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Revisão das 19h04min de 4 de maio de 2012


Afonso, apenas avistou Berta, afastou-se da janela onde estava com a família, esgueirou-se por entre a multidão.

— Berta!... psiu!... disse ele chegando-se à menina.

— Olha D. Ermelinda!

— Ela não me enxerga, retorquiu o rapaz escondendo-se atrás de uma pinha de gente.

— Não tem medo?... E se ela ralhar com você? acudiu Berta atirando-lhe um remoque.

— Então sou alguma criança! disse o rapaz ferido nos brios, e realçando a estatura para afirmar sua hombridade.

— Mas não é capaz de fazer uma coisa contra a vontade de sua mãe! redargüiu Berta com o mesmo chasco, para excitar o amor próprio do camarada.

— Pois eu lhe mostro! respondeu Afonso com ar decidido, e adiantou-se para afrontar as vistas de D. Ermelinda.

Sorriu Inhá, que voltando-se para o moço, ocupou-se em travessear com ele, como outrora costumava.

Não tinha outro modo senão este de apagar no espírito de Linda o ciúme que a traspassara.

— Como está Linda? perguntou a menina depois de algum tempo consumindo em gracejos. Ainda se lembra de Miguel?

— Não sei!... respondeu Afonso constrangido.

— Teve ordem!... acudiu Inhá assistindo no remoque anterior.

— Não vê como anda triste!

— Então ela sempre quer bem a Miguel?

— Sempre!

— Preciso falar com ela! Como há de ser?

Nesse instante um caiapó de alto porte e compleição robusta, separado do bando que já ia longe de envolta com a cavalgata, atravessando a rua, parou defronte dos dois moços e afincou-se a observa-los.

De repente saltou em frente de Afonso e ouviram-se estas palavras, que rompiam da croça espessa, como da brenha escapa o rugido da fera:

— Teu pai matou a mãe dela; tu queres matar a filha; é duas vezes!

Desde alguns momentos o olhar de Luís Galvão descobrira da janela fronteira o filho a falar com Berta, e não se arredara mais do grupo. Aquele quadro brilhante da juventude, borrifado com os sorrisos de alegria e perfumado com as fagueiras primícias do coração, despertavam nele reminiscências tão suaves, dormidas no fundo da lama!

Lembrava-se das festas de outrora, quando era moço como o filho, e ali, na mesma vila de Piracicaba, tantas vezes escapulia da família para seguir o rancho de moças onde ia Besita, e à surrelfa apertar-lhe a mão, ou trocar uma palavra balbuciada a medo.

Para mais avivar as cores a essa tela da mocidade, que os anos tinham desbotado, ressurgiam aí diante de seus olhos as próprias figuras do gracioso painel; ele retratado na pessoa de Afonso; ela, revivendo na gentileza de Berta.

A D. Ermelinda não escapara essa distração; acompanhando a direção do olhar e reparando na expressão de ternura e enlevo que se derramava na fisionomia do marido, sobressaltou-a nova e mais cruel suspeita. À infidelidade do passado acrescentaria Luís Galvão a perfídia no presente?

Não teve tempo a desolada senhora de sondar esse novo abismo de dor que se rasgava em sua alma, já tão atribulada.

Mal lançara a Afonso o dito misterioso que lhe prorrompeu dos lábios, o caiapó travando com irresistível impulso do braço do moço, arrancou-o do lugar onde estava e trouxe-o até junto da janela de D. Ermelinda.

Aí, afrontando-se com Luís Galvão, apontou para o filho, e proferiu estas palavras, obscuras como as outras:

— Teu sangue mau quer matar teu sangue bom! Toma cautela!...

Com pasmosa rapidez passara essa cena estranha. Ainda não se desvanecera o espanto por ela causado nos assistentes, que já o caiapó havia desaparecido entre a multidão, sem que fosse possível indicar por onde se fora.

Ao mesmo tempo soava grande rumor na praça da matriz; e magotes de povo a correr pelas ruas deixavam entre o vozeio soturno da turba estas vozes repassadas de pânico terror, que retalhavam o borborinho como correntes vivas a sulcarem um brejo:

— Arrombada a cadeia!...

— Assalto na vila!

No meio do susto produzido por este boato, o povo se dispersou, pondo termo à festa.

Entretanto, o subdelegado em companhia de alguns cidadãos mais animosos dirigia-se à cadeia para verificar o fato, divulgado pela voz pública.

Havia exageração na notícia: dera-se apenas a fuga de um preso, que arrancara por um esforço desesperado um varão da enxovia; e aproveitando-se da distração da sentinela no momento de passar a cavalgata, saltara na rua, arrebatara a um caiapó a croça de capim, e perdera-se na turbamulta.

Meia hora depois, Luís Galvão com a família voltava a Santa Bárbara.

D. Ermelinda que insistira em ver a festa, na vaga esperança de quebrar o enleio no qual viviam ela e o marido desde a noite de São João, se obstinara em voltar para as Palmas naquela mesma tarde.

A cena da janela e o dito misterioso do caiapó tinham produzido nela tão profundo abalo, que já não podia conter as sublevações da sua dignidade de esposa, indignamente ultrajada por quem mais a devia zelar.

Era urgente e indeclinável a explicação, que retardara por melindre de sua alma e pela natural esquivança que sente-se em dissipar por todo o sempre a doce ilusão da felicidade.

Apressando o cavalo, D. Ermelinda transpunha a distância que ainda a separava da casa. Afonso galopava ao lado de sua mãe, enquanto Luís Galvão e Linda vinham após largo intervalo, ao passo moderado dos animais.

Terminava o crepúsculo; mas a lua assomando no horizonte coava o seu lívido clarão através da morte-côr, que o dia expirante ia deixando pelos ermos.

Emudecera o hino da tarde, repassado de ternas melodias, e a natureza, a máxima e sublime orquestra, preludiava a elegia da noite. O primeiro grilo soltava o estrídulo; e o seio da floresta agitada pela viração da noite, arfava ao ofego de um gemido plangente.

À beira da estrada via-se um vulto negro, que de longe afigurava-se urna de algum bugre, esquecida à flor da terra. Ao tropel dos animais o vulto ergueu a cabeça. Era Zana. Soltando um grito de espanto, arrojou-se à frente do cavalo de Afonso, e estendeu as mãos súplices:

— Pelo amor de Deus, nhô Luís!... Não faça mal a Nhazinha!... Da outra vez ela chorou tanto! E depois veio o marido e matou Nhazinha!... Por vida de seu pai, nhô Luís!... Eu lhe peço de joelhos!

A mísera negra, na sua alucinação, remontava o curso da existência, e revivia o tempo já passado, quando Luís fora mancebo que representava agora seu filho Afonso.

Ao aproximar-se da cena, ainda ouviu o fazendeiro as últimas palavras de Zana, e estremeceu; mas revoltando-se afinal contra essa fatal obsessão que depois de quinze dias o arrastava de humilhação em humilhação, decidiu romper de uma vez o segredo que o acabrunhava.

Ao olhar cheio de ânsia da mulher, respondeu indicando os filhos com um olhar expressivo.

— Vão seguindo! disse para Afonso e Linda.

Fez um gesto à mulher, e tomou para a tapera que ficava a algumas braças da estrada. D. Ermelinda o seguiu transida de emoção até a frente da casa em ruínas.

— Foi aqui!... balbuciou a voz trêmula de Luís.