A Mulher de Preto/VII: diferenças entre revisões

Wikisource, a biblioteca livre
Conteúdo apagado Conteúdo adicionado
m Luckas_Blade: match
m Luckas_Blade: split
Linha 9: Linha 9:
[[Categoria:A Mulher de Preto|Capítulo 07]]
[[Categoria:A Mulher de Preto|Capítulo 07]]


==[[Página:Contos fluminenses.djvu/142]]==
— Quando quiser que eu lhe apresente o meu amigo Meneses... dizia Estêvão uma noite à viúva Madalena.


<pages index="Contos fluminenses.djvu" from=142 to=149 />
&mdash; Ah! é verdade; um dia destes. Vejo que o senhor é amigo dele.

&mdash; Somos amigos íntimos.

&mdash; Verdadeiros?

&mdash; Verdadeiros.

Madalena sorriu; e como estava brincando com os cabelos do filho deu-lhe um beijo na testa.

A criança riu alegremente e abraçou a mãe.

A idéia de vir a ser pai honorário do pequeno apresentou-se ao espírito de Estêvão. Contemplou-o, chamou por ele, acariciou-o e deu-lhe um beijo
==[[Página:Contos fluminenses.djvu/143]]==
no mesmo lugar em que pousaram os lábios de Madalena.

Estêvão tocava piano, e às vezes executava algum pedaço de música a pedido de Madalena.

Nessas e noutras distrações lá passavam as horas.

O amor não adiantava um passo.

Podiam ser ambos duas crateras prestes a rebentar a lava; mas até então não davam o menor sinal de si.

Esta situação incomodava o rapaz, acanhava-o, e fazia-o sofrer; mas quando ele pensava em dar um ataque decisivo, era exatamente quando se mostrava mais covarde e poltrão.

Era o primeiro amor do rapaz: ele nem conhecia as palavras próprias desse sentimento.

Um dia resolveu escrever à viúva.

"É melhor, pensava ele; uma carta é eloqüente e tem a grande vantagem de deixar a gente longe."

Entrou para o gabinete e começou uma carta.

Gastou nisso uma hora; cada frase ocupava-lhe muito tempo. Estêvão queria fugir à hipótese de ser classificado como tolo ou como sensual. Queria que a carta não respirasse sentimentos frívolos nem maus; queria revelar-se puro como era.

Mas de que não dependem às vezes os acontecimentos? Estêvão estava relendo e emendando a carta
==[[Página:Contos fluminenses.djvu/144]]==
quando lhe entrou por casa um rapazola que tinha intimidade com ele. Chamava-se Oliveira e passava por ser o primeiro janota do Rio de Janeiro.

Entrou com um rolo de papel na mão.

Estêvão escondeu rapidamente a carta.

&mdash; Adeus, Estêvão! disse o recém-chegado. Estavas escrevendo algum libelo ou carta de namoro?

&mdash; Nem uma nem outra coisa, respondeu Estêvão secamente.

&mdash; Dou-te uma notícia.

&mdash; Que é?

&mdash; Entrei na literatura.

&mdash; Ah!

&mdash; É verdade, e venho ler-te a primeira comédia.

&mdash; Deus me livre! disse Estêvão levantando-se.

&mdash; Hás de ouvir, meu amigo; ao menos algumas cenas; dar-se-á caso que não me protejas nas letras? Anda cá; ao menos duas cenas. Sim? É pouca coisa.

Estêvão sentou-se.

O dramaturgo continuou:

&mdash; Talvez prefiras ouvir a minha tragédia intitulada &mdash; O Punhal de Bruto...

&mdash; Não, não; prefiro a comédia: é menos sanguinária. Vamos lá.

O Oliveira abriu o rolo, arranjou as folhas, tossiu
==[[Página:Contos fluminenses.djvu/145]]==
e começou a ler o que se segue, com voz pausada e fanhosa:

<blockquote>
CENA I

CÉSAR (entrando pela direita); JOÃO (pela esquerda)

CÉSAR &mdash; Fechada! A sinhá já se levantou?

JOÃO &mdash; Já, sim senhor; mas está incomodada.

CÉSAR &mdash; O que tem?

JOÃO &mdash; Tem... está incomodada.

CÉSAR &mdash; Já sei. (Consigo) "Os incômodos do Costume". (A João) Qual é então o remédio hoje?

JOÃO &mdash; O remédio? (Depois de uma pausa) Não sei.

CÉSAR &mdash; Está bom, vai-te!
==[[Página:Contos fluminenses.djvu/146]]==

CENA II

CÉSAR, FREITAS (pela direita)

CÉSAR &mdash; Bom dia. Sr. procurador...

FREITAS &mdash; De causas perdidas. Só me ocupo em procurar as perdidas. Procurar o que se não perdeu é tolice. A minha constituinte?

CÉSAR &mdash; Disse-me o João que está incomodada.

FREITAS &mdash; Mesmo para V.Sa.?

CÉSAR &mdash; (Sentando-se) Mesmo para mim. Por que me olha com esse olhar? Tem inveja?

FREITAS &mdash; Não é inveja, é admiração! De ordinário ninguém corresponde ao nome que recebeu na pia; mas o Sr. César, benza-o Deus, não desmente que traz um nome significativo, e trata de ser nas páginas
==[[Página:Contos fluminenses.djvu/147]]==
amorosas o que foi o outro nas batalhas campais.

CÉSAR &mdash; Pois também os procuradores dizem coisas destas?

FREITAS &mdash; De vez em quando. (Indo sentar-se) V.Sa. admira-se?

CÉSAR &mdash; (Tirando charutos) Como não é de costume... quer um charuto?

FREITAS &mdash; Obrigado... Eu tomo rapé. (Tira a boceta) Quer uma pitada?

CÉSAR &mdash; Obrigado.

FREITAS &mdash; (Sentando-se) Pois a causa da minha constituinte vai às mil maravilhas. A parte contrária requereu assinação de dez dias, mas eu vou...

CÉSAR &mdash; Está bom, Sr. Freitas, eu dispenso o resto; ou
==[[Página:Contos fluminenses.djvu/148]]==
então não me fale linguagem do foro. Em resumo, ela vence?

FREITAS &mdash; Está claro. Tratando provar que...

CÉSAR &mdash; Vence, é quanto basta.

FREITAS &mdash; Pudera não vencer! Pois se eu ando nisto...

CÉSAR &mdash; Tanto melhor!

FREITAS &mdash; Ainda não me lembro de ter perdido uma só causa: isto é, já perdi uma, mas é porque nas vésperas de ganhar disse-me o constituinte que desejava perdê-la. Dito e feito. Provei o contrário do que já tinha provado, e perdi... ou antes, ganhei, porque perder assim é ganhar.

CÉSAR &mdash; É a fênix dos procuradores.

FREITAS &mdash; (Modestamente) São os seus bons olhos...
==[[Página:Contos fluminenses.djvu/149]]==

CÉSAR &mdash; Mas a consciência?

FREITAS &mdash; Quem é a consciência?

CÉSAR &mdash; A consciência, a sua consciência?

FREITAS &mdash; A minha consciência? Ah! essa também ganha.

CÉSAR &mdash; (Levantando-se) Ah! também?...

FREITAS &mdash; (O mesmo) Tem V. SA.alguma demandazinha?

CÉSAR &mdash; Não, não, não tenho; mas, quando tiver, fique descansado, vou bater à sua porta...

FREITAS &mdash; Sempre às ordens de V.
=== no match ===
Sa.
<blockquote>

Revisão das 15h02min de 1 de novembro de 2014


— Quando quizer que eu lhe apresente o meu amigo Menezes... dizia Estevão uma noite á viuva Magdalena.

— Ah! é verdade; um dia d’estes. Vejo que o senhor é amigo d’elle.

— Somos amigos intimos.

— Verdadeiros?

— Verdadeiros.

Magdalena sorrio; e como estava brincando com os cabellos do filho deu-lhe um beijo na testa.

A criança rio alegremente e abraçou a mãi.

A idéa de vir a ser pai honorario do pequeno apresentou-se ao espirito de Estevão. Contemplou-o, chamou por ele, acariciou-o e deu-lhe um beijo no mesmo lugar em que pousárão os labios de Magdalena.

Estevão tocava piano, e ás vezes executava algum pedaço de musica a pedido de Mgadalena.

N’essas e n’outras distracções lá passava as horas.

O amor não adiantava um passo.

Podião ser ambos duas crateras prestes a rebentar a lava; mas até então não davão o menor signal de si.

Esta situação incommodava o rapaz, acanhava-o, e fazia-o soffrer; mas quando elle pensava em dar um ataque decisivo, era exactamente quando se mostrava mais cobarde e poltrão.

Era o primeiro amor do rapaz: elle nem conhecia as palavras proprias d’esse sentimento.

Um dia resolveu escrever á viuva.

— É melhor, pensava elle; uma carta é eloquente e tem a grande vantagem de deixar a gente longe.

Entrou para o gabinete e começou uma carta.

Gastou n’isso uma hora; cada phrase occupava-lhe muito tempo. Estevão queria fugir á hypothese de ser classificado como tolo ou como sensual. Queria que a carta não respirasse sentimentos frivolos nem máos: queria revelar-se puro como era.

Mas de que não dependem ás vezes os acontecimentos? Estevão estava relendo e emendando a carta quando lhe entrou por casa um rapazola que tinha intimidade com elle. Chamava-se Oliveira e passava por ser o primeiro janota do Rio de Janeiro.

Entrou com um rolo de papel na mão.

Estevão escondeu rapidamente a carta.

— Adeos, Estevão! disse o recem-chegado. Estavas escrevendo algum libello ou carta de namoro?

— Nem uma nem outra cousa, respondeu Estevão seccamente.

— Dou-te uma noticia.

— Que é?

— Entrei na litteratura.

— Ah!

— É verdade, e venho ler-te a primeira comedia.

— Deos me livre! disse Estevão levantando-se.

— Has de ouvir, meu amigo; ao menos algumas scenas; dar-se-ha caso que não me protejas nas lettras? Anda cá; ao menos duas scenas. Sim? É pouca cousa.

Estevão sentou-se.

O dramaturgo continuou:

— Talvez prefiras ouvir a minha tragedia intitulada — O Punhal de Bruto...

— Não, não; prefiro a comedia: é menos sanguinaria. Vamos lá.

O Oliveira abrio o rolo, arranjou as folhas, tossio e começou a ler o que se segue, com voz pausada e fanhosa:

SCENA I.
Cesar (entrando pela direita), João (pela esquerda).
CESAR.

« Fechada! A sinhá já se levantou?

JOÃO.

« Já, sim senhor; mas está incommodada.

CESAR.

« O que tem?

JOÃO.

« Tem... está incommodada.

CESAR.

« Já sei. (Comsigo) Os incommodos do costume. (A João) Qual é então o remedio hoje?

JOÃO.

« O remedio? (Depois de uma pausa) Não sei.

CESAR.

« Está bom, vai-te!

SCENA II.
CESAR, FREITAS (pela direita).
CESAR.

« Bom dia, Sr. procurador...

FREITAS.

« De causas perdidas. Só me occupo em procurar as perdidas. Procurar o que se não perdeu é tolice. A minha constituinte?

CESAR.

« Disse-me o João que está incommodada.

FREITAS.

« Mesmo para V.S.?

CESAR (sentando-se).

« Mesmo para mim. Porque me olha com esse olhar? Tem inveja?

FREITAS.

« Não é inveja, é admiração! De ordinario ninguem corresponde ao nome que recebeu na pia; mas o Sr. Cesar, benza-o Deos, não desmente que traz um nome significativo, e trata de ser nas paginas amorosas o que foi o outro nas batalhas campaes.

CESAR.

« Pois tambem os procuradores dizem cousas d’estas?

FREITAS.

« De vez em quando. (Indo sentar-se) V. S. admira-se?

CESAR (tirando charutos).

« Como não é de costume... quer um charuto?

FREITAS.

« Obrigado... Eu tomo rapé (Tira a boceta) Quer uma pitada?

CESAR.

« Obrigado.

FREITAS (sentando-se).

« Pois a causa da minha constituinte vai ás mil maravilhas. A parte contraria requereu assignação de dez dias, mas eu vou...

CESAR.

« Está bom, Sr. Freitas, eu dispenso o resto; ou então não me falle linguagem do fôro. Em resumo, ella vence?

FREITAS.

« Está claro. Tratando provar que...

CESAR.

« Vence, é quanto basta.

FREITAS.

« Pudera não vencer! Pois se eu ando n’isto...

CESAR.

« Tanto melhor!

FREITAS.

« Ainda não me lembro de ter perdido uma só causa: isto é, já perdi uma, mas é porque nas vesperas de ganhar disse-me o constituinte que desejava perdêl-a. Dito e feito. Provei o contrario do que já tinha provado, e perdi... ou antes, ganhei, porque perder assim é ganhar.

CESAR.

« É a phenix dos procuradores.

FREITAS (modestamente).

« São os seus bons olhos...

CESAR.

« Mas a consciencia?

FREITAS.

« Quem é a consciencia?

CESAR.

« A consciencia, a sua consciencia?

FREITAS.

« A minha consciencia? Ah! essa tambem ganha.

CESAR (levantando-se).

« Ah! tambem?...

FREITAS (o mesmo).

« Tem V. S. alguma demandazinha?

CESAR.

« Não, não, não tenho; mas, quando tiver, fique descansado, vou bater á sua porta...

FREITAS.

« Sempre às ordens de V. S. »