Poesias (Bernardo Guimarães, 1865)/Cantos da solidão/Invocação: diferenças entre revisões

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Revisão das 20h14min de 12 de fevereiro de 2014

Ó tu, que ora nos tergos da montanha
Nas asas do Aquilão passas rugindo,
E pelos céus entre bulcõe sombrios
Da tempestade o plúmbeo carro guias,
Ora suspiras na mudez das sombras
Manso agitando as invisíveis plumas,
E ora reclinado em nuvem rósea,
Que a brisa embala no ouro do horizonte,
Expandes no éter vagas harmonias,
Voz do deserto, espírito melódico
Que as cordas vibras dessa lira imensa,
Onde ressoam místicos hosanas,
Que inteira a criação a Deus exalça;
Salve, ó anjo! – minha alma te saúda,
Minha alma que, a teu sopro despertada,
Murmura, qual vergel harmonioso
Pelas brisas celestes embalado.....

Salve, ó gênio dos desertos,
Grande voz da solidão,
Salve, ó tu, que aos céus exalças
O hino da criação!

Sobre nuvem de perfumes
Te deslizas sonoroso,
E o rumor de tuas asas
É hino melodioso.

Que celeste querubim
Te deu essa harpa sublime,
Que em variados acentos
As dúlias dos céus exprime?

Harpa imensa de mil cordas
Donde em caudal, pura enchente,
Estão suaves harmonias
Transbordando eternamente?!

De uma corda a prece humilde
Como um perfume se exala
Entoando o sacro hosana,
Que do Eterno ao trono se ala;

Outra como que pranteia
Com voz fúnebre e dorida
O fatal poder da morte
E as amarguras da vida;

Nesta brando amor suspira,
E lamenta-se a saudade;
Nest’outra ruidosa e férrea
Troa a voz da tempestade.

Carpe as mágoas do infortúnio
De uma a voz triste e chorosa,
E só geme sob o manto
Da noite silenciosa.

Outra o hino dos prazeres
Entoa lêda e sonora,
E com cânticos festivos
Saúda nos céus a aurora.

Salve, ó gênio dos desertos,
Grande voz da solidão,
Salve, ó tu, que aos céus exalças
O hino da criação!

Sem ti o mundo jazera
Inda em lúgubre tristeza,
E o horror do caos reinara
Sobre toda a natureza;

Pela face do universo
Funérea paz se estendera,
E o mundo em mudez perene
Como um túmulo jazera;

Sobre ele então pousaria
Silêncio torvo e sombrio,
Como um sudário cobrindo
Um cadáver quedo e frio.

De que servira essa luz
Que abrilhanta o azul dos céus,
E essas cores tão mimosas
Que tingem da aurora os véus?

Essa risonha verdura,
esses bosques, rios, montes,
Campinas, flores, perfumes,
Sombrias grutas e fontes?

De que servira essa gala,
Que te enfeita, ó natureza,
Se adormecida jazeras
Em estúpida tristeza?

Se não houvesse uma voz,
Que erguesse um hino de amor,
Uma voz que a Deus dissesse
– Eu vos bendigo, ó Senhor!

Do firmamento nos cerúleos páramos
Sobre o dorso das nuvens balouçado,
Os olhos arroubados espraiando
Nos longes vaporosos
Dos bosques, das remotas serranias,
E dos mares na túrbida planície,
Cheio de amor contemplas
De Deus a obra tão formosa e grande,
E em melódico adejo então pairando
À face dos desertos,
De caudal harmonia as fontes abres;
Como na lira que pendente oscila
No ramo do arvoredo,
Roçadas pelas auras do deserto,
As cordas todas sussurrando ecoam,
Assim ao sopro teu, gênio canoro,
De júbilo palpita a natureza,
E as vozes mil desprende
De seus eternos, místicos cantares:
E dos horrendos brados do oceano,
Do rouco ribombar das cachoeiras,
Do rugir das florestas seculares,
Do quérulo murmúrio dos ribeiros,
Do frêmito amoroso da folhagem,
Do canto da ave, do gemer da fonte,
Dos sons, rumores, maviosas queixas,
Que povoam as sombras namoradas,
Um hino teces majestoso, imenso,
Que na amplidão do espaço murmurando
Vai unir-se aos concertos inefáveis
Que na límpida esfera vão guiando
O giro infindo, e místicas coréias
Dos rutilantes orbes;
Flor, que se enlaça na eternal grinalda
Be celeste harmonia, que incessante
Se expande aos pés do Eterno!...

Tu és do mundo
Alma canora,
E a voz sonora,
Da solidão;

Tu harmonizas
O vasto hino
Almo e divino
Da criação;

És o rugido
D'alva cascata
Que se desata
Da serrania;

Que nas quebradas
Espuma e tomba,
E alto ribomba
Na penedia;

És dos tufões
Rouco zunido,
E o bramido
Da tempestade;

Voz da torrente
Que o monte atroa;
Trovão,que ecoa
Na imensidade.

Suspira a noite
Com teus acentos,
Na voz dos ventos
És tu quem gemes;

À luz da lua
Silenciosa,
Na selva umbrosa
Co'a brisa fremes;

E no oriente
Tua voz sonora
Desperta a aurora
No róseo leito;

E toda a terra
Amor respira:
– De tua lira
Mágico efeito!

E quando a tarde
Meiga e amorosa
Com mão saudosa
Desdobra os véus,

Tua harpa aérea
Doce gemendo
Lhe vai dizendo
Um terno adeus!

Sentado às vezes no alcantil dos montes,
Másculos sons das cordas arrancando
A tempestade invocas,
E à tua voz os aquilões revoltos
A desfilada ruem,
E em seu furor uivando encarniçados
Lutam, forcejam, como se tentassem
Arrancar pelas bases a montanha!
Alarido infernal atroa as selvas,
No monte ronca a turva catadupa,
Que por sombrios antros despenhada
Ruge tremendo no profundo abismo;
Ígneo surco em súbitos lampejos
Fende a lúgubre sombra, – estala o raio,
E os ecos pavorosos ribombando
As celestes abóbadas atroam;
E a tempestade as asas rugidoras
De monte a monte estende,

E do trovão, do raio
A voz ameaçadora,
A fúria atroadora
Dos euros turbulentos,

Das selvas o rugido,
Da catarata o ronco,
O baque de alto tronco,
A luta de mil ventos,

Dos vendavais revoltos
Os pávidos bramidos,
Dos combros aluídos
O hórrido fracasso,

E do bulcão, que abre
A rúbida cratera,
A voz, que estruge fera
Nas solidões do espaço,

Do rábico granizo
O estrondo, que sussurra
Nas broncas serranias,
E o ribombar das vagas
Nas ocas penedias,
E todo esse tumulto,
Que em música horrorosa
Troa, abalando os eixos do universo,
São ecos de tua harpa majestosa!!

Porém silêncio, ó gênio, – não mais vibres
As bronzeas cordas, em que bramam raios,
pregoeiros da cólera celeste:
Mostra-me o céu brilhando azul e calmo
Como a alma do justo, e sobre a terra
Estende o manto amigo do sossego.
Deixa errar tua mão nos áureos fios,
Onde sóis desferir moles cantigas
A cujos sons se embala a natureza
Em êxtase suave adormecida.
E solta a sussurrar por entre as flores
Inquieto bando de lascivos zéfiros:
Que por seu meigo hálito afagada
A selva balanceie harmoniosa
Sua virente cúpula, exalando
Entre perfumes namorados quebros,
E de sinistras névoas destoucando-se
No diáfano azul dos horizontes
Banhados de luz meiga, os montes surdam.
Quando sem nuvens, plácida, festiva,
Tão bela assim, resplende a natureza,
Me parece que Deus do excelso trono
Um sorriso de amor à terra envia,
E corno nesses dias primitivos,
Lá quando ao sopro seu onipotente
Formosa a criação do caos surgia,
Nas obras suas se compraz ainda.

Vem pois, Anjo canoro do deserto,
Desta harpa a Deus fiel roça em teu vôo
As fibras sonorosas,

E delas fuja um hino harmonioso
Digno de unir-se aos místicos concertos,
Que ecoam nas esferas,

Hino banhado nas ardentes ondas
De santo amor, – que com sonoras asas
Em torno a Deus sussurre.

Erga-se a minha voz, inda que débil,
Qual ciciar da cana, que palpita
Ao sopro de uma aragem!...

Queime-se todo o incenso de minh'alma,
E em ondas aromáticas se expanda
Aos pés do Onipotente!...