - Tu não podes achar um moço mais bem comportado e trabalhador.

ANTÔNIO - E que há de ser alguma coisa, porque tem vontade, e quando se mete em qualquer negócio vai adiante. Pobre como é, estuda mais do que muito doutor.

CAROLINA - Eu sei, meu pai. Tenho-lhe amizade, mas amor... não!

ANTÔNIO - Pois é o que basta. Quando me casei com tua mãe ela não sabia que história era essa de amor; e nem por isso deixou de gostar de mim, e ser uma boa mulher.

MARGARIDA - Entretanto, Antônio, não há pressa; Carolina há de fazer dezoito anos pela Páscoa.

CAROLINA - É verdade, mãezinha; sou muito moça; posso esperar...

ANTÔNIO - Esperar!... Não entendo disto; quero as coisas ditas e feitas. Tu tens amizade a teu primo; ele te paga na mesma moeda; portanto só falta ir à igreja. Domingo...

CAROLINA - Meu pai!... Por quem é!...

MARGARIDA - Ouve, Antônio; é preciso também não fazer as coisas com precipitação. (LUÍS aparece.)

ANTÔNIO - Não quero ouvir nada. Domingo... está decidido.

CAROLINA - Ah! mãezinha, defenda sua filha!

MARGARIDA - Que posso eu fazer, Carolina? Tu não conheces o gênio de teu pai! Quando teima...

ANTÔNIO - Não é teima, mulher. Luís há de ser um bom marido para ela. Se não fosse isto não me importava. Quero-lhe tanto bem como tu!

CAROLINA (chorando) - Se me quisesse bem não me obrigava...

ANTÔNIO - É escusado começares com choradeiras; não adiantam; o casamento sempre se há de fazer.

CENA IV

Os mesmos e LUÍS

LUÍS - Não, Antônio.

CAROLINA - Meu primo!

ANTÔNIO - Oh! estavas ai, rapaz? Chegaste a propósito, mas que queres tu dizer?

MARGARIDA - Ele não aceita.

ANTÔNIO - Espera, Margarida! Fala, Luís.

LUÍS - Tratava-se aqui de fazer Carolina minha mulher; mas faltava para isso uma condição indispensável.

ANTÔNIO - Qual?

LUÍS - O meu consentimento. Não pedi a mão de minha prima, nem dei a entender que a desejava.

MARGARIDA - Mas tu lhe queres bem, Luís?

LUÍS - Eu, Margarida?

ANTÔNIO - Sim; tens uma paixão forte por ela; eu sei.

CAROLINA - É verdade?

LUÍS - Parece-me que desde que moro nesta casa não dei motivos para me fazerem esta exprobração. Trato Carolina como uma irmã, ela pode dizer se nunca uma palavra minha a fez corar.

CAROLINA - Não me queixo, Luís.

LUÍS - Creio, minha prima; e se falo nisto é para mostrar que seu pai se ilude: nunca tive a idéia de que um dia viesse a ser seu marido.

ANTÔNIO - Mas então explica-me essa história dos tipos.

LUÍS - Dos tipos?... Não sei que quer dizer.

MARGARIDA - Uma noite na tipografia estavas distraído e em lugar de copiar o papel, escreveste não sei quantas vezes o nome de Carolina.

CAROLINA - O meu nome?... Como, mãezinha!

ANTÔNIO (a LUÍS) - Ainda pretendes negar?

LUÍS - Mas era o nome de outra moça...

CAROLINA - Chama-se Carolina, como eu?

LUÍS - Sim, minha prima.

ANTÔNIO - Pensas muito nessa moça, para distraíres por ela a esse ponto.

MARGARIDA - Com efeito quem traz assim a lembrança de um nome sempre na idéia...

LUÍS - Que fazer, Margarida? Por mais vontade e prudência que se tenha, ninguém pode arrancar o coração; e nos dias em que a dor o comprime, o nome que dorme dentro dele vem aos lábios e nos trai. Tive naquele dia esse momento de fraqueza; felizmente não perturbou o sossego daquela que podia acusar-me. Agora mesmo ela ignora que era o seu nome.

ANTÔNIO - À vista disso decididamente não queres casar com tua prima?

LUÍS - Não, Antônio; agradeço mas recuso.

ANTÔNIO - Por que razão?

LUÍS - Porque ela... Porque...

MARGARIDA - Já não disse! Não lhe tem amor; gosta de outra.

CAROLINA - E vai casar-se com ela!

ANTÔNIO - Olha lá; se é este o motivo, está direito; mas se não tens outra em vista, diz uma palavra, e o negócio fica decidido.

CAROLINA - Meu pai!...

ANTÔNIO - Vamos. Sim, ou não?

LUÍS - Não, amo a outra...

CAROLINA - Ah!...

ANTÔNIO - Está acabado! Não falemos mais nisto.

CAROLINA - Obrigada; Luís, sei que não mereço o seu amor.

LUÍS - Tem razão, Carolina: deve agradecer-me.

CENA V

ANTÔNIO, MARGARIDA e CAROLINA


ANTÔNIO - Margarida, tu conheces alguma outra moça na vizinhança que se chame Carolina?

MARGARIDA - Não: mas isto não quer dizer nada: pode ser que aquela de quem Luís falou more em outra rua.

ANTÔNIO - Não acredito.

CAROLINA - Meu pai deseja por força que Luís seja meu marido. Ainda cuida que ele gosta de mim.

ANTÔNIO - Disto ninguém me tira.

MARGARIDA - Mas, homem, não o ouviste afirmar o contrário?

ANTÔNIO - Muitas vezes a boca diz o que o coração não sente.

CAROLINA - Ora, meu pai, por que motivo ele encobriria?

ANTÔNIO - O motivo? Tu és quem pode dizer. (Vai a sair.)

CAROLINA - Eu?...

MARGARIDA - Sabes que mais? Antônio, vieste hoje da loja todo cheio de visões. Que te aconteceu por lá?

ANTÔNIO - Eu te digo, mulher. Contaram-me há dias, e hoje tornaram a repetir-me, que um desses bonequinhos da moda anda rondando a nossa rua por causa de alguma menina da vizinhança.

CAROLINA - Ah!

MARGARIDA - Então foi por isso que assentaste de casar Carolina?

ANTÔNIO - Uma menina solteira é um perigo neste tempo. (Saindo) Esses sujeitinhos têm umas lábias!

MARGARIDA - Para aquelas que querem acreditar neles. (Pausa; batem na porta.)

CAROLINA - Estão batendo.

MARGARIDA - Há de ser a moça dos vestidos.

CENA VI

HELENA, MARGARIDA e CAROLINA

HELENA - Adeus, menina. Boa noite, Sra. Margarida.

MARGARIDA - Boa noite.

CAROLINA - Venha sentar-se.

MARGARIDA - Aqui está uma cadeira.

CAROLINA (baixo, a HELENA) - E ele?...

HELENA - Espere! (Alto) Então aprontou?

CAROLINA - Sim, senhora; todos.

HELENA - E estão bem cosidos, já se sabe! Feitos por estas mãozinhas mimosas que não nasceram para a agulha, e sim para andarem dentro de luvas perfumadas.

CAROLINA - Luvas?... Nunca tive senão um par, e de retrós.

MARGARIDA - Quem te perguntou por isto agora?

HELENA - Não faz mal; porém deixe ver os vestidos.

CAROLINA - Vou mostrar-lhe.

MARGARIDA - É obra acabada às pressas; não pode estar como ela desejava.

HELENA - Bem cosidos estão eles; assim me assentem.

MARGARIDA - Hão de assentar. Carolina cortou-os pelo molde da Francesa.

CAROLINA - Apenas fiz um pouco mais decotados como a senhora gosta.

HELENA - É a moda.

MARGARIDA - Mas descobrem tanto!

HELENA - E por que razão as mulheres hão de esconder o que têm de mais bonito?

CAROLINA - É verdade!...

HELENA (a MARGARIDA) - Me dê uma cadeira. (MARGARIDA vai buscar uma cadeira; ela diz baixo à CAROLINA) Preciso falar-lhe.

CAROLINA - Sim!

MARGARIDA (dando a cadeira) - Aqui está.

HELENA - Obrigada. (Senta-se) Realmente esta menina tem muita habilidade.

CAROLINA - Mãezinha, Vm. vai lá dentro buscar a minha tesoura? Esqueceu-me abrir uma casa.

MARGARIDA - Não queres a minha?

CAROLINA - Não; está muito cega.

MARGARIDA - Onde guardaste a tua?

CAROLINA - No cestinho da costura.

(MARGARIDA sai à esquerda. CAROLINA tira do bolso a tesoura e mostra sorrindo a HELENA.)

CENA VII

HELENA e CAROLINA

HELENA - Eu percebi!

CAROLINA - Mas... Por que ele não veio?

HELENA - É sobre isto mesmo que lhe quero falar. O Ribeiro mandou dizer-lhe...

CAROLINA - O quê?...

HELENA - Que deseja vê-la a sós.

CAROLINA - Como?

HELENA - Escute. Às nove horas ela passará por aqui e lhe falará por entre a rótula.

CAROLINA - Para quê?

HELENA Está apaixonado loucamente por você; quer falar-lhe; e não há senão este meio.

CAROLINA - Podia ter vindo hoje com a senhora, como costuma. Era melhor.

HELENA - O amor não se contenta com estes olhares a furto, e esses apertos de mão às escondidas.

CAROLINA - Mas eu tenho medo. Meu pai pode descobrir; se ele soubesse!...

HELENA - Qual! É um instante! O Ribeiro bate três bancadas na rótula; é o sinal.

CAROLINA - Não! não! Diga a ele...

HELENA - Não digo nada; não me acredita, e vem. Se não falar-lhe, nunca mais voltará.

CAROLINA - Então deixará de amar-me!...

HELENA - E de quem será a culpa?

CAROLINA - Mas exige uma coisa impossível.

HELENA - Não há impossíveis para o amor. Pense bem; lembre-se que ele tem uma paixão...

CAROLINA - Aí vem mãezinha!

CENA VIII

As mesmas, MARGARIDA e ARAÚJO

MARGARIDA - Não achei, Carolina; procurei tudo.

HELENA - Está bom; já não é preciso. Mando fazer isto em casa pela minha preta.

ARAÚJO - (entrando pelo fundo com um colarinho postiço na mão) - A senhora me apronta este colarinho?

MARGARIDA - A esta hora, Sr. ARAÚJO?

ARAÚJO - Que quer que lhe faça? Um caixeiro só tem de seu as noites. Agora mesmo chego do armarinho, e ainda foi preciso que o amo desse licença.

MARGARIDA - Pois deixe ficar, que amanhã cedo está pronto.

ARAÚJO - Amanhã?... E com que hei de ir hoje ao baile da Vestal?

CAROLINA - Ah!... o senhor vai ao baile?

ARAÚJO - Então pensa que por ser caixeiro não freqüento a alta sociedade? Cá está o convite... Mas o colarinho? Ande, Sra. Margarida.

MARGARIDA - Lavar e engomar hoje mesmo!

ARAÚJO - Para as oito horas. Não quero perder nem uma quadrilha. As valsas pouco me importam...

MARGARIDA - O senhor dá-me sempre cada maçada!... ARAÚJO - Deixe estar que um dia destes trago-lhe uma caixinha de agulhas.

MARGARIDA - Veremos.

CENA IX

ARAÚJO, HELENA e CAROLINA

(CARLINA na janela.)

HELENA - Como está Sr. ARAÚJO?

ARAÚJO - A senhora por aqui!... É novidade.

HELENA - Também o senhor.

ARAÚJO - Eu sou vizinho; e a Sra. Margarida é minha engomadeira.

HELENA - Pois eu moro muito longe; porém mandei fazer uns vestidos por esta menina.

ARAÚJO - Então já não gosta das modistas francesas?

HELENA - Cosem muito mal.

ARAÚJO - E dão cada tesourada! Como os alfaiates da Rua do Ouvidor... Mas assim mesmo, a senhora largar-se do Catete à Rua Formosa, em busca de uma costureira!

HELENA - Que tem isso?

ARAÚJO - Veio de carro? Está um na porta.

HELENA - É o meu.

ARAÚJO - Ahnn... Trata-se agora.

HELENA - Sempre fui assim.

ARAÚJO - E quando o amo lhe penhorou os trastes por causa daquela continha?

HELENA - Não me lembro.

ARAÚJO - Ah!... Não se lembra!... Pois olhe! Estou agora me lembrando de uma coisa.

HELENA - De quê?

ARAÚJO - Lá no armarinho quando as fazendas ficam mofadas, sabe o que se faz?

HELENA - Ora, que me importa isto?

ARAÚJO - Separam-se das outras, para que não passe o mofo.

HELENA - Que quer o senhor dizer?

ARAÚJO - Quero dizer que as mulheres às vezes são como as fazendas; e que tudo neste mundo é negócio, como diz o amo.

HELENA - Está engraçado!

CENA X

Os mesmos e MARGARIDA

ARAÚJO - Acha isso?

HELENA - Deixe-me! Adeus, menina!

CAROLINA - Já vai?

ARAÚJO - O maldito colarinho está pronto?

MARGARIDA - Está quase.

HELENA - Mande deitar estes vestidos no carro.

MARGARIDA - Sim, senhora.

HELENA (a CAROLINA) - Adeus. (Baixo.) Veja lá! Oito horas já deram.

CAROLINA - Sim!

HELENA - Adeus!... (A ARAÚJO) Boa noite!

ARAÚJO - Viva!

HELENA - Não fique mal comigo.

ARAÚJO - Há muito tempo que conhece esta mulher, D. Carolina?

CAROLINA - Há um mês.

ARAÚJO - Quem a trouxe cá?...

CAROLINA - Ninguém; ela precisa de uma costureira.

ARAÚJO (a MARGARIDA) - Olhe que são mais de oito horas.

MARGARIDA - Arre!... Que pressa!...

ARAÚJO - Não se demore! Eu volto já: vou fazer a barba.

CENA XI

LUÍS, ARAÚJO e CAROLINA

LUÍS - Não saias; quero te dar uma palavra.

ARAÚJO - Depressa, que tenho hoje um baile.

LUÍS - Espera um momento. (Olhando para CAROLINA) Sempre na janela.

ARAÚJO - Desconfias de alguma coisa?

LUÍS - Carolina!

CAROLINA - Ah!... Luís.

LUÍS - Assustei-a, minha prima?

CAROLINA - Não! Estava distraída.

LUÍS - Desculpe, procurei este momento para falar-lhe porque desejava pedir-lhe perdão.

CAROLINA - Perdão? De quê?

LUÍS - Não recusei a sua mão que seu pai me queria dar? Não a ofendi com essa recusa? Uma mulher deve ter sempre o direito de desprezar; o seu orgulho não admite que ninguém a prive desse direito.

CAROLINA - Não me ofendi com a sua franqueza, Luís. (Com ironia) Reconheci apenas que não era digna de pertencer-lhe; outra merece o seu amor!

LUÍS - Esse amor que eu confessei era uma mentira.

CAROLINA - Por que confessou então? Quem o obrigou?

LUÍS - Ninguém. Menti por sua causa; para poupar-lhe um desgosto.

CAROLINA - Não o entendo.

LUÍS - Conhece o caráter de seu pai e sabe que quando ele quer as coisas não há vontade que lhe resista. Para tornar de uma vez impossível esse casamento, para que o meu nome não lhe causasse mais tristeza, ouvindo-o associado ao título de seu marido, declarei que amava outra mulher; menti.

CAROLINA - E que mal havia nisso? Todos não temos um coração?

LUÍS - É verdade: porém o meu creio que não foi feito para o amor, e sim para a amizade. As minhas únicas afeições estão concentradas nesta casa; fora dela trabalho; aqui sinto-me viver. Um amor estranho seria como a usurpação dos sentimentos que pertencem aos meus parentes. É por isso que só a sua felicidade me obrigaria a confessar-me ingrato.

CAROLINA - Não sei em que isso podia influir sobre a minha felicidade.

LUÍS - Quando se ama...

CAROLINA - Mas eu não amo.

LUÍS - Seja franca!

CAROLINA - Juro...

LUÍS - Não jure!

CAROLINA - Onde vai?

LUÍS - Ouvi bater na janela.

CAROLINA - Não!... Foi engano.

LUÍS - Vou ver.

CAROLINA - Meu primo!...

ARAÚJO (baixo a LUÍS) - Um sujeito está espiando pela rótula.

CAROLINA (na rótula, baixo e para fora) - Espere!

ARAÚJO (a LUÍS) - Sabes quem é?

CENA XII

Os mesmos e MARGARIDA

LUÍS - Sei, ela o ama.

ARAÚJO - E tu consentes?

LUÍS - Que posso fazer? Se o ofendesse ela me odiaria. Antes indiferença.

CAROLINA - Não era ninguém... O vento.

LUÍS (a ARAÚJO) - Mente!

MARGARIDA - Aqui tem; foi enxuto a ferro.

ARAÚJO - A senhora é a pérola das engomadeiras. Vou-me vestir; anda, Luís.

MARGARIDA (a LUÍS) - Estás hoje de folga?

LUÍS - Não; volto à tipografia.

MARGARIDA - Então quando saíres cerra a porta.

LUÍS - Sim. Até amanhã minha prima.

CAROLINA - Adeus.

MARGARIDA - Tu não vens, Carolina?

CAROLINA - Já vou, mãezinha; deixe-me tirar meus grampos.

CENA XIII

CAROLINA e RIBEIRO

(LUÍS saindo, fecha a porta do fundo. CAROLINA, ficando só, apaga a vela. RIBEIRO salta na sala.)

CAROLINA - Meu Deus!...

RIBEIRO - Carolina... Onde estás?... Não me queres falar? CAROLINA - Cale-se; podem ouvir.

RIBEIRO - Por isso mesmo; não esperdicemos estes curtos momentos que estamos sós.

CAROLINA - Tenho medo.

RIBEIRO - De quê? De mim? CAROLINA - Não sei!

RIBEIRO - Tu não me amas, Carolina! Senão havias de ter confiança em mim; havias de sentir-te feliz como eu.

CAROLINA - E o meu silêncio aqui não diz tudo? Não engano meu pai para falar-lhe?

RIBEIRO - Tu não sabes! O coração duvida sempre da ventura. Dize que me amas. Dize, sim?

CAROLINA - Para quê?

RIBEIRO - Eu te suplico!

CAROLINA - Já não lhe confessei tantas vezes que lhe...

RIBEIRO -- Assim não quero. Há de ser: eu te...

CAROLINA - Eu te amo. Está contente?

RIBEIRO - Obrigado.

CAROLINA - Agora adeus. Até amanhã.

RIBEIRO - Separarmo-nos! Depois de estar uma vez perto de ti, de saber que tu me amas? Não, Carolina.

CAROLINA - Mas é preciso.

RIBEIRO - Tu és minha. Vamos viver juntos.

CAROLINA - Sempre?

RIBEIRO - Sempre! sempre juntos!

CAROLINA - Como?

RIBEIRO - Vem comigo; o meu carro nos espera.

CAROLINA - Fugir!

RIBEIRO - Fugir? não; acompanhar aquele que te adora.

CAROLINA - É impossível!

RIBEIRO - Vem, Carolina.

CAROLINA - Não! Não! Deixe-me!

RIBEIRO - Ah! É esta a prova do amor que me tem! Adeus! Esqueça-se de mim. Nunca mais nos tornaremos a ver.

CAROLINA - Mas abandonar minha mãe! Não posso!

RIBEIRO - Eu acharei outras que me amem bastante para me fazerem esse pequeno sacrifício.

CAROLINA - Outras que não terão sua família.

RIBEIRO - Mas que terão um coração.

CAROLINA - E eu não tenho?

RIBEIRO - Não parece.

CAROLINA - Antes não o tivesse.

RIBEIRO - Adeus.

CAROLINA - Até amanhã. Sim?

RIBEIRO - Para sempre.

CAROLINA - Amanhã... Talvez.

RIBEIRO - Deve ser hoje ou nunca.

CAROLINA - E minha mãe?

RIBEIRO - É uma separação de alguns dias.

CAROLINA - Mas ela me perdoará?

RIBEIRO - Vendo sua filha feliz...

CAROLINA - Que dirão minhas amigas?

RIBEIRO - Terão inveja de ti.

CAROLINA - Por quê?

RIBEIRO - Porque serás a mais bela moça do Rio de Janeiro.

CAROLINA - Eu?

RIBEIRO - Sim! Tu não nasceste para viver escondida nesta casa, espiando pelas frestas da rótula, e cosendo para a Cruz. Estas mãos não foram feitas para o trabalho, mas para serem beijadas como as mãos de uma rainha. (Beija-lhe as mãos.) Estes cabelos não devem ser presos por laços de fitas, mas por flores de diamantes. (Tira os laços de fita e joga-os fora.) Só a cambraia e a seda podem roçar sem ofender-te essa pele acetinada.

CAROLINA - Mas eu sou pobre!

RIBEIRO - Tu és bonita, e Deus criou as mulheres belas para brilharem como as estrelas. Terás tudo isso, diamantes, jóias, sedas, rendas, luxo e riqueza. Eu te prometo! Quando apareceres no teatro, deslumbrante e fascinadora, verás todos os homens se curvarem a teus pés; um murmúrio de admiração te acompanhará; e tu, altiva e orgulhosa, me dirás em um olhar: Sou tua.

CAROLINA - Tua noiva?

RIBEIRO - Tudo, minha noiva, minha amante. Depois iremos esconder a nossa felicidade e o nosso amor num retiro delicioso. Oh! se soubesses como a vida é doce no meio do luxo, em companhia de alguns amigos, junto daqueles que se ama, e à roda de uma mesa carregada de luzes e de flores!... O vinho espuma nos copos e o sangue ferve nas veias; e os olhares queimam como fogo; os lábios que se tocam, esgotam ávidos o cálice de champagne como se fossem beijos em gotas que caíssem de outros lábios... Tudo fascina; tudo embriaga; esquece-se o mundo e suas misérias. Por fim as luzes empalidecem, as cabeças se reclinam; e a alma, a vida, tudo se resume em um sonho.

CAROLINA - Mas o sonho passa...

RIBEIRO - Para voltar no dia seguinte, no outro e sempre.

CAROLINA - Eu também tenho meus sonhos; mas não acredito neles.

RIBEIRO - E que sonhas tu, minha Carolina?

CAROLINA - Vais zombar de mim!

RIBEIRO - Não; conta-me.

CAROLINA - Sonho com o mundo que não conheço! Com esses prazeres que nunca senti. Como deve ser bonito um baile! Como há de ser feliz a mulher que todos olham, que todos admiram! Mas isto não é para mim.

RIBEIRO - Tu verás!... Vem! A felicidade nos chama.

CAROLINA - Espera.

RIBEIRO - Que queres fazer?

CAROLINA - Rezar! Pedir perdão a Deus.

RIBEIRO - Pedir perdão de quê? O amor não é um crime.

CAROLINA Meu Deus!... E minha mãe?

RIBEIRO - Vem, Carolina.

CENA XIV

Os mesmos e LUÍS

CAROLINA - Ah!

RIBEIRO - Quem é este homem?

CAROLINA - Meu primo.

LUÍS - Não pense que é um rival que vem disputar-lhe sua amante. Não, senhor! Há pouco recusei a mão de minha prima que seu pai me oferecia; não a amo. Mas sou parente e devo ampará-la no momento em que vai perder-se para sempre.

RIBEIRO - Não tenho medo de palavras; se quer um escândalo...

LUÍS - Está enganado! Se quisesse um escândalo e também uma vingança bastava-me uma palavra; bastava chamar seu pai. Mas eu sei que não é a força que dobra o coração; eu temo que minha prima odeie algum dia em mim o homem que ela julgará autor de sua desgraça.

RIBEIRO - O que deseja então?

LUÍS - Desejo tentar uma última prova. O senhor acaba de falar a esta menina a linguagem do amor e da sedução; eu vou falar-lhe a linguagem da amizade e da razão. Depois de ouvir-me, ela é livre; e eu juro que não me oporei à sua vontade.

RIBEIRO - Ela ama-me! Era por sua vontade que me seguia.

LUÍS - Ela ama-o, sim; mas ignora que este amor é a perdição; que ela vai sacrificar a um prazer efêmero a inocência e a felicidade. Não sabe que um dia a sua própria consciência será a primeira a desprezá-la, e a envergonhar-se dela.

CAROLINA - Luís!

RIBEIRO - Não acredites.

LUÍS - Acredite-me, Carolina. Falo-lhe como um irmão. Esses brilhantes, esse luxo, que há pouco o senhor lhe prometia, se agora brilham a seus olhos, mais tarde lhe queimarão o seio, quando conhecer que são o preço dá honra vendida!

CAROLINA - Por piedade! Cale-se, meu primo!

LUÍS - Depois a beleza passará, porque a beleza passa depressa no meio das vigílias; então ficará só, sem amigos, sem amor, sem ilusões, sem esperanças: não terá para acompanhá-la senão o remorso do passado.

RIBEIRO - Tu sabes que eu te amo, Carolina.

LUÍS - Eu também... a estimo, minha prima.

RIBEIRO - Vem! Seremos felizes!

CAROLINA - Não!... Não posso!

RIBEIRO - Por quê?... Há pouco não dizias que eras minha?

CAROLINA - Sim...

RIBEIRO - A uma palavra deste homem, esqueces tudo?

CAROLINA - Não esqueço, mas...

RIBEIRO - Sei a causa. Se ele não chegasse, eu era o preferido; mas entre os dois, escolhe aquele que talvez já tem direito sobre sua pessoa.

CAROLINA - Direito sobre mim?

LUÍS - Já lhe disse que não amava esta moça.

RIBEIRO - Negar em tais casos é um dever. Adeus, seja feliz com ele.

CAROLINA - Com ele!... Mas eu não o amo!

RIBEIRO - Já lhe pertence.

CAROLINA - Luís? Eu lhe suplico! Diga que é uma falsidade!

LUÍS - Eu juro!

RIBEIRO - Não creio em juramentos!

CAROLINA - Oh! não!

MARGARIDA (de dentro) - Carolina!

CAROLINA - Minha mãe!

LUÍS - Margarida!

CAROLINA - Ah! Estou perdida! (Desfalece nos braços de RIBEIRO.)

LUÍS - Silêncio! (Vai fechar a porta. RIBEIRO aproveita-se deste momento e sai, levando CAROLINA nos braços.)

CENA XV

LUÍS e MARGARIDA

LUÍS - Ah!. . . (Corre ã janela; ouve-se partir um carro; volta com desespero; vê os laços de fita, apanha-os e beija.)

MARGARIDA - Carolina!... Que é isto, Luís?

LUÍS (mostrando as fitas) - São as asas de um anjo, Margarida; ele perdeu-as, perdendo a inocência.

MARGARIDA - Minha filha!