Til/I/XXI: diferenças entre revisões
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#Redirecionamento [[Til/II/VI]] |
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|obra=[[Til]] |
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|autor=José de Alencar |
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|seção=Primeiro Volume, Capítulo XXI: O bacorinho |
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|anterior=[[Til/I/XX|Primeiro Volume: Capítulo XX]] |
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|posterior=[[Til/I/XXII|Primeiro Volume: Capítulo XXII]] |
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|notas= |
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No inverno costumam passar por aquelas paragens ranchos de caçadores que demandam o sertão para a montearia das antas e veados que ainda abundam nos campos de Araraquara e Botucatu. |
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Parecia uma dessas partidas de caça, o magote de caipiras que parou fronteiro à venda, e para lá encaminhou-se depois de combinarem entre si os companheiros. |
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Um deles, que parecia ter sobre os camaradas tal ou qual preeminência, adiantou-se enquanto os outros atravessavam muito vagarosamente a testada da casa. |
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— Viva, patrício! Queremos arranchar aqui para almoçar! |
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— Pois sim! respondeu o Tinguá com a sua voz sorneira sem mexer-se do balcão onde continuava debruçado. |
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Habituados certamente a esse modo de acolhimento, os caipiras foram por si tomando conta da casa e aboletando-se na pousada. Uns se estiravam nas camas, e outros já sentados no banco junto à mesa esperavam o almoço com uma fome de caçador. |
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— Sô Filipe, venha alguma coisa que se masque, para despregar a barriga do espinhaço! exclamou um dos companheiros. |
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— E também que se chupite, para untar os gorgomilhos, e consolar o peito! acudiu outro. |
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— Aí vem, camaradas, não se assustem! retorquiu Filipe. |
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Dirigindo-se ao balcão, pesquisou ele com os olhos nas prateleiras e por todo o âmbito da taberna, o que havia para matar a fome: e sempre arranjou-se com um velho queijo de Minas, algumas rapaduras e farinha de milho. |
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— Pode nos das café? perguntou ao Chico. |
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— Há de se poder! tornou o vendeiro. |
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Rodearam os caipiras a mesa e devoraram as provisões, depois de terem molhado a garganta com um copázio de boa cachaça de Piracicaba, a fim de escorregar-lhes bem o bocado, e não os engasgar. |
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Na extremidade oposta, tomava o Gonçalo seu café, observando os caçadores com a curiosidade natural à vida monótona do interior, mas também com um recacho de arrogante fatuidade. Sem dúvida tinha-se ele por um grande personagem, incógnito àqueles pobres diabos. |
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— Isso há de ser tarde já! disse olhando céu. |
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Era um pretexto para travar a conversa; mas os outros com a boca cheia não estavam dispostos à palestra. Apenas o Filipe correspondeu com um meneio de cabeça. |
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Virou o Gonçalo a palangana de café e acendeu o pito. |
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— É servido? perguntou oferecendo fogo ao caipira. |
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— Nada, obrigado. |
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— Ainda que mal pergunte, o patrício vem de longe? |
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— De Campinas! |
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— E anda caçando? Por estas bandas há muito veado e paca: mas como os caititus este ano, nunca se viu: é mesmo uma praga! |
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— Nós cá andamos no rasto, mas é de outra caça! atalhou um dos caipiras a rir. |
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— Viemos desencovar uma onça! acudiu outro. |
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— E é suçuarana! |
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— Qual! Tigre verdadeiro! |
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Fizeram coro os caipiras na gargalhada que despertara o dito do companheiro. Não compreendendo a pilhéria, o Gonçalo estava a olhá-los meio desconfiado e com um riso insosso. |
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— O patrício não lobriga? |
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— Por vida, que não! tornou o Gonçalo. Ainda que Suçuarana é o sobrenome cá do degas; por causa de ser malhado como a bicha. Não vê?... |
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E mostrou as manchas da cara. |
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— Sem falar da munheca!... Talvez o amigo não acredite; mas onde a vê, já pegou queda de braço com uma; e mais era um bichão da altura daquela porta, sem exageração! Agora quanto às risadas dos patrícios, a falar verdade não avento! |
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— Já vê que é caça gorda. |
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— É cá uma história! |
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— Por força que há de conhecer um tal Jão Bugre? |
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— Conheço bem! |
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— Pois aí está a bicha fera que viemos desencovar. Parece que a furna dele fica por aqui perto. Não podia nos dar notícia? |
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— Mas então os camaradas andam-lhe na pista? |
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Entrava o Chico Tinguá, com a pichorra de café e as palanganas que deitou sobre a mesa, recostando-se depois ao portal da entrada, com a perna trançada e a mão no quadril. |
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— Não ouviu falar no Aguiar, do Limoeiro, não?... Um fazendeiro, que o tal Bugre arrumou com duas facadas, há de andar por uns dois meses? |
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— Tenho uma idéia, replicou o Gonçalo. |
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— O negócio deu brado, porque o homem era rico e andava sempre com uma ruma de capangas. Mas Bugre fez-lhe as contas. |
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— É um temível! |
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— Marcado como ele só! |
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— Nem por isso! observou o Pinta. Mas então é por causa dessa morte que os camaradas vêm prendê-lo? |
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— O filho do Aguiar dá dois contos a quem filiar o meco. |
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— Não digo que não! |
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— Se quer entrar na festa? |
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Relanceando um olhar ao Tinguá, que parecia cochilar encostado à ombreira da porta, respondeu o Gonçalo com frouxidão: |
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— Nada; tenho obra mais fina. |
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— Quem sabe se o senhor conhece o Bugre? |
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-Pois que dúvida! |
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— Será mesmo o durão que dizem? |
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— É conforme. Eu cá não conto com ele. |
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— Hum!... |
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— O senhor bem podia nos dar alguma inculca do bicho? |
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— Cá o amigo Chico é quem há de saber por onde anda o cujo. Oh! psiu!... |
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— Nhô Pinta... Ah! Nhô Gonçalo! Acudiu o Tinguá querendo engolir as primeiras palavras escapadas. |
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— Não sabe que rumo levou o Jão? |
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— Tanto como mecê. |
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— Ora, ande lá. |
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— Ele aparece aqui, e arrancha tal e qual como os outros; não conta onde pousa; nem a gente indaga da vida alheia. |
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— Pois tocava uma boa maquia a quem nos pusesse no rasto da onça. Cem bicos! |
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Nesse momento um bacorinho de pelo ruivo, embestegava com um trote miúdo, mas ligeiro, pela cozinha, e atravessou toda a casa até a pousada, onde conversava a capangada. Aí começou a fossar nas pernas do Chico Tinguá, que, arrancando-se à balorda posição, desfechou no importuno animal um pontapé. |
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— Arre, patife. |
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Deu-se por advertido o bacorinho, que imediatamente enfiou outra vez pela venda e foi sair no quintal, onde pôs-se a grunhir com o focinho ao vento e os olhos na porta da cozinha. |
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— Pelos modos lá o homem de Campinas está com gana mesmo no Bugre? observou o Gonçalo que não tirava os olhos do Chico. |
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Pudera não! Da maneira por que arranjou-lhe o pai! |
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— Xô!... Eh! Baia!... xô!... Diabo de mula canhambola! |
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Partiam vozes do vendilhão, que fazia um grande escarcéu com braços e pernas, a fim de espantar uma besta muar que sua imaginação figurava estar furando a cerca do pasto, ao lado direito da casa. Entretanto o inocente animal assim caluniado pelo dono restolhava pacatamente a grama tosada, em companhia de uma porca e um bacorinho preto, de tamanho igual ao do outro. |
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Afinal atirou-se o Chico para a cerca, sempre a enxotar o burro, e quebrando o canto desapareceu. |
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O Gonçalo, a quem não escapara esse manejo, ergueu-se pronto da mesa, e, correndo ao ângulo da casa, observou o campo oculto pela quina da parede. |
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O bacorinho trotava pela vereda que ia dar ao mato, e seguindo-lhe as pegadas, o Chico Tinguá estugava o passo. |
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Riu-se o Gonçalo, e do terreiro disse ao Filipe: |
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O patrício faz favor? |
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[[Categoria:Til|Primeiro Volume, Capítulo 21]] |
Edição atual desde as 18h40min de 24 de maio de 2012
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