Til/I/XVIII: diferenças entre revisões
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|obra=[[Til]] |
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|autor=José de Alencar |
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|seção=Primeiro Volume, Capítulo XVIII: A visão |
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|anterior=[[Til/I/XVII|Primeiro Volume: Capítulo XVII]] |
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|posterior=[[Til/I/XIX|Primeiro Volume: Capítulo XIX]] |
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Sentara-se Berta na soleira da porta da cozinha, e com a vergôntea que partira do galho seco de um marmeleiro, traçava letras no chão do quintal. |
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Eram iniciais de nomes, que ela tinha no coração ou na memória; e naquele momento de cisma lhe acudiam de envolta com as recordações de sua modesta existência, à qual estavam entrelaçadas. |
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De instante a instante, voltava o rosto para observar Zana, que já completamente alheia e despercebida de sua presença, continuava a menear a cabeça com a mesma incompreensível surdina; ou arrancava da taipa um torrão de barro, que mastigava com avidez. |
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Nessas ocasiões fitava Berta os olhos em uma réstia de sol, que, penetrando pela fresta praticada no alto da parede exterior, cortava obliquamente o aposento com uma faixa de luz. O raio esbatido na taipa do fundo se inclinava gradualmente com a elevação do sol no horizonte, e descia vertical sobre o canto onde se acocorava habitualmente a louca. |
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A folhada crepitou com um estalido cadente, que indicava passo de homem ou animal a caminhar por entre o matagal que cercava as ruínas e ameaçava afogá-las sob a basta ramada. |
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Olhava a menina assustada para o lado de onde viera o rumor, quando na balsa fronteira lobrigou um vulto pardo que resvalava por detrás do tapigo, e cujo ofego sussurrava entre as folhas. |
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Ligeira escondeu-se Berta na cozinha, e por uma fenda que havia no aposento próximo, outrora dispensa, espreitou o circuito. Mas um incidente a distraiu desse propósito, chamando sua atenção para o interior. |
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A réstia de sol, descendo, batera na cabeça de Zana, que se ergueu esfregando os olhos, e aproximou-se do fogão. Agachada em frente ao bueiro, começou a soprar, como se houvesse ali nas grelhas algum brasido coberto pelo borralho; entretanto o tijolo gretado, que servia de lareira, já não conservava nem restos de cinzas. |
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Depois de algum tempo empregado na quimérica operação de acender um fogo ausente, a louca foi à prateleira buscar uns cacos de telha, que se lhe afiguravam panelas ou frigideiras; e fez menção de lavar o trem de cozinha, para preparar a comida. |
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Em meio dessa ocupação, de chofre voltou ela a cabeça, aplicando o ouvido, à guisa de quem escuta um chamado, e para acudir arrancou do peito um grito áspero e gutural: |
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— Inhá!... |
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Imediatamente deixou o fogão, depois de por os testos às panelas, e dirigiu-se pelo corredor à sala da frente, donde passou à alcova próxima. Não havia aí ninguém; as paredes esboroavam-se; o teto de fasquias de taquara caía aos pedaços, e as tábuas do soalho rangiam sobre os barrotes carcomidos. |
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Zana tinha parado junto à porta, em atitude de escutar outra pessoa, que por ventura ali estivesse a falar-lhe. Os gestos rudes, mas expressivos; os esgares vivos e rápidos, que lhe cambiavam a móbil fisionomia, indício eram das impressões encontradas que abalavam esse espírito embotado. |
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Seguira Berta com ansiosa atenção os passos da louca, decorando seus menores movimentos e observando-lhe amiúde a expressão do rosto. Cosida a ela como a sombra ao corpo, roçando-a muitas vezes a seu pesar, ou bafejando-lhe o rosto com o hálito, quando acaso se inclinava para espiar-lhe o semblante, nem assim Zana dava fé de sua presença. |
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Desde algum tempo, em uma de suas visitas, reparou Berta na singular mímica da doida, e de princípio não viu nisso mais do que um efeito natural da loucura. Mais tarde, porém, notando a insistência com que a negra repetia os mesmos movimentos, e ordem em que eles se sucediam, suspeitou a menina um mistério. |
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Não seria essa pantomima a representação muda de uma cena que ali, naquela casa em ruínas, passara outrora, e abalara a alma da negra a ponto de a subverter e alucinar? |
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Assim como dizem que a pupila conserva a imagem da última visão, não sucederá o mesmo com o espírito, e não ficará nele gravado, como em estereótipo, o quadro que iluminaram os últimos clarões da razão extinta? |
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Foi este pensamento de Berta, que, atraída pelo encanto desse mistério, empenhou-se em perscrutar esse ermo onde jazia no seio de uma casa e de uma consciência, ambas em ruínas, o arcano impenetrável. |
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De tantas vezes que assistira àquele esboço rude e taciturno de uma tragédia ignota, já conhecia Berta de todos os seus episódios e incidentes, que mais tarde ela reproduzia de memória com o afã de penetrar-lhes o sentido oculto. |
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Até o momento em que Zana entrava na alcova, era fácil de compreender o fato que a reminiscência da doida retraçava tão ao vivo. |
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A preta, que era naturalmente a cozinheira da casa, despertada pelo sol, do costumado cochilo, acendera o fogo e preparava o almoço, quando ouviu chamarem-na do interior. Deixou a ocupação, e acudiu alguém, que estava na alcova. |
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Aí ouviu assustada e com espanto o que lhe dizia essa pessoa, e, achegando-se à janela na ponta dos pés, enfiou os olhos na direção que lhe fora indicada. Assim permaneceu algum tempo, até que recuou espavorida, com a máscara do terror no semblante e os ossos dos joelhos a estalarem, batendo um contra o outro. |
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O que vira ela? |
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Não pudera a menina atinar ainda, nem com a explicação desse terror, nem com o resto da história, que de mais se complicava. |
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No meio do súbito pavor, cobrava Zana a vontade, estendia os braços crispados, parecia tomar um objeto que apertava ao seio convulso, como se quisesse esconder ou sufocar; e atirava-se fora do aposento com um ímpeto de horror que a levava até um cubículo da cozinha, onde fazia sua dormida. |
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Dir-se-ia que deitava o fardo no chão e corria ao fogão para tirar dali alguma coisa, que depois de moída espalhava nas palmas das mãos para ir esfregar o objeto escondido no cubículo. |
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Saía então ao terreiro, e passeava de um a outro lado com os modos de uma ama, ninando criancinha de colo. Era nessa ocasião que, balançando o corpo, com os braços arredondados ao peito, ela entoava a monótona cantiga, que Berta conseguira decifrar. |
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De repente transmudava-se completamente a doida, passando daquela extrema volubilidade a uma apatia balorda. Parecia fazer-se um vácuo em suas reminiscências, que fugiam-lhe deixando a alma sepultada se intrumescia com a expressão do idiotismo. |
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Nesse estado de estupor, vagava a passos trôpegos pela casa, até que parava automaticamente na porta da alcova e estendia o pescoço para dentro. Devia de ser de ser horrível o espetáculo que ali surgira a seus olhos, porque depois de tantos anos, a só imagem a fulminava. |
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Erguia-se-lhe o corpo hirto; um grito de terror estalava no peito e vinha estrangular-se nas fauces. Volvia sobre si; e tombava ao chão, como uma pedra. |
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[[Categoria:Til|Primeiro Volume, Capítulo 18]] |
Edição atual desde as 17h25min de 22 de maio de 2012
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