A Divina Comédia (Xavier Pinheiro)/grafia atualizada/Inferno/I: diferenças entre revisões

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<[[A Divina Comédia]]
|obra=[[A Divina Comédia]]

|autor=Dante Alighieri
|seção=[[A Divina Comédia/Inferno|Inferno]] &mdash; Canto I
|posterior=[[A Divina Comédia/Inferno/II|Canto II]]
|notas=Tradução de [[Autor:José Pedro Xavier Pinheiro|José Pedro Xavier Pinheiro]]
}}
''Dante, perdido numa selva escura, erra nela toda a noite. Saindo ao amanhecer, começa a subir por uma colina, quando lhe atravessam a passagem uma pantera, um leão e uma loba, que o repelem para a selva. Aparece-lhe então a imagem de Virgílio, que o reanima e se oferece a tirá-lo de lá, fazendo-o passar pelo Inferno e pelo Purgatório. Beatriz, depois, o guiará ao Paraíso. Dante o segue.''
''Dante, perdido numa selva escura, erra nela toda a noite. Saindo ao amanhecer, começa a subir por uma colina, quando lhe atravessam a passagem uma pantera, um leão e uma loba, que o repelem para a selva. Aparece-lhe então a imagem de Virgílio, que o reanima e se oferece a tirá-lo de lá, fazendo-o passar pelo Inferno e pelo Purgatório. Beatriz, depois, o guiará ao Paraíso. Dante o segue.''


<poem>
Da nossa vida, em meio da jornada,<ref>''Em meio'' etc. Aos 35 anos. Dante tinha 35 anos no dia 25 de março de 1300, ano no qual o papa Bonifácio VIII proclamou o primeiro Jubileu. [N. T.]</ref>
Achei-me numa selva tenebrosa,<ref>''Tenebrosa'' etc., simbólica selva dos vícios humanos. [N. T.]</ref>
Tendo perdido a verdadeira estrada.


Dizer qual era é cousa tão penosa,
{| width=100%"
Desta brava espessura a asperidade,
| width="53%"|<b>Tradução brasileira</b>
Que a memória a relembra inda cuidosa.
| width="47%"|<b>Original italiano</b>
|-
| valign="top"|<ul>
Da nossa vida, em meio da jornada,<br/>
Achei-me numa selva tenebrosa,<br/>
Tendo perdido a verdadeira estrada.<br/>

Dizer qual era é cousa tão penosa,<br/>
Desta brava espessura a asperidade,<br/>
Que a memória a relembra inda cuidosa.<br/>

Na morte há pouco mais de acerbidade;<br/>
Mas para o bem narrar lá deparado<br/>
De outras cousas que vi, direi verdade.<br/>

Contar não posso como tinha entrado;<br/>
Tanto o sono os sentidos me tomara,<br/>
Quando hei o bom caminho abandonado.<br/>

Depois que a uma colina me cercara,<br/>
Onde ia o vale escuro terminando,<br/>
Que pavor tão profundo me causara.<br/>

Ao alto olhei, e já, de luz banhando,<br/>
Vi-lhe estar às espaldas o planeta,<br/>
Que, certo, em toda parte vai guiando.<br/>

Então o assombro um tanto se aquieta,<br/>
Que do peito no lago perdurava,<br/>
Naquela noite atribulada, inquieta.<br/>

E como quem o anélito esgotava<br/>
Sobre as ondas, já salvo, inda medroso<br/>
Olha o mar perigoso em que lutava,<br/>

O meu ânimo assim, que treme ansioso,<br/>
Volveu-se a remirar vencido o espaço<br/>
Que homem vivo jamais passou ditoso.<br/>

Tendo já repousado o corpo lasso,<br/>
Segui pela deserta falda avante;<br/>
Mais baixo sendo o pé firme no passo.<br/>

Eis da subida quase ao mesmo instante<br/>
Assoma ágil e rápida pantera<br/>
Tendo a pele por malhas cambiante.<br/>

Não se afastava de ante mim a fera;<br/>
E em modo tal meu caminhar tolhia,<br/>
Que atrás por vezes eu tornar quisera.<br/>

No céu a aurora já resplandecia,<br/>
Subia o sol, dos astros rodeado,<br/>
Seus sócios, quando o Amor divino um dia<br/>

A tais primores movimento há dado.<br/>
Me infundiam desta arte alma esperança<br/>
Da fera o dorso alegre e mosqueado,<br/>

A hora amena e a quadra doce e mansa.<br/>
De um leão de repente surge o aspecto,<br/>
Que ao meu peito o pavor de novo lança.<br/>

Que me investisse então cuido inquieto;<br/>
Com fome e raiva atroz fronte levanta;<br/>
Tremer parece o ar ao seu conspeto.<br/>

Eis surge loba, que de magra espanta;<br/>
De ambições todas parecia cheia;<br/>
Foi causa a muitos de miséria tanta!<br/>

Com tanta intensa torvação me enleia<br/>
Pelo terror, que o cenho seu movia,<br/>
Que a mente à altura não subir receia.<br/>

Como quem lucro anela noite e dia,<br/>
Se acaso o tempo de perder lhe chega,<br/>
Rebenta em pranto e triste se excrucia,<br/>

A fera assim me fez, que não sossega;<br/>
Pouco a pouco me investe até lançar-me<br/>
Lá onde o sol se cala e a luz me nega.<br/>

Quando ao vale eu já ia baquear-me<br/>
Alguém fraco de voz diviso perto,<br/>
Que após largo silêncio quer falar-me.<br/>

Tanto que o vejo nesse grão deserto,<br/>
— “Tem compaixão de mim” — bradei transido — <br/>
“Quem quer que sejas, sombra ou homem certo!”<br/>


“Homem não sou” tornou-me — “mas hei sido,<br/>
Pais lombardos eu tive; sempre amada<br/>
Mântua lhes foi; haviam lá nascido.<br/>

“Nasci de Júlio em era retardada,<br/>
Vivi em Roma sob o bom Augusto,<br/>
Quando em deuses havia a crença errada.<br/>

“Poeta, decantei feitos do justo<br/>
Filho de Anquíses, que de Tróia veio,<br/>
Depois que Ílion soberbo foi combusto.<br/>

“Mas por que tornas da tristeza ao meio?<br/>
Por que não vais ao deleitoso monte,<br/>
Que o prazer todo encerra no seu seio?”<br/>

“— Oh! Virgílio, tu és aquela fonte<br/>
Donde em rio caudal brota a eloqüência?”<br/>
Falei, curvando vergonhoso a fronte. —<br/>

“Ó dos poetas lustre, honra, eminência!<br/>
Valham-me o longo estudo, o amor profundo<br/>
Com que em teu livro procurei ciência!<br/>

“És meu mestre, o modelo sem segundo;<br/>
Unicamente és tu que hás-me ensinado;<br/>
O belo estilo que honra-me no mundo.<br/>

“A fera vês que o passo me há vedado;<br/>
Sábio famoso, acude ao perseguido!<br/>
Tremo no pulso e veias, transtornado!”<br/>

Respondeu, do meu pranto condoído;<br/>
“Te convém outra rota de ora avante<br/>
Para o lugar selvagem ser vencido.<br/>

“A fera, que te faz bradar tremante,<br/>
Aqui passar não deixa impunemente;<br/>
Tanto se opõe, que mata o caminhante.<br/>

“Tem tão má natureza, é tão furente,<br/>
Que os apetites seus jamais sacia,<br/>
E fome, impando, mais que de antes sente.<br/>

“Com muitos animais se consorcia,<br/>
Há-de a outros se unir té ser chegado<br/>
Lebréu, que a leve à hórrida agonia.<br/>

“Por ouro ou por poder nunca tentado<br/>
Saber, virtude, amor terá por norte,<br/>
Sendo entre Feltro e Feltro potentado.<br/>

“Será da humilde Itália amparo forte,<br/>
Por quem Camila a virgem dera a vida,<br/>
Turno Eurialo, Niso acharam morte.<br/>

“Por ele, em toda parte, repelida<br/>
Irá lançar-se no infernal assento,<br/>
Donde foi pela Inveja conduzida.<br/>

“Agora, por teu prol, eu tenho o intento<br/>
De levar-te comigo; ir-te-ei guiando<br/>
Pela estância do eterno sofrimento,<br/>

“Onde, estridentes gritos escutando,<br/>
Verás almas antigas em tortura<br/>
Segunda morte a brados suplicando.<br/>

“Outros ledos verás, que, em prova dura<br/>
Das chamas, inda esperam ter o gozo<br/>
De Deus no prêmio da imortal ventura.<br/>

“Se lá subir quiseres, um ditoso<br/>
Espírito, melhor te será guia,<br/>
Quando eu deixar-te, ao reino glorioso.<br/>

“Do céu o Imperador, a rebeldia<br/>
Minha à lei castigando, não consente<br/>
Que eu da cidade sua haja a alegria.<br/>

“Em toda parte impera onipotente,<br/>
Mas tem no Empíreo sua augusta sede:<br/>
Feliz, por ele, o eleito à glória ingente!”<br/>

— “Vate, rogo-te” — eu disse — “me concede,<br/>
Por esse Deus, que nunca hás conhecido,<br/>
Porque este e maior mal de mim se arrede.<br/>

“Que, até onde disseste conduzido,<br/>
À porta de São Pedro eu vá contigo<br/>
E veja os maus que houveste referido”.<br/>

Move-se o Vate então, após o sigo.<br/>
</ul>

| valign="top"|<ul>
Nel mezzo del cammin di nostra vita<br/>
mi ritrovai per una selva oscura<br/>
che' la diritta via era smarrita.<br/>


Na morte há pouco mais de acerbidade;
Ahi quanto a dir qual era è cosa dura<br/>
Mas para o bem narrar lá deparado
esta selva selvaggia e aspra e forte<br/>
De outras cousas que vi, direi verdade.
che nel pensier rinova la paura!<br/>


Contar não posso como tinha entrado;
Tant'è amara che poco è più morte;<br/>
Tanto o sono os sentidos me tomara,
ma per trattar del ben ch'i' vi trovai,<br/>
Quando hei o bom caminho abandonado.
diro` de l'altre cose ch'i' v'ho scorte.<br/>


Depois que a uma colina me cercara,
Io non so ben ridir com'i' v'intrai,<br/>
Onde ia o vale escuro terminando,
tant'era pien di sonno a quel punto<br/>
Que pavor tão profundo me causara.
che la verace via abbandonai.<br/>


Ao alto olhei, e já, de luz banhando,
Ma poi ch'i' fui al piè d'un colle giunto,<br/>
Vi-lhe estar às espaldas o planeta,
la` dove terminava quella valle<br/>
Que, certo, em toda parte vai guiando.
che m'avea di paura il cor compunto,<br/>


Então o assombro um tanto se aquieta,
guardai in alto, e vidi le sue spalle<br/>
Que do peito no lago perdurava,
vestite già de' raggi del pianeta<br/>
Naquela noite atribulada, inquieta.
che mena dritto altrui per ogne calle.<br/>


E como quem o anélito esgotava
Allor fu la paura un poco queta<br/>
Sobre as ondas, já salvo, inda medroso
che nel lago del cor m'era durata<br/>
Olha o mar perigoso em que lutava,
la notte ch'i' passai con tanta pieta.<br/>


O meu ânimo assim, que treme ansioso,
E come quei che con lena affannata<br/>
Volveu-se a remirar vencido o espaço
uscito fuor del pelago a la riva<br/>
Que homem vivo jamais passou ditoso.
si volge a l'acqua perigliosa e guata,<br/>


Tendo já repousado o corpo lasso,
così l'animo mio, ch'ancor fuggiva,<br/>
Segui pela deserta falda avante;
si volse a retro a rimirar lo passo<br/>
Mais baixo sendo o pé firme no passo.
che non lasciò già mai persona viva.<br/>


Eis da subida quase ao mesmo instante
Poi ch'ei posato un poco il corpo lasso,<br/>
Assoma ágil e rápida pantera<ref>''Pantera'', símbolo da luxúria e da fraude; politicamente, de Florença. [N. T.]</ref>
ripresi via per la piaggia diserta,<br/>
Tendo a pele por malhas cambiante.
sì che 'l piè fermo sempre era 'l più basso.<br/>


Não se afastava de ante mim a fera;
Ed ecco, quasi al cominciar de l'erta,<br/>
E em modo tal meu caminhar tolhia,
una lonza leggera e presta molto,<br/>
Que atrás por vezes eu tornar quisera.
che di pel macolato era coverta;<br/>


No céu a aurora já resplandecia,
e non mi si partia dinanzi al volto,<br/>
Subia o sol, dos astros rodeado,
anzi 'mpediva tanto il mio cammino,<br/>
Seus sócios, quando o Amor divino um dia
ch'i' fui per ritornar piu` volte volto.<br/>


A tais primores movimento há dado.
Temp'era dal principio del mattino,<br/>
Me infundiam desta arte alma esperança
e 'l sol montava 'n sù con quelle stelle<br/>
Da fera o dorso alegre e mosqueado,
ch'eran con lui quando l'amor divino<br/>


A hora amena e a quadra doce e mansa.
mosse di prima quelle cose belle;<br/>
De um leão de repente surge o aspecto,<ref>''Um leão'', símbolo da soberba e da violência; politicamente, da França. [N. T.]</ref>
sì ch'a bene sperar m'era cagione<br/>
Que ao meu peito o pavor de novo lança.
di quella fiera a la gaetta pelle<br/>


Que me investisse então cuido inquieto;
l'ora del tempo e la dolce stagione;<br/>
Com fome e raiva atroz fronte levanta;
ma non sì che paura non mi desse<br/>
Tremer parece o ar ao seu conspeto.
la vista che m'apparve d'un leone.<br/>


Eis surge loba, que de magra espanta;<ref>''Loba'', símbolo da avareza e da incontinência; politicamente da Cúria Romana. [N. T.]</ref>
Questi parea che contra me venisse<br/>
De ambições todas parecia cheia;
con la test'alta e con rabbiosa fame,<br/>
Foi causa a muitos de miséria tanta!
sì che parea che l'aere ne tremesse.<br/>


Com tanta intensa torvação me enleia
Ed una lupa, che di tutte brame<br/>
Pelo terror, que o cenho seu movia,
sembiava carca ne la sua magrezza,<br/>
Que a mente à altura não subir receia.
e molte genti fè già viver grame,<br/>


Como quem lucro anela noite e dia,
questa mi porse tanto di gravezza<br/>
Se acaso o tempo de perder lhe chega,
con la paura ch'uscia di sua vista,<br/>
Rebenta em pranto e triste se excrucia,
ch'io perdei la speranza de l'altezza.<br/>


A fera assim me fez, que não sossega;
E qual è quei che volontieri acquista,<br/>
Pouco a pouco me investe até lançar-me
e giugne 'l tempo che perder lo face,<br/>
Lá onde o sol se cala e a luz me nega.
che 'n tutt'i suoi pensier piange e s'attrista;<br/>


Quando ao vale eu já ia baquear-me
tal mi fece la bestia sanza pace,<br/>
Alguém fraco de voz diviso perto,<ref>''Alguém'' etc., o poeta [[:w:Virgílio Maro|Virgílio Maro]], símbolo da razão humana. [N. T.]</ref>
che, venendomi 'ncontro, a poco a poco<br/>
Que após largo silêncio quer falar-me.
mi ripigneva là dove 'l sol tace.<br/>


Tanto que o vejo nesse grão deserto,
Mentre ch'i' rovinava in basso loco,<br/>
&mdash; “Tem compaixão de mim” — bradei transido —
dinanzi a li occhi mi si fu offerto<br/>
“Quem quer que sejas, sombra ou homem certo!”
chi per lungo silenzio parea fioco.<br/>


“Homem não sou” tornou-me — “mas hei sido,
Quando vidi costui nel gran diserto,<br/>
Pais lombardos eu tive; sempre amada
<<Miserere di me>>, gridai a lui,<br/>
Mântua lhes foi; haviam lá nascido.
<<qual che tu sii, od ombra od omo certo!>>.<br/>


“Nasci de Júlio em era retardada,
Rispuosemi: <<Non omo, omo già fui,<br/>
Vivi em Roma sob o bom Augusto,
e li parenti miei furon lombardi,<br/>
Quando em deuses havia a crença errada.
mantoani per patria ambedui.<br/>


“Poeta, decantei feitos do justo
Nacqui sub Iulio, ancor che fosse tardi,<br/>
Filho de Anquíses, que de Tróia veio,
e vissi a Roma sotto 'l buono Augusto<br/>
Depois que Ílion soberbo foi combusto.
nel tempo de li dei falsi e bugiardi.<br/>


“Mas por que tornas da tristeza ao meio?
Poeta fui, e cantai di quel giusto<br/>
Por que não vais ao deleitoso monte,
figliuol d'Anchise che venne di Troia,<br/>
Que o prazer todo encerra no seu seio?”
poi che 'l superbo Ilion fu combusto.<br/>


“&mdash; Oh! Virgílio, tu és aquela fonte
Ma tu perchè ritorni a tanta noia?<br/>
Donde em rio caudal brota a eloqüência?”
perchè non sali il dilettoso monte<br/>
Falei, curvando vergonhoso a fronte. &mdash;
ch'è principio e cagion di tutta gioia?>>.<br/>


“Ó dos poetas lustre, honra, eminência!
<<Or sè tu quel Virgilio e quella fonte<br/>
Valham-me o longo estudo, o amor profundo
che spandi di parlar sì largo fiume?>>,<br/>
Com que em teu livro procurei ciência!
rispuos'io lui con vergognosa fronte.<br/>


“És meu mestre, o modelo sem segundo;
<<O de li altri poeti onore e lume<br/>
Unicamente és tu que hás-me ensinado;
vagliami 'l lungo studio e 'l grande amore<br/>
O belo estilo que honra-me no mundo.
che m'ha fatto cercar lo tuo volume.<br/>


“A fera vês que o passo me há vedado;
Tu sè lo mio maestro e 'l mio autore;<br/>
Sábio famoso, acude ao perseguido!
tu sè solo colui da cù io tolsi<br/>
Tremo no pulso e veias, transtornado!”
lo bello stilo che m'ha fatto onore.<br/>


Respondeu, do meu pranto condoído;
Vedi la bestia per cù io mi volsi:<br/>
“Te convém outra rota de ora avante
aiutami da lei, famoso saggio,<br/>
Para o lugar selvagem ser vencido.
ch'ella mi fa tremar le vene e i polsi>>.<br/>


“A fera, que te faz bradar tremante,
<<A te convien tenere altro viaggio>>,<br/>
Aqui passar não deixa impunemente;
rispuose poi che lagrimar mi vide,<br/>
Tanto se opõe, que mata o caminhante.
<<se vuò campar d'esto loco selvaggio:<br/>


“Tem tão má natureza, é tão furente,
chè questa bestia, per la qual tu gride,<br/>
Que os apetites seus jamais sacia,
non lascia altrui passar per la sua via,<br/>
E fome, impando, mais que de antes sente.
ma tanto lo 'mpedisce che l'uccide;<br/>


“Com muitos animais se consorcia,
e ha natura sì malvagia e ria,<br/>
Há-de a outros se unir té ser chegado
che mai non empie la bramosa voglia,<br/>
Lebréu, que a leve à hórrida agonia.
e dopo 'l pasto ha più fame che pria.<br/>


“Por ouro ou por poder nunca tentado
Molti son li animali a cui s'ammoglia,<br/>
Saber, virtude, amor terá por norte,
e più saranno ancora, infin che 'l veltro<br/>
Sendo entre Feltro e Feltro potentado.<ref>''Entre Feltro e Feltro'', entre [[:w:Montefeltro|Montefeltro]] e [[:w:Feltro|Feltro]]. [N. T.]</ref>
verrà, che la farà morir con doglia.<br/>


“Será da humilde Itália amparo forte,
Questi non ciberà terra nè peltro,<br/>
Por quem Camila a virgem dera a vida,
ma sapienza, amore e virtute,<br/>
Turno Eurialo, Niso acharam morte.
e sua nazion sarà tra feltro e feltro.<br/>


“Por ele, em toda parte, repelida
Di quella umile Italia fia salute<br/>
Irá lançar-se no infernal assento,
per cui morì la vergine Cammilla,<br/>
Donde foi pela Inveja conduzida.
Eurialo e Turno e Niso di ferute.<br/>


“Agora, por teu prol, eu tenho o intento
Questi la caccerà per ogne villa,<br/>
De levar-te comigo; ir-te-ei guiando
fin che l'avrà rimessa ne lo 'nferno,<br/>
Pela estância do eterno sofrimento,
là onde 'nvidia prima dipartilla.<br/>


“Onde, estridentes gritos escutando,
Ond'io per lo tuo mè penso e discerno<br/>
Verás almas antigas em tortura
che tu mi segui, e io sarò tua guida,<br/>
Segunda morte a brados suplicando.
e trarrotti di qui per loco etterno,<br/>


“Outros ledos verás, que, em prova dura
ove udirai le disperate strida,<br/>
Das chamas, inda esperam ter o gozo
vedrai li antichi spiriti dolenti,<br/>
De Deus no prêmio da imortal ventura.
ch'a la seconda morte ciascun grida;<br/>


“Se lá subir quiseres, um ditoso
e vederai color che son contenti<br/>
Espírito, melhor te será guia,<ref>''Espirito melhor'', Beatriz, a mulher que Dante amou. [N. T.]</ref>
nel foco, perchè speran di venire<br/>
Quando eu deixar-te, ao reino glorioso.
quando che sia a le beate genti.<br/>


“Do céu o Imperador, a rebeldia
A le quai poi se tu vorrai salire,<br/>
Minha à lei castigando, não consente
anima fia a ciò più di me degna:<br/>
Que eu da cidade sua haja a alegria.
con lei ti lascerò nel mio partire;<br/>


“Em toda parte impera onipotente,
chè quello imperador che là sù regna,<br/>
Mas tem no Empíreo sua augusta sede:
perch'i' fù ribellante a la sua legge,<br/>
Feliz, por ele, o eleito à glória ingente!”
non vuol che 'n sua città per me si vegna.<br/>


&mdash; “Vate, rogo-te” — eu disse — “me concede,
In tutte parti impera e quivi regge<br/>
Por esse Deus, que nunca hás conhecido,
quivi è la sua città e l'alto seggio:<br/>
Porque este e maior mal de mim se arrede.
oh felice colui cù ivi elegge!>>.<br/>


“Que, até onde disseste conduzido,
E io a lui: <<Poeta, io ti richeggio<br/>
À porta de São Pedro eu vá contigo
per quello Dio che tu non conoscesti,<br/>
E veja os maus que houveste referido”.
acciò ch'io fugga questo male e peggio,br/>


Move-se o Vate então, após o sigo.
che tu mi meni là dov'or dicesti,<br/>
</poem>
sì ch'io veggia la porta di san Pietro<br/>
e color cui tu fai cotanto mesti>>.<br/>


== Notas ==
Allor si mosse, e io li tenni dietro.<br/>
<references />
|}
{| width="100%" |
|
| [[A Divina Comédia|Índice]]
| [[A Divina Comédia - Inferno, Canto 2|Canto 2]]
|}


[[Categoria:A Divina Comédia]]
[[Categoria:A Divina Comédia]]

Revisão das 20h53min de 4 de julho de 2006

Dante, perdido numa selva escura, erra nela toda a noite. Saindo ao amanhecer, começa a subir por uma colina, quando lhe atravessam a passagem uma pantera, um leão e uma loba, que o repelem para a selva. Aparece-lhe então a imagem de Virgílio, que o reanima e se oferece a tirá-lo de lá, fazendo-o passar pelo Inferno e pelo Purgatório. Beatriz, depois, o guiará ao Paraíso. Dante o segue.

Da nossa vida, em meio da jornada,[1]
Achei-me numa selva tenebrosa,[2]
Tendo perdido a verdadeira estrada.

Dizer qual era é cousa tão penosa,
Desta brava espessura a asperidade,
Que a memória a relembra inda cuidosa.

Na morte há pouco mais de acerbidade;
Mas para o bem narrar lá deparado
De outras cousas que vi, direi verdade.

Contar não posso como tinha entrado;
Tanto o sono os sentidos me tomara,
Quando hei o bom caminho abandonado.

Depois que a uma colina me cercara,
Onde ia o vale escuro terminando,
Que pavor tão profundo me causara.

Ao alto olhei, e já, de luz banhando,
Vi-lhe estar às espaldas o planeta,
Que, certo, em toda parte vai guiando.

Então o assombro um tanto se aquieta,
Que do peito no lago perdurava,
Naquela noite atribulada, inquieta.

E como quem o anélito esgotava
Sobre as ondas, já salvo, inda medroso
Olha o mar perigoso em que lutava,

O meu ânimo assim, que treme ansioso,
Volveu-se a remirar vencido o espaço
Que homem vivo jamais passou ditoso.

Tendo já repousado o corpo lasso,
Segui pela deserta falda avante;
Mais baixo sendo o pé firme no passo.

Eis da subida quase ao mesmo instante
Assoma ágil e rápida pantera[3]
Tendo a pele por malhas cambiante.

Não se afastava de ante mim a fera;
E em modo tal meu caminhar tolhia,
Que atrás por vezes eu tornar quisera.

No céu a aurora já resplandecia,
Subia o sol, dos astros rodeado,
Seus sócios, quando o Amor divino um dia

A tais primores movimento há dado.
Me infundiam desta arte alma esperança
Da fera o dorso alegre e mosqueado,

A hora amena e a quadra doce e mansa.
De um leão de repente surge o aspecto,[4]
Que ao meu peito o pavor de novo lança.

Que me investisse então cuido inquieto;
Com fome e raiva atroz fronte levanta;
Tremer parece o ar ao seu conspeto.

Eis surge loba, que de magra espanta;[5]
De ambições todas parecia cheia;
Foi causa a muitos de miséria tanta!

Com tanta intensa torvação me enleia
Pelo terror, que o cenho seu movia,
Que a mente à altura não subir receia.

Como quem lucro anela noite e dia,
Se acaso o tempo de perder lhe chega,
Rebenta em pranto e triste se excrucia,

A fera assim me fez, que não sossega;
Pouco a pouco me investe até lançar-me
Lá onde o sol se cala e a luz me nega.

Quando ao vale eu já ia baquear-me
Alguém fraco de voz diviso perto,[6]
Que após largo silêncio quer falar-me.

Tanto que o vejo nesse grão deserto,
— “Tem compaixão de mim” — bradei transido —
“Quem quer que sejas, sombra ou homem certo!”

“Homem não sou” tornou-me — “mas hei sido,
Pais lombardos eu tive; sempre amada
Mântua lhes foi; haviam lá nascido.

“Nasci de Júlio em era retardada,
Vivi em Roma sob o bom Augusto,
Quando em deuses havia a crença errada.

“Poeta, decantei feitos do justo
Filho de Anquíses, que de Tróia veio,
Depois que Ílion soberbo foi combusto.

“Mas por que tornas da tristeza ao meio?
Por que não vais ao deleitoso monte,
Que o prazer todo encerra no seu seio?”

“— Oh! Virgílio, tu és aquela fonte
Donde em rio caudal brota a eloqüência?”
Falei, curvando vergonhoso a fronte. —

“Ó dos poetas lustre, honra, eminência!
Valham-me o longo estudo, o amor profundo
Com que em teu livro procurei ciência!

“És meu mestre, o modelo sem segundo;
Unicamente és tu que hás-me ensinado;
O belo estilo que honra-me no mundo.

“A fera vês que o passo me há vedado;
Sábio famoso, acude ao perseguido!
Tremo no pulso e veias, transtornado!”

Respondeu, do meu pranto condoído;
“Te convém outra rota de ora avante
Para o lugar selvagem ser vencido.

“A fera, que te faz bradar tremante,
Aqui passar não deixa impunemente;
Tanto se opõe, que mata o caminhante.

“Tem tão má natureza, é tão furente,
Que os apetites seus jamais sacia,
E fome, impando, mais que de antes sente.

“Com muitos animais se consorcia,
Há-de a outros se unir té ser chegado
Lebréu, que a leve à hórrida agonia.

“Por ouro ou por poder nunca tentado
Saber, virtude, amor terá por norte,
Sendo entre Feltro e Feltro potentado.[7]

“Será da humilde Itália amparo forte,
Por quem Camila a virgem dera a vida,
Turno Eurialo, Niso acharam morte.

“Por ele, em toda parte, repelida
Irá lançar-se no infernal assento,
Donde foi pela Inveja conduzida.

“Agora, por teu prol, eu tenho o intento
De levar-te comigo; ir-te-ei guiando
Pela estância do eterno sofrimento,

“Onde, estridentes gritos escutando,
Verás almas antigas em tortura
Segunda morte a brados suplicando.

“Outros ledos verás, que, em prova dura
Das chamas, inda esperam ter o gozo
De Deus no prêmio da imortal ventura.

“Se lá subir quiseres, um ditoso
Espírito, melhor te será guia,[8]
Quando eu deixar-te, ao reino glorioso.

“Do céu o Imperador, a rebeldia
Minha à lei castigando, não consente
Que eu da cidade sua haja a alegria.

“Em toda parte impera onipotente,
Mas tem no Empíreo sua augusta sede:
Feliz, por ele, o eleito à glória ingente!”

— “Vate, rogo-te” — eu disse — “me concede,
Por esse Deus, que nunca hás conhecido,
Porque este e maior mal de mim se arrede.

“Que, até onde disseste conduzido,
À porta de São Pedro eu vá contigo
E veja os maus que houveste referido”.

Move-se o Vate então, após o sigo.

Notas

  1. Em meio etc. Aos 35 anos. Dante tinha 35 anos no dia 25 de março de 1300, ano no qual o papa Bonifácio VIII proclamou o primeiro Jubileu. [N. T.]
  2. Tenebrosa etc., simbólica selva dos vícios humanos. [N. T.]
  3. Pantera, símbolo da luxúria e da fraude; politicamente, de Florença. [N. T.]
  4. Um leão, símbolo da soberba e da violência; politicamente, da França. [N. T.]
  5. Loba, símbolo da avareza e da incontinência; politicamente da Cúria Romana. [N. T.]
  6. Alguém etc., o poeta Virgílio Maro, símbolo da razão humana. [N. T.]
  7. Entre Feltro e Feltro, entre Montefeltro e Feltro. [N. T.]
  8. Espirito melhor, Beatriz, a mulher que Dante amou. [N. T.]