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|autor=José de Alencar
|seção=Primeiro Volume, Capítulo XXI: O bacorinho
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No inverno costumam passar por aquelas paragens ranchos de caçadores que demandam o sertão para a montearia das antas e veados que ainda abundam nos campos de Araraquara e Botucatu.

Parecia uma dessas partidas de caça, o magote de caipiras que parou fronteiro à venda, e para lá encaminhou-se depois de combinarem entre si os companheiros.

Um deles, que parecia ter sobre os camaradas tal ou qual preeminência, adiantou-se enquanto os outros atravessavam muito vagarosamente a testada da casa.

&mdash; Viva, patrício! Queremos arranchar aqui para almoçar!

&mdash; Pois sim! respondeu o Tinguá com a sua voz sorneira sem mexer-se do balcão onde continuava debruçado.

Habituados certamente a esse modo de acolhimento, os caipiras foram por si tomando conta da casa e aboletando-se na pousada. Uns se estiravam nas camas, e outros já sentados no banco junto à mesa esperavam o almoço com uma fome de caçador.

&mdash; Sô Filipe, venha alguma coisa que se masque, para despregar a barriga do espinhaço! exclamou um dos companheiros.

&mdash; E também que se chupite, para untar os gorgomilhos, e consolar o peito! acudiu outro.

&mdash; Aí vem, camaradas, não se assustem! retorquiu Filipe.

Dirigindo-se ao balcão, pesquisou ele com os olhos nas prateleiras e por todo o âmbito da taberna, o que havia para matar a fome: e sempre arranjou-se com um velho queijo de Minas, algumas rapaduras e farinha de milho.

&mdash; Pode nos das café? perguntou ao Chico.

&mdash; Há de se poder! tornou o vendeiro.

Rodearam os caipiras a mesa e devoraram as provisões, depois de terem molhado a garganta com um copázio de boa cachaça de Piracicaba, a fim de escorregar-lhes bem o bocado, e não os engasgar.

Na extremidade oposta, tomava o Gonçalo seu café, observando os caçadores com a curiosidade natural à vida monótona do interior, mas também com um recacho de arrogante fatuidade. Sem dúvida tinha-se ele por um grande personagem, incógnito àqueles pobres diabos.

&mdash; Isso há de ser tarde já! disse olhando céu.

Era um pretexto para travar a conversa; mas os outros com a boca cheia não estavam dispostos à palestra. Apenas o Filipe correspondeu com um meneio de cabeça.

Virou o Gonçalo a palangana de café e acendeu o pito.

&mdash; É servido? perguntou oferecendo fogo ao caipira.

&mdash; Nada, obrigado.

&mdash; Ainda que mal pergunte, o patrício vem de longe?

&mdash; De Campinas!

&mdash; E anda caçando? Por estas bandas há muito veado e paca: mas como os caititus este ano, nunca se viu: é mesmo uma praga!

&mdash; Nós cá andamos no rasto, mas é de outra caça! atalhou um dos caipiras a rir.

&mdash; Viemos desencovar uma onça! acudiu outro.

&mdash; E é suçuarana!

&mdash; Qual! Tigre verdadeiro!

Fizeram coro os caipiras na gargalhada que despertara o dito do companheiro. Não compreendendo a pilhéria, o Gonçalo estava a olhá-los meio desconfiado e com um riso insosso.

&mdash; O patrício não lobriga?

&mdash; Por vida, que não! tornou o Gonçalo. Ainda que Suçuarana é o sobrenome cá do degas; por causa de ser malhado como a bicha. Não vê?...

E mostrou as manchas da cara.

&mdash; Sem falar da munheca!... Talvez o amigo não acredite; mas onde a vê, já pegou queda de braço com uma; e mais era um bichão da altura daquela porta, sem exageração! Agora quanto às risadas dos patrícios, a falar verdade não avento!

&mdash; Já vê que é caça gorda.

&mdash; É cá uma história!

&mdash; Por força que há de conhecer um tal Jão Bugre?

&mdash; Conheço bem!

&mdash; Pois aí está a bicha fera que viemos desencovar. Parece que a furna dele fica por aqui perto. Não podia nos dar notícia?

&mdash; Mas então os camaradas andam-lhe na pista?

Entrava o Chico Tinguá, com a pichorra de café e as palanganas que deitou sobre a mesa, recostando-se depois ao portal da entrada, com a perna trançada e a mão no quadril.

&mdash; Não ouviu falar no Aguiar, do Limoeiro, não?... Um fazendeiro, que o tal Bugre arrumou com duas facadas, há de andar por uns dois meses?

&mdash; Tenho uma idéia, replicou o Gonçalo.

&mdash; O negócio deu brado, porque o homem era rico e andava sempre com uma ruma de capangas. Mas Bugre fez-lhe as contas.

&mdash; É um temível!

&mdash; Marcado como ele só!

&mdash; Nem por isso! observou o Pinta. Mas então é por causa dessa morte que os camaradas vêm prendê-lo?

&mdash; O filho do Aguiar dá dois contos a quem filiar o meco.

&mdash; Não digo que não!

&mdash; Se quer entrar na festa?

Relanceando um olhar ao Tinguá, que parecia cochilar encostado à ombreira da porta, respondeu o Gonçalo com frouxidão:

&mdash; Nada; tenho obra mais fina.

&mdash; Quem sabe se o senhor conhece o Bugre?

-Pois que dúvida!

&mdash; Será mesmo o durão que dizem?

&mdash; É conforme. Eu cá não conto com ele.

&mdash; Hum!...

&mdash; O senhor bem podia nos dar alguma inculca do bicho?

&mdash; Cá o amigo Chico é quem há de saber por onde anda o cujo. Oh! psiu!...

&mdash; Nhô Pinta... Ah! Nhô Gonçalo! Acudiu o Tinguá querendo engolir as primeiras palavras escapadas.

&mdash; Não sabe que rumo levou o Jão?

&mdash; Tanto como mecê.

&mdash; Ora, ande lá.

&mdash; Ele aparece aqui, e arrancha tal e qual como os outros; não conta onde pousa; nem a gente indaga da vida alheia.

&mdash; Pois tocava uma boa maquia a quem nos pusesse no rasto da onça. Cem bicos!

Nesse momento um bacorinho de pelo ruivo, embestegava com um trote miúdo, mas ligeiro, pela cozinha, e atravessou toda a casa até a pousada, onde conversava a capangada. Aí começou a fossar nas pernas do Chico Tinguá, que, arrancando-se à balorda posição, desfechou no importuno animal um pontapé.

&mdash; Arre, patife.

Deu-se por advertido o bacorinho, que imediatamente enfiou outra vez pela venda e foi sair no quintal, onde pôs-se a grunhir com o focinho ao vento e os olhos na porta da cozinha.

&mdash; Pelos modos lá o homem de Campinas está com gana mesmo no Bugre? observou o Gonçalo que não tirava os olhos do Chico.

Pudera não! Da maneira por que arranjou-lhe o pai!

&mdash; Xô!... Eh! Baia!... xô!... Diabo de mula canhambola!

Partiam vozes do vendilhão, que fazia um grande escarcéu com braços e pernas, a fim de espantar uma besta muar que sua imaginação figurava estar furando a cerca do pasto, ao lado direito da casa. Entretanto o inocente animal assim caluniado pelo dono restolhava pacatamente a grama tosada, em companhia de uma porca e um bacorinho preto, de tamanho igual ao do outro.

Afinal atirou-se o Chico para a cerca, sempre a enxotar o burro, e quebrando o canto desapareceu.

O Gonçalo, a quem não escapara esse manejo, ergueu-se pronto da mesa, e, correndo ao ângulo da casa, observou o campo oculto pela quina da parede.

O bacorinho trotava pela vereda que ia dar ao mato, e seguindo-lhe as pegadas, o Chico Tinguá estugava o passo.

Riu-se o Gonçalo, e do terreiro disse ao Filipe:

O patrício faz favor?

[[Categoria:Til|Primeiro Volume, Capítulo 21]]

Edição atual desde as 18h40min de 24 de maio de 2012

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