Iracema/IX: diferenças entre revisões

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O sono da manhã pousava nos olhos do Pajé como névoas de bonança pairam ao romper do dia sobre as profundas cavernas da montanha. '


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Martim parou indeciso; mas o rumor de seu passo penetrou no ouvido do ancião, e abalou seu corpo decrépito.

&mdash; Araquém dorme! murmurou o guerreiro devolvendo o passo.

O velho ficou imóvel:

&mdash; O Pajé dorme porque já Tupã voltou o rosto para a terra e a luz correu os maus espíritos da treva. Mas o sono é leve nos olhos de Araquém, como o fumo do sapé no cocuruto da serra. Se o estrangeiro veio para o Pajé, fale; seu ouvido escuta.
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&mdash; O estrangeiro veio, para te anunciar que parte.

&mdash; O hóspede é senhor na cabana de Araquém; todos os caminhos estão abertos para ele. Tupã o leve à taba dos seus.

Vieram Caubi e Iracema:

&mdash; Caubi voltou: disse o guerreiro tabajara. Traz a Araquém o melhor de sua caça.

&mdash; O guerreiro Caubi é um grande caçador de montes e florestas. Os olhos de seu pai gostam de vê-lo.

O velho abriu as pálpebras e cerrou-as logo:

&mdash; Filha de Araquém, escolhe para teu hóspede o presente da volta e prepara o moquém da viagem. Se o estrangeiro precisa de guia, o guerreiro Caubi, senhor do caminho, O acompanhará.

O sono voltou aos olhos do Pajé.

Enquanto Caubi pendurava no fumeiro as peças de caça, Iracema colheu a sua alva rede de algodão com franjas de penas, e acomodou-a dentro do uru de palha trançada.

Martim esperava na porta da cabana. A virgem veio a ele:

&mdash; Guerreiro, que levas o sono de meus olhos,
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leva a minha rede também. Quando nela dormites, falem em tua alma os sonhos de Iracema.

&mdash; Tua rede, virgem dos tabajaras, será minha companheira no deserto: venha embora o vento frio da noite, ela guardará para o estrangeiro o calor e o perfume do seio de Iracema.

Caubi saiu para ir à sua cabana, que ainda não tinha visto depois da volta. Iracema foi preparar o moquém da viagem. Ficaram sós na cabana o Pajé que ressonava, e o mancebo com sua tristeza.

O sol, transmontando, já começava a declinar para o ocidente, quando o irmão de Iracema tornou da grande taba.

&mdash; O dia vai ficar triste, disse Caubi. A sombra caminha para a noite. É tempo de partir.

A virgem pousou a mão de leve no punho da rede de Araquém.

&mdash; Ele vai! murmuraram os lábios trêmulos.

O Pajé levantou-se em pé no meio da cabana e acendeu o cachimbo. Ele e o mancebo trocaram a fumaça da despedida.

&mdash; Bem-ido seja o hóspede, como foi bem-vindo à cabana de Araquém.

O velho andou até à porta para soltar ao vento uma
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espessa baforada de tabaco; quando o fumo se dissipou no ar, ele murmurou:

&mdash; Jurupari se esconda para deixar passar o hóspede do Pajé. Araquém voltou à rede e dormiu de novo. O mancebo tomou as armas que chegando, suspendera às varas da cabana, e dispôs-se a partir.

Adiante seguiu Caubi; a alguma distancia o estrangeiro; logo após, Iracema.

Desceram a colina e entraram na mata sombria. O sabiá do sertão, mavioso cantor da tarde, escondido nas moitas espessas da ubaia, soltava os prelúdios da suave endecha.

A virgem suspirou:

&mdash; A tarde é a tristeza do sol. Os dias de Iracema vão ser longas tardes sem manhã, até que venha para ela a grande noite.

O mancebo se voltara. Seu lábio emudeceu, mas os olhos falaram. Uma lágrima correu pela face guerreira, como as umidades que durante os ardores do estio transudam da escarpa dos rochedos.

Caubi avançado sempre, sumira-se entre a densa ramagem.
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O seio da filha de Araquém arfou, como o esto da vaga que se franja de espuma e soluça. Mas sua alma, negra de tristura, teve ainda um pálido reflexo para iluminar a seca flor das faces. Assim em noite escura vem um fogo-fátuo luzir nas brancas areias do tabuleiro.

&mdash; Estrangeiro, toma o último sorriso de Iracema e foge!

A boca do guerreiro pousou na boca mimosa da virgem. Ficaram ambos assim unidos como dois frutos gêmeos do araçá, que saíram do seio da mesma flor.

A voz de Caubi chamou o estrangeiro. Iracema abraçou para não cair, o tronco de uma palmeira.

Revisão das 19h19min de 26 de junho de 2014


IX

O somno da manhã pousava nos olhos do Pagé como nevoas de bonança pairão ao romper do dia sobre as profundas cavernas da montanha.

Martim parou indeciso; mas o rumor de seu passo penetrou no ouvido do ancião, e abalou seu corpo decrépito.

— Araken dorme! murmurou o guerreiro devolvendo o passo.

O velho ficou imóvel:

— O Pagé dorme porque já Tupan voltou o rosto para a terra e a luz correu os máos espiritos da treva. Mas o somno é leve nos olhos de Araken, como o fumo do sapé no cocuruto da serra. Si o estrangeiro veio para o Pagé, falle; seu ouvido escuta.

— O estrangeiro veio, para te annunciar que parte.

— O hospede é senhor na cabana de Araken; todos os caminhos estão abertos para elle. Tupan o leve á taba dos seus.

Vierão Cauby e Iracema:

— Cauby voltou; disse o guerreiro tabajara. Traz a Araken o melhor de sua caça.

— O guerreiro Cauby é um grande caçador de montes e florestas. Os olhos de seu pai gostão de ve-lo.

O velho abrio as palpebras e cerrou-as logo:

— Filha de Araken, escolhe para teu hospede o presente da volta e prepara o moquem da viagem. Si o estrangeiro precisa de guia, o guerreiro Cauby, senhor do caminho, o acompanhará.

O somno voltou aos olhos do Pagé.

Enquanto Cauby pendurava no fumeiro as peças de caça, Iracema colheu a sua alva rede de algodão com franjas de pennas, e accommodou-a dentro do urú de palha trançada.

Martim esperava na porta da cabana. A virgem veio a elle:

— Guerreiro, que levas o somno de meus olhos, leva a minha rede tambem. Quando nella dormires, fallem em tua alma os sonhos de Iracema.

— Tua rede, virgem dos Tabajaras, será minha companheira no deserto: venha embora o vento frio da noite, ella guardará para o estrangeiro o calor e o perfume do seio de Iracema.

Cauby sahio para ir á sua cabana, que ainda não tinha visto depois da volta. Iracema foi preparar o moquem da viagem. Ficarão sós na cabana o Pagé que ressonava, e o mancebo com sua tristeza.

O sol transmontando, já começava a declinar para o occidente, quando o irmão de Iracema tornou da grande taba.

— O dia vai ficar triste, disse Cauby. A sombra caminha para a noite. E' tempo de partir.

A virgem pousou a mão de leve no punho da rede de Araken.

— Elle vai! murmurarão os labios trêmulos.

O Pagé levantou-se em pé no meio da cabana e accendeu o cachimbo. Elle e o mancebo trocarão a fumaça da despedida.

— Bem ido seja o hospede, como foi bem vindo á cabana de Araken.

O velho andou até á porta, para soltar ao vento uma espessa baforada de tabaco; quando o fumo ae dissipou no ar, elle murmurou:

— Jurupary se esconda para deixar passar o hóspede do Pagé.

Araken voltou á rede e dormiu de novo. O mancebo tomou as suas armas mais pesadas que chegando suspendera as varas da cabana e se dispoz a partir.

Adiante seguio Cauby; a alguma distancia o estrangeiro; logo apoz delle Iracema.

Descerão a colina e entraram na mata sombria. O sabiá do sertão, mavioso cantor da tarde, escondido nas moitas espessas da ubaia, soltava os prelúdios da suave endeixa.

A virgem suspirou:

— A tarde é a tristeza do sol. Os dias de Iracema vão ser longas tardes sem manhã, até que venha para ella a grande noite.

O mancebo se voltara. Seu labio emmudeceu, mas os olhos falarão. Uma lagrima correu pela face guerreira, como as humidades que durante os ardores do estio transudão da escarpa dos rochedos.

Cauby avançado sempre, sumira-se entre a densa ramagem. O seio da filha de Araken arfou, como o ésto da vaga que se franja de espuma, e soluçou. Mas sua alma, negra de tristura, teve ainda um pallido reflexo para illuminar a secca flôr das faces. Assim em noite escura vem um fogo fatuo luzir nas brancas areias do taboleiro.

— Estrangeiro, toma o ultimo sorriso de Iracema.... e foge!

A boca do guerreiro pousou na boca mimosa da virgem. Ficarão ambas assim unidas como dois fructos gêmeos do araçá, que sahirão do seio da mesma flor.

A voz de Cauby chamou o estrangeiro. Iracema abraçou para não cahir o tronco de uma palmeira.