A Bella Madame Vargas/II: diferenças entre revisões

Wikisource, a biblioteca livre
Conteúdo apagado Conteúdo adicionado
Luckas Blade (discussão | contribs)
nova página: {{navegar |obra=A Bela Madame Vargas |autor=João do Rio |anterior=Primeiro ato |posterior=Terceiro ato |se...
 
mSem resumo de edição
Linha 6: Linha 6:
|seção=Segundo ato
|seção=Segundo ato
|notas=
|notas=
}}[[Categoria:A Bela Madame Vargas|A 02]]
}}
==__MATCH__:[[Página:A Bella Madame Vargas.djvu/81]]==
''No dia seguinte, às 2 horas da tarde''
''No dia seguinte, às 2 horas da tarde''


Linha 869: Linha 870:
(Atira-a sobre as cadeiras, sai).
(Atira-a sobre as cadeiras, sai).


Madame Vargas (soluçando) - Carlos! Carlos! Carlos! 0 pano cerra-se bruscamente.
Madame Vargas (soluçando) - Carlos! Carlos! Carlos! 0 pano cerra-se bruscamente.

[[Categoria:A Bela Madame Vargas|A 02]]

Revisão das 18h52min de 15 de setembro de 2014

__MATCH__:Página:A Bella Madame Vargas.djvu/81

No dia seguinte, às 2 horas da tarde

É o salão de música. Pela janela aberta, vê-se a varanda e um trecho do esplêndido panorama que é o encanto do terraço. Um piano de cauda ao fundo, com uma colcha de seda vermelha. Jarrão da China entre a janela e a porta. Mobília de laca vermelha e palha dourada. À direita, no primeiro plano, um bibelô com espelho, junto à porta de comunicação com o interior. As paredes são forradas de tapeçaria d'Araccio em lilás e prata velha, motivo: as nove Musas.

Estão em cena Fiorelli e D. Maria que vem entrando.

Fiorelli - La signora?

D. Maria - Doente.

Fiorelli - Como?

D. Maria - Uma leve indisposição. Desde ontem, veio-lhe a migraine.

Fiorelli - Com este lindo dia de primavera?

D. Maria - Infelizmente, não escolhemos o dia para adoecer. Mas sente-se, Fiorelli, descanse.

Fiorelli - E Ia signora não me mandou dizer nada?

D. Maria - Não. Creio mesmo que não se lembrou de você. Compreende, uma dor de cabeça. Mas sente-se, Fiorelli, ao menos enquanto espera condução.

Fiorelli (sem sentar-se, hesitando) - Com que então, sempre, bem senhora D. Maria?

D. Maria - Eu? Como Deus é servido. Cuidando da vida dos outros desde que a minha já vai no epílogo.

Fiorelli (distraído) - Seriamente!

D. Maria - Este Fiorelli! Sempre distraído! Sim, seriamente - séria e tristemente. Mas fale-me de si. Que fez ontem à noite?

Fiorelli - Estive no Lino com a família Gomes Pedreira. Cantavam a Bohemia.

D. Maria - Pobre Fiorelli!

Fiorelli - Bela música, um tanto renitente, mas bela música. (ouve-se o timbre elétrico rio interior). Mas chamam. É, de certo, Ia signora. Senza incomodo. (subtamente mais tímido). Quando será então? Eu preciso tanto!

D. Maria - Mando-lhe amanhã.

Fiorelli - Veramente!

D. Maria - Sem falta.

Fiorelli - Oh! Grazzie! Grazzie! (sai)

D. Maria (acompanhou o músico até aporta, diz-lhe adeus. Volta) - Pobre Fiorelli!

Madame Vargas (Aparecendo no interior) - Foi-se?

D. Maria - Com a resignação de sempre. Está convencido de que eu mando pagar amanhã. Devemos ao Fiorelli cinco meses de tocadas e lições.

Madame Vargas - Outros devem mais. Também tu! Lembrar-me tal coisa, na situação em que estou!

D. Maria - Situação que não é de hoje...

Madame Vargas - Ainda o dizes!

D. Maria - E que piora a cada dia. Ontem o copeiro despediu-se antes de jantar. Foi preciso uma grande tática de que devia servir à mesa. Dei-lhe até o laço na gravata com ar de quem o faz pelo menos comandante de uma brigada estratégica.

Madame Vargas - E ainda brincas?

D. Maria - Para que desanimar? Tenha fé em ti. A nossa situação é desesperadora. Tu mesmo não sabes quanto deves. Devemos a todos os fornecedores, aos criados e ainda por cima fazemos mais dívidas, com o mesmo louco trem de vida. É delicado. Mas seria possível parar agora, fazer leilão, ir morar para uma casa qualquer? Que prazer teriam os teus inimigos, isto é, a sociedade inteira! A bela Hortência Vargas, a viúva do diplomata, a orgulhosa Hortência que rejeita as melhores propostas, descendo do seu pedestal.

Madame Vargas - Nem todos pensam assim.

D. Maria - A maioria não sabe que não temos mais dinheiro e quer ver o fim. É humano. Que fazer? Resistir. Esperar. Tenho virado um pouco financeira e devo dizer-te que esgotados os dinheiros da hipoteca da casa começo a liquidar as tuas jóias. Belfort dá-me conselhos e já aceitou duas letras minhas.

Madame Vargas - Tia!

D. Maria - Ele é tão delicado, que é impossível recusar. E há um ano vivemos nesta despesa de grão-duque sem rendimento! Mas tenho fé Resolves agora tudo.

Madame Vargas - Resolvo?

D. Maria - Então o José? O casamento é a única solução. Que esperavas tu? Um casamento rico. Vem-te rico, jovem e apaixonado.

Madame Vargas - Sim. É rico, é milionário, é moço, amante. Seria minha felicidade. Ama-me...

D. Maria - Mas é a tua felicidade.

Madame Vargas - Como, tia?

D. Maria - Como? Então não aceitaste?

Madame Vargas - Aceitei sim, aceitei. Não foi só pela questão de dinheiro. Desde que José tão humildemente me ofereceu a sua mão de esposo, uma imensa e submissa gratidão me foi enchendo a alma. Aceitei. Mas querer-me ele e desejar eu esse enlace já, é o mesmo.

D. Maria - Não pode deixar de ser já. A demora é o desastre.

Madame Vargas - A quem o dizes! Ele quer, eu quero. Mas há de outro lado as insinuações, as cartas anônimas, os despeitos, tudo quanto tem o rótulo da sociedade. (Levanta-se). E há, meu Deus, e há, para suprema infelicidade, Carlos.

D. Maria - Não se convence?

Madame Vargas - Não se convence. Ao contrário. Ameaça fazer um escândalo, ameaça contar tudo.

D. Maria - Mas é infame.

Madame Vargas - Infame, fui eu. Infame que me entreguei, após tanto tempo de honestidade a um rapaz sem escrúpulos. É louco? Mas louca sou eu que me deixei levar, arrastar por ele. Não me olhes assim. Eu estava só, só, sem ter ninguém que me amasse. Agora, não. Agora sinto que não é possível mais, que há uma grande, oh! Enorme diferença entre os dois. E quero realizar minha vida; Quero e hei de realizar.

D. Maria - Realizarás, estou certa. Mas que vais fazer?

Madame Vargas - Imagina o que é preciso fazer! Que esforço, que contenção de nervos. Há oito dias, Carlos desconfiou; sentiu que José era mais do que um partido. O seu ciúme as suas cenas! Aumentam hora a hora! Tia, se Carlos tiver a certeza do pedido de casamento, estou perdida. E ele desconfia.

D. Maria - Não.

Madame Vargas - Mais do que isso. Tem quase a certeza. Está louco. Disse-me ontem no chá.

D. Maria - E cometeste a imprudência de recebê-lo à noite!

Madame Vargas - Viste?

D. Maria - Não vi, mas tinha a certeza. Não fosse eu mulher! A mulher só tem um recurso contra o ciúme: entregar-se. Esquece que ainda complica a vida.

Madame Vargas - Sim, sim. Foi pior. Não imaginas que noite, que pavorosa noite de sofrimento. A insistência sua, a terrível insistência, o nome do outro nos seus lábios que me beijavam com brutalidade! Tinha ímpetos de escorraçá-lo e estreitava-o mais. É preciso o ocultar, ocultar. No dia que souber, conta tudo ao José Não dormi. Só há um recurso, fugir, casar fora daqui, ver-me livre dele. Depois José defender-me-á!

D. Maria - Minha pobre Hortência!

Madame Vargas - E tenho de fingir, continuar a fingir sem que ninguém me ajude. Tia, já não se trata de dinheiro, trata-se da minha honra para um homem que me respeita a ponto de me oferecer sua mão.

D. Maria - Por que não falas a Belfort?

Madame Vargas - Ele vem hoje. Prometeu-me ontem. Só ele que sabe de tudo e é bom e poderá ajudar-me. (Aparece o criado).

Antônio - O Dr. José Ferreira.

Madame Vargas - Mande entrar. (O criado sai). Deixai-nas sós, tia. Vê que não nos interrompam. A todo o instante penso no outro_ Como eu leria vontade de dizer a este toda a verdade, e como é impossível! (Vai ao espelho, compõe a fisionomia e volta-se a sorrir quando entra José Ferreira com um ramo de rosas, fica perto do puff). Seja bem­vindo com as suas lindas flores!

José - Como todos os dias as flores são suas.

Madame Vargas - (vai por as flores no vaso sobre o piano) - Merci. Mas sabe que é escandaloso? Quem o vir chegar todo dia com um ramo de rosas o que não dirá?

José - Que importa, se é para bom fim!

Madame Vargas - E a nossa combinação?

José - O segredo? É o de Polichinelo. Sabe que falei ontem à mamã?

Madame Vargas - Ah!

José - Era apenas uma formalidade, mas não podia deixar de a cumprir.

Madame Vargas - Fez bem. Que disse ela?

José - Ficou contente. Tudo que parece ser a minha felicidade é de resto sempre a vontade de mamã. Sou _filho único e ela é só. Imagine que pensa em netos! Mas conhecia-a de vista e acha-a linda. Sabe que causa uma impressão de rainha?

Madame Vargas - Lisonjeiro!

José - A mamã é uma senhora muito ativa, de costumes rígidos, bem a senhora antiga, esposa de fazendeiro, achando que ninguém pode ser superior aos seus. Sabe entretanto a sua frase? Disse-me a sorrir : "Aquela senhora tão bonita gostou de ti, JoséT'

Madame Vargas - Oh! José!

José - Repito o que disse a mamã. E olhe que para falar francamente, de vez enquanto ponho-me a pensar e indago a mim mesmo: como seria isso?

Madame Vargas - Senhor Dr. José Ferreira, se viesse sentar-se em vez de dizer isso?

José - É a verdade. Quando há dois meses a vi no teatro tive uma tão esmagadora impressão! O coração se fez pequeno, pequeno. Já me disseram que só se fica assim diante das pessoas que nos vão dar um grande bem ou mal irremediável. Lembra-se? Ao entrar no seu camarote pelo braço do Guedes, não sabia o que dizer. O coração adivinhava e fazia-se pequeno com medo.

Madame Vargas - (rindo) - Felizmente, o medo durou pouco­

José - Porque logo se fez amor. Mas nem calcula como esse seu ar tão superior, esse seu ar de imperatriz faz os outros se julgarem menores. Eu tremo sempre de a perder...

Madame Vargas - Ilusão! A imperatriz já o vira na platéia e indagava: quem será aquele rapaz diverso dos outros que me olha na quinta fila?

José - Hortência!

Madame Vargas - É bom gostar um pouco dos outros!

José - Amo-a tanto! Hortência, que bem o sinto, o meu amor há de fazê-la feliz.

Madame Vargas - José! Conhece-me. Deve-lhe ter dito tanto mal de mim! A fria Hortência, é que despreza todos os pretendentes! Sim! é uma pouco verdade. Nunca amei. Entretanto, não sei porque nesta minha vida, neste inferno de festas, de alegrias que são amargores e amargores que não são alegrias, só uma pessoa dá-me uma impressão de sossego, de paz d'alma, de apoio, de satisfação completa - você. Quando você está, sinto­me tão calma, tão descansada, tão bem! É fé - a fé de que encontrei enfim o meu amigo, o meu protetor, o meu verdadeiro esposo. E o meu coração sente-se então muito largo, muito largo, e eu tenho uma grande vontade de chorar.

José - É bom falar-me assim, Hortência. Se eu quisesse dizer-lhe o que é o meu amor, dir­lhe-ia que desejava fazê-lo forte e macio como de aço coberto de veludo, para defender sem a magoar. Porque é superior ás outras, porque tem a alma tão alta e a beleza tão altiva, é que precisa de quem lhe abra o caminho, de quem limpe a estrada da pedra e da erva daninha, de quem sob os seus passos estenda o arminho e as rosas. Eu amo-a assim, Hortência. Muito, muito. Se não me desse atenção, se não me quisesse ver, teria desaparecido sem a criminar. Levaria comigo apenas a mágoa da minha inferioridade, e não teria uma queixa e não diria nada. Sabendo que me aceita, que me agasalha, sinto que a vida se completa e que a sorte, trazendo-me a felicidade e fazendo-me bom, completou que a série dos seus bens, dando-me para conduzir a estrela que de longe eu seguia...

Madame Vargas - José! José! Eu nunca tive me falasse assim. Eu nunca tive. Se tudo entre nós tivesse de acabar, poderia levar a certeza de uma recordação indelével, a certeza da revelação. É tão delicado e tão bom! Dá-me flores e o seu amor. Quantos me ofereceram isso antes, eu recusei. Ofereciam? Sei lá! Queriam. É você o único que oferta, e tão bem que o perfume da sua alma entontece, e que uma grande vontade de ser boa faz da pobre Hortência alguém que só no mundo o quer. Mas é sonho. Tudo quanto é muito bom não pode ser verdade.

José - Por que?

Madame Vargas - Tenho medo daqui, tenho medo de tudo. Enquanto não o conhecia, José, enquanto a minha vida era lutar e resistir nesta sociedade de invejas, de intrigantes e

de egoístas, era forte e queria. Tinha de ser. Diante de mim o horizonte se definia sempre igual e pardacento. Agora não. Agora tenho medo, tenho medo de tudo. A cada passo penso que vão destruir a minha felicidade.

José - Mas quem?

Madame Vargas - Esta vida! Esta gente!

José - Mas se eu estou a seu lado?

Madame Vargas - O meu desejo era um só - partir. Partir consigo.

José - Já agora está assentado o nosso casamento.

Madame Vargas - Seria tão bom que não fosse aqui! escute, José É uma estado de nervos, um receio vago inexplicável. Eu não queria que fosse aqui. Partir. Partir. Levar para longe dos curiosos a nossa felicidade e de lá então anunciar.

José - Sempre a mesma idéia.

Madame Vargas - Guardar o segredo, o segredo imenso do meu primeiro amor.

José - Não quer que ninguém o saiba?

Madame Vargas - O meu desejo era que o mundo o ignorasse, que fosse depois como uma surpresa irrevogável.

José - Eu, ao contrário desejaria que todos soubessem.

Madame Vargas - Vaidoso!

José - Orgulhoso! Ando tão alegre, tão cheio de felicidade, que só tenho o desejo de irradiar pelos que encontro o meu prazer. O segredo sufoca-me.

Madame Vargas - Guarda-o por mim, José, guarda-o. Há tanta gente que não suportaria a nossa alegria! Procurariam envenenar os nossos instantes de prazer, falando, inventando, caluniando. Seria o tormento nas reuniões, a curiosidade indiscreta nos teatros - coisas pior, quem sabe...

José - Que importa a opinião dos outros?

Madame Vargas - Essa gente vive conosco na mais cordial simpatia, mas ao perceber a felicidade, é uma raiva que lhes dá de despeito e de inveja.

José - Dizendo-o a todos, ninguém se atreverá. O mistério dá-me a impressão de que vamos cometer um crime.

Matame Vargas - E há maior crime para os outros de que organizarmos a própria felicidade? Não, José Como seria bom partir!

José - Mas parto. Sempre acedi aos seus desejos.

Madame Vargas (de súbito, rindo) - Tu partes num dia, eu parto no outro. Chegamos no mesmo dia. E depois de lá chegar, eu rirei, eu rirei...

José - Como está nervosa, Hortência. Nunca a vi tão nervosa como hoje.

Madame Vargas - É que não posso mais, José Não posso mais aturar esta gente, esta sociedade. Tudo antes de você. Nada agora, Nem mais um dia, porque um dia é um século. Eu iria, partiria se não fosse primeiro.

José - Mas não é preciso tamanha exaltação. Já tanto me-falou no mistério e nessa partida, que estou de há muito resolvido.

Madame Vargas - Palavra?

José - Palavra. Desde que lhe declarei o meu amor, imagina inimigos por todos os cantos. Não é tanto assim! Levei um mês a ouvir o-~ falar de si. E o que diziam? Que era insensível, que era má, que seria incapaz de amar? Vivem a verdade de tudo isso! De mim o que poderão dizer? Nada ou tudo. Que importa se não acredita? Mas é vontade sua.

Para que contrariar? Acabemos. Amo-a. Quer partir? Que seja já. Mais depressa casaremos.

Madame Vargas - José, José!

José - Mas que nervos! Que nervos, Hortência!

Madame Vargas - Hoje é terça. Partiria amanhã?

José - Como?

Madame Vargas - Sim, embarcando amanhã, eu seguiria depois de amanhã noutro paquete, só com a criada. tia ficaria. Ninguém saberá senão depois de estarmos longe. tudo se esclarecerá quando dois dias depois os telegramas disserem o nosso casamento.

José - Mas é uma-fugida.

Madame Vargas - É.

José - Dirão, que fugimos juntos.

Madame Vargas - Que importa?

José - Mas,_3ortência, é um estado de nervos...

Madame Vargas - Não, é medo. Medo de ver desfeita a única ilusão da minha vida. Sou só no mundo. Só agora comecei a amar a um ente, quando o sofrimento já me fizera medrosa. Esta sociedade dilacera-me. Enquanto não o conheci - não pensava. Agora cada vez penso mais, cada vez desejo mais. Terá que anunciar uma felicidade a realizar-se. Realizamo-la antes para fazê-la depois conhecida. Para que demorar?

José - Não me incomoda a opinião alheia. Mas neste caso a maledicência será contra si. Hortência.

Madame Vargas - Que importa, se sabe você bem o que é? O meu desejo é impedir o travo da felicidade. Se eu não o amasse José, juro que não lhe pediria isso!

José - Como é possível negar-lhe alguma coisa? Mas são duas horas. E eu tenho de levar a mãe à cidade. É obrigação. Logo à noite estarei cá.

Madame Vargas - Ainda há tempo de partir amanhã?

José - É uma viagem de núpcias inteiramente nova!

Madame Vargas - Cada um no seu vapor e antes do casamento! Como vou rir! Como vou rir!

José - Mas é preciso não ficar assim nervosa... porque então não vou nem mesmo à cidade...

Madame Vargas - Sim por mim, por mim (Pendendo no seu ombro). Nunca imaginará, José, como lhe quero bem!

José - Seria dar-me força para querê-la mais - se fosse possível. Minha querida, sempre tão nervosa!... Até logo.

Madame Vargas - Volta para dar-me a resposta?

José - Volto à noite. Tranqüilize-se. Já lho disse. E juro que parto.

Madame Vargas - Meu querido! (Acompanha-o até a porta. Fica a dizer-lhe adeus porque José passa pela varanda. Depois tem um grande suspiro, distende os braços. Infinita tristeza na face. Instante. Silêncio. C,ái numa cadeira junto à janela, meditando. Entra Belfort).

Belfort - Muito bom dia, Hortência.

Madame Vargas - Oh! Barão.

Belfort - Como vamos de ontem?

Madame Vargas - Como fiquei ontem?

Belfort - Alguma coisa grave?

Madame Vargas - Infinitamente Grave. Encontrou José?

Belfort - Vim do landaulet. Não o vi. Trata-se dele?

Madame Vargas - Trata-se do drama da minha vida, desta minha desgraçada vida. Não tenho ninguém para desabafar, para me aconselhar num grave momento, a não ser a tia, que é boa e não tem inteligência, e o senhor que é inteligente...

Belfort - Mas não sou bom.

Madame Vargas - É o melhor dos homens.

Belfort - Não diga isso. Sabe bem que só pode ser bom para uns o que é mau para outros. (Desce a ela) Mas como está nervosa! Pobre Hortência! Que coração o seu! Sabe a que a comparo? A uma flor cujo viço depende de muito cuidado e que jaz para aí sem esse cuidado à mercê da intempérie. Diga-me. Vai casar sempre?

Madame Vargas - Barão, sabe toda a minha vida. Nunca lhe ocultei nada porque seria inútil. Sabe mesmo antes que lhe digam. Sim. Quero realizar esse casamento. Que pensa ele?

Belfort - É uma solução, a única mesmo.

Madame Vargas - Não lhe pergunto a opinião que faz de José Vejo que o acha melhor do que os outros.

Belfort - É raro. Bom, nobre, sério, escandalosamente sério. Só não me atrevo a rir da sua inverossímil seriedade para que os outros seriamente não se convençam de que não há perigo em continuarem patifes.

Madame Vargas - E pensa como eu desta gente!

Belfort - Engana-se. Não penso, classifico. No dia em que cada homem sério quiser organizar-se um pouco à maneira de um gabinete de identificação, a sociedade melhorará quase tanto como o desejam os socialistas. Será apenas o uso intensivo da precaução, - da ciência da precaução. Mas em tudo isso, minha querida Hortência, o essencial é não sofrer. Todos nós desejamos não sofrer. E parece que sofre pelo menos uma grande preocupação. Não é o José? Esse ama-a leal e sinceramente...

Madame Vargas - É a minha vida.

Belfort - Só?

Madame Vargas - Estou incapaz de continuar, estou sim, cansada de sofrer. Não posso mais. Conhece-me há muito, barão. Não me queixo nunca. Mas já não posso.

Belfort - Não se trata mais de lutar. Trata-se de um sentimento.

Madame Vargas - Sim, talvez.

Belfort - A sua vida tem sido à espera da felicidade.

Madame Vargas - Com que desejo a espero!

Belfort - Desta vez está a tê-la nas mãos...

Madame Vargas - Barão, sou muito infeliz! Nunca fiz mal a ninguém por vontade. E entretanto parece que tudo se revolta contra mim. Sabe o que se passa?

Belfort - Q que não podia deixar de ser, minha boa Hortência. Acabou por amar deveras um homem digno que a pediu...

Madame Vargas - E de repente, quando tenho a felicidade, quando a sinto ao alcance da mão, após uma vida de esforço, de sacrificio, de tormento oculto, o único momento de loucura, o único instante de esquecimento desta vida exemplar, ergue-se como o desastre.

Belfort - Como?

Madame Vargas - Lembra-me a sua frase, há dois meses, na legação do Japão.. "Há pequenas tolices que são grandes desastres". O senhor olhava Carlos com um frieza terrível. Compreendi que sabia, que tinha sabido.

Belfort - A velhice torna infalível a observação.

Madame Vargas - Eu entretanto já antes o compreendera também. Abandonara-me a um desvario de momento, a um desejo mais forte, e estava à mercê de uma criatura egoísta, seca, brutal, um rapaz que tem a prática da maldade de um velho. Precisava dum consolo. Tive um aro de ferro que me cerra, que me cinge, que me aperta. Antes de poder escapar­lhe, veio José É tão diferente!

Belfort - É não pensar senão no José...

Madame Vargas - Ah! não posso. Infelizmente não posso. Viu ontem Carlos no chá?

Belfort - Fazia acena do ciúme insolente.

Madame Vargas - Desconfiou que há da minha parte mais do que simples interesse por José. Desconfiou e eu neguei. Neguei por medo, neguei por covardia. Quanto mais eu nego, porém, mais o seu ciúme quer, mais exige. Vivo num tormento. Não posso mais. Se confesso, sinto-o bastante capaz de, por vingança, ir dizer ao outro a minha falta. Se nego, tenho de fingir, de fingir amor por um ente, que não amo, que não amei nunca, que apenas me entonteceu. Como é fátuo, como é mau, como é cruel esse rapaz, meu amigo. Não! É preciso acabar com isso já. Mesmo que não case com o José, não poderei mais suportá-lo!

Belfort - Tenha calma.

Madame Vargas - Só a um homem como o senhor falo como a mim mesmo. Sou bem uma infeliz. Sabe o meu orgulho de menina, a minha vaidade. Recalquei o desejo, com a ambição de triunfar. Era bela, a intangível. Casaria com um grande nome. Há dez anos - em torno de mim amontoaram-se os desastres. Fugi do amor, e quando esse amor estava para chegar, ainda o desastre, o maior, o insuperável me fez ruir todas as esperanças. Não quero! Não quero, não! É de mais. Porque preciso vencer, porque quero ser digna - porque amo.

Belfort - Mas não se exalte.

Madame Vargas - Chegou ao auge, meu amigo. É a tortura, estou nas mãos de Carlos, sabe? Inteiramente nas suas mãos. Ele conta tudo se souber que eu caso. É o escândalo. Pior. E o meu fim.

Belfort - Não fará isso.

Madame Vargas - Jurou-me. E faz. Sei que faz, para muito mais. Conhece-o?

Belfort - Vi-o menino.

Madame Vargas - Tem-se por chic, tem-me por prazer mau, tem-me como se tem uma tem uma presa. Dei-lhe o que uma mulher tem de mais caro: a reputação. Como? Não sei! Era a sua impertinência, era a sua ciência de tentação. Eu estava só, havia tanto tempo... Se pudesse ser perdoada, teria apenas para o perdão essa terrível expiação de todos os momentos, sentindo-o a fingir amor, a gozar, a mandar, a dispor da minha honra, da minha vida, por vaidade, por egoísmo, por maldade.

Belfort - Mas não fará nada disso.

Madame Vargas - Não o conhece.

Belfort - Mais do que supõe. Quer ter confiança em mim?

Madame Vargas - É a única pessoa que me merece.

Belfort - Que pretende fazer?

Madame Vargas - Fingi até agora, fingi com pavor, com a idéia única de salvar-me. Tudo, menos que o José venha-a saber. E consegui, consegui tudo. O José embarca amanhã. Eu sigo-o. Se ele não cometer a sua ameaça até amanhã, estou salva!

Belfort - É apenas uma criancice. E o José embarca?

Madame Vargas - Pedi-lhe tanto!

Belfort - Mas, minha querida Hortência, fugir é levar o tiro pelas costas.

Madame Vargas - Que fazer? Eu não sei! Já não penso.

Belfort - É simples. Dizer-lhe tudo.

Madame Vargas - Nunca!

Belfort - Carlos é de uma família honrada: refletirá.

Madame Vargas - Não! Não! Quero partir!

Belfort - Partir é secundário. É preciso apenas partir com a certeza de que esse rapaz não lhe fará uma infâmia ao saber do caso.

Madame Vargas - Fa-la-á, barão, fiá-la-á!

Maria (à porta) - Hortência. (Os dois voltam-.se, D. Maria faz um sinal significativo).

Madame Vargas - Ei-lo aí. Vê? Volta! Está continuadamente aqui. Volta a ameaçar-me.

Belfort (resolução.súbita) - Recebo-o eu.

Madame Vargas - Barão, por quem é!

Belfort - Deixe-nos sós, Hortência. É muito grave o que se passa. Sou eu quem lho diz. Juro que lhe darei a felicidade. Deixe-me conversar um pouco com ele. Bastará isso. Depois venha falar-lhe.

Madame Vargas - Não me perca! Não me perca!

Belfort - Nunca dou um passo sem a certeza do que vou fazer. Vá. (Leva-a com autoridade até a porta, fecha-a. Senta-se numa poltrona). Há quanto tempo não via um pequeno drama em pleno desenlace. Vai ser realmente delicioso! (Recosta-se com indiferença).

Carlos (entrando, surpreendido) - Oh! O senhor?

Belfort - Bom dia, jovem Carlos.

Carlos - Pensava tudo menos encontrá-lo agora.

Belfort - Goza você da mesma surpresa que eu. Também não contava.

Carlos - Madame Vargas?

Belfort - Acaba de sair daqui.

Carlos - D. Maria?

Belfort - Ainda não a vi. Anda de certo nos arranjos da casa. Pobre D. Maria!

Carlos - É uma boa senhora.

Belfort - Quem sabe? Não há ninguém bom nem mau completamente. As pessoas são como as ações. Tomam o aspecto do momento. Há ações que encaradas sob o prisma da rigorosa moral parecem pouco apreciáveis, e que, entretanto, se pensarmos bem, sem moral, chegam a ser desculpáveis.

Carlos - Sempre moralista!

Belfort - E dos melhores, porque compreendo a imoralidade geral sem regenerá-la. Mas como nós divagamos!

Carlos - Talvez do calor!

Belfort - É que ambos temos uma preocupação forte.

Carlos - 0 barão tem alguma?

Belfort - A de querer conversar com você.

Carlos - É o que fazemos.

Belfort - Conversar a sério. Em geral conversamos muito para não dizer nada. Escondemos o terrível diálogo do silêncio. Desde que chegou, você pergunta: que me queres tu? E eu respondo; já te direi!

Carlos - É imaginoso.

Belfort - É, como vê, muito triste. Não negue. O nervosismo impaciente da sua atitude parece traí-lo. Que quer fazer?

Carlos - Mas... Nada.

Belfort - Ainda bem. Há pouco, depois do almoço, vim ver Hortência e soube de coisas muito interessantes.

Carlos - Ah!

Belfort - Sente-se aqui. Tenho por Hortência uma grande amizade, a amizade que se tem pelos que não conseguem realizar a felicidade, tendo todas as condições para obtê-la. Hortência, não sei se sabe? Continuando depois da morte do marido, a mesma vida de fausto, está sem recursos. Ou antes tem pouco para manter uma vida que é a. razão de ser da sua existência. A aparência! Como a aparência leva à ruina neste país! Hortência soçobra, porém, sem salvamento. Falta-lhe um auxílio forte, falta-lhe um homem.

Carlos - Ah!

Belfort - Claro que com a sua altivez e a sua intangível honestidade ela não aceitaria nem aceitará nunca auxílios de dinheiro estranho. Qual a solução que você apontaria à nossa pobre amiga, que não sabe ser senão bela e gastadora - para a salvar do cataclismo?

Carlos - Francamente...

Belfort - Ela está bem num dilema, não acha?

Carlos - Compreende, esta confidência imprevista...

Belfort - Da minha parte, não há dúvida, deve espantá-lo. Mas nós conversamos muito. E há de fato uma solução providencial, a solução que noventa e nove vezes sobre cem acode as pessoas acostumadas ao luxo, quando o luxo vê que as vai perder. Hortência, no seu desastre financeiro, conserva a maior dignidade e a maior pureza. Dela até agora, nem suspeita. Quer um charuto?

Carlos - Obrigado, não fumo.

Belfort - Inibe-se com isso de dois prazeres; o de devancar e o de perder a memória, o que em certos casos é excelente. Mas onde estava eu?

Carlos - No dilema.

Belfort - Não. Um pouco mais adiante. Na providência. Creio que o não fadigo.

Carlos - Ao contrário.

Belfort - E a providência, como sempre providencial, arranjou a solução...

Carlos (explodindo) - Barão, por que me tortura, há tanto tempo?

Belfort - Mas não. Procuro as palavras. Quero apenas fazê-lo refletir.

Carlos - Ela vai casar, ela aceitou o casamento?

Belfort - Ela aceitará.

Carlos - Com ele?

Belfort - Que importa que seja com ele ou com outro? É a salvação.

Carlos - E mandou chamá-lo para me dizer isso?

Belfort - Como amigo que a respeita e que deseja a sua felicidade.

Carlos - Só isso, barão, só esse ato dela, mostra que eu tenho um pouco de razão. Não teve coragem de me dizer face a face.

Belfort - Estima por você talvez.

Carlos - Estima! A ironia dessa palavra! Estima! Dou-me a ela, hipoteco-me à sua vontade, vivo por ela, pensando, sonhando nela, num sentimento imenso de dedicação, de amor, escondendo-me, humilhando-me. E quando após três meses, ainda é maior o meu sacrifício, casa com outro e manda-me dizer que eu reflita. Há de convir que é cômico.

Belfort (impassível) - A vida é uma dor contínua que se finge não sentir - como medo de não mais a sentir. Que se há de fazer/

Carlos - mas para que fingir.

Belfort - Você engana-se. Não fingiu até agora nem finge. Outra fosse a situação e estou certo de que não a veria sofrendo. Foi você a sua única loucura.

Carlos - Uma loucura que passa à passagem da primeira conta corrente.

Belfort (leve impaciência) - Carlos, você esquece que eu respeito madame Vargas.

Carlos - Mas é o senhor mesmo quem me dá as suas razões.

Belfort - E esquece que eu o conheço muito bem.

Carlos - Trata-se de um caso diverso, trata-se de outra coisa.

Belfort - E esquece também que não a pode prejudicar, não tem o direito de o fazer.

Carlos - Que me importa?

Belfort - E esquece até mesmo a sua situação, que me abstenho de definir.

Carlos - Diga. Continue. A minha situação miserável, a situação que no primeiro momento envaidece, mas que só se compreende depois. Diga. Ela é a grande dama, que esqueceu alguns meses o seu dever. Eu sou o rapaz sem conseqüências. Bem vestido, filho de boa família, mas sem profissão e sem dinheiro. Quando vem o interesse, allons oust! Seja cavalheiro e passe muito bem. Simplesmente o inferior! Ah! Meu caro barão, você não compreenderá nunca a fúria de amar, quando a gente se sente inferior. É uma miséria, é um nojo, é um desespero. A maioria dos desclassificados vem do amor em que eram inferiores. Eu sou inferior. Eu não tenho dinheiro. Se ela fosse rica, eu seria apenas o preferido, o manteúdo! Oh! Sim. Havia de bater-lhe para mostrar que antes de ser dela, ela é minha. Há mais porém. Sou o preferido secreto que ela arreda para casar com outro. E então tudo quanto ainda tenho de nobre, que é um desesperado orgulho, me sobe à cabeça. Tenho ciúmes, ciúmes idiotas, sem razão de ser. Ë uma luta. Vou quase a ceder e de repente vem-me palpável a lembrança dela e dele, que é estúpido, que é rico. Estúpido, rico e forte... Penso que ele sabe, que ele me despreza. Penso que ela acabará desprezando-me também, satisfeita em tudo com um espírito que se deixe dominar, com o dinheiro para gastar e além disso, com um homem forte e moço! Meu Deus! Eu já sabia que ela ia casar. Ao ver esse pobre diabo, que só a leva pelo dinheiro e pela posição, adivinhei. Então agarrei-me aos últimos instantes de dúvida, desejei-a como quem rouba, violei-lhe a fraqueza como um salteador, entontecia de.medo, de susto, de pavor...

Belfort (frio) - E vai tranqüilamente deixá-la em paz!

Carlos - Como?

Belfort - Para que esse desespero? Você é moço. A juventude pensa que tudo acaba, quando tudo continua. Para que tanto drama? Raramente as mulheres valem uma loucura. Talvez por isso não há mulher que não tenha enlouquecido um homem. Ou dois. Ou mesmo três. Mas não importa. As mulheres são pequenos vasos de cristal transparente.

Não tem cor. Nós é que lhes pomos a tinta da nossa ilusão. Vemo-las azuis, rosas, ou negras. retirada a tinta, meu rapaz, os vasos continuam sem cor. Você é um temperamento que eu conheço bem. Ela porém é um pouco diversa de você. Acabou. Acabou tudo. Retire a tinta. Outros amores virão. E o que fizer sofrer a outras mulheres compensá-lo-á do que não pode mais fazer a Hortência.

Carlos - O senhor não acredita na minha dor, barão?

Belfort - Meu caro Carlos, decididamente exagera.

Carlos - Exagero?

Belfort - Não quererá fazer-me crer numa paixão fatal por Hortência. Conheço-o muito bem. Uma paixão fatal é profundamente aborrecido_ Trata-se de uma conquista mundana, aquilo por que vocês todos almejam: a mulher bonita de sociedade, que se assalta uma noite de baile, que se envolve em luxúrias aprendidas nas pensões, e que se conserva mesmo às escondidas como um brasão, porque posa bem. Oh! não! Interromper-me para quê? É exatamente isso. depois a paixão ocupa. Entra uma Renée e uma Glória qualquer e sempre elegante, o luxo gratuito de uma senhora a quem se domina pela revelação libidinosa, pelo próprio terror do escândalo...

Carlos - Barão! Não me confunda com essa gente. O seu ceticismo aniquila a vontade que tenho de convencê-lo! Não! Eu não quero impedir a felicidade dela, eu sei que sou transitório, que não devo ser levado em conta.-Ela pode casar. Mas não com aquele, não com ele. Esse não! não!

Belfort - Por que?

Carlos - Não sei! Já não sei o que digo! Mas não. É instintivo, é uma revolta furiosa.

Belfort - Uma pequena revolta. Compreende-se. Outro qualquer não reuniria as qualidades que tanto o incomodam no José É por conseqüência uma questão de despeito, de vaidade. Tanto mais dolorosa quando é na _sombra, sem que ninguém saiba. Mas por isso mesmo nobre, mais nobre. Hortência falou-me do receio que o seu ciúme lhe causa. Teme desgraças, horrores. Logo a tranqüilizei lembrando: Carlos é um cavalheiro. A nossa palestra tem esse fim. Você vai deixar de ameaças que não são um prodígio de galanteria.

Carlos - Eu não ameaço, só eu faço.

Belfort - Você vai deixar de pensar em fazer.

Carlos - Veremos.

Belfort - Desejo convencê-lo apenas.

Carlos - Que me importa a mim ela? O respeito é recíproco. Tramou um casamento e põe-me na rua sem satisfação. Vingo-me. estou no meu direito. Não é capaz de dizer-me que o procedimento dela é moral?

Belfort - Não discuto o acaso, que tem contingências. Nada é moral. Mas acho que tudo é digno quando se procura conservar com sacrifício de um, de cem, ou de um milhão de homens a honra de uma senhora.

Carlos - É uma opinião de efeito para as mulheres.

Belfort - A melhor, Carlos, que, peço aceitar.

Carlos - Manda-me embora. É a primeira mulher que me despede! Vingo-me.

Belfort – Mas sou eu quem lhe peço.

Carlos – Em nome de quem?

Belfort - Em seu nome, em nome de seu caráter, primeiro: em meu nome depois. Sou um velho amigo da sua família, de seu pai.

Carlos - Oh! meu pai!

Belfort - Por ser amigo de seu pai, encontrou-me você sempre...

Carlos - Oh! barão. Creio que não vai trazer á coleção uns pedidos de rapaz para peitar a minha consciência.

Belfort (impaciente) - Se tem essa consciência, deveria ter começado por não ameaçar uma mulher sem defesa. Mas se a retoma agora, deve respeitar-me.

Carlos - Entre o respeito que possa ter pelo senhor e esta questão em que o senhor nada tem, há um abismo.

Belfort - Carlos, seria melhor não azedar esta palestra. Peço-lhe em meu nome ainda uma vez, em nome de um velho cético que já lhe pagou algumas contas.

Carlos - O senhor alega-me coisas que de certo não fez com o fim de se fazer meu tutor em questões de mulheres?

Belfort - É um caminho errado esse. Estás a mostrar a alma demais. E se eu quisesse alegar?

Carlos - O quê?

Belfort - Eu poderia lembrar há cinco anos a sua entrada na minha casa.

Carlos (senta-se bruscamente) - Barão!Barão!

Belfort - Eu poderia recordar a sua fisionomia desmudada, o seu gesto nervoso, os seus soluços.

Carlos - Barão, é pouco generosos o que faz. Não é de um homem como o senhor!

Belfort - Eu poderia dizer-lhe as minhas reflexões diante dessa pequena falta, em que se mostrou com lucro tão mau imitador...

Carlos - Mas não é digno! Não é digno!

Belfort - Eu poderia lembrar que tenho todos as provas de um desvairamento da sua juventude, fui tão pouco generoso que guardei esse documento num canto e nunca mais dele me lembrei.

Carlos (prostrado) - Barão! É o senhor o único homem que me pode falar assim. Não! Não continue. Eu não sei o que faço. Eu não sou mau, não, não sou! É a fatalidade. A fatalidade que me fez um gozador sem fortuna, um leviano, um pobre rapaz leviano. Tudo é contra mim. Até agora. Até agora. É o desespero que me leva a ameaçar Hortência. Eu aceitaria tudo menos o outro. E até aí a minha desgraça o faz ganhando a partida. Porque lembrar o que foi mau, por que lembrar o que passou há tanto tempo?

Belfort - A nossa palestra termina.

Carlos - Eu sou-lhe muito grato, muito, muito. Aquilo o senhor fez, não por mim mas pela minha família. Para que recordar, se continua amigo de meu pai? Esse desvario passou. Nunca mais. Nunca mais. Não precisava vir com o espectro do passado ameaçar, me.

Belforf - Não ameaço. Valorizo o meu pedido.

Carlos - Foi mau,.foi tão mau! _Disso só o senhor e eu sabemos. Nada mais resta... Não precisava lembrar tanta coisa. Eu sou eu. Não precisava fazer valer em defesa de uma criatura que eu amo, esse processo tão esquisito, tão policial...

Belfort - Diga a palavra. Essa chantagem. Graças aos deuses a chantagem não é só para as coisas ruins. Mas a nossa palestra findou. Levou-me a excessos de que me arrependo.

Pedia-lhe que refletisse. Ainda o peço. E tenho tanta confiança na sua prudência que o deixo só.

Carlos - Faz muito pouco do homem a que trata tão mal!

Belfort - Não. espero tudo do seu cavalheirismo. (consultando o relógio). Oh! Esperam­me no clube para. uma partida séria. Carlos, vai ter com Hortência uma última palestra.. Seja um homem digno. E não volte mais aqui. Se precisar (põe o chapéu, á porta, elegantíssimo) uma estação d'águas, vá falar-me. Não volte. (sai).

Carlos anda nervosamente, morde os pulsos, está furioso.

Madame Vargas (abre a porta da direita de repente) - Belfort?

Carlos (estacando) - Foi-se.

Madame Vargas - Ah! Carlos - Contou-me tudo.

Madame Vargas - Tudo?

Carlos - O teu casamento, o José Ferreira, a situação.

Madame Vargas - Não são coisas definitivas.

Carlos - Mas vão ser. É inútil mais rodeios. Falou-me como tu, friamente.

Madame Vargas - Ai de mim!

Carios - Falou-me como um negociante. Convenceu-me.

Madame Vargas - De que?

Carlos - De que somos todos do mesmo pano, assaz infames: ele, tu, o noivo e eu. Cedemos um pouco cada um de nós e as coisas irão da melhor maneira, no melhor dos mundos possíveis.

Madame Vargas - Se pensas assim...

Carlos - Pensamos. Pensamos todos assim numa peça bem imoral...

Madame Vargas - Em que não tens o melhor papel.

Carios - Nem tu.

Madame Vargas - Acho esquisito que tivesses ficado para dizer insolências.

Carlos - Não as direi mais.

Madame Vargas - Belfort falou-me. É um amigo comum.

Carlos - Extraordinário, absolutamente extraordinário, é o que ele é

Madame Vargas - A tua insistência, os teus ciúmes não me davam coragem para te expor a salvação da minha vida. Chamei-o como a única pessoa capaz de te convencer.

Carlos - Convenceu-me. Mas por que chamá-lo? Que se deu? O que eu pensava? Bastava que me tivesse dito logo no primeiro dia. Sou um cavalheiro, sou ao menos teu amigo. Compreendo as necessidades. Compreendo muito bem. Para que fingiste? Tu é que andaste mal.

Madame Vargas - Eu? Se não tivesse estabelecido um cerco angustioso em torno de mim, a espreitar, a entrar a todo o instante, a responderes quase com ódio, se não tivesse a cada passo uma cena terrível de ameaça, teria agido doutro modo. Mas tu viraste meu inimigo.

Carlos - O amor é cego.

Madame Vargas - Sabes que detesto frases vazias.

Carlos - Eu também. Principalmente ditas por nós.

Madame Vargas - Esse tom de impertinência vai-te mal.

Carlos - Não sei porque.

Madame Vargas - Devo lembrar-te que falas comigo.

Carlos - Estou certo.

Madame Vargas - Eu é que estou cansada, ouviste? Esses teus modos são para outro lugar.

Carlos - Não se trata aqui da minha educação. Trata-se de um arranjo. Eu estava estorvando. vem o Belfort e eu cá estou pronto. Nada de talon rouge-apaches!

Madame Vargas - Longe de me acalmar, tudo quanto dizes, mais me excita. Se tivesses aceitado razoavelmente os. fatos, não dirias grosserias.

Carlos (rompendo) - Mas vocês são engraçadas! Vocês são tão boas como as outras, vocês têm amigos, vocês têm protetores, com que combinam enganar a humanidade...

Madame Vargas - Carlos!

Carlos - E no momento em que lhe falamos como a iguais, ficam imensamente ofendidas.

Madame Vargas - Carlos! Carlos!

Carlos - Que temos?

Madame Vargas - É de mais. Não me afrontes mais. É indigno o que fazes.

Carlos - Somos iguais. Nada de poesia.

Madame Vargas - Nunca pensei que me humilhasses assim... Não podias fazer.

Carlos - Não se trata do que eu possa fazer.

Madame Vargas - É uma miséria! E dizer que me entreguei a um grosseirão da tua ordem!

Carlos - O papel de vítima vai-te mal.

Madame Vargas - Esqueci todo o meu passado, o meu nome, o meu faturo.

Carlos - A bela lamentação!

Madame Vargas - Meu Deus!

Carlos - Mas não perdes o futuro, fica certa. Que é preciso fazer? Desaparecer? acompanhar o casamento?

Madame Vargas - Tenho pena de ti, Carlos!

Carlos - Em troca eu tenho-te inveja!

Madame Vargas - Para que cavar entre nós o abismo das más palavras?

Carlos - Há um maior.

Madame Vargas - Há a fatalidade - o que não podia deixar de ser.

Carlos - Achas?

Madame Vargas - Mas o que desejas tu, afinal? Que eu perca minha posição social? Que me denuncie publicamente tua amante? Que eu case contigo? Dize. Não podemos continuar definidamente nesta situação, em que me colocas. Não te bastou o meu orgulho. Queres ver-me vilipendiada, corrida. O meu erro foi pensar um momento que tinhas por mim alguma feição.

Carlos - Hortência!

Madame Vargas - Não vens nunca senão com a ameaça. O teu amor é a violência e a afronta. Que queres tu afinal? Dize, que eu faço. O barão falou-te. Estou arrependida de lho ter pedido. Era melhor, sem receio, desde que é esta a minha situação, arrostar com tudo. Vamos a saber. Queres casar comigo?

Carlos - Hortência.

Madame Vargas - Queres? Essa seria a melhor das hipóteses para mim e é irrealizável. Sabes bem que é E as outras? As outras são o meu desastre apenas.

Carlos - Quando se ama não se reflete como tu refletes. O teu casamento é um pretexto para me afastar. Já não me queres`

Madame Vargas - Não quero loucuras, não quero o meu sacrificio inútil - inútil porque não o compreenderias. Por enquanto eu sou a Bela Madame Vargas que requestas numa linda vila na melhor sociedade. Seria a mesma amanhã seguindo-te na miséria?

Carlos - Para que frases?

Madame Vargas - Quero ao menos saber francamente o que desejas. Esta é a nossa última explicação. Fala.

Carlos - Para que?

Madame Vargas - Fala, dize o que desejas, o que se poderá fazer?

Carlos - Ora!

Madame Vargas - Dize sempre. Dize... Ficaremos com a situação clara.

Carlos - O amor-é o sofrimento.

Madame Vargas - O amor é a dedicação. Mas não fales de amor!

Carlos - Falo, falo, sim. Queres saber? Sofres? Eu sofro muito mais. Já -não vivo senão com a tua idéia, idéia de egoísmo, de ambição, de desejo, seja! Mas tu! Cada um ama como pode. Há três meses que me importava ires com outro... casares? Há dois meses mesmo! Hoje eu não posso, eu não quero, oh! sim! não quero, não! Ver-te com outro, só a lembrança me enche de sangue a cabeça e me atordoa.

Madame Vargas - Não divagues, Carlos. Fala a verdade.

Carlos - Digo o que sinto.

Madame Vargas - Dize inteiramente.

Carlos - Não quero que cases.

Madame Vargas - Que devo fazer então? Casar contigo? Fugir contigo?

Carlos - Hortência!

Madame Vargas - Mas completa o teu pensamento, tem a coragem de completá-lo, dize o que ambos sentimos há muito tempo. Não é o meu casamento que te preocupa. Quantas vezes falas-te dele a rir como uma coisa fatal.

Carios - Hortência!

Madame Vargas - Não te incomodava eu ser de outro, não te aborrecia isso, o sangue não te enchia a cabeça nessa ocasião. Eu que te ouvia, tu que falavas como éramos iguais! Tem pois a coragem da verdade. Não te aborreceria que eu desposasse fulano ou sicrano, o deputado Guedes ou o banqueiro Praxedes. O que te incomoda, o que tu não queres é que seja o José.

Carlos - Pois si. Confesso. É verdade. Odeio-o, odeio-o. Não me revoltaria se casasse com outro. Mas com ele não! Com esse nunca! Com ele é que não quero.

Madame Vargas - Por que?

Carlos - Não sei, não sei!

Madame Vargas - Porque é rico?

Carlos - Não -sei.

Madame Vargas - Porque é moço?

Carlos - Não quero! Não quero!

Madame Vargas - Porque é digno?

Carlos - Como eu adivinhava! Antes de ser comerciante, es bem mulher. Sim, não quero que cases com ele, confesso-o, porque é rico, é moço, é digno, porque é estúpido, porque

o amas. Sim. Gostas dele! É o único de quem tu gostas. Cada dia gostas mais. Cada dia mais. Vi, senti, tive a certeza. Eu fui a loucura que se recorda com horror. Ele é o teu amor.

Madame Vargas - Estás louco. Fala baixo.

Carlos - Não _negues, não mintas também. Acabemos com isso. Há um mês que lutamos eu e tu - eu querendo saber, tu a fugir. Vieste. É um bem. sabes o que eu penso. Mas eu sei o que tu sentes. Esse imbecil conquistou-te! Todos nós colaboramos para que ele ficasse em foco. E tu amaste-o ao vê-lo. E tu me abandonas por causa dele.

Madame Vargas - Não!

Carlos - Não ocultarias, se o não amasses. E fingiste, fingiste! Para que fingiste tanta razão, tu que é tão doida como qualquer de nós? Para que fostes buscar Belfort, para acabar as nossas relações?

Madame Vargas - Pela tua exasperação contínua. Com medo de ti.

Carlos - Medo por ele! Só por ele! Ele é o alfenim a que tu vais pertencer e não deve ser incomodado. A sociedade! os teus credores! Mas continuarias comigo apesar da sociedade e dos credores, se não fosse ele. Tudo por ele, só por ele!

Madame Vargas - medo por ti, por mim.

Carlos - Eu é que grito agora: deixa de farsa! Mas escuta, vem cá. Há instantes lembrastes as minhas conversas cobre a possibilidade do teu casamento. Pois bem. Dize-me cá: se casares com ele, continuaríamos os dois os mesmos?

Madame Vargas - Mas é indecente o que fazes_ Não estás no teu juízo. Tudo o que dizes é desvario.

Carlos - Porque eu sei que não será, compreendes? Eu sei. Ele adquiriu-te completa com a estupidez e o dinheiro. Já viste um imbecil enganado pela mulher? Nem que case com uma meretriz!

Madame Vargas - É demais! É demais! Carlos, vai-te. Tinha de acabar assim a nossa afeição. pensarás depois na grande dor que me dás! Vai-te. Não posso mais! Não posso mais! Está tudo acabado!

Carlos - Como o amas! Como queres ver-te livre de mim para realizar com ele toda a tua ambição! Atiras-me á rua como um trapo, como uma bola de papel. Mas é que não sabes que eu não quero.

Madame Vargas - Não queres o que?

Carlos - Não quero que case contigo.

Madame Vargas - É uma baixeza que não farás.

Carlos - Nunca mulher nenhuma me abandonou. Vais ver.

Madame Vargas - Não farás. Não será possível!

Carlos - Nem tu, nem as conversas de Belfort, nem cem como tu.me poderiam deter_

Madame Vargas - Dir-lhe-ei tudo, contar-lhe-ei tudo, antes de ti. Ele me perdoará.

Carlos - Antes de. lho dizeres, vou eu dizer-lho!

Madame Vargas - Carlos, não transformes o meu sentimento por ti em ódio.

Carlos (pegando no chapéu) - O teu sentimento por mim agora é medo. Mas não creias que me dominarás, que me vencerás. Ele não casará contigo.

Madame Vargas - Ele é um homem de bem. Não te ouvirá.

Carlos - Gritarei!

Madame Vargas - Correr-te-á!

Carlos - Não o fará, ouviste? Não o fará! Não -se trata mais de mulheres doidas e de velhos tolos. Trata-se de homens, estás ouvindo?

Madame Vargas (precipitando-se) - Carlos! Carlos!

Carlos (no auge da fúria, agarrando-lhe os pulsos) - Fica sabendo. Fica sabendo bem. Havemos de contar-lhe tudo, ouviste? Havemos de ver-lhe a decepção de idiota. E ele não correrá ninguém, porque se der um passo - mato-o!

(Atira-a sobre as cadeiras, sai).

Madame Vargas (soluçando) - Carlos! Carlos! Carlos! 0 pano cerra-se bruscamente.