A Carne/XV: diferenças entre revisões

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Revisão das 22h53min de 17 de novembro de 2014

— Que lindo está o dia, exclamou o coronel, chegando à porta que dizia para o terreiro. — Um tempo firme, sim senhor! Jacynto!

— Sinhô! acudiu um preto velho.

— Para onde foi a gente hoje?

— Foi a cortar arroz, sim, sinhô.

— Onde está Manduca?

— Sinhô moço mandou ensilhar o rozilho, e foi para a banda da villa, sim sinhô.

O coronel respirou à larga o ar fresco, puro, da manhã resplendente. Dormirara toda a noite, não tivera dores, estava bem disposto. Queria expandir-se, queria conversar.

— Logo hoje que estou sequioso por uma prosa é que me foge o Manduca, é que se deixa ficar na cama a Lenita! Forte coisa! Vou fazer uma extravagância, vou dar uma volta pelo cafezal.

E mandou arrear uma egua velha, muito mansa, andadeira, uma rede, dizia elle. Sahiu, foi visitar o cafezal, coisa que fazia raramente, uma ou outra vez por anno.

Quando voltou era quase meio dia. Perguntou por Barbosa, não tinha vindo; por Lenita, ainda estava deitada. Veiu com fome, mandou pôr a mesa; emquanto esperava foi ao quarto de Lenita, bateu à porta.

— Que é isto? perguntou. Temos macacôa? — Macacoa, não; sonno; respondeu a moça.

— Ainda estava dormindo?

— Acordei com o seu batido.

— Olhe, levante-se, venha-me fazer companhia. O Manduca não sei para onde foi. Eu ainda não almocei, e não quero almoçar só sozinho.

— Já vou.

— Pois fico esperando; venha logo, que estou com o estomago a dar horas.

A cabo de meia hora Lenita appareceu. Estava palida, macillenta: tinha as palpebras vermelhas, os olhos batidos, grandes olheiras. Veiu embrulhada em uma pelliça. De quando em quando estremecia com um calafrio. Sentou-se à mesa meio de lado, alquebrada, languida.

— Melhor cara traga o dia de amanhã! Gritou o coronel ao vel-a. Parece que passou a noute no cemitério. Que é que teve?

— Uma ligeira indisposição.

— Hum! Já eu estava vendo isso mesmo hontem à noute. Ai moças, moças! Isto enquanto não casam... Que há de querer um mingauzinho de cará?

— Não, obrigada.

— Olhe estas hervas...

— Obrigada.

— Um pedaço de fiambre?

— Fiambre... quero, mas pouco, sim?

O coronel serviu-lhe uma naca larga, rósea, marmoreada de veios de gordura branca.

Lenita polvilhou-a de sal moido, comeu com apetite.

— Está gostando de salgados, hein?! Eu quando digo... Mais uma naquinha, sim?

Lenita acceitou, mandou buscar ginger-ale, bebeu um copo cheio.

Conversou com o coronel por cerca de duas horas.

Ao cair da tarde sentiu-se fraca, tomada de invencivel soneira. Recolheu-se, dormiu. Levantou-se ao escurecer. Quando ia sahindo do quarto, deu com Barbosa que, de pé junto de um consólo, fingia examinar uma estatueta.

— Boa tarde, Lenita, disse elle com voz tremula, timido, desapontado.

A moça não respondeu: com um arranco nervoso tomou-lhe a cabeça entre as mãos, curvou-a, beijou-a sofregamente, exquisitamente, no alto, afundando, sumindo o rosto nos cabellos curtos, levemente crespos.

— Lenita, segredou em voz sumida, tênue como sopro, é perigoso, podem vel-a, podem encontrl-a; Eu virei aqui, ao seu, é melhor.

— Aqui dorme a rapariga.

— Facil é afastal-a sob qualquer pretexto. Deixe as portas cerradas.

Foram para a sala de jantar.

O coronel já tinha feito accender o lampeão; estava de pé, juncto da mesa, lendo a correspondencia que minutos antes tinha chegado da villa.

— Olhe, Lenita, disse, ahi estão os seus jornaes, e tambem uma carta. Leia, leia logo a carta; é cousa que lhe interessa.

— Sim! como sabe?

— A letra do sobrescripto é mesma desta que eu recebi. Leia.

— Que será? interrogou-se a moça, rasgando o envoltorio com gesto fatigado, abhorrida. Desdobrou a folha de papel, leu sem manifestar sentimento algum, com absoluta indifferença. Depois passou-a aberta ao coronel.

— Ora! exclamou, arrastando a voz, com fastio.

— Então? Perguntou o coronel.

— Leia, está aí.

— Pois não é do Dr. Mendes Maia?

— É.

— E que lhe diz você?

— Eu digo... digo... não digo coisa nenhuma.

— Já se deixa ver que quer cala...

— Nem sempre consente. O Dr. Mendes Maia perdeu o seu tempo, a sua rhetorica, o seu papel, a sua tinta e o seu sello. Eu não me caso com elle.

— É um pedido de casamento? perguntou Barbosa, anciado.

— Em forma.

— E quem é esse Dr. Mendes Maia?

— Esse Dr. Mendes Maia é um bacharel em direito, nortista; fez seu quatriênio, e está na corte, à espera de um juizado de direito aqui na provincia.

— E donde o conhece D. Lenita?

— De Campinas. Estivemos junctos em um baile, no Club Semanal, há de haver três annos. Dançou comigo, fez-me a côrte por duas horas, e agora pede-me em casamento.

— Meu pae tambem o conhece?

— Conheço: elle andou viajando por estas bandas com um primo que queria comprar sítio de café. Veiu-me recommendado de São Paulo, e até pousou aqui, uma noute.

— Que especie de homem é?

— É um bacharel em direito como a maioria dos bachareis em direito. Parece-me boa pessoa. Homem, sou franco, para mim tem um defeito capital, é nortista . No mais, não há que dizer. Lenita, que hei de eu responder ao homem?

— Boa pergunta! Responda que eu não me quero casar que agradeço muito a honra da proposta, e cousas e tal, uma tabua cortez.

— Não valerá a pena pensar um pouco antes de decidir a cousa assim de talho, sem remedio?

— Não há que pensar, não quero.

— Olhe que o rapaz, segundo me diz o meu velho amigo Cruz Chaves, nesta outra carta que recebi, tem todos os requisitos para um bom córte de noivo: é inteligente, honesto, morigerado, trabalhador, econômico, bom católico, e muitas cousas mais. Fez o seu quatriennio como promotor e juiz municipal, está à espera de um juizado de direito, como você mesmo disse, e ha de obtel-o, porque dá-se com o Cotegipe e é muito protegido pelo Mac Dowel. E tem seus cobres.

— O partido tenta, tenta, mas eu é que me não deixo prender.

— Olhe que isto não vai a matar, não é sangria desatada, pense primeiro, responda depois.

— Não há que pensar.

— Esta mocidade! Para que tomar decisões de afogadilho, quando há tempo para refletir, para pesar todos os prós e todos os contras?

— A resposta agora, ou daqui a um anno há de ser a mesma: não quero.

— Menina, ninguém deve dizer « deste pão não comerei ».

— E nem tão pouco «desta água não beberei ». Sabido, mas eu não quero mesmo.

— Bom, bom; não quer, não quer! Amanhã lá segue a recusa: que se aguente o Dr. Mendes Maia.