Poesia e Mendicidade: diferenças entre revisões

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Revisão das 15h21min de 23 de julho de 2006


I
 
Senhora! A Poesia outrora era a Estrangeira,


Pálida, aventureira, errante a viajar,
Batendo em duas portas - ao grito das procelas -
Ao céu - pedindo estrelas, à terra - um pobre lar!


Visão-de áureos lauréis-porém de manto esquálido,
Mulher-de lábio pálido-e olhar-cheio de luz.
Seus passos nos espinhos em sangue se assinalam...
E os astros lhe resvalam-à flor dos ombros nus...
 
II
 
Olhai! O sol descamba... A tarde harmoniosa
Envolve luminosa a Grécia em frouxo véu.
Na estrada ao som da vaga, ao suspirar do vento,
De um marco poeirento um velho então se ergueu.


Ergueu-se tateando... é cego... o cego anseia...
Porém o que tateia aquela augusta mão?...
Talvez busca pegar o sol, que lento expira!...
Fado cruel... mentira!... Homero pede pão!
 


III
 
Mas ai! volvei, Senhora, os vossos belos olhos
Daquele mar de abrolhos, a um novo quadro! olhai!
Do vasto salão gótico eu ergo o reposteiro...
O lar é hospitaleiro... Entrai, Senhora, entrei!


Estamos na média idade. Arnês, gládio, armadura
Servem de compostura à sala vasta e chã.
A um lado um galgo esvelto ameiga e acaricia
A mão suave, esguia - à loura castelã.
Vai o banquete em meio... O bardo se alevanta
Pega da lira... canta... uma canção de amor...


Ouvi-o! Para ouvi-lo a estrela pensativa
Alonga pela ogiva um raio de languor!
Dos ramos do carvalho a brisa se debruça...
Na sala alguém soluça... (amor, ou languidez?)
Súbito a nota extrema anseia, treme, rola...
Alguém pede uma esmola... Senhora, não olheis!...


 
Assim nos tempos idos a musa canta e pede...
Gênio e mendigo... vede... o abismo de irrisões!
Tasso implora um olhar! Vai Ossian mendicante...
Caminha roto o Dante! e pede pão Camões.
 
IV


 
Bem sei, Senhora, que ao talento agora
Surgiu a aurora de uma luz amena.
Hoje há salário p'ra qualquer trabalho
Cinzel, ou malho, ferramenta ou penal
Melhor que o Rei sabe pagar o pobre


Melhor que o nobre --protetor verdugo-
Foi surdo um trono... à maior glória vossa.
Abre-se a choça aos Miseráveis de Hugo.
Porém não sei se é por costume antigo,
Que inda é mendigo do cantor o gênio.
Mudem-se os panos do cenário a esmo


O vulto é o mesmo... num melhor proscênio...
 
V
 
Hoje o Poeta - caminheiro errante,
Que tem saudade de um país melhor
Pede uma pérola - à maré montante,


Do seio às vagas-pede-um outro amor.
Alma sedenta de ideal na terra
Busca apagar aquela sede atroz!
Pede a harmonia divinal, que encerra
Do ninho o chilro... da tormenta a voz!
E o rir da folha, o sussurrar da fala,


Trenos da estrela no amoroso estio.
Voz que dos poros o Universo exala
Do céu, da gruta, do alcantil, do rio!
Pede aos pequenos, desde o verme ao tojo,
Ao fraco, ao forte... preces, gritos, uivos...
Pede das águias o possante arrojo,


Para encontrar os meteoros ruivos.
Pede à mulher que seja boa e linda
Vestal de um tipo que o ideal revela...
Pois ser formosa é ser melhor ainda...
Se és boa-és luz... mas se és formosa-estrela...
E pede à sombra p'ra aljofrar de orvalhos


A fronte azul da solidão noturna.
E pede às auras p'ra afagar os galhos
E pede ao lírio p'ra enfeitar a fuma.
Pede ao olhar a maciez suave
 
Que tem o arminho e o edredom macio,
O aveludado da penugem d'ave,
Que afaga as plumas no palmar sombrio.
E quando encontra sobre a terra ingrata
Um reverbero do clarão celeste,
- Alma formada de uma essência grata,
Que a lua - doura, e que um perfume veste;


Um rir, que nasce como o broto em maio;
Mostrando seivas de bondade infinda,
Fronte que guarda- a claridade e o raio,
- Virtude e graça - o ser bondosa e linda...
Então, Senhora, sob tanto encanto
Pede o Poeta (que neo tem renome)


-Versos-à brisa p'ra vos dar um canto...
Raios ao sol - p'ra vos traçar o nome!...


(Espumas Flutuantes, 23)