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==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/116]]==
<poem>
LXXXII.
Se pena por amar-vos se merece,
Quem della estará livre? quem isento?
E que alma, que razão, que entendimento
No instante em que vos vê não obedece?
  Qual mor gloria na vida ja se offrece,
Que a de occupar-se em vós o pensamento?
Não só todo rigor, todo tormento
Com ver-vos não magôa, mas se esquece.
  Porém se heis de matar a quem amando,
Ser vosso de amor tanto só pretende,
O mundo matareis, que todo he vosso.
  Em mi podeis, Senhora, ir começando,
Pois bem claro se mostra e bem se entende
Amar-vos quanto devo e quanto posso.
LXXXIII.
Que levas, cruel Morte? Hum claro dia.
A que horas o tomaste? Amanhecendo.
E entendes o que levas? Não o entendo.
Pois quem to faz levar? Quem o entendia.
  Seu corpo quem o goza? A terra fria.
Como ficou sua luz? Anoitecendo.
Lusitania que diz? Fica dizendo...
Que diz? Não mereci a grã Maria.
  Mataste a quem a vio? Ja morto estava.
Que discorre o Amor? Fallar não ousa.
E quem o faz callar? Minha vontade.
  Na Corte que ficou? Saudade brava.
Que fica lá que ver? Nenhuma cousa.
Que gloria lhe faltou? Esta beld
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/117]]==
<poem>
ade.{43}
LXXXIV.
Ondados fios de ouro reluzente,
Que agora da mão bella recolhidos,
Agora sôbre as rosas esparzidos
Fazeis que a sua graça se accrescente;
  Olhos, que vos moveis tão docemente,
Em mil divinos raios incendidos,
Se de cá me levais a alma e sentidos,
Que fôra, se eu de vós não fôra ausente?
  Honesto riso, que entre a mór fineza
De perlas e coraes nasce e apparece;
Oh quem seus doces ecos ja lhe ouvisse!
  Se imaginando só tanta belleza,
De si com nova gloria a alma se esquece,
Que será quando a vir? Ah quem a visse!
LXXXV.
Foi ja n'hum tempo doce cousa amar,
Em quanto me enganou huma esperança:
O coração com esta confiança
Todo se desfazia em desejar.
  Oh vão, caduco e debil esperar!
Como, em fim, desengana huma mudança!
Que quanto he mor a bem-aventurança,
Tanto menos se crê que ha de durar.
  Quem ja se vio com gostos prosperado,
Vendo-se brevemente em pena tanta,
Razão t~ee de viver bem magoado.
  Mas quem ja t~ee o mundo exprimentado,
Não o magôa a pena, nem o espanta;
Que mal se estranhára o costumad
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/118]]==
<poem>
o.{44}
LXXXVI.
Dos antigos Illustres, que deixárão
Hum nome digno de immortal memoria,
Ficou por luz do tempo a larga historia
Dos feitos em que mais se avantajárão.
  Se com suas acções se cotejárão
Mil vossas, cada huma tão notoria,
Vencêra a menor dellas a mor gloria
Que elles em tantos annos alcançárão.
  A gloria sua foi: ninguem lha tome:
Seguindo cada qual varios caminhos
Estatuas mereceo no heroico Templo.
  Vós honra Portugueza e dos Coutinhos,
Clarissimo Dom João, com melhor nome
A vós encheis de gloria, a nós de exemplo.
LXXXVII.
Conversação doméstica affeiçoa,
Ora em fórma de limpa e sãa vontade,
Ora de huma amorosa piedade,
Sem olhar qualidade de pessoa.
  Se despois, por ventura, vos magôa
Com desamor e pouca lealdade,
Logo vos faz mentira da verdade
O brando Amor, que tudo, em fim, perdoa,
  Não são isto que fallo conjecturas
Que o pensamento julga na apparencia,
Por fazer delicadas escripturas.
  Metida tenho a mão na consciencia,
E não fallo senão verdades puras
Que me ensinou a viva experiencia.{45}
LXXXVIII
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/119]]==
<poem>
.
Esfôrço grande, igual ao pensamento,
Pensamentos em obras divulgados,
E não em peito timido encerrados,
E desfeitos despois em chuva e vento;
  Ánimo da cobiça baixa isento,
Digno por isto só de altos estados,
Fero açoute dos nunca bem domados
Povos do Malabar sanguinolento;
  Gentileza de membros corporaes
Ornados de pudica continencia,
Obra por certo da celeste altura:
  Estas virtudes raras e outras mais,
Dignas todas da Homerica eloquencia,
Jazem debaixo desta sepultura.
LXXXIX.
No mundo quiz o Tempo que se achasse
O bem que por acêrto, ou sorte vinha;
E por exprimentar que dita tinha,
Quiz que a Fortuna em mi se exprimentasse.
  Mas porque o meu destino me mostrasse
Que nem ter esperanças me convinha,
Nunca nesta tão longa vida minha
Cousa me deixou ver que desejasse.
  Mudando andei costume, terra, estado,
Por ver se se mudava a sorte dura;
A vida puz nas mãos de hum leve lenho.
  Mas, segundo o que o Ceo me t~ee mostrado,
Ja sei que deste meu buscar ventura
Achado tenho ja que não a tenho.{46}


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</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/120]]==
<poem>
XC.
A perfeição, a graça, o doce geito,
A Primavera cheia de frescura,
Que sempre em vós florece; a que a ventura,
E a razão entregárão este peito;
  Aquelle crystallino e puro aspeito,
Que em si comprehende toda a formosura;
O resplandor dos olhos e a brandura,
Donde Amor a ninguem quiz ter respeito;
  S'isto que em vós se vê, ver desejais,
Como digno de ver-se claramente,
Por muito que de Amor vos isentais;
  Traduzido o vereis tão fielmente
No meio deste espirito onde estais,
Que vendo-vos sintais o que elle sente.
XCI.
Vós, que de olhos suaves e serenos,
Com justa causa a vida captivais,
E que os outros cuidados condemnais
Por indevidos, baixos e pequenos;
  Se de Amor os domesticos venenos
Nunca provastes, quero que sintais
Que he tanto mais o amor despois que amais,
Quanto são mais as causas de ser menos.
  E não presuma alguem que algum defeito,
Quando na cousa amada se apresenta,
Possa diminuir o amor perfeito:
  Antes o dobra mais; e se atormenta,
Pouco a pouco desculpa o brando peito;
Que Amor com seus contrarios se accrescenta.{47}

</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/121]]==
<poem>
XCII.
Que poderei do mundo ja querer,
Pois no mesmo em que puz tamanho amor,
Não vi senão desgôsto e desfavor,
E morte, em fim; que mais não póde ser?
  Pois me não farta a vida de viver,
Pois ja sei que não mata grande dor,
Se houver cousa que mágoa dê maior,
Eu a verei; que tudo posso ver.
  A Morte, a meu pezar, me assegurou
De quanto mal me vinha: ja perdi
O que a perder o medo me ensinou.
  Na vida desamor somente vi,
Na morte a grande dor que me ficou:
Parece que para isto só nasci.
XCIII.
Pensamentos, que agora novamente
Cuidados vãos em mi resuscitais,
Dizei-me: E ainda não vos contentais
De ter a quem vos t~ee tão descontente?
  Que phantasia he esta, que presente
Cad'hora ante os meus olhos me mostrais?
Com huns sonhos tão vãos inda tentais
Quem nem por sonhos póde ser contente?
  Vejo-vos, pensamentos, alterados,
E não quereis, de esquivos, declarar-me
Que he isto que vos traz tão enleados?
  Não mo negueis, se andais para negar-me;
Porque se contra mi 'stais levantados,
Eu vos ajudarei mesmo a matar-m
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/122]]==
<poem>
e.{48}
XCIV.
Se tomo a minha pena em penitencia
Do error em que cahio o pensamento,
Não abrando, mas dóbro meu tormento,
Que a tanto, e mais, obriga a paciencia.
  E se huma côr de morto na apparencia,
Hum espalhar suspiros vãos ao vento
Não faz em vós, Senhora, movimento,
Fique o meu mal em vossa consciencia.
  Mas se de qualquer aspera mudança
Toda vontade isenta Amor castiga,
(Como eu vejo no mal que me condena)
  E se em vós não se entende haver vingança,
Será forçado (pois Amor me obriga)
Que eu só da culpa vossa pague a pena.
XCV.
Aquella que, de pura castidade,
De si mesma tomou cruel vingança
Por huma breve e subita mudança
Contrária á sua honra e qualidade;
  Venceo á formosura a honestidade,
Venceo no fim da vida a esperança,
Porque ficasse viva tal lembrança,
Tal amor, tanta fé, tanta verdade.
  De si, da gente e do mundo esquecida,
Ferio com duro ferro o brando peito,
Banhando em sangue a fôrça do tyrano.
  Oh ousadia estranha! estranho feito!
Que dando breve morte ao corpo humano,
Tenha sua memoria larga vida!
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/123]]==
<poem>
{49}
XCVI.
Os vestidos Elisa revolvia,
Que Eneas lhe deixára por memoria;
Doces despojos da passada gloria;
Doces quando seu fado o consentia.
  Entre elles a formosa espada via,
Que instrumento, em fim, foi da triste historia;
E como quem de si tinha a victoria,
Fallando só com ella, assi dizia:
  Formosa e nova espada, se ficaste
Só porque executasses os enganos
De quem te quiz deixar, em minha vida;
  Sabe que tu comigo te enganaste;
Que para me tirar de tantos danos
Sobeja-me a tristeza da partida.
XCVII.
Oh quão caro me custa o entender-te,
Molesto Amor que, só por alcançar-te,
De dor em dor me tens trazido a parte
Donde em ti odio e íra se converte!
  Cuidei que para em tudo conhecer-te
Me não faltava experiencia e arte;
Mas na alma vejo agora accrescentar-te
Aquillo que era causa de perder-te.
  Estavas tão secreto no meu peito,
Que eu mesmo, que te tinha, não sabia
Que me senhoreavas deste geito.
  Descubriste-te agora; e foi por via
Que teu descobrimento e meu defeito,
Hum me envergonha e outro me injuria.{50}

</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/124]]==
<poem>
XCVIII.
Se despois de esperança tão perdida,
Amor por causa alguma consentisse
Que inda algum'hora breve alegre visse
De quantas tristes vio tão longa vida;
  Hum'alma ja tão fraca e tão cahida
(Quando a sorte mais alto me subisse)
Não tenho para mi que consentisse
Alegria tão tarde consentida.
  Nem tamsomente o Amor me não mostrou
Hum'hora em que vivesse alegremente,
De quantas nesta vida me negou;
  Mas inda tanta pena me consente,
Que co'o contentamento me tirou
O gôsto de algum'hora ser contente.
XCIX.
O raio crystallino se estendia
Por o mundo da Aurora marchetada,
Quando Nise, pastora delicada,
Donde a vida deixava se partia.
  Dos olhos, com que o sol escurecia,
Levando a luz em lagrimas banhada,
De si, do fado, e tempo magoada,
Pondo os olhos no Ceo, assi dizia:
  Nasce, sereno sol, puro e luzente;
Resplandece, purpurea e branca aurora,
Qualquer alma alegrando descontente;
  Que a minha, sabe tu que desde agora
Jamais na vida a podes ver contente,
Nem tão triste nenhuma outra pastora.{51}

</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/125]]==
<poem>
C.
No mundo poucos annos e cansados
Vivi, cheios de vil miseria e dura:
Foi-me tão cedo a luz do dia escura,
Que não vi cinco lustros acabados.
  Corri terras e mares apartados,
Buscando á vida algum remedio ou cura:
Mas aquillo que, em fim, não dá ventura
Não o dão os trabalhos arriscados.
  Criou-me Portugal na verde e chara
Patria minha Alemquer; mas ar corruto,
Que neste meu terreno vaso tinha,
  Me fez manjar de peixes em ti, bruto
Mar, que bates a Abássia fera e avara,
Tão longe da ditosa patria minha.
CI.
Vós, que escuitais em Rimas derramado
Dos suspiros o som que me alentava
Na juvenil idade, quando andava
Em outro em parte do que sou mudado;
  Sabei que busca só do ja cantado
No tempo em que ou temia ou esperava,
De quem o mal provou, que eu tanto amava,
Piedade, e não perdão, o meu cuidado.
  Pois vejo que tamanho sentimento
Só me rendeo ser fábula da gente,
(Do que comigo mesmo me envergonho)
  Sirva de exemplo claro meu tormento,
Com que todos conheção claramente
Que quanto ao mundo apraz he breve sonho.{52}

</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/126]]==
<poem>
CII.
De amor escrevo, de amor trato e vivo;
De amor me nasce amar sem ser amado;
De tudo se descuida o meu cuidado,
Quanto não seja ser de amor captivo:
  De amor que a lugar alto voe altivo,
E funde a gloria sua em ser ousado;
Que se veja melhor purificado
No immenso resplandor de hum raio esquivo.
  Mas ai que tanto amor só pena alcança!
Mais constante ella, e elle mais constante,
De seu triumpho cada qual só trata.
  Nada, em fim, me aproveita; que a esperança,
Se anima alguma vez a hum triste amante,
Ao perto vivifica, ao longe mata.
CIII.
Se da célebre Laura a formosura
Hum numeroso cysne ufano escreve,
Huma angelica penna se te deve,
Pois o Ceo em formar-te mais se apura.
  E se voz menos alta te procura
Celebrar, (oh Natercia!) em vão se atreve:
De ver-te ja a ventura Liso teve,
Mas de cantar-te falta-lhe a ventura.
  No ceo nasceste, certo, e não na terra:
Para gloria do mundo cá desceste:
Quem mais isto negar, muito mais erra.
  E eu imagino que de lá vieste
Para emendar os vicios que elle encerra,
Co'os divinos poderes que trouxeste.{53}

</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/127]]==
<poem>
CIV.
Esses cabellos louros e escolhidos,
Que o ser ao aureo sol estão tirando;
Esse ar immenso, adonde naufragando
Estão continuamente os meus sentidos;
  Esses furtados olhos tão fingidos
Que minha vida e morte estão causando;
Essa divina graça, que em fallando
Finge os meus pensamentos não ser cridos;
  Esse compasso certo, essa medida
Que faz dobrar no corpo a gentileza;
A divindade em terra, tão subida;
  Mostrem ja piedade, e não crueza,
Que são laços que Amor tece na vida,
Sendo em mi sofrimento, em vós dureza.
CV.
Quem pudéra julgar de vós, Senhora,
Que huma tal fé pudesse assi perder-vos?
Se por amar-vos chego a aborrecer-vos,
Deixar não posso o amar-vos algum'hora.
  Deixais a quem vos ama, ou vos adora,
Por ver a quem quiçá não sabe ver-vos?
Mas eu sou quem não soube merecer-vos,
E esta minha ignorancia entendo agora.
  Nunca soube entender vossa vontade,
Nem a minha mostrar-vos verdadeira,
Indaque clara estava esta verdade.
  Esta, em quanto eu viver, vereis inteira;
E se em vão meu querer vos persuade,
Mais vosso não querer faz que vos queira.{54}

</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/128]]==
<poem>
CVI.
Quem, Senhora, presume de louvar-vos
Com discurso que baixe de divino,
De tanto maior pena será dino,
Quanto vós sois maior ao contemplar-vos.
  Não aspire algum canto a celebrar-vos,
Por mais que seja raro, ou peregrino;
Pois de vossa belleza eu imagino
Que só comvosco o Ceo quiz comparar-vos.
  Ditosa esta alma vossa, a que quizestes
Pôr em posse de prenda tão subida,
Qual esta que benigna, em fim, me déstes.
  Sempre será anteposta á mesma vida:
Esta estimar em menos me fizestes,
Se antes que ess'outra a quero ver perdida.
CVII.
Moradoras gentis e delicadas
Do claro e aureo Tejo, que metidas
Estais em suas grutas escondidas,
E com doce repouso socegadas;
  Agora esteis de amores inflammadas,
Nos crystallinos paços entretidas;
Agora no exercicio embevecidas
Das télas de ouro puro matizadas;
  Movei dos lindos rostos a luz pura
De vossos olhos bellos, consentindo
Que lagrimas derramem de tristura.
  E assi com dor mais propria ireis ouvindo
As queixas que derramo da Ventura,
Que com penas de Amor me vai seguindo.{55}

</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/129]]==
<poem>
CVIII.
Brandas águas do Tejo que, passando
Por estes verdes campos que regais,
Plantas, hervas, e flores, e animais,
Pastores, Nymphas, ides alegrando;
  Não sei, (ah doces águas!) não sei quando
Vos tornarei a ver; que mágoas tais,
Vendo como vos deixo, me causais,
Que de tornar ja vou desconfiando.
  Ordenou o destino, desejoso
De converter meus gostos em pezares,
Partida que me vai custando tanto.
  Saudoso de vós, delle queixoso,
Encherei de suspiros outros ares,
Turbarei outras águas com meu pranto.
CIX.
Novos casos de Amor, novos enganos,
Envoltos em lisonjas conhecidas;
Do bem promessas falsas e escondidas,
Onde do mal se cumprem grandes danos;
  Como não tomais ja por desenganos
Tantos ais, tantas lagrimas perdidas,
Pois que a vida não basta, nem mil vidas,
A tantos dias tristes, tantos anos?
  Hum novo coração mister havia,
Com outros olhos menos aggravados,
Para tornar a crer o que eu vos cria.
  Andais comigo, enganos, enganados;
E se o quizerdes ver, cuidai hum dia
O que se diz dos bem acutilados.{56}

</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/130]]==
<poem>
CX.
Onde porei meus olhos que não veja
A causa de que nasce o meu tormento?
A qual parte me irei co'o pensamento,
Que para descansar parte me seja?
  Ja sei como se engana quem deseja
Em vão amor fiel contentamento;
E que nos gostos seus, que são de vento,
Sempre falta seu bem, seu mal sobeja.
  Mas inda, sôbre o claro desengano,
Assi me traz esta alma sobjugada,
Que delle está pendendo o meu desejo.
  E vou de dia em dia, de anno em ano,
Apoz hum não sei que, apoz hum nada,
Que quanto mais me chego, menos vejo.
CXI.
Ja do Mondego as águas apparecem
A meus olhos, não meus, antes alheios,
Que de outras differentes vindo cheios,
Na sua branda vista inda mais crecem.
  Parece que tambem forçadas decem,
Segundo se detem em seus rodeios.
Triste! por quantos modos, quantos meios,
As minhas saudades me entristecem!
  Vida de tantos males salteada,
Amor a põe em termos, que duvida
De conseguir o fim desta jornada.
  Antes se dá de todo por perdida,
Vendo que não vai da alma acompanhada,
Que se deixou ficar onde t~ee vi
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/131]]==
<poem>
da.{57}
CXII.
Que doudo pensamento he o que sigo?
Apos que vão cuidado vou correndo?
Sem ventura de mi! que não me entendo;
Nem o que callo sei, nem o que digo.
  Pelejo com quem trata paz comigo;
De quem guerra me faz não me defendo.
De falsas esperanças que pertendo?
Quem do meu proprio mal me faz amigo?
  Porque, se nasci livre, me captivo?
E pois o quero ser, porque o não quero?
Como me engano mais com desenganos?
  Se ja desesperei, que mais espero?
E se inda espero mais, porque não vivo?
E se vivo, que accuso mortaes danos?
CXIII.
Hum firme coração posto em ventura;
Hum desejar honesto, que se engeite
De vossa condição, sem que respeite
A meu tão puro amor, a fé tão pura;
  Hum ver-vos de piedade e de brandura
Sempre inimiga, faz-me que suspeite
Se alguma Hyrcana fera vos deo leite,
Ou se nascestes de huma pedra dura.
  Ando buscando causa, que desculpe
Crueza tão estranha; porém quanto
Nisso trabalho mais, mais mal me trata.
  Donde vem, que não ha quem nos não culpe;
A vós, porque matais quem vos quer tanto,
A mim, por querer tanto a quem me mat
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/132]]==
<poem>
a.{58}
CXIV.
Ar, que de meus suspiros vejo cheio;
Terra, cansada ja com meu tormento;
Agua, que com mil lagrimas sustento;
Fogo, que mais accendo no meu seio;
  Em paz estais em mim; e assi o creio,
Sem esse ser o vosso proprio intento;
Pois em dor onde falta o soffrimento,
A vida se sostem por vosso meio.
  Ai imiga Fortuna! ai vingativo
Amor! a que discursos por vós venho,
Sem nunca vos mover com minha mágoa!
  Se me quereis matar, para que vivo?
E como vivo, se contrarios tenho
Fogo, Fortuna, Amor, Ar, Terra e Agoa?
CXV.
Ja claro vejo bem, ja bem conheço
Quanto augmentando vou o meu tormento;
Pois sei que fundo em água, escrevo em vento,
E que o cordeiro manso ao lobo peço;
  Que Arachne sou, pois ja com Pallas teço;
Que a tigres em meus males me lamento;
Que reduzir o mar a hum vaso intento,
Aspirando a esse ceo que não mereço.
  Quero achar paz em hum confuso inferno;
Na noite do sol puro a claridade;
E o suave verão no duro inverno.
  Busco em luzente Olympo escuridade,
E o desejado bem no mal eterno,
Buscando amor em vossa crueldade.{59}

</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/133]]==
<poem>
CXVI.
De cá, donde somente o imaginar-vos
A rigorosa ausencia me consente,
Sôbre as azas de Amor, ousadamente
O mal soffrido esprito vai buscar-vos.
  E se não receára de abrazar-vos
Nas chammas que por vossa causa sente,
Lá ficára comvosco e, vós presente,
Aprendêra de vós a contentar-vos.
  Mas, pois que estar ausente lhe he forçado,
Por senhora, de cá, vos reconhece,
Aos pés de imagens vossas inclinado.
  E pois vêdes a fé que vos offrece,
Ponde os olhos, de lá, no seu cuidado,
E dar-lhe-heis inda mais do que merece.
CXVII.
Não ha louvor que arribe á menor parte
De quanto em vós se vê, bella Senhora:
Vós sois vosso louvor: quem vos adora
Reduz somente a este o engenho e arte.
  Quanto por muitas damas se reparte
De bello e de formoso, em vós agora
Se junta em modo tal, que pouco fôra
Dizer que sois o todo, ellas a parte.
  Culpa, logo, não he, se vou louvar-vos,
Ver incapazes todos os louvores,
Pois tanto quiz o Ceo avantajar-vos.
  Seja a culpa de vossos resplandores;
E a que elles t~ee vos dou, só para dar-vos
O mor louvor de todos os maiores.{60}

</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/134]]==
<poem>
CXVIII.
Não vás ao monte, Nise, com teu gado;
Que lá vi que Cupido te buscava:
Por ti somente a todos perguntava,
No gesto menos placido que irado.
  Elle publíca, em fim, que lhe has roubado
Os melhores farpões da sua aljava;
E com hum dardo ardente assegurava
Traspassar esse peito delicado.
  Fuge de ver-te lá nesta aventura,
Porque se contra ti o tens iroso,
Póde ser que te alcance com mão dura.
  Mas ai! que em vão te advirto temeroso,
Se á tua incomparavel formosura
Se rende o dardo seu mais poderoso!
CXIX.
A violeta mais bella que amanhece
No valle por esmalte da verdura,
Com seu pallido lustre e formosura,
Por mais bella, Violante, te obedece.
  Perguntas-me porque? Porque apparece
Em ti seu nome, e sua côr mais pura;
E estudar em teu rosto só procura
Tudo quanto em beldade mais florece.
  Oh luminosa flor! Oh sol mais claro!
Unico roubador de meu sentido,
Não permittas que Amor me seja avaro.
  Oh penetrante setta de Cupido!
Que queres? Que te peça por reparo
Ser neste valle Eneas desta Dido?{61}

</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/135]]==
<poem>
CXX.
Tornae essa brancura á alva assucena,
E essa purpurea côr ás puras rosas;
Tornae ao sol as chammas luminosas
De essa vista que a roubos vos condena.
  Tornae á suavissima sirena
D'essa voz as cadencias deleitosas:
Tornae a graça ás Graças, que queixosas
Estão de a ter por vós menos serena:
  Tornae á bella Venus a belleza;
A Minerva o saber, o engenho, e a arte;
E a pureza á castissima Diana.
  Despojae-vos de toda essa grandeza
De dões; e ficareis em toda parte
Comvosco só, que he só ser inhumana.
CXXI.
De mil suspeitas vãas se me levantão
Trabalhos e desgostos verdadeiros.
Ai que estes bens de Amor são feiticeiros,
Que com hum não sei que toda alma encantão!
  Como serêas docemente cantão
Para enganar os tristes marinheiros:
Os meus assi me attrahem lisongeiros,
E despois com horrores mil me espantão.
  Quando cuido que tomo porto ou terra,
Tal vento se levanta em hum instante,
Que subito da vida desconfio.
  Mas eu sou quem me faz a maior guerra,
Pois conhecendo os riscos de hum amante
Fiado a ondas de Amor, dellas me fio
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/136]]==
<poem>
.{62}
CXXII.
Mil vezes determino não vos ver,
Por ver se abranda mais o meu penar:
E se cuido de assi me magoar,
Cuidai o que será, se houver de ser.
  Pouco me importa ja muito soffrer,
Despois que Amor me poz em tal lugar;
E o que inda me doe mais he só cuidar,
Que mal sem esta dor posso viver.
  Assi não busco eu cura contra a dor,
Porque, buscando alguma, entendo bem
Que nesse mesmo ponto me perdi.
  Quereis que viva, em fim, neste rigor?
Somente o querer vosso me convem.
Assi quereis que seja? Seja assi.
CXXIII.
A chaga que, Senhora, me fizestes,
Não foi para curar-se em hum só dia;
Porque crescendo vai com tal porfia,
Que bem descobre o intento que tivestes.
  De causar tanta dor vos não doestes?
Mas a doer-vos, dor me não sería,
Pois ja com esperança me veria
Do que vós que em mi visse não quizestes.
  Os olhos com que todo me roubastes
Forão causa do mal que vou passando;
E vós estais fingindo o não causastes.
  Mas eu me vingarei. E sabeis quando?
Quando vos vir queixar porque deixastes
Ir-se a minha alma nelles abrazan
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/137]]==
<poem>
do.{63}
CXXIV.
Se com desprezos, Nympha, te parece
Que podes desviar do seu cuidado
Hum coração constante, que se offrece
A ter por gloria o ser atormentado.
  Deixa a tua porfia, e reconhece
Que mal sabes de amor desenganado;
Pois não sentes, nem vês que em teu mal crece,
Crescendo em mi de ti mais desamado.
  O esquivo desamor, com que me tratas,
Converte em piedade, se não queres
Que cresça o meu querer, e o teu desgosto.
  Vencer-me com cruezas nunca esperes:
Bem me podes matar, e bem me matas;
Mas sempre ha de viver meu presupposto.
CXXV.
Senhora minha, se eu de vós ausente
Me defendêra de hum penar severo,
Suspeito que offendêra o que vos quero,
Esquecido do bem de estar presente.
  Traz este, logo sinto outro accidente,
E he ver que se da vida desespero,
Perco a gloria que vendo-vos espero;
E assi estou em meus males differente.
  E nesta differença meus sentidos
Combatem com tão aspera porfia,
Que julgo este meu mal por deshumano.
  Entre si sempre os vejo divididos;
E se acaso concordão algum dia,
He só conjuração para meu dano
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/138]]==
<poem>
.{64}
CXXVI.
No regaço de mãe Amor estava
Dormindo tão formoso, que movia
O coração que mais isento o via;
E a sua propria mãe de amor matava.
  Ella, co'os olhos nelle, contemplava
A quanto estrago o mundo reduzia:
Elle porém, sonhando, lhe dizia
Que todo aquelle mal ella o causava.
  Soliso que, graduado em seus amores,
De saber de ambos mais teve a ventura,
Assi soltou a dúvida aos pastores:
  Se bem me ferem sempre sem ter cura
Do menino os ardentes passadores,
Mais me fere da mãe a formosura.
CXXVII.
Este terreste caos com seus vapores
Não póde condensar as nuvens tanto,
Que o claro sol não rompa o negro manto
Cum suas bellas e luzentes côres.
  A ingratidão esquiva de rigores
Opposta nuvem he, que dura em quanto
Nos não converte o Ceo em triste pranto
Suas vãas esperanças, seus favores.
  Póde-se contrapôr ao ceo a terra,
E estar o sol por horas eclipsado;
Mas não póde ficar escurecido.
  Póde prevalecer a vossa guerra;
Mas, a pezar das nuvens, declarado
Ha de ser vosso sol, e obedecido.{65}
CXXVIII.

</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/139]]==
<poem>
Huma admiravel herva se conhece,
Que vai ao sol seguindo de hora em hora,
Logo que elle do Euphrates se vê fóra,
E quando está mais alto, então florece.
  Mas quando ao Oceano o carro dece,
Toda a sua belleza perde Flora,
Porque ella se emmurchece e se descora:
Tanto co'a luz ausente se entristece!
  Meu sol, quando alegrais esta alma vossa,
Mostrando-lhe esse rosto que dá vida,
Cria flores em seu contentamento.
  Mas logo, em não vos vendo, entristecida
Se murcha e se consume em grão tormento:
Nem ha quem vossa ausencia soffrer possa.
CXXIX.
Crescei, desejo meu, pois que a Ventura
Ja vos t~ee nos seus braços levantado;
Que a bella causa de que sois gerado
O mais ditoso fim vos assegura.
  Se aspirais por ousado a tanta altura,
Não vos espante haver ao sol chegado;
Porque he de aguia Real vosso cuidado,
Que quanto mais o soffre, mais se apura.
  Ánimo, coração; que o pensamento
Te póde inda fazer mais glorioso,
Sem que respeite a teu merecimento.
  Que cresças inda mais he ja forçoso;
Porque se foi de ousado o teu intento,
Agora de atrevido he venturoso.{66}

</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/140]]==
<poem>
CXXX.
He o gozado bem em água escrito;
Vive no desejar, morre no effeito:
O desejado sempre he mais perfeito,
Porque t~ee parte alguma de infinito.
  Dar a huma alma immortal gôzo prescrito,
Em verdadeiro amor, fôra defeito:
Por modo sup'rior, não imperfeito,
Sois excepção de quanto aqui limito.
  De huma esperança nunca conhecida,
Da fé do desejar não alcançada,
Sereis mais desejada, possuida.
  Não podeis da esperança ser amada;
Vista podereis ser, e então mais crida;
Porém não, sem aggravo, comparada.
CXXXI.
De quantas graças tinha a natureza
Fez hum bello e riquissimo thesouro;
E com rubis e rosas, neve e ouro,
Formou sublime e angelica belleza.
  Poz na boca os rubis, e na pureza
Do bello rosto as rosas, por quem mouro;
No cabello o valor do metal louro;
No peito a neve, em que a alma tenho accesa.
  Mas nos olhos mostrou quanto podia,
E fez delles hum sol, onde se apura
A luz mais clara que a do claro dia.
  Em fim, Senhora, em vossa compostura,
Ella a apurar chegou quanto sabia
De ouro, rosas, rubis, neve e luz
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/141]]==
<poem>
pura.{67}
CXXXII.
Nunca em amor damnou o atrevimento;
Favorece a Fortuna a ousadia;
Porque sempre a encolhida covardia
De pedra serve ao livre pensamento.
  Quem se eleva ao sublime Firmamento,
A estrella nelle encontra, que lhe he guia;
Que o bem que encerra em si a phantasia
São humas illusões que leva o vento.
  Abrir se devem passos á ventura:
Sem si proprio ninguem será ditoso:
Os principios somente a sorte os move.
  Atrever-se he valor, e não loucura.
Perderá por covarde o venturoso
Que vos vê, se os temores não remove.
CXXXIII.
Doces e claras águas do Mondego,
Doce repouso de minha lembrança,
Onde a comprida e perfida esperança
Longo tempo apos si me trouxe cego,
  De vós me aparto, si; porém não nego
Que inda a longa memoria, que me alcança,
Me não deixa de vós fazer mudança,
Mas quanto mais me alongo, mais me achego
  Bem poderá a Fortuna este instrumento
Da alma levar por terra nova e estranha,
Offerecido ao mar remoto, ao vento.
  Mas a alma, que de cá vos acompanha,
Nas azas do ligeiro pensamento
Para vós, águas, vôa, e em vós se ba
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/142]]==
<poem>
nha.{68}
CXXXIV.
Senhor João Lopes, o meu baixo estado
Hontem vi posto em grao tão excellente,
Que sendo vós inveja a toda a gente,
Só por mi vos quizereis ver trocado.
  O gesto vi suave e delicado,
Que ja vos fez contente e descontente,
Lançar ao vento a voz tão docemente,
Que fez o ar sereno e socegado.
  Vi-lhe em poucas palavras dizer quanto
Ninguem diria em muitas: mas eu chego
A espirar só de ouvir a doce fala.
  Oh mal o haja a Fortuna, e o moço cego!
Elle, que os corações obriga a tanto;
Ella, porque os estados desiguala.
CXXXV.
A Morte, que da vida o nó desata,
Os nós, que dá o Amor, cortar quizera
Co'a ausencia, que he sôbre elle espada fera,
E co'o tempo, que tudo desbarata.
  Duas contrárias, que huma a outra mata,
A Morte contra Amor junta e altera;
Huma, Razão contra a Fortuna austera;
Outra, contra a Razão Fortuna ingrata.
  Mas mostre a sua imperial potencia
A Morte em apartar de hum corpo a alma,
O Amor n'hum corpo duas almas una;
  Para que assi triumphante leve a palma
Da Morte Amor a grão pesar da ausencia,
Do tempo, da Razão, e da For
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/143]]==
<poem>
tuna.{69}
CXXXVI
Árvore, cujo pomo bello e brando
Natureza de leite e sangue pinta,
Onde a pureza, de vergonha tinta,
Está virgineas faces imitando;
  Nunca do vento a ira, que arrancando
Os troncos vai, o teu injúria sinta;
Nem por malícia de ar te seja extinta
A côr que está teu fructo debuxando.
  E pois emprestas doce e idoneo abrigo
A meu contentamento, e favoreces
Com teu suave cheiro a minha gloria;
  Se eu não te celebrar como mereces,
Cantando-te, se quer farei comtigo
Doce nos casos tristes a memoria.
CXXXVII.
O filho de Latona esclarecido,
Que com seu raio alegra a humana gente,
Matar pôde a Phytonica serpente
Que mortes mil havia produzido.
  Ferio com arco, e de arco foi ferido,
Com ponta aguda de ouro reluzente:
Nas Thessalicas praias docemente
Por a nympha Penea andou perdido.
  Não lhe pôde valer contra seu dano
Saber, nem diligencias, nem respeito
De quanto era celeste e soberano.
  Pois se hum deos nunca vio nem hum engano
De quem era tão pouco em seu respeito,
Eu qu'espero de hum ser, qu'he mais que hum
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/144]]==
<poem>
ano?{70}
CXXXVIII.
Presença bella, angelica figura,
Em quem quanto o Ceo tinha nos t~ee dado;
Gesto alegre de rosas semeado,
Entre as quaes se está rindo a Formosura:
  Olhos, onde t~ee feito tal mistura
Em crystal puro o negro marchetado,
Que vemos ja no verde delicado
Não esperança, mas inveja escura:
  Brandura, aviso, e graça, que augmentando
A natural belleza co'hum desprezo,
Com que mais desprezada mais se augmenta:
  São as prizões de hum coração, que prêzo,
Seu mal ao som dos ferros vai cantando,
Como faz a serêa na tormenta
CXXXIX.
Por cima destas águas forte e firme
Irei aonde os Fados o ordenárão,
Pois por cima de quantas derramárão
Aquelles claros olhos pude vir-me.
  Ja chegado era o fim de despedir-me;
Ja mil impedimentos se acabárão,
Quando rios de amor se atravessárão
A me impedir o passo de partir-me.
  Passei-os eu com ânimo obstinado,
Com que a morte forçada gloriosa
Faz o vencido ja desesperado.
  Em qual figura, ou gesto desusado,
Póde ja fazer medo a morte irosa
A quem t~ee a seus pés rendido e ata
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/145]]==
<poem>
do?{71}
CXL.
Tal mostra de si dá vossa figura,
Sibela, clara luz da redondeza,
Que as fôrças e o poder da natureza
Com sua claridade mais apura.
  Quem confiança ha visto tão segura,
Tão singular esmalte da belleza,
Que não padeça mal de mais graveza,
Se resistir a seu amor procura?
  Eu, pois, por escusar tal esquivança,
A razão sujeitei ao pensamento,
A quem logo os sentidos se entregárão.
  Se vos offende o meu atrevimento,
Inda podeis tomar nova vingança
Nas reliquias da vida que ficárão.
CXLI.
Na desesperação ja repousava
O peito longamente magoado,
E, com seu damno eterno concertado,
Ja não temia, ja não desejava;
  Quando huma sombra vãa me assegurava
Que algum bem me podia estar guardado
Em tão formosa imagem, que o traslado
N'alma ficou, que nella se enlevava.
  Que credito que dá tão facilmente
O coração áquillo que deseja,
Quando lhe esquece o fero seu destino!
  Ah! deixem-me enganar; que eu sou contente;
Pois, postoque maior meu damno seja,
Fica-me a gloria ja do que imagino
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/146]]==
<poem>
.{72}
CXLII.
Diversos dões reparte o Ceo benino,
E quer que cada huma alma hum só possua;
Por isso ornou de casto peito a Lua,
Que o primeiro orbe illustra crystallino;
  De graça a Mãe formosa do Menino,
Que nessa vista t~ee perdido a sua;
Pallas de sciencia não maior que a tua:
T~ee Juno da nobreza o imperio dino.
  Mas junto agora o largo Ceo derrama
Em ti o mais que tinha, e foi o menos
Em respeito do Autor da natureza.
  Que a seu pezar te dão, formosa dama,
Seu peito a Lua, sua graça Venos,
Sua sciencia Pallas, Juno sua nobreza.
CXLIII.
Gentil Senhora, se a Fortuna imiga,
Que contra mi com todo o Ceo conspira,
Os olhos meus de ver os vossos tira,
Porque em mais graves casos me persiga;
  Comigo levo esta alma, que se obriga
Na mor pressa de mar, de fogo, e d'íra,
A dar-vos a memoria, que suspira
Só por fazer comvosco eterna liga.
  Nesta alma, onde a fortuna póde pouco,
Tão viva vos terei, que frio e fome,
Vos não possão tirar, nem mais perigos.
  Antes, com som de voz trémulo e rouco
Por vós chamando, só com vosso nome
Farei fugir os ventos, e os imig
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/147]]==
<poem>
os.{73}
CXLIV
Que modo tão subtil da natureza
Para fugir ao mundo e seus enganos!
Permitte que se esconda em tenros anos
Debaixo de hum burel tanta belleza!
  Mas não póde esconder-se aquella alteza
E gravidade de olhos soberanos,
A cujo resplandor entre os humanos
Resistencia não sinto, ou fortaleza.
  Quem quer livre ficar de dor e pena,
Vendo-a ja, ja trazendo-a na memoria,
Na mesma razão sua se condena.
  Porque quem mereceo ver tanta gloria
Captivo ha de ficar; que Amor ordena
Que de juro tenha ella esta victoria.
CXLV
Quando se vir com água o fogo arder,
Juntar-se ao claro dia a noite escura,
E a terra collocada lá na altura
Em que se vem os ceos prevalecer;
  Quando Amor á Razão obedecer,
E em todos for igual huma ventura,
Deixarei eu de ver tal formosura,
E de a amar deixarei depois de a ver.
  Porém não sendo vista esta mudança
No mundo, porque, em fim, não póde ver-se,
Ninguem mudar-me queira de querer-vos.
  Que basta estar em vós minha esperança,
E o ganhar-se a minha alma, ou o perder-se,
Para dos olhos meus nunca perder-vos.
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/148]]==
<poem>
{74}
CXLVI.
Quando a suprema dor muito me aperta,
Se digo que desejo esquecimento,
He fôrça que se faz ao pensamento,
De que a vontade livre desconcerta.
  Assi de êrro tão grave me desperta
A luz do bem regido entendimento,
Que mostra ser engano, ou fingimento,
Dizer que em tal descanso mais se acerta.
  Porque essa propria imagem, que na mente
Me representa o bem de que careço,
Faz-mo de hum certo modo ser presente.
  Ditosa he, logo, a pena que padeço,
Pois que da causa della em mi se sente
Hum bem que, inda sem ver-vos, reconheço.
CXLVII.
Na margem de hum ribeiro, que fendia
Com liquido crystal hum verde prado,
O triste pastor Liso debruçado
Sôbre o tronco de hum freixo assi dizia:
  Ah Natercia cruel! quem te desvia
Esse cuidado teu do meu cuidado?
Se tanto hei de penar desenganado,
Enganado de ti viver queria.
  Que foi de aquella fé que tu me déste?
D'aquelle puro amor que me mostraste?
Quem tudo trocar pôde tão asinha?
  Quando esses olhos teus n'outro puzeste,
Como te não lembrou que me juraste
Por toda a sua luz que eras só minha?{75}

</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/149]]==
<poem>
CXLVIII.
Se me vem tanta gloria só de olhar-te,
He pena desigual deixar de ver-te;
Se presumo com obras merecer-te,
Grão paga de hum engano he desejar-te.
  Se aspiro por quem es a celebrar-te,
Sei certo por quem sou que hei de offender-te;
Se mal me quero a mi por bem querer-te,
Que premio querer posso mais que amar-te?
  Porque hum tão raro amor não me soccorre?
Oh humano thesouro! oh doce gloria!
Ditoso quem á morte por ti corre!
  Sempre escrita estaras nesta memoria;
E esta alma viverá, pois por ti morre,
Porque ao fim da batalha he a victoria.
CXLIX.
Sempre a Razão vencida foi de Amor;
Mas, porque assi o pedia o coração,
Quiz Amor ser vencido da Razão.
Ora que caso póde haver maior!
  Novo modo de morte, e nova dor!
Estranheza de grande admiração!
Pois, em fim, seu vigor perde a affeição,
Porque não perca a pena o seu vigor.
  Fraqueza, nunca a houve no querer;
Mas antes muito mais se esforça assim
Hum contrário com outro por vencer.
  Mas a razão que a luta vence, em fim,
Não creio que he razão; mas deve ser
Inclinação que eu tenho contra mi
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/150]]==
<poem>
m.{76}
CL.
Coitado! que em hum tempo chóro e rio;
Espero e temo, quero e aborreço;
Juntamente me allegro e me entristeço;
Confio de huma cousa e desconfio.
  Vôo sem azas; estou cego e guio;
Alcanço menos no que mais mereço;
Entaõ fallo melhor, quando emmudeço;
Sem ter contradiçaõ sempre porfio.
  Possivel se me faz todo o impossivel;
Intento com mudar-me estar-me quedo;
Usar de liberdade, e ser captivo;
  Queria visto ser, ser invisivel;
Ver-me desenredado, amando o enredo:
Taes os extremos são com que hoje vivo!
CLI.
Julga-me a gente toda por perdido,
Vendo-me, tão entregue a meu cuidado,
Andar sempre dos homens apartado,
E de humanos commercios esquecido.
  Mas eu, que tenho o mundo conhecido,
E quasi que sôbre elle ando dobrado,
Tenho por baixo, rustico, e enganado
Quem não he com meu mal engrandecido.
  Vá revolvendo a terra, o mar, e o vento,
Honras busque e riquezas a outra gente,
Vencendo ferro, fogo, frio e calma.
  Que eu por amor sómente me contento
De trazer esculpido eternamente
Vosso formoso gesto dentro da alma.{77}

</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/151]]==
<poem>
CLII.
Olhos, aonde o Ceo com luz mais pura
Quiz dar de seu poder claros signais,
Se quizerdes ver bem quanto possais,
Vêde-me a mi que sou vossa feitura.
  Em mi viva vereis vossa figura
Mais propria que em purissimos crystais,
Porque nesta alma he certo que vejais
Melhor que em hum crystal tal formosura.
  De meu não quero mais que o meu desejo,
Se acaso por querer-vos mais mereço,
Porque o vosso poder em mi se asselle.
  Do mundo outra memoria em mi não vejo:
Com lembrar-me de vós, delle me esqueço,
Com triumphardes de mi, triumpharei delle.
CLIII.
Criou a natureza Damas bellas,
Que forão de altos plectros celebradas;
Dellas tomou as partes mais prezadas,
E a vós, Senhora, fez do melhor dellas.
  Ellas diante vós são as estrellas,
Que ficão com vos ver logo eclipsadas.
Mas se ellas t~ee por sol essas rosadas
Luzes de sol maior, felices ellas!
  Em perfeição, em graça e gentileza,
Por hum modo entre humanos peregrino,
A todo bello excede essa belleza.
  Oh quem tivera partes de divino
Para vos merecer! Mas se pureza
De amor vai ante vós, de vós sou din
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/152]]==
<poem>
o.{78}
CLIV.
Que esperais, esperança?  Desespéro.
Quem disso a causa foi?  H~ua mudança.
Vós, vida, como estais?  Sem esperança.
Que dizeis, coração?  Que muito quero.
  Que sentis, alma, vós?  Que amor he fero.
E, em fim, como viveis?  Sem confiança.
Quem vos sustenta, logo?  Huma lembrança.
E só nella esperais?  Só nella espero.
  Em que podeis parar?  Nisto em que estou.
E em que estais vós?  Em acabar a vida.
E ténde-lo por bem?  Amor o quer.
  Quem vos obriga assi?  Saber quem sou.
E quem sois?  Quem de todo está rendida.
A quem rendida estais?  A hum só querer.
CLV.
Se como em tudo o mais fostes perfeita,
Foreis de condição menos esquiva,
Fôra a minha fortuna mais altiva,
Fôra a sua altiveza mais sujeita.
  Mas quando a vida a vossos pés se deita,
Porque não a acceitais, não quer que eu viva:
Ella propria de si ja a mi me priva;
Que, porque me engeitais, tambem me engeita.
  Se nisso contradiz vossa vontade,
Mandai-lhe vós, Senhora, que dê fim
Á minha profundissima tristeza.
  Pois ella não mo dá, porque piedade
Tenha deste meu mal, mas porque em mim
Possais assi fartar vossa crue
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/153]]==
<poem>
za.{79}
CLVI.
Se algum'hora essa vista mais suave
Acaso a mi volveis, em hum momento
Me sinto com hum tal contentamento,
Que não temo que damno algum me aggrave.
  Mas quando com desdem esquivo e grave
O bello rosto me mostrais isento,
Huma dor provo tal, hum tal tormento,
Que muito vem a ser que não me acabe.
  Assi está minha vida, ou minha morte
No volver de esses olhos; pois podeis
Dar co'huma volta delles morte, ou vida.
  Ditoso eu, se o Ceo quer, ou minha sorte,
Que ou vida, para dar-vo-la, me deis,
Ou morte, para haver morte querida!
CLVII.
Tanto se forão, Nympha, costumando
Meus olhos a chorar tua dureza,
Que vão passando ja por natureza
O que por accidente hião passando.
  No que ao somno se deve estou velando,
E venho a velar só minha tristeza:
O chôro não abranda esta aspereza,
E meus olhos estão sempre chorando.
  Assi de dor em dor, de mágoa em mágoa,
Consumindo-se vão inutilmente,
E esta vida tambem vão consumindo.
  Sôbre o fogo de amor inutil ágoa!
Pois eu em chôro estou continuamente,
E do que vou chorando te vás rindo.
  Assi nova corrente
Levas de chôro em foro;
Porque de ver-te rir, de novo chóro.{80}

</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/154]]==
<poem>
CLVIII.
Eu me aparto de vós, Nymphas do Tejo,
Quando menos temia esta partida;
E se a minha alma vai entristecida,
Nos olhos o vereis com que vos vejo.
  Pequenas esperanças, mal sobejo,
Vontade que razão leva vencida,
Presto verão o fim á triste vida,
Se vos não tórno a ver como desejo.
  Nunca a noite entretanto, nunca o dia,
Verão partir de mi vossa lembrança:
Amor, que vai comigo, o certifica.
  Por mais que no tornar haja tardança,
Me farão sempre triste companhia
Saudades do bem que em vós me fia.
CLIX.
Vencido está de amor
  
Meu pensamento
O mais que póde ser,
  
Vencida a vida,
Sujeita a vos servir e
  
Instituida,
Oferecendo tudo
  
A vosso intento.
Contente deste bem
  
Louva o momento,
Ou hora em que se vio
  
Tão bem perdida;
Mil vezes desejando,
  
Assi ferida,
Outras mil renovar
  
Seu perdimento.
Com esta pretenção
  
Está segura
A causa que me guia
  
Nesta empreza
Tão sobrenatural,
  
Honrosa, e alta.
Jurando não querer
  
Outra ventura,
Votando só por vós
  
Rara firmeza,
Ou ser no vosso amor
  
Achad
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/155]]==
<poem>
o em falta.{81}
CLX.
Divina companhia, que nos prados
Do claro Eurotas, ou no Olympo monte,
Ou sôbre as margens da Castalia fonte
Vossos estudos tendes mais sagrados;
  Pois por destino dos immoveis fados
Quereis qu'em vosso número me conte,
No eterno templo de Belorofonte
Ponde em bronze estes versos entalhados:
  Soliso (porque em seculos futuros
Se veja da belleza o que merece
Quem de sábia doudice a mente inflama)
  Seus escritos, da sorte ja seguros,
A estas aras em h~ua mão offrece,
E a alma em outra á sua bella dama.
CLXI.
Á la margen del Tajo, en claro dia,
Con rayado marfil peinando estaba
Natercia sus cabellos, y quitaba
Con sus ojos la luz al sol que ardia.
  Soliso que, cual Clicie, la seguia,
Lejos de sí, mas cerca della estaba:
Al son de su zampoña celebraba
La causa de su ardor, y así decia:
  Si tantas, como tú tienes cabellos,
Tuviera vidas yo, me las llevaras
Colgada cada cual del uno dellos.
  De no tenerlas tú me consolaras,
Si tantas veces mil, como son ellos,
En ellos la que tengo me enredaras
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/156]]==
<poem>
.{82}
CLXII.
Por gloria tuve un tiempo el ser perdido;
Perdíame de puro bien ganado;
Gané cuando perdí ser libertado;
Libre agora me veo, mas vencido.
  Vencí cuando de Nise fuí rendido;
Rendíme por no ser della dejado:
Dejóme en la memoria el bien pasado;
Paso agora á llorar lo que he servido.
  Servia al premio de la luz que amaba;
Amándola esperábale por cierto;
Incierto me salió cuanto esperaba.
  La esperanza se queda en desconcierto;
El concierto en el mal que no pensaba;
El pensamiento con un fin incierto.
CLXIII.
Revuelvo en la incesable fantasía
Cuando me he visto en mas dichoso estado,
Si agora que de Amor vivo inflamado,
Si cuando de su ardor libre vivia.
  Entonces desta llama solo huia,
Despreciando en mi vida su cuidado;
Agora, con dolor de lo pasado,
Tengo por gloria aquello que temia.
  Bien veo que era vida deleitosa
Aquella que lograba sin temores,
Cuando gustos de Amor tuve por viento.
  Mas viendo hoy á Natercia tan hermosa,
Hallo en esta prision glorias mayores,
Y en perderlas por libre hallo tor
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/157]]==
<poem>
mento.{83}
CLXIV.
Las peñas retumbaban al gemido
Del misero zagal, que lamentaba
El dolor que á su alma lastimaba,
De un obstinado desamor nacido.
  El mar, que las batia, su bramido
Con los retumbos dellas ayuntaba;
Confuso son el viento derramaba,
En cavernosos valles repetido.
  Responden a mi llanto duras peñas,
Ai de mí! (dijo) la mar brama y gime;
Los ecos suenan de tristeza llenos:
  Y tú, por quien la muerte en mí se imprime,
De oir las ansias mias te desdeñas;
Y cuando lloro mas, te abrando menos.
CLXV.
En una selva al dispuntar del dia
Estaba Endimion triste y lloroso,
Vuelto al rayo del sol, que presuroso
Por la falda de un monte descendia.
  Mirando al turbador de su alegría,
Contrario de su bien y su reposo,
Tras un suspiro y otro, congojoso,
Razones semejantes le decia:
  Luz clara, para mi la mas escura,
Que con esse paseo apresurado,
Mi sol con tu teniebla escureciste;
  Si allà pueden moverte en esa altura
Las quejas de un pastor enamorado,
No tardes en volver á dó saliste
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/158]]==
<poem>
.{84}
CLXVI.
Orfeo enamorado que tañia
Por la perdida Ninfa que buscaba,
En el Orco implacable donde estaba,
Con la arpa, y con la voz la enternecia.
  La rueda de Ixion no se movia,
Ningun atormentado se quejaba;
Las penas de los otros ablandaba,
Y todas las de todos él sentia.
  El son pudo obligar de tal manera,
Que en dulce galardon de lo cantado,
Los infernales Reyes condolidos,
  Le mandáron volver su compañera,
Y volvióla á perder el desdichado;
Con que fueron entrambos los perdidos.
CLXVII.
Eu cantei ja, e agora vou chorando
O tempo que cantei tão confiado:
Parece que no canto ja passado
Se estavão minhas lagrimas criando.
  Cantei; mas se me alguem pergunta, quando?
Não sei; que tambem fui nisso enganado.
He tão triste este meu presente estado,
Que o passado por ledo estou julgando.
  Fizerão-me cantar manhosamente
Contentamentos não, mas confianças:
Cantava, mas ja era ao som dos ferros.
  De quem me queixarei, se tudo mente?
Porém que culpas ponho ás esperanças,
Onde a fortuna injusta he mais qu'os
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/159]]==
<poem>
erros?{85}
CLXVIII.
Ai amiga cruel! que apartamento
He este que fazeis da patria terra?
Ai! quem do amado ninho vos desterra,
Gloria dos olhos, bem do pensamento?
  His tentar da fortuna o movimento,
E dos ventos crueis a dura guerra?
Ver brenhas de ondas? feito o mar em serra
Levantado de hum vento e de outro vento?
  Mas ja que vós partis, sem vos partirdes,
Parta comvosco o Ceo tanta ventura,
Que se avantaje áquella qu'esperardes.
  E só desta verdade ide segura,
Que fazeis mais saudades com vos irdes,
Do que levais desejos por chegardes.
CLXIX.
Campo! nas syrtes deste mar da vida,
Apos naufragios seus taboa segura;
Claras bonanças em tormenta escura,
Habitação da paz, de amor guarida;
  A ti fujo: e se vence tal fugida,
E quem mudou lugar, mudou ventura,
Cantemos a victoria; e na espessura
Triumphe a honra da ambição vencida.
  Em flor e fructo de verão e outono;
Utilmente murmurão claras ágoas;
Alegre me acha aqui, me deixa o dia.
  Amantes rouxinoes rompem-me o sono
Que ata o descanso: aqui sepulto mágoas
Que ja forão sepulcros de alegri
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/160]]==
<poem>
a.{86}
CLXX.
Ah minha Dinamene! assi deixaste
Quem nunca deixar pôde de querer-te!
Que ja, Nympha gentil, não possa ver-te!
Que tão veloz a vida desprezaste!
  Como por tempo eterno te apartaste
De quem tão longe andava de perder-te?
Puderão essas ágoas defender-te
Que não visses quem tanto magoaste?
  Nem somente fallar-te a dura morte
Me deixou, qu'apressada o negro manto
Lançar sôbre os teus olhos consentiste.
  Oh mar! oh ceo! oh minha escura sorte!
Qual vida perderei que valha tanto,
Se inda tenho por pouco o viver triste?
CLXXI.
Guardando em mi a Sorte o seu direito.
Em verde me cortou minha alegria.
Oh quanto feneceo naquelle dia,
Cuja triste lembrança arde em meu peito!
  Quando mais o imagino, bem suspeito
Que a tal bem tal desconto se devia,
Por não dizer o mundo que podia
Achar-se em seus enganos bem perfeito.
  Pois se a Fortuna o fez por descontar-me
Aquelle gôsto, em cujo sentimento
A memoria não faz senão matar-me;
  Que culpas póde dar-me o pensamento,
Se a causa qu'elle t~ee de atormentar-me,
Tenho eu de soffrer mal o seu torm
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/161]]==
<poem>
ento?{87}
CLXXII.
Cantando estava hum dia bem seguro,
Quando passava Sylvio, e me dizia:
(Sylvio, pastor antiguo que sabia
Por o canto das aves o futuro)
  Liso, quando quizer o fado escuro,
A opprimir-te virão em hum só dia
Dous lobos; logo a voz e a melodia
Te fugirão, e o som suave e puro.
  Bem foi assi; porque hum me degolou
Quanto gado vacum pastava e tinha,
De que grandes soldadas esperava.
  E por mais damno o outro me matou
A cordeira gentil, qu'eu tanto amava,
Perpétua saudade da alma minha.
CLXXIII.
O ceo, a terra, o vento socegado,
As ondas que se estendem por a areia,
Os peixes que no mar o somno enfreia,
O nocturno silencio repousado;
  O Pescador Aonio que, deitado
Onde co'o vento a água se meneia,
Chorando, o nome amado em vão nomeia,
Que não póde ser mais que nomeado,
  Ondas, (dizia) antes que Amor me mate,
Tornae-me a minha Nympha, que tão cedo
Me fizestes á morte estar sujeita.
  Ninguem responde; o mar de longe bate;
Move-se brandamente o arvoredo;
Leva-lhe o vento a voz, qu'ao vento deita.{88}

</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/162]]==
<poem>
CLXXIV.
Ah Fortuna cruel! ah duros Fados!
Quão asinha em meu damno vos mudastes!
Com os vossos cuidados me cansastes,
E agora descansais co'os meus cuidados.
  Fizestes-me provar gostos passados,
E vossa condição nelles provastes:
Singelos em hum'hora mos levastes,
Deixando em seu lugar males dobrados.
  Quanto melhor me fôra que não vira
Os doces bens de Amor? Ah bens suaves!
Quem me deixa sem vós, porque me deixa?
  De queixar-te, alma minha, te retira:
Alma, de alto cahida em penas graves,
Pois tanto amaste em vão, em vão te queixa.
CLXXV.
Quanto tempo, olhos meus, com tal lamento
Vos hei de ver tão tristes e aggravados?
Não bástão meus suspiros inflammados,
Que sempre em mi renovão seu tormento?
  Não basta consentir meu pensamento
Em mágoas, em tristezas e em cuidados,
Senão que haveis de andar tão maltratados,
Que lagrimas tenhais por mantimento?
  Não sei porque tomais esta vingança,
Mostrando-vos na ausencia tão saudosos,
Se sabeis quanto póde huma esperança.
  Olhos, não aggraveis outros formosos,
Tornando hum puro amor em esquivança,
Pois ficais por esquivos desdenh
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/163]]==
<poem>
osos.{89}
CLXXVI.
Lembranças, que lembrais o bem passado
Para que sinta mais o mal presente,
Deixae-me, se quereis, viver contente,
Morrer não me deixeis em tal estado.
  Se de todo, comtudo, está do Fado,
Que eu morra de viver tão descontente,
Venha-me todo o bem por accidente,
E todo o mal me venha por cuidado.
  Que muito melhor he perder-se a vida,
Perdendo-se as lembranças da memoria,
Pois fazem tanto damno ao pensamento.
  Porque, em fim, nada perde quem perdida
A esperança t~ee ja daquella gloria
Que fazia suave o seu tormento.
CLXXVII.
Quando os olhos emprégo no passado,
De quanto passei me acho arrependido;
Vejo que tudo foi tempo perdido,
Que tudo emprêgo foi mal empregado.
  Sempre no mais damnoso mais cuidado;
Tudo o que mais cumpria, mal cumprido;
De desenganos menos advertido
Fui, quando de esperanças mais frustrado.
  Os castellos que erguia o pensamento,
No ponto que mais altos os erguia,
Por esse chão os via em hum momento.
  Que erradas contas faz a phantasia!
Pois tudo pára em morte, tudo em vento,
Triste o que espera! triste o que confia!{90}

</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/164]]==
<poem>
CLXXVIII
Ja cantei, ja chorei a dura guerra
Por Amor sustentada longos anos;
Vezes mil me vedou dizer seus danos,
Por não ver quem o segue o muito que erra.
  Nymphas, por quem Castalia se abre e cerra;
Vós que fazeis á morte mil enganos,
Concedei-me ja alentos soberanos
Para que diga o mal que Amor encerra:
  Para que aquelle, que o seguir ardente,
Veja em meus puros versos hum exemplo
De quanto em glorias promettidas mente.
  Qu'inda qu'em triste estado me contemplo,
Se neste assumpto me inspirais, contente
Darei a minha lyra ao vosso templo.
CLXXIX
Os meus alegres, venturosos dias
Passárão, como raio, brevemente;
Movem-se os tristes mais pezadamente
Apos das fugitivas alegrias.
  Ah falsas pretenções! vãas phantasias!
Que me podeis ja dar que me contente?
Ja de meu triste peito a chamma ardente
O tempo reduzio a cinzas frias.
  Nellas revolvo agora erros passados;
Que outro fructo não deo a mocidade,
A quem vergonha e dor minha alma deve
  Revolvo mais de toda a mais idade,
Desejos vãos, vãos choros, vãos cuidados,
Para que leve tudo o tempo lev
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/165]]==
<poem>
e.{91}
CLXXX.
Horas breves de meu contentamento,
Nunca me pareceo, quando vos tinha,
Que vos visse mudadas tão asinha
Em tão compridos annos de tormento.
  As altas tôrres, que fundei no vento,
Levou, em fim, o vento que as sostinha:
Do mal, que me ficou, a culpa he minha,
Pois sôbre cousas vãas fiz fundamento.
  Amor com brandas mostras apparece,
Tudo possivel faz, tudo assegura;
Mas logo no melhor desapparece.
  Estranho mal! estranha desventura!
Por hum pequeno bem que desfallece,
Hum bem aventurar, que sempre dura!
CLXXXI.
Onde acharei lugar tão apartado,
E tão isento em tudo da ventura,
Que, não digo eu de humana criatura,
Mas nem de feras seja frequentado?
  Algum bosque medonho e carregado,
Ou selva solitaria, triste e escura,
Sem fonte clara, ou placida verdura;
Em fim, lugar conforme a meu cuidado?
  Porque alli nas entranhas dos penedos,
Em vida morto, sepultado em vida,
Me queixe copiosa e livremente.
  Que, pois a minha pena he sem medida,
Alli não serei triste em dias ledos,
E dias tristes me farão contente.{92}

</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/166]]==
<poem>
CLXXXII.
Aqui de longos damnos breve historia
Verão os que se jactão de amadores:
Reparo póde ser das suas dores
Não apartar as minhas da memoria.
  Escrevi, não por fama, nem por gloria,
De que outros versos são merecedores,
Mas por mostrar seus triumphos, seus rigores
A quem de mi logrou tanta victoria.
  Crescendo foi a dor co'o tempo, tanto
Que em número me fez, alheio de arte,
Dizer do cego Amor, que me venceo.
  Se ao canto dei a voz, dei a alma ao pranto;
E dando a penna á mão, esta só parte
De minhas tristes penas escreveo.
CLXXXIII.
Por sua Nympha Céphalo deixava
A Aurora, que por elle se perdia,
Postoque dá principio ao claro dia,
Postoque as roxas flores imitava.
  Elle, que a bella Procris tanto amava,
Que só por ella tudo engeitaria,
Deseja de tentar se lhe acharia
Tão firme fé, como ella nelle achava.
  Mudado o trage, tece hum duro engano;
Outro se finge, preço põe diante;
Quebra-se a fé mudavel, e consente.
  Oh subtil invenção para seu dano!
Vêde que manhas busca hum cego amante
Para que sempre seja descont
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/167]]==
<poem>
ente!{93}
CLXXXIV.
Sentindo-se alcançada a bella esposa
De Céphalo no crime consentido,
Para os montes fugia do marido;
E não sei se de astuta, ou vergonhosa.
  Porque elle, em fim, soffrendo a dor ciosa,
Da cegueira obrigado de Cupido,
Apos ella se vai como perdido,
Ja perdoando a culpa criminosa.
  Deita-se aos pés da Nympha endurecida,
Que do cioso engano está aggravada;
Ja lhe pede perdão, ja pede a vida.
  Oh fôrça d'affeição desatinada!
Que da culpa contr'elle commettida,
Perdão pedia á parte que he culpada!
CLXXXV.
Seguia aquelle fogo, que o guiava,
Leandro, contra o mar e contra o vento;
Quebravão-lhe ondas o animoso alento,
Por mais e mais que Amor lho renovava.
  Com sentir ja que quasi lhe faltava,
Sem nada esmorecer, no pensamento
(Não podendo fallar) de seu intento
O fim ao surdo mar encommendava.
  Ó mar, (dizia o moço só comsigo)
Ja te não peço a vida; só queria
Que a d'Hero me salvasses: não me veja:
  Este defunto corpo lá o desvia
D'aquella tôrre: sê-me nisto amigo,
Pois no meu maior bem me houveste inve
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/168]]==
<poem>
ja.{94}
CLXXXVI.
Os olhos onde o casto Amor ardia,
Ledo de se ver nelles abrazado;
O rosto onde com lustre desusado
Purpurea rosa sôbre neve ardia;
  O cabello, que inveja ao sol fazia,
Porque fazia o seu menos dourado;
A branca mão, o corpo bem talhado,
Tudo aqui se reduz a terra fria.
  Perfeita formosura em tenra idade,
Qual flor, que antecipada foi colhida,
Murchada está da mão da morte dura.
  Como não morre Amor de piedade?
Não della, que se foi á clara vida;
Mas de si, que ficou em noute escura.
CLXXXVII.
Ditosa penna, como a mão que a guia
Com tantas perfeições da subtil arte,
Que quando com razão venho a louvar-te,
Em teus louvores perco a phantasia.
  Porém Amor, que effeitos varios cria,
De ti cantar me manda em toda parte,
Não em plectro belligero de Marte,
Mas em suave e branda melodia.
  Teu nome, Emmanuel, de hum n'outro pólo,
Voando se levanta e te pregoa,
Agora que ninguem te levantava.
  E porque immortal sejas, eis Apolo
Te offerece de flores a coroa,
Que ja de longo tempo te guardava.{95}

</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/169]]==
<poem>
CLXXXVIII.
Espanta crescer tanto o crocodilo
Só por seu limitado nascimento;
Que, se maior nascêra, mais isento
Estivera de espanto o patrio Nilo.
  Em vão levantará meu baixo estilo
Vosso Pontifical, novo ornamento;
Pois no ventre o immortal merecimento
Vo-lo talhou, para despois vesti-lo.
  Tardou, mas veio; que a quem mais merece
Vir o premio mais tarde he sempre certo,
Inda que vez alguma venha cedo.
  Os ceos, que do primeiro estão mais perto,
Mais devagar se movem. Quem conhece,
Sôbre aquelle segredo, este segredo!
CLXXXIX.
Ornou sublime esfôrço ao grande Atlante,
Com qu'a celeste máchina sustenta;
Honrou a Homero o engenho, com que intenta
Grecia do quarto ceo passá-lo avante;
  Coroou claro Amor de amor constante
A Orpheo, na paz firme e na tormenta;
Inspirou a Fortuna, em tudo isenta,
A Cesar, de quem foi hum tempo amante;
  Exaltaste tu, Fama, a gloria alta
De Alcides lá no monte em que resides;
Mas Castro, em quem o Ceo seus dões derrama,
  Mais orna, honra, coroa, inspira, exalta,
Que Atlante, Homero, Orpheo, Cesar e Alcides,
Esfôrço, engenho, Amor, Fortuna e Fama.{96}

</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/170]]==
<poem>
CXC.
Despois que vio Cibele o corpo humano
Do formoso Atys seu verde pinheiro,
Em piedade o vão furor primeiro
Convertido, chorava o grave dano.
  E, á sua dor fazendo illustre engano,
A Jupiter pedio, que o verdadeiro
Preço da nobre palma e do loureiro
Ao seu pinheiro désse, soberano.
  Mais lhe concede o filho poderoso
Que, crescendo, as estrellas tocar possa,
Vendo os segredos lá do ceo superno.
  Oh ditoso pinheiro! oh mais ditoso
Quem se vir coroar da rama vossa,
Cantando á vossa sombra verso eterno!
CXCI.
Pois torna por seu Rei e juntamente
Por Christo a governar aquella parte
Onde se t~ee mostrado hum Numa, hum Marte
O famoso Luis, justo e valente;
  O Tejo espere ver de todo o Oriente,
Onde tão raros dões o Ceo reparte,
Render a tanto esfôrço, aviso e arte,
Mil palmas, mil tributos novamente.
  Os que bebem no Gange, os que no Indo,
A quem pouco valêrão lança e escudo,
O render-se terão por bom partido.
  O Euphrates temerá, seu nome ouvindo;
Que para delle ver vencido tudo,
Ja vio do braço seu tudo vencido
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/171]]==
<poem>
.{97}
CXCII.
Agora toma a espada, agora a pena,
Estacio nosso, em ambas celebrado,
Sendo, ou no salso mar de Marte amado,
Ou n'água doce amante da Camena.
  Cysne sonoro por ribeira amena
De mi para cantar-te he cobiçado;
Porque não podes tu ser bem cantado
De ruda frauta, nem de agreste avena.
  Se eu, que a penna tomei, tomei a espada,
Para poder jogar licença tenho
Desta alta influïção de dous Planetas;
  Com huma e outra luz delles lograda,
Tu com pujante braço, ardente engenho,
Serás pharo a Soldados e a Poetas.
CXCIII.
Erros meus, ma Fortuna, Amor ardente
Em minha perdição se conjurárão:
Os erros e a Fortuna sobejárão;
Que para mi bastava Amor somente.
  Tudo passei; mas tenho tão presente
A grande dor das cousas, que passárão,
Que ja as frequencias suas me ensinárão
A desejos deixar de ser contente.
  Errei todo o discurso de meus anos;
Dei causa a que a Fortuna castigasse
As minhas mal fundadas esperanças.
  De Amor não vi senão breves enganos.
Oh quem tanto pudesse, que fartasse
Este meu duro Genio de vinganças!{98}

</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/172]]==
<poem>
CXCIV.
Cá nesta Babylonia donde mana
Materia a quanto mal o mundo cria;
Cá donde o puro Amor não t~ee valia;
Que a Mãe, que manda mais, tudo profana;
  Cá donde o mal se affina, o bem se dana,
E póde mais que a honra a tyrannia;
Cá donde a errada e cega Monarchia
Cuida que hum nome vão a Deos engana;
  Cá neste labyrintho onde a Nobreza,
O Valor e o Saber pedindo vão
Ás portas da Cobiça e da Vileza;
  Cá neste escuro caos de confusão
Cumprindo o curso estou da natureza.
Vê se me esquecerei de ti, Sião!
CXCV.
Correm turbas as águas deste rio,
Que as rapidas enchentes enturbárão;
Os florecidos campos se seccárão;
Intratavel se fez o valle e frio.
  Passou, como o verão, o ardente estio;
Humas cousas por outras se trocárão:
Os fementidos fados ja deixárão
Do mundo o regimento, ou desvario.
  Ja o tempo a ordem sua t~ee sabida;
O mundo não; mas anda tão confuso,
Que parece que delle Deos se esquece.
  Casos, opiniões, natura, e uso,
Fazem que nos pareça desta vida
Que não ha nella mais do que par
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/173]]==
<poem>
ece.{99}
CXCVI.
Vós outros, que buscais repouso certo
Na vida, com diversos exercicios;
A quem, vendo do mundo os beneficios,
O regimento seu fica encoberto;
  Dedicae, se quereis, ao Desconcêrto
Novas honras e cegos sacrificios;
Que, por castigo igual de antiguos vicios,
Quer Deos que andem as cousas por acêrto.
  Não cahio neste modo de castigo
Quem poz culpa á Fortuna, quem somente
Crê que acontecimentos ha no mundo.
  A grande experiencia he grão perigo:
Mas o que a Deos he justo e evidente
Parece injusto aos homens e profundo.
CXCVII.
Para se namorar do que criou,
Te fez Deos, sacra Phenix, Virgem pura.
Vêde que tal seria esta feitura
Que para si o seu Feitor guardou!
  No seu alto conceito te formou
Primeiro que a primeira criatura,
Para que unica fosse a compostura
Que de tão longo tempo se estudou.
  Não sei se digo em tudo quanto baste
Para exprimir as raras qualidades
Que quiz criar em ti quem tu criaste.
  Es Filha, Mãe, e Esposa: e se alcançaste
Huma só, tres tão altas dignidades,
Foi porqu'a Tres de Hum só tanto agradast
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/174]]==
<poem>
e.{100}
CXCVIII.
Desce do ceo immenso Deos benino
Para encarnar na Virgem soberana.
Porque desce o divino a cousa humana?
Para subir o humano a ser divino.
  Pois como vem tão pobre e tão menino,
Rendendo-se ao poder da mão tyrana?
Porque vem receber morte inhumana
Para pagar de Adão o desatino.
  He possivel que os dous o fructo comem
Que de quem lhes deo tanto foi vedado?
Si; porque o proprio ser de deoses tomem.
  E por esta razão foi humanado?
Si; porque foi com causa decretado,
Se quiz o homem ser Deos, que Deos fosse homem.
CXCIX.
Dos ceos á terra desce a mor Belleza,
Une-se á nossa carne, e a faz nobre;
E, sendo a humanidade d'antes pobre,
Hoje subida fica á mor riqueza.
  Busca o Senhor mais rico a mor pobreza;
Que, como ao mundo o seu amor descobre,
De palhas vis o corpo tenro cobre,
E por ellas o mesmo ceo despreza.
  Como? Deos em pobreza á terra dece?
O qu'he mais pobre tanto lhe contenta,
Qu'este somente rico lhe parece.
  Pobreza este Presepio representa;
Mas tanto por ser pobre ja merece,
Que quanto mais o he, mais lhe cont
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/175]]==
<poem>
enta.{101}
CC.
Porque a tamanhas penas se offerece
Por o peccado alheio, e êrro insano,
O Trino Deos? Porque o sogeito humano
Não póde co'o castigo que merece.
  Quem padecerá as penas que padece?
Quem soffrerá deshonra, morte e dano?
Quem será, se não for o Soberano
Que reina, e servos manda, e obedece?
  Foi a fôrça do homem tão pequena,
Que não pôde soster tanta aspereza,
Pois não sosteve a Lei que Deos ordena.
  Mas soffre-a aquella immensa Fortaleza
Por amor puro; que a mortal fraqueza
Foi para o êrro, e não ja para a pena.
CCI.
Despois de haver chorado os meus tormentos,
Quer Amor que lhe cante as suas glorias.
Canto de huma belleza os vencimentos,
De hum longo padecer chóro as memorias.
  Porém, se as minhas penas são victorias,
Por a causa, a meus altos pensamentos;
Dilatem-se em larguissimas historias
Estes meus gloriosos rendimentos.
  Mova-se em todo o mundo unico espanto
De qu'he, por a belleza qu'eu adoro,
Do que cantado tenho premio o pranto.
  Contente offreço a amor tão triste foro:
Que se chôro não ha como o meu canto,
Não sei canto melhor qu'este meu chôro.{102}

</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/176]]==
<poem>
CCII.
Onde mereci eu tal pensamento
Nunca de ser humano merecido?
Onde mereci eu ficar vencido
De quem tanto me honrou co'o vencimento?
  Em gloria se converte o meu tormento,
Quando vendo-me estou tão bem perdido;
Pois não foi tanto mal ser atrevido,
Como foi gloria o mesmo atrevimento.
  Vivo, Senhora, só de contemplar-vos;
E pois esta alma tenho tão rendida,
Em lagrimas desfeito acabarei.
  Porque não me farão deixar de amar-vos
Receios de perder por vós a vida;
Que por vós vezes mil a perderei.
CCIII.
De frescas belvederes rodeadas
Estão as puras águas desta fonte;
Formosas Nymphas lhes estão defronte,
A vencer e a matar acostumadas.
  Andão contra Cupido levantadas
As suas graças, que não ha quem conte:
D'outro valle esquecidas, d'outro monte,
A vida passão neste socegadas.
  O seu poder juntou, sua valia
Amor, ja não soffrendo este desprêzo,
Somente por se ver dellas vingado;
  Mas, vendo-as, entendeo que não podia
De ser morto livrar-se, ou de ser prêzo,
E ficou-se com ellas desar
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/177]]==
<poem>
mado.{103}
CCIV.
Nos braços de hum Sylvano adormecendo
Se estava aquella Nympha qu'eu adoro,
Pagando com a boca o doce foro,
Com que os meus olhos foi escurecendo.
  Oh bella Venus! porqu'estás soffrendo
Que a maior formosura do teu côro
Em hum poder tão vil perca o decoro
Que o merito maior lhe está devendo?
  Eu levarei daqui por presupposto
Desta nova estranheza que fizeste,
Que em ti não póde haver cousa segura.
  Que, pois o claro lume, o bello rosto
Áquelle monstro tão disforme déste,
Não creio qu'haja Amor, senão Ventura.
CCV.
Quem diz que Amor he falso, ou enganoso,
Ligeiro, ingrato, vão, desconhecido,
Sem falta lhe terá bem merecido
Que lhe seja cruel, ou rigoroso,
  Amor he brando, he doce, e he piedoso:
Quem o contrário diz não seja crido;
Seja por cego e apaixonado tido,
E aos homens, e inda aos deoses odioso.
  Se males faz Amor, em mi se vem;
Em mi mostrando todo o seu rigor,
Ao mundo quiz mostrar quanto podia.
  Mas todas suas iras são d'Amor;
Todos estes seus males são hum bem,
Qu'eu por todo outro bem não trocaria.{
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/178]]==
<poem>
104}
CCVI.
Formosa Beatriz, tendes taes geitos
N'hum brando revolver dos olhos bellos,
Que só no contemplá-los, se não ve-los,
Se inflammão corações e humanos peitos.
  Em toda perfeição são tão perfeitos,
Que o desengano dão de merecê-los:
Não póde haver quem possa conhecê-los,
Sem nelle Amor fazer grandes effeitos.
  Sentirão, por meu mal, tão graves danos
Os meus, que com os ver cegos e tristes
Ficarão sem prazer, co'a luz perdida.
  Mas ja que vós com elles me feristes,
Tornai-me a ver com elles mais humanos,
E deixareis curada esta ferida.
CCVII.
Alegres campos, verdes, deleitosos,
Suaves me serão vossas boninas,
Em quanto forem vistas das meninas
Dos olhos de Ignez bella tão formosos.
  Dos meus, que vos serão sempre invejosos
Por não verem estrellas tão divinas,
Sereis regados d'águas peregrinas,
Soprados de suspiros amorosos.
  E vós, douradas flores, por ventura
Se Ignez quizer fazer de meus amores
Exp'riencias na folha derradeira,
  Mostrai-lhe, para ver minha fé pura,
O bem que sempre quiz, formosas flores;
Qu'então não sentirei que mal me qu
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/179]]==
<poem>
eira.{105}
CCVIII.
Ondados fios de ouro, onde enlaçado.
Continuamente tenho o pensamento;
Que quanto mais vos sólta o fresco vento,
Mais preso fico então de meu cuidado;
  Amor, d'huns bellos olhos sempre armado,
Me combate co'as fôrças do tormento,
Provando da minha alma o soffrimento
Que á justa lei da paz trago obrigado.
  Assi que em vosso gesto mais que humano
Amo a paz juntamente e o perigo;
E em amar hum e outro não me engano.
  Muitas vezes dizendo estou comigo
Que, pois he tal a causa de meu dano,
He justa a guerra, he justa a paz que sigo.
CCIX.
Amor, que em sonhos vãos do pensamento
Paga o zêlo maior de seu cuidado,
Em toda condição, em todo estado,
Tributario me fez de seu tormento.
  Eu sirvo, eu canso; e o grão merecimento
De quanto tenho a Amor sacrificado,
Nas mãos da ingratidão despedaçado
Por prêza vai do eterno esquecimento.
  Mas quando muito, em fim, cresça o perigo,
A que perpetuamente me condena
Amor, que amor não he, mas inimigo;
  Tenho hum grande descanso em minha pena,
Que a gloria do querer, que tanto sigo,
Não póde ser co'os males mais pequena.{106}

</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/180]]==
<poem>
CCX.
Nem o tremendo estrépito da guerra
Com armas, com incendios espantosos
Que despachão pelouros perigosos,
Bastantes a abalar huma alta serra,
  Podem pôr medo a quem nenhum encerra,
Despois que vio os olhos tão formosos,
Por quem o horror nos casos pavorosos
De mi todo se aparta e se desterra,
  A vida posso ao fogo e ferro dar,
E perdê-la em qualquer duro perigo,
E nelle, como phenix, renovar.
  Não póde mal haver para comigo,
De qu'eu ja me não possa bem livrar,
Senão do que me ordena Amor imigo.
CCXI.
Fiou-se o coração, de muito isento,
De si, cuidando mal que tomaria
Tão illicito amor, tal ousadia,
Tal modo nunca visto de tormento.
  Mas os olhos pintárão tão a tento
Outros que vistos t~ee na phantasia,
Que a razão, temerosa do que via,
Fugio, deixando o campo ao pensamento.
  Ó Hippolyto casto, que de geito
De Phedra tua madrasta foste amado,
Que não sabia ter nenhum respeito;
  Em mi vingou Amor teu casto peito:
Mas está deste aggravo tão vingado,
Que se arrepende ja do que t~ee fe
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/181]]==
<poem>
ito.{107}
CCXII.
Quem quizer ver d'amor huma excellencia
Onde sua fineza mais se apura,
Attente onde me põe minha ventura,
Porque de minha fé faça exp'riencia.
  Onde lembranças mata a larga ausencia,
Em temeroso mar, em guerra dura,
A saudade alli'stá mais segura,
Quando risco maior corre a paciencia.
  Mas ponha-me a Fortuna e o duro Fado,
Em morte, ou nojo, ou damno, ou perdição,
Ou em sublime e próspera ventura;
  Ponha-me, em fim, em baixo ou alto estado;
Que até na dura morte me acharão
Na lingua o nome, e n'alma a vista pura.
CCXIII.
Los ojos que con blando movimiento
Al pasar enternecen la alma mia,
Si detener pudiera solo un dia,
Pudiera bien libraria de tormento.
  Deste tan amoroso sentimiento
El importuno mal se acabaria;
Ó tambien su accidente creceria
Para acabar la vida en un momento.
  Oh! si ya tu esquivez me permitiese
Que al ver, o Ninfa, tu semblante hermoso,
A manos de tus ojos yo muriese!
  Oh si los detuvieras! cuan dichoso
Seria aquel momento en que me viese
Vida en ellos cobrar, cobrar repos
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/182]]==
<poem>
o!{108}
CCXIV.
No bastaba que amor puro y ardiente
Por términos la vida me quitase;
Mas que la muerte así se apresurase
Con un deshumanisimo accidente?
  No pretendió mi alma, aunque lo siente,
Que el riguroso curso se atajase,
Porque nunca morir se exprimentase
Desamado el que amó tan dulcemente.
  Mas vuestra voluntad tan poderosa
Con esas gracias vuestras ordenaron
Crueldad asi imposible, ó nunca oída.
  Aquel frio desden, y la amorosa
Furia, de un golpe solo, me quitaron
Con dós contrarias muertes una vida.
CCXV.
Ayudame, Señora, á hacer venganza
De tal selvatiquez, de tal rudeza,
Pues de mi poquedad, de mi bajeza
Osado á ti elevaba la esperanza.
  Á esa tu perfeccion, que no se alcanza,
Á esas sublimes cumbres de belleza,
Donde una vez llegó naturaleza,
Mas de volver perdió la confianza.
  Aquello que en ti miro contemplando,
(Que apenas contemplarlo me consiente)
Contemplándolo mas, menos lo espero.
  Si gloria de mi pena en ti se siente,
Derrama en mí tus iras, desamando;
Que al ofenderme mas yo mas te qui
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/183]]==
<poem>
ero.{109}
CCXVI.
O claras águas deste blando rio,
Que en vos al natural estais pintando
El frondífero adorno con que alzando
Se vá á los cielos este bosque umbrio;
  Así las lluvias, así el Austro frio
Jamás puedan veniros enturbiando,
Que os vais del seco estio preservando
Con socorreros deste llanto mio.
  Y cuando en vos Marfisa se mirare,
Mi figura, cual veis desfallecida,
Ante sus claros ojos puesta sea.
  Y si por mí de vos los apartare,
De verme alli mostrándose ofendida,
En pena de no verme no se vea.
CCXVII.
Mil veces entre sueños tu figura,
O bella Ninfa, claramente veo;
Y cuando mas la miro, mas deseo
Gozar libre de sueños su hermosura.
  En tanto que este dulce engaño dura,
Vivo en la vana gloria que poseo:
Mas cuanto allí se eleva mi deseo,
Viene a caer despierto en sombra escura.
  Duéleme el despertar por contemplarte;
Que si bien sé te huelgas de no verme,
Huélgome de ser ciego por mirarte.
  Mas si quiero de engaños mantenerme,
Y tú quieres me pierda por amarte,
Sin gran ganancia no podré perderme.{110}

</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/184]]==
<poem>
CCXVIII.
Mi gusto y tu beldad se desposaron,
Terceros por mi mal mis ojos fueron:
Su logro ha sido tal, que, alfin, hicieron
Un hijo hermoso á quien amor llamaron.
  Tan fuera de compás le regalaron,
Que cuando mas alegres estuvieron,
Sin entender el mal que produjeron,
Perdidos por amores se miraron.
  La beldad desposada deste duelo,
Vino á parir un monstro con dós alas;
La madre es la soberbia, el niño el zelo.
  Oh madre que á tu hijo en todo igualas!
Quien mortal hace al inmortal abuelo,
Y al padre mortal da inmortales zalas?
CCXIX.
Si el fuego que me enciende, consumido
De algun mas suelto Aquario ser pudiese;
Si el alto suspirar me convertiese
En aire por el aire desparcido;
  Si un horrible rumor siendo sentido,
La alma á dejar el cuerpo redujese;
Ó por estos mis ojos al mar fuese
Este mi cuerpo en llanto convertido;
  Nunca podria la fortuna airada,
Com todos sus horrores, sus espantos,
Derrocar la alma mia de su gloria.
  Porque en vuestra beldad ya transformada,
Ni del Estigio lago eternos llantos
Os podrian quitar de mi memoria.{111}

</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/185]]==
<poem>
CCXX.
Que me quereis perpétuas saudades?
Com qu'esperanças inda me enganais?
O tempo, que se vai, não torna mais,
E se torna, não tornão as idades.
  Razão he ja, ó annos, que vos vades,
Porque estes tão ligeiros que passais,
Nem todos para hum gôsto sois iguais,
Nem sempre são conformes as vontades.
  Aquillo a que ja quiz he tão mudado,
Que quasi he outra cousa; porque os dias
T~ee o primeiro gôsto ja damnado.
  Esperanças de novas alegrias,
Não m'as deixa a Fortuna e o tempo irado,
Que do contentamento são espias.
CCXXI.
Oh rigorosa ausencia desejada
De mi sempre, mas nunca conhecida!
Saudade, n'outro tempo tão temida,
Como em meu damno agora exprimentada!
  Ja rigorosamente começada
Tendes vossa esperança em minha vida;
Mas tanto, que ja temo que opprimida
Sejais com ella cedo, ou acabada.
  Os dias mais alegres me entristecem;
As noites, com cuidados as desconto,
Em que sem vós sem conto me parecem.
  Eu desejando espero, e os annos conto;
Mas com a vida, em fim, elles fallecem:
Nem basta á carne enfêrma esprito pronto.{112}

</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/186]]==
<poem>
CCXXII.
Ay! quien dará á mis ojos una fuente
De lágrimas que manen noche y dia?
Respirara si quiera la alma mia,
Llorando lo pasado, y lo presente.
  Quien me diera apartado de la gente,
De mi dolor siguiendo la porfia
Con la triste memoria y fantasia
Del bien por quien mal tanto así se siente!
  Quien me dará palabras con que iguale
El duro agravio que el amor me ha hecho,
Donde tan poco el sufrimiento vale?
  Quien me abrirá profundamente el pecho,
Dó está escrito el secreto que no sale,
Con tanto dolor mio, á mi despecho?
CCXXIII.
Con razon os vais, aguas, fatigando
Por llegar dó sereis bien recebidas;
Y en aquel mar inmenso convertidas,
Que ya de tantos dias vais buscando.
  Triste de aquel que siempre anda llorando
Las vanas esperanzas ya perdidas,
Y con dolor las lágrimas vertidas
Nunca al fin pretendido van llegando!
  Vosotras sin traer derecha via,
Al término llegais tan deseado,
Por mas que os embarace el gran rodeo;
  Mas yo siempre afligido noche y dia,
Por un camino, que no llevo errado,
Jamás puedo llegar donde des
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/187]]==
<poem>
eo.{113}
CCXXIV.
Oh cese ya, Señor, tu dura mano!
No llegues tanto al cabo con mi vida;
Baste el estar por ti tan consumida,
Que ya no se halla en ella lugar sano.
  Ay estraña hermosura! ay deshumano
Hado, á que nunca puedo hallar salida!
Si tú de tu piedad no eres movida,
Roto el hilo vital verás temprano.
  Un blando desamor, un amor blando,
Bien basta para un hombre tan perdido,
Que de su mal ningun remedio espera.
  Y si estimas en poco el ver cual ando,
Aqui me tienes ante ti rendido:
Viva tu gusto, mi esperanza muera.
CCXXV.
Dulces engaños de mis ojos tristes,
Cuan vivo despertais mi pensamiento!
Aquello que pudiera dar contento,
En sombra de pintura lo volvistes.
  De blando sobresalto enternecistes
Con vista arrebatada el sentimiento;
Mas no le asegurastes un momento
Aqueste vano bien que le ofrecistes.
  Veo que la figura era fingida,
Y no aquella que en sí mi alma esconde,
Aunque en esto se llega al natural:
  Así escucha mi llanto, así responde,
Así se condolece de mi vida,
Como si fuera el propio original.{114}

</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/188]]==
<poem>
CCXXVI.
Cuanto tiempo ha que lloro un dia triste,
Como si alguno alegre yo esperara?
Como, o Tajo, al pasar esa tu clara
Agua, no la alteraste, y no me hundiste?
  El paso me cerraste, el pecho abriste,
O mi ventura, de mi bien avara!
Á Dios, montañas de hermosura rara;
Á Dios, mi corazon, que no partiste.
  Si adonde quedas en dichosa suerte
No bebieres las aguas del olvido,
En tanto bien no quieras olvidarme.
  Cantando mi dolor llora mi muerte;
Porque hasta el hueco monte sin sentido
Suelta su ronca voz por consolarme.
CCXXVII.
Levantai, minhas Tagides, a frente,
Deixando o Tejo ás sombras nemorosas;
Dourai o valle umbroso, as frescas rosas,
E o monte com as árvores frondente.
  Fique de vós hum pouco o rio ausente,
Cessem agora as lyras numerosas,
Cesse vosso lavor, Nymphas formosas,
Cesse da fonte vossa a grã corrente.
  Vinde a ver a Theodosio grande e claro,
A quem 'stá offrecendo maior canto
Na cithara dourada o louro Apolo.
  Minerva do saber dá-lhe o dom raro,
Pallas lhe dá o valor de mais espanto,
E a Fama o leva ja de pólo
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/189]]==
<poem>
a pólo.{115}
CCXXVIII.
Vós, Nymphas da Gangetica espessura,
Cantae suavemente, em voz sonora,
Hum grande Capitão que a roxa Aurora
Dos filhos defendeo da noite escura.
  Ajuntou-se a caterva negra e dura,
Que na Aurea Chersoneso affouta mora,
Para lançar do charo ninho fóra
Aquelles que mais podem que a ventura.
  Mas hum forte leão, com pouca gente,
A multidão tão fera como necia,
Destruindo castiga e torna fraca.
  Ó Nymphas, cantai, pois; que claramente
Mais do que Leonidas fez em Grecia,
O nobre Leoniz fez em Malaca.
CCXXIX.
Alma gentil, que á firme eternidade
Subiste clara e valerosamente,
Cá durará de ti perpetuamente
A fama, a gloria, o nome e a saudade.
  Não sei se he mor espanto em tal idade
Deixar de teu valor inveja á gente,
Se hum peito de diamante, ou de serpente,
Fazeres que se mova a piedade.
  Invejosa da tua acho mil sortes,
E a minha mais que todas invejosa,
Pois ao teu mal o meu tanto igualaste.
  Oh ditoso morrer! sorte ditosa!
Pois o que não se alcança com mil mortes,
Tu com huma só morte o alcançaste.{116}

</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/190]]==
<poem>
CCXXX.
Debaixo desta pedra sepultada
Jaz do mundo a mais nobre formosura,
A quem a morte, só de inveja pura,
Sem tempo sua vida t~ee roubada,
  Sem ter respeito áquella assi estremada
Gentileza de luz, que a noite escura
Tornava em claro dia; cuja alvura
Do sol a clara luz tinha eclipsada.
  Do sol peitada foste, cruel morte,
Para o livrar de quem o escurecia;
E da lua, que ante ella luz não tinha.
  Como de tal poder tiveste sorte?
E se a tiveste, como tão asinha
Tornaste a luz do mundo em terra fria?
CCXXXI.
Imagens vãas me imprime a phantasia;
Discursos novos acha o pensamento;
Com que dão á minha alma grão tormento
Cuidados de cem annos n'hum só dia.
  Se fim grande tivessem, bem sería
Responder a esperança ao fundamento:
Mas o fado não corre tão a tento,
Que reserve á razão sua valia.
  Caso e Fortuna pódem acertar;
Mas se por accidente dão victoria,
Sempre o favor da Fama he falsa historia.
  Excede ao saber, determinar:
Á constancia se deve toda a gloria:
O ânimo livre he digno de me
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/191]]==
<poem>
moria.{117}
CCXXXII.
Quanta incerta esperança, quanto engano!
Quanto viver de falsos pensamentos!
Pois todos vão fazer seus fundamentos
Só no mesmo em qu'está seu proprio dano.
  Na incerta vida estribão de hum humano;
Dão credito a palavras que são ventos;
Chórão despois as horas e os momentos,
Que rírão com mais gôsto em todo o ano.
  Não haja em apparencias confianças;
Entendei que o viver he de emprestado;
Que o de que vive o mundo são mudanças.
  Mudai, pois, o sentido e o cuidado,
Somente amando aquellas esperanças
Que durão para sempre com o amado.
CCXXXIII.
Mal, que de tempo em tempo vás crescendo,
Quem te visse de hum bem acompanhado!
A vida passaria descansado,
Da morte não temêra o rosto horrendo.
  Se os vãos cuidados fôra convertendo
Em suspiros que dão outro cuidado,
Oh quão prudente, oh quão affortunado
A capella do louro irá tecendo!
  Tempo he ja de esquecer contentamentos
Passados, co'a esperança que passou,
E de que triumphem novos pensamentos.
  A fé, que viva n'alma me ficou,
Dê ja fim aos caducos ardimentos
A que o passado bem se condem
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/192]]==
<poem>
nou.{118}
CCXXXIV.
Oh quanto melhor he o supremo dia
Da mansa morte, que o do nascimento!
Oh quanto melhor he hum só momento,
Que livra de annos tantos de agonia!
  De alcançar outro bem cesse a porfia;
Cesse todo applicado pensamento
De tudo quanto dá contentamento,
Pois só contenta ao corpo a terra fria.
  O que do seu fez Deos seu despenseiro,
T~ee mais estreita conta que lhe dar:
Então parece rico o ovelheiro.
  Triste de quem no dia derradeiro
T~ee o suor alheio por pagar,
Pois a alma ha de vender por o dinheiro!
CCXXXV.
Como podes (oh cego peccador!)
Estar em teus errores tão isento,
Sabendo que esta vida he hum momento,
Se comparada com a eterna for?
  Não cuides tu que o justo Julgador
Deixará tuas culpas sem tormento,
Nem que passando vai o tempo lento
Do dia de horrendíssimo pavor.
  Não gastes horas, dias, mezes, anos,
Em seguir de teus damnos a amisade
De que despois resultão mores danos.
  E pois de teus enganos a verdade
Conheces, deixa ja tantos enganos,
Pedindo a Deos perdão com humi
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/193]]==
<poem>
ldade.{119}
CCXXXVI.
Verdade, Amor, Razão, Merecimento,
Qualquer alma farão segura e forte;
Porém Fortuna, Caso, Tempo, e Sorte,
T~ee do confuso mundo o regimento.
  Effeitos mil revolve o pensamento,
E não sabe a que causa se reporte:
Mas sabe que o que he mais que vida e morte
Não se alcança de humano entendimento.
  Doctos varões darão razões subidas;
Mas são as exp'riencias mais provadas:
E por tanto he melhor ter muito visto.
  Cousas ha hi que passão sem ser cridas:
E cousas cridas ha sem ser passadas.
Mas o melhor de tudo he crer em Christo.
CCXXXVII.
De Babel sôbre os rios nos sentámos,
De nossa doce patria desterrados,
As mãos na face, os olhos derribados,
Com saudades de ti, Sião, chorámos.
  Os orgãos nos salgueiros pendurámos,
Em outro tempo bem de nós tocados;
Outro era elle, por certo, outros cuidados;
Mas por deixar saudades os deixâmos.
  Aquelles que captivos nos trazião
Por cantigas alegres perguntavão:
Cantai (nos dizem) hymnos de Sião.
  Sôbre tal pena, pena tal nos dão,
Pois tyranicamente pretendião
Que cantassem aquelles que choravão.{120}
CCXXXV
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/194]]==
<poem>
III.
Sôbre os rios do Reino escuro, quando
Tristes, quaes nossas culpas o ordenárão,
Lagrimas nossos olhos derramárão,
Por ti, Sião divina, suspirando,
  Os que hião nossas almas infestando,
De contino em error, as captivárão;
E em vão por nossos Psalmos perguntárão;
Que tudo era silencio miserando.
  Dizendo estamos: Como cantaremos
As acceitas canções a Deos benino,
Quando a contrarios seus obedecemos?
  Mas ja, Senhor só Santo, determino,
Deixando viciosissimos extremos,
Os cantos proseguir de Amor Divino.
CCXXXIX.
Em Babylonia sôbre os rios, quando
De ti, Sião sagrada, nos lembrámos,
Alli com grã saudade nos sentámos,
O bem perdido, miseros, chorando.
  Os instrumentos musicos deixando,
Nos estranhos salgueiros pendurámos,
Quando aos cantares, que ja em ti cantámos,
Nos estavão imigos incitando.
  Ás esquadras dizemos inimigas:
Como hemos de cantar em terra alhea
As cantigas de Deos, sacras cantigas?
  Se a lembrança eu perder que me recrea
Cá nestas penosissimas fadigas,
Oblivioni detur dext
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/195]]==
<poem>
ra mea.{121}
CCXL.
Aponta a bella Aurora, luz primeira,
Que a grã nova nos deo do claro dia:
Vesti-vos, corações, ja de alegria,
E recebei da vida a Mensageira.
  Da humana Redempção nasce a Terceira:
Alegra-te, Divina Monarchia;
Da terra terás cedo a companhia,
Do ceo verás tambem a nossa feira.
  De tal obra se espanta a natureza,
Confuso fica de temor o inferno,
Vendo a que nasce isenta da defeza.
  Lei geral era posta desde eterno;
Mas o Senhor da Lei toda limpeza
Para o Sacrario seu guardou Materno.
CCXLI.
Porque a terra no ceo agasalhasse,
O ceo na terra Deos agasalhou:
Lá não cabendo, cá se accommodou,
Porque lá, de cá indo, se alargasse.
  Porqu'o homem a ser Deos por Deos chegasse,
Por o homem a ser homem Deos chegou:
Seu divino poder tanto humanou,
Porque o humano em divino se tornasse.
  Vêde bem o que deo e recebeo:
Não se perca hum bem tanto da memoria:
Deo-nos a vida, a morte padeceo.
  Trocou por nossa pena a sua gloria;
Deo-nos o triumpho qu'elle mereceo;
Porque amor foi auctor desta victoria.{122}

</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/196]]==
<poem>
CCXLII.
Qu'estilla a Arvore sacra? Hum licor santo.
Para quem? Para o genero he humano.
Que faz delle? Hum remedio soberano.
Para que? Para a culpa e triste pranto.
  E que obra? Reduzir Lusbel a espanto.
Porque? Porque co'hum pomo fez grão dano.
Que foi? A morte deo com hum engano.
Tanto pôde? Sem falta pôde tanto.
  Quem sobe a ella? Quem do ceo desceo.
A que desce? A subir a creatura.
Que quiz da terra? Só levá-la ao Ceo.
  He escada para ir lá? E a mais segura.
Quem o obrigou? De amor só se venceo.
Que amava este Feitor? Sua feitura.
CCXLIII.
Oh Arma unicamente só triumphante,
Propugnaculo só de nossas vidas,
Por quem forão ganhadas as perdidas
Com que o Tartaro horrendo andava ovante!
  Sigua-se esta bandeira militante
Por quem são taes victorias conseguidas,
Por quantas almas, della divertidas,
No Ponente errão cá, lá no Levante.
  Oh Arvore sublime, e marchetada
De branco e carmesi, de ouro embutida,
Dos rubis mais preciosos esmaltada,
  E de trophéos mais claros guarnecida!
Á vida a morte vimos em ti dada,
Para qu'em ti se désse á morte
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/197]]==
<poem>
a vida.{123}
CCXLIV.
Aos homens hum só homem poz espanto,
E o poz a toda a humana natureza;
Que de homem teve o ser, de Anjo a pureza,
Porqu'antes que nascesse era ja Santo.
  Propheta foi na Mãe; em fim, foi tanto,
Qu'entre os nascidos houve a mor alteza;
Que da Luz, sem a ver, vio a grandeza,
Tendo por trompa o Verbo Sacrosanto.
  Aquella voz foi elle sonorosa,
No concavo dos Orbes resonante,
E que a Carne inculpavel baptizou;
  Quem do mor Pae ouvio a voz amante;
Quem a subtil pergunta industriosa
Com sincera resposta socegou.
CCXLV.
Vós só podeis, sagrado Evangelista,
Angelico abrazado Seraphim,
E na sciencia mais alto Cherubim,
Do que he mais sabio Amor ser Coronista.
  Divina e real Aguia, cuja vista
Vio o qu'he sem princípio, o qu'he sem fim,
De Jacob mais querido Benjamim,
Quem mais campêa de Joseph na lista.
  Apostolo, e Propheta, e Patriarca,
Ao Principe dos Ceos o mais acceito,
Qu'em seu seio dormindo então mais via.
  A quem o mesmo Deos por irmão marca;
Quem por filho da Mãe unica feito,
Em corpo e alma goza o claro dia
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/198]]==
<poem>
.{124}
CCXLVI.
Como louvarei eu, Seraphim santo,
Tanta humildade, tanta penitencia,
Castidade, e pobreza, e paciencia,
Com este meu inculto e rudo canto?
  Argumento que ás Musas põe espanto,
Que faz muda a grandiloqua eloquencia.
Oh imagem, qu'a Divina Providencia
De si viva em vós fez para bem tanto!
  Fostes de Santos huma rara mina;
Almas de mil a mil ao ceo mandastes
Do mundo, que perdido reformastes.
  E não roubaveis só com a doutrina
As vontades mortaes, mas a Divina;
Pois os seus rubis cinco lhe roubastes.
CCXLVII.
Ditosas almas, que ambas juntamente
Ao ceo de Venus e de Amor voastes,
Onde hum bem que tão breve cá lograstes,
Estais logrando agora eternamente;
  Aquelle estado vosso tão contente,
Que só por durar pouco triste achastes,
Por outro mais contente ja o trocastes,
Onde sem sobresalto o bem se sente.
  Triste de quem cá vive tão cercado,
Na amorosa fineza, de hum tormento
Que a gloria lhe perturba mais crescida!
  Triste, pois me não val o soffrimento,
E Amor para mais damno me t~ee dado
Para tão duro mal tão larg
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/199]]==
<poem>
a vida!{125}
CCXLVIII.
Contente vivi ja, vendo-me isento
Deste mal de que a muitos queixar via:
Chamão-lhe amor; mas eu lhe chamaria
Discordia e semrazão, guerra e tormento.
  Enganou-me co'o nome o pensamento:
(Quem com tal nome não se enganaria?)
Agora tal estou, que temo hum dia
Em que venha a faltar-me o soffrimento.
  Com desesperação, e com desejo
Me paga o que por elle estou passando,
E inda está do meu mal mal satisfeito.
  Pois sôbre tantos damnos inda vejo
Para dar-me outros mil hum olhar brando,
E para os não curar hum duro peito.
CCXLIX.
Deixa Apollo o correr tão apressado,
Não sigas essa Nympha tão ufano:
Não te leva o amor, leva-te o engano
Com sombras de algum bem a mal dobrado.
  E quando seja amor, será forçado;
E se forçado for, será teu dano.
Hum parecer não queiras mais que humano
Em hum sylvestre adôrno ver tornado.
  Não percas por hum vão contentamento
A vista que te faz viver contente;
Modera em teu favor o pensamento.
  Porque menos mal he, tendo-a presente,
Soffrer sua crueza, e teu tormento,
Que sentir sua ausencia eternamente.{126}

</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/200]]==
<poem>
CCL.
Nas Cidades, nos bosques, nas florestas,
Nos valles, e nos montes, teus louvores
Sempre te cantem musicos pastores
Nas manhãas frias, nas ardentes sestas.
  E neste Templo donde manifestas
E repartes agora teus favores,
Com Psalmos, hymnos, e com varias flores
Sejão celebres sempre as tuas festas.
  Estes te offreção pés, ess'outros mãos;
D'aquelles pendão sôbre os teus altares
Monstros do mar, de servidão prisões.
  Que eu cuidados, enganos e affeições,
Muito maiores monstros, e milhares
Te deixo aqui de pensamentos vãos.
CCLI.
Vi queixosos de Amor mil namorados,
E nenhuns inda vi com seus louvores;
E aquelle que mais chora o mal de amores,
Vejo menos fugir de seus cuidados.
  Se das dores de Amor sois mal tratados,
Porque tanto buscais de Amor as dores?
E se tambem as tendes por favores,
Porque dellas fallais como aggravados?
  Não queirais alegria achar alg~ua
No Amor, porque he composto de tristeza,
Na fortuna que acheis mais agradavel.
  Nella e nelle achei sempre a mesma l~ua,
Em quem nunca se vio outra firmeza,
Que não seja a de ser sempre mudavel.
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/201]]==
<poem>
{127}
CCLII.
Se lagrimas choradas de verdade
O marmore abrandar podem mais duro,
Porque as minhas que nascem de amor puro
Hum coração não rendem a piedade?
  Por vós perdi, Senhora, a liberdade,
E nem da propria vida estou seguro.
Rompei desse rigor o forte muro,
Não passe tanto avante a crueldade.
  Ao prezar de desprezos dae ja fim:
Não vos chamem cruel; nome devido
A quem se ri de quem suspira e ama.
  Abrandai esse peito endurecido,
Por o que toca a vós, ja não por mim,
Que eu aventuro a vida, e vós a fama.
CCLIII.
Ja me fundei em vãos contentamentos,
Quando delles vivi todo enganado
De hum phantastico bem, e de hum cuidado,
De que só cuidão cegos pensamentos.
  Passava dias, horas e momentos,
Deste enleio de amores tão pagado,
Que tinha só por bem-aventurado
Quem só por elles mais bebia os ventos.
  Mas agora que ja cahi na conta,
Desengana-me quanto me enganava;
Que tudo o tempo dá, tudo descobre.
  O Amor mais caudaloso menos monta.
Qu'he de gostos mais rico, eu ignorava,
Aquelle que de amores he mais pobr
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/202]]==
<poem>
e.{128}
CCLIV.
Em huma lapa toda tenebrosa,
Adonde bate o mar com furia brava,
Sôbre h~ua mão o rosto, vi qu'estava
Huma Nympha gentil, mas cuidadosa.
  Igualmente que linda, lastimosa,
Aljofar dos seus olhos distillava:
O mar os seus furores applacava
Com ver cousa tão triste e tão formosa.
  Alguma vez na horrivel penedia
Os bellos olhos punha com brandura,
Bastante a desfazer sua dureza.
  Com angelica voz assi dizia:
Ah! que falte mais vezes a ventura
Onde sobeja mais a natureza!
CCLV.
Se em mim, ó alma, vive mais lembrança
Que aquella só da gloria de querer-vos,
Eu perca todo o bem que lógro em ver-vos,
E de ver-vos tambem toda a esperança.
  Veja-se em mi tão rustica esquivança,
Que possa indigno ser de conhecer-vos;
E, quando em mor empenho de aprazer-vos,
Vos offenda, se em mi houver mudança.
  Confirmado estou ja nesta certeza:
Examine-me vossa crueldade,
Exprimente-se em mi vossa dureza.
  Conhecei ja de mi tanta verdade;
Pois em penhor e fé desta pureza
Tributo vos fiz ser o que he vontade.
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/203]]==
<poem>
{129}
CCLVI.
Ilustre Gracia, nombre de una moza,
Primera malhechora en este caso
Á Mondoñedo, á Palma, al cojo Traso,
Sugeto digno de immortal coroza;
  Si en medio de la Iglesia no reboza
El manto á vuestro rostro tan devaso,
Por vos dirán las gentes recio y paso:
Veis quien con el demonio se retoza.
  Puede mover los montes sin trabajo;
Con palabras el curso al agua enfrena;
Por las ondas hará camino enjuto.
  Averguenza su patria y rico Tajo,
Que por ella hombres lleva, mas que arena,
De que paga al infierno gran tributo.
CCLVII.
Qual t~ee a borboleta por costume,
Qu'enlevada na luz da acesa vella,
Dando vai voltas mil, até que nella
Se queima agora, agora se consume:
  Tal eu correndo vou ao vivo lume
D'esses olhos gentis, Aonia bella;
E abrazo-me, por mais que com cautella
Livrar-me a parte racional presume.
  Conheço o muito a que se atreve a vista,
O quanto se levanta o pensamento,
O como vou morrendo claramente;
  Porém não quer Amor que lhe resista,
Nem a minh'alma o quer; qu'em tal tormento,
Qual em gloria maior está content
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/204]]==
<poem>
e.{130}
CCLVIII.
Lembranças de meu bem, doces lembranças
Que tão vivas estais nesta alma minha,
Não queirais mais de mi, se os bens que tinha
Em poder vêdes todos de mudanças.
  Ai cego Amor! ai mortas esperanças
De qu'eu em outro tempo me matinha!
Agora deixareis quem vos sostinha;
Acabarão co'a vida as confianças.
  Co'a vida acabarão, pois a ventura
Me roubou n'hum momento aquella gloria,
Que, quando tão grande he, tão pouco dura.
  Oh se apoz o prazer fôra a memoria!
Ao menos estivera a alma segura
De ganhar-se com ella mais victoria.
CCLIX.
Formosos olhos, que cuidado dais
Á mesma luz do sol mais clara e pura;
Que sua esclarecida formosura,
Com tanta gloria vossa, atraz deixais;
  Se por serdes tão bellos desprezais
A fineza de amor que vos procura,
Pois tanto vêdes, vêde que não dura
O vosso resplandor quanto cuidais.
  Colhei, colhei do tempo fugitivo
E de vossa belleza o doce fruto;
Qu'em vão fóra de tempo he desejado.
  E a mi, que por vós morro, e por vós vivo,
Fazei pagar a Amor o seu tributo,
Contente de por vós lho haver pagado
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/205]]==
<poem>
.{131}
CCLX.
Pues siempre sin cesar, mais ojos tristes,
En lágrimas tratais la noche el dia,
Mirad si es lágrima esta que os envia
Aquel sol por quien vos tantas vertistes.
  Si vos me asegurais, pues ya la vistes,
Que es lágrima, será ventura mia;
Por empleadas bien desde hoy tendria
Las muchas que por ella sola distes.
  Mas cualquier cosa mucho deseada,
Aunque viendo se esté, nunca es creida;
Y menos esta, nunca imaginada.
  Pero della aseguro, si es fingida,
Que basta ser por lágrima enviada,
Para que sea por lágrima tenida.
CCLXI.
T~ee feito os olhos neste apartamento
Hum mar de saudosa tempestade,
Que póde dar saudade á saudade,
Sentimentos ao proprio sentimento.
  Em dor vai convertido o soffrimento,
Em pena convertida a piedade;
A razão tão vencida da vontade,
Qu'escravo faz do mal o entendimento.
  A lingua não alcança o qu'a alma sente.
E assi, se alguem quizer em algum'hora
Saber que cousa he dor não comprehendida,
  Parta-se do seu bem, porque exprimente
Qu'antes de se partir, melhor lhe fôra
Partir-se do viver para ter vida.{132}

</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/206]]==
<poem>
CCLXII.
A peregrinação d'hum pensamento,
Que dos males fez hábito e costume,
Tanto da triste vida me consume,
Quanto cresce na causa do tormento.
  Leva a dor de vencida ao soffrimento;
Mas a alma está, de entregue, tão sem lume,
Qu'enlevada no bem que haver presume,
Não faz caso do mal qu'está de assento.
  De longe receei (se me valêra)
O perigo que tanto á porta vejo,
Quando não acho em mi cousa segura.
  Mas ja conheço, (oh nunca o conhecêra!)
Qu'entendimentos presos do desejo
Não t~ee remedio mais que o da ventura.
CCLXIII.
Acho-me da fortuna salteado;
O tempo vai fugindo presuroso,
Deixando-me da vida duvidoso,
E cada instante mais desesperado.
  Trocou-se o meu descuido em tal cuidado,
Que donde a gloria he mais, he mais penoso.
Nem vivo de perder-me receoso,
Nem de poder ganhar-me confiado.
  Qualquer ave nos montes mais agrestes,
Qualquer fera na cova repousando,
T~ee horas de alegria: eu todas tristes.
  Vós, saudosos olhos, que o quizestes,
(Pois com tormento Amor me está pagando)
Chorai, como que vêdes, o que
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/207]]==
<poem>
vistes.{133}
CCLXIV.
Se no que tenho dito vos offendo,
Não he a intenção minha de offender-vos;
Qu'inda que não pretenda merecer-vos,
Não vos desmerecer sempre pretendo.
  Mas he meu fado tal, segundo entendo,
Que, por quanto ganhava em entender-vos,
Não me deixa atégora conhecer-vos,
Por a mi proprio m'ir desconhecendo.
  Os dias ajudados da ventura
A cada qual de si dão desenganos,
E a outros soe da-lo a desventura.
  Qual destas sirva a mi, dirão os danos
Ou gostos que eu tiver, em quanto dura
Esta vida, tão larga em poucos anos.
CCLXV.
Doce contentamento ja passado,
Em que todo o meu bem só consistia,
Quem vos levou de minha companhia,
E me deixou de vós tão apartado?
  Quem cuidou que se visse neste estado
Naquellas breves horas d'alegria,
Quando minha ventura consentia
Que d'enganos vivesse meu cuidado?
  Fortuna minha foi cruel e dura
Aquella que causou meu perdimento,
Com a qual ninguem póde ter cautella.
  Nem se engane nenhuma creatura;
Que não póde nenhum impedimento
Fugir o que lh'ordena sua estrella
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/208]]==
<poem>
.{134}
CCLXVI.
Sempre, cruel Senhora, receei,
Medindo vossa grã desconfiança,
Que désse em desamor vossa tardança,
E que me perdesse eu, pois vos amei.
  Perca-se, em fim, ja tudo o qu'esperei,
Pois n'outro amor ja tendes esperança.
Tão patente será vossa mudança,
Quanto eu encobri sempre o que vos dei.
  Dei-vos a alma, a vida e o sentido;
De tudo o qu'em mi ha vos fiz senhora.
Prometteis, e negais o mesmo Amor.
  Agora tal estou, que de perdido,
Não sei por onde vou, mas algum'hora
Vos dará tal lembrança grande dor.
CCLXVII.
Se a fortuna inquieta e mal olhada,
Que a justa lei do Ceo comsigo infama,
A vida quieta, qu'ella mais dasama,
Me concedêra honesta e repousada;
  Pudéra ser que a Musa, alevantada
Com luz de mais ardente e viva flama,
Fizera ao Tejo lá na patria cama
Adormecer co'o som da lyra amada.
  Porém, pois o destino trabalhoso,
Que m'escurece a Musa fraca e lassa,
Louvor de tanto preço não sustenta;
  A vossa, de louvar-me pouco escassa,
Outro sogeito busque valeroso,
Tal qual em vós ao mundo se apr
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/209]]==
<poem>
esenta.{135}
CCLXVIII.
Este amor, que vos tenho limpo e puro,
De pensamento vil nunca tocado,
Em minha tenra idade começado,
Tê-lo dentro nesta alma só procuro.
  D'haver nelle mudança estou seguro,
Sem temer nenhum caso, ou duro fado,
Nem o supremo bem, ou baixo estado,
Nem o tempo presente, nem futuro.
  A bonina e a flor asinha passa;
Tudo por terra o inverno e estio deita;
Só para meu amor he sempre Maio.
  Mas ver-vos para mim, Senhora, escassa,
E qu'essa ingratidão tudo me engeita,
Traz este meu amor sempre em desmaio.
CCLXIX.
A formosura desta fresca serra,
E a sombra dos verdes castanheiros,
O manso caminhar destes ribeiros,
Donde toda a tristeza se desterra;
  O rouco som do mar, a estranha terra,
O esconder do sol pelos outeiros,
O recolher dos gados derradeiros,
Das nuvens pelo ar a branda guerra:
  Em fim, tudo o que a rara natureza
Com tanta variedade nos offrece,
M'está (se não te vejo) magoando.
  Sem ti tudo me enoja, e me aborrece;
Sem ti perpetuamente estou passando
Nas mores alegrias môr tristez
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/210]]==
<poem>
a.{136}
CCLXX.
Sustenta meu viver huma esperança
Derivada de hum bem tão desejado,
Que quando nella estou mais confiado,
Mor dúvida me põe qualquer mudança.
  E quando inda este bem na mór pujança
De seus gostos me t~ee mais enlevado,
Me atormenta então ver eu qu'alcançado
Será por quem de vós não t~ee lembrança.
  Assi que, nestas redes enlaçado,
A penas dou a vida, sustentando
Huma nova materia a meu cuidado.
  Suspiros d'alma tristes arrancando,
Dos silvos d'huma pedra acompanhado,
Estou materias tristes lamentando.
CCLXXI.
Ja não sinto, Senhora, os desenganos,
Com que minha affeição sempre tratastes,
Nem ver o galardão, que me negastes,
Merecido por fé ha tantos anos.
  A mágoa chóro só, só chóro os danos
De ver por quem, Senhora, me trocastes;
Mas em tal caso vós só me vingastes
De vossa ingratidão, vossos enganos.
  Dobrada gloria dá qualquer vingança,
Que o offendido toma do culpado,
Quando se satisfaz com causa justa;
  Mas eu de vossos males e esquivança,
De que agora me vejo bem vingado,
Não a quizera tanto á vossa
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/211]]==
<poem>
custa.{137}
CCLXXII.
Quando, Senhora, quiz Amor qu'amasse
Essa grã perfeição e gentileza,
Logo deo por sentença, que a crueza
Em vosso peito amor accrescentasse.
  Determinou, que nada me apartasse,
Nem desfavor cruel, nem aspereza;
Mas qu'em minha rarissima firmeza
Vossa isenção cruel se executasse.
  E, pois tendes aqui offerecida
Est'alma vossa a vosso sacrificio,
Acabai de fartar vossa vontade.
  Não lhe alargueis, Senhora, mais a vida;
Acabará morrendo em seu officio,
Sua fé defendendo e lealdade.
CCLXXIII.
Eu vivia de lagrimas isento,
N'hum engano tão doce e deleitoso,
Qu'em qu'outro amante fosse mais ditoso
Não valião mil glorias hum tormento.
  Vendo-me possuir tal pensamento,
De nenhuma riqueza era invejoso;
Vivia bem, de nada receoso,
Com doce amor e doce sentimento.
  Cobiçosa a Fortuna, me tirou
Deste meu tão contente e alegre estado;
E passou-se este bem, que nunca fôra:
  Em trôco do qual bem só me deixou
Lembranças, que me mátão cada hora,
Trazendo-me á memoria o bem
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/212]]==
<poem>
passado.{138}
CCLXXIV.
Indo o triste pastor todo embebido
Na sombra de seu doce pensamento,
Taes queixas espalhava ao leve vento,
Co'hum brando suspirar d'alma sahido:
  A quem me queixarei, cego, perdido,
Pois nas pedras não acho sentimento?
Com quem fallo? A quem digo meu tormento?
Que onde mais chamo, sou menos ouvido.
  Ó bella Nympha, porque não respondes?
Porque o olhar-me tanto m'encareces?
Porque queres que sempre me querelle?
  Eu quanto mais te busco, mais te escondes!
Quanto mais mal me vês, mais te endureces!
Assim que co'o mal cresce a causa delle.
CCLXXV.
Dizei, Senhora, da belleza idêa,
Para fazerdes esse aureo crino,
Onde fostes buscar esse ouro fino?
De qu'escondida mina ou de que vêa?
  Dos vossos olhos essa luz Phebêa,
Esse respeito, de hum Imperio dino?
Se o alcançastes com saber divino,
Se com encantamentos de Medéa?
  De qu'escondidas conchas escolhestes
As perlas preciosas Orientais,
Que fallando mostrais no doce riso?
  Pois vos formastes tal, como quizestes,
Vigiai-vos de vós, não vos vejais,
Fugi das fontes; lembre-vos Narciso.{139}

</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/213]]==
<poem>
CCLXXVI.
Na ribeira do Euphrates assentado,
Discorrendo me achei pela memoria
Aquelle breve bem, aquella gloria,
Que em ti, doce Sião, tinha passado.
  Da causa de meus males perguntado
Me foi: Como não cantas a historia
De teu passado bem, e da victoria
Que sempre de teu mal has alcançado?
  Não sabes, que a quem canta se lhe esquece
O mal, indaque grave e rigoroso?
Canta pois, e não chores dessa sorte.
  Respondi com suspiros: Quando crece
A muita saudade, o piedoso
Remedio he não cantar, senão a morte.
CCLXXVII.
Chorai, Nymphas, os fados poderosos
Daquella soberana formosura.
Onde forão parar? na sepultura?
Aquelles Reaes olhos graciosos?
  Oh bens do mundo falsos e enganosos!
Que mágoas para ouvir! Que tal figura
Jaza sem resplandor na terra dura
Com tal rosto e cabellos tão formosos!
  Das outras que será! pois poder teve
A morte sôbre cousa tanto bella,
Que ella eclipsava a luz do claro dia.
  Mas o mundo não era digno della,
Por isso mais na terra não esteve,
Ao ceo subio, que ja se lhe devia.{140}

</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/214]]==
<poem>
CCLXXVIII.
Senhora ja desta alma, perdoae
De hum vencido de Amor os desatinos,
E sejão vossos olhos tão beninos
Com este puro amor, que d'alma sae.
  A minha pura fé sómente olhae,
E vêde meus extremos se são finos;
E se de alguma pena forem dinos,
Em mim, Senhora minha, vos vingae.
  Não seja a dor que abraza o triste peito
Causa por onde pene o coração,
Que tanto em firme amor vos he sujeito.
  Guardae-vos do que alguns, dama, dirão,
Que sendo raro em tudo vosso objeito,
Possa morar em vós ingratidão.
CCLXXIX.
Doce sonho, suave e soberano,
Se por mais longo tempo me durára!
Ah quem de sonho tal nunca acordára,
Pois havia de ver tal desengano!
  Ah deleitoso bem! ah doce engano!
Se por mais largo espaço me enganára!
Se então a vida misera acabára,
De alegria e prazer morrêra ufano.
  Ditoso, não estando em mi, pois tive
Dormindo o que acordado ter quizera.
Olhae com que me paga meu destino!
  Em fim, fóra de mim ditoso estive.
Em mentiras ter dita razão era,
Pois sempre nas verdades fui
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/215]]==
<poem>
mofino.{141}
CCLXXX.
Diana prateada, esclarecida
Com a luz que do claro Phebo ardente,
Por ser de natureza transparente,
Em si, como em espelho, reluzia,
  Cem mil milhões de graças lhe influia,
Quando me appareceo o excellente
Raio de vosso aspecto, diferente
Em graça e em amor do que sohia.
  Eu vendo-me tão cheio de favores,
E tão propinquo a ser de todo vosso,
Louvei a hora clara, e a noite escura,
  Pois nella déstes côr a meus amores:
Donde collijo claro que não posso
De dia para vós ja ter ventura.
CCLXXXI.
Em quanto Phebo os montes accendia
Do ceo com luminosa claridade,
Por conservar illesa a castidade
Na caça o tempo Delia despendia.
  Venus, qu' então de furto descendia
Por captivar de Anchises a vontade,
Vendo Diana em tanta honestidade,
Quasi zombando della, lhe dizia:
  Tu vás com tuas redes na espessura
Os fugitivos cervos enredando;
Mas as minhas enredão o sentido.
  Melhor he (respondia a deosa pura)
Nas redes leves cervos ir tomando,
Que tomar-te a ti nellas teu marido.{142}
CCLXXXII.

</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/216]]==
<poem>
N'hum tão alto lugar, de tanto preço,
Este meu pensamento posto vejo,
Que desfallece nelle inda o desejo,
Vendo quanto par mi o desmereço.
  Quando esta tal baixeza em mi conheço,
Acho que cuidar nelle he grão despejo,
E que morrer por elle me he sobejo
E mór bem para mi, do que mereço.
  O mais que natural merecimento
De quem me causa hum mal tão duro e forte,
O faz que vá crescendo de hora em hora.
  Mas eu não deixarei meu pensamento,
Porque inda qu'este mal me causa a morte,
Un bel morir tutta la vita honora.
CCLXXXIII.
Quantas penas, Amor, quantos cuidados,
Quantas lagrimas tristes sem proveito,
De que mil vezes olhos, rosto e peito,
Por ti, cego, me viste ja banhados;
  Quantos mortaes suspiros derramados
Do coração por tanto a ti sujeito,
Quantos males, em fim, tu me tens feito,
Todos forão em mi bem empregados.
  A tudo satisfaz (confesso-te isto)
Huma só vista branda e amorosa
De quem me captivou minha ventura.
  Oh sempre para mi hora ditosa!
Que posso temer ja, pois tenho visto,
Com tanto gôsto meu, tanta
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/217]]==
<poem>
brandura?{143}
CCLXXXIV.
Posto me t~ee fortuna em tal estado,
E tanto a seus pés me t~ee rendido!
Não tenho que perder, ja de perdido,
Nem tenho que mudar, ja de mudado.
  Todo bem para mi he acabado:
D'aqui dou o viver ja por vivido;
Que aonde o mal he tão conhecido,
Tambem o viver mais será'scusado.
  Se me basta querer, a morte quero,
Que bem outra esperança não convem:
E curarei hum mal com outro mal.
  E pois do bem tão pouco bem espero,
Ja que o mal este só remedio tem,
Não me culpem em qu'rer remedio tal.
CCLXXXV.
Pues lágrimas tratais, mis ojos tristes,
Y en lágrimas pasais la noche y dia,
Mirad si es llanto este que os envia
Aquella por quien vos tantas vertistes:
  Sentid, mis ojos, bien esta que vistes;
Y si ella lo es, oh gran ventura mia!
Por muy bien empleadas las habria
Mil cuentos que por esta sola distes.
  Mas una cosa mucho deseada,
Aunque se vea cierta, no es creida,
Cuanto mas esta, que me es enviada.
  Pero digo, que aunque sea fingida,
Que basta que por lágrima sea dada,
Porque sea por lágrima teni
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/218]]==
<poem>
da.{144}
CCLXXXVI.
Que póde ja fazer minha ventura,
Que seja para meu contentamento?
Ou como fazer devo fundamento
De cousa que o não t~ee, nem he segura?
  Que pena póde ser tão certa e dura,
Que possa ser maior que meu tormento?
Ou como receará meu pensamento
Os males, se com elles mais se apura?
  Como quem se costuma de pequeno
Com peçonha criar por mão sciente,
Da qual o uso ja o t~ee seguro:
  Assim de acostumado co'o veneno,
O uso de soffrer meu mal presente
Me faz não sentir ja nada o futuro.{145}
ECLOGAS

</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/219]]==
<poem>
ECLOGA I.
INTERLOCUTORES.
UMBRANO, FRONDELIO, AONIA.
Que grande variedade vão fazendo,
Frondelio amigo, as horas apressadas!
Como se vão as cousas convertendo
Em outras cousas várias e insperadas!
Hum dia a outro dia vai trazendo
Por suas mesmas horas ja ordenadas;
Mas quão conformes são na quantidade,
Tão differentes são na qualidade.
  Eu vi ja deste campo as várias flores
Ás estrellas do ceo fazendo inveja;
Adornados andar vi os pastores
De quanto por o mundo se deseja;
E vi co'o campo competir nas côres
Os trajes, de obra tanta e tão sobeja,
Que se a rica materia não faltava,
A obra de mais rica sobejava.
  E vi perder seu preço ás brancas rosas
E quasi escurecer-se o claro dia
Diante de h~uas mostras perigosas,
Que Venus mais que nunca engrandecia.
As pastoras, emfim, vi tão
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/220]]==
<poem>
formosas,{146}
Que o Amor de si mesmo se temia;
Mas mais temia o pensamento falto
De não ser para ter temor tão alto.
  Agora tudo está tão differente,
Que move os corações a grande espanto;
E parece que Jupiter potente
Se enfada ja d'o mundo durar tanto.
O Tejo corre turvo e descontente,
As aves deixão seu suave canto,
E o gado, inda que a herva lhe fallece,
Mais que da falta della se emmagrece.
            FRONDELIO.
  Umbrano irmão, decreto he da natura,
Inviolavel, fixo e sempiterno,
Que a todo bem succeda desventura,
E não haja prazer que seja eterno:
Ao claro dia segue a noite escura,
Ao suave verão o duro inverno;
E se ha cousa que saiba ter firmeza,
He somente esta lei da natureza.
  Toda alegria grande e sumptuosa
A porta abrindo vem ao triste estado:
Se hum'hora vejo alegre e deleitosa,
Temendo estou do mal apparelhado.
Não vês que mora a serpe venenosa
Entre as flores do fresco e verde prado?
Ah! não te engane algum contentamento;
Que mais instavel he que o pensamento.
  E praza a Deos que o triste e duro fado
De tamanhos desastres se contente;
Que sempre hum grande mal inopinado{
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/221]]==
<poem>
147}
He mais do que o espera a incauta gente:
Que vejo este carvalho que queimado
Tão gravemente foi do raio ardente.
Não seja ora prodigio que declare
Que o barbaro cultor meus campos are.
            UMBRANO.
  Em quanto do seguro azambujeiro
Nos pastores de Luso houver cajados,
Como valor antiguo, que primeiro
Os fez no mundo tão assinalados,
Não temas tu, Frondelio companheiro,
Qu'em algum tempo sejão sobjugados,
Nem que a cerviz indomita obedeça
A outro jugo qualquer que se lhe offreça.
  E postoque a soberba se levante
De inimigos a torto e a direito,
Não crêas tu que a fôrça repugnante
Do fero e nunca ja vencido peito,
Que desde quem possue o monte Atlante
Adonde bebe o Hydaspe t~ee sujeito,
O possa nunca ser de fôrça alheia,
Em quanto o sol a terra e o ceo rodeia.
            FRONDELIO.
  Umbrano, a temeraria segurança
Qu'em fôrça, ou em razão não se assegura,
He falsa e vãa; que a grande confiança
Não he sempre ajudada da ventura.
Que lá junto das aras da esperança,
Némesis moderada, justa e dura,
Hum freio lhe está pondo e lei terribil,
Que os limites não passe do possibil.{148}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/222]]==
<poem>
  E se attentares bem os grandes danos
Que se nos vão mostrando cada dia,
Poras freio tambem a esses enganos
Que te está figurando a ousadia.
Tu não vês como os lobos Tingitanos,
Apartados de toda cobardia,
Mátão os cães do gado guardadores,
E não somente os cães, mas os pastores?
  Pois o grande curral, seguro e forte,
Do alto monte Atlas não ouviste
Que com sanguinolenta e fera morte
Despovoado foi por caso triste?
Oh triste caso! oh desastrada sorte,
Contra quem fôrça humana não resiste!
Que alli tambem da vida foi privado
O meu Tionio, ainda em flor cortado!
            UMBRANO.
  Em lagrimas me banha rosto e peito
Desse caso terrivel a memoria,
Quando vejo quão sabio e quão perfeito,
E quão merecedor de longa historia
Era esse teu pastor, que sem direito
Deo ás Parcas a vida transitoria.
Mas não ha hi quem d'herva o gado farte,
Nem de juvenil sangue o fero Marte.
  Porém, se te não for muito pezado,
(Ja qu'esta triste morte me lembraste)
Canta-me desse caso desastrado
Aquelles brandos versos que cantaste,
Quando hontem, recolhendo o manso gado,
De nós-outros pastores te apartaste;{
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/223]]==
<poem>
149}
Qu'eu tambem que as ovelhas recolhia,
Não te podia ouvir como queria.
            FRONDELIO.
  Como queres renove ao pensamento
Tamanho mal, tamanha desventura?
Porqu'espalhar suspiros vãos ao vento,
Para os que tristes são, he falsa cura.
Mas, pois te move tanto o sentimento
Da morte de Tionio, triste e escura,
Eu porei teu desejo em doce effeito,
Se a dor me não congela a voz no peito.
            UMBRANO.
  Canta agora, pastor, que o gado pace
Entre as humidas hervas socegado;
E lá nas altas serras, onde nace,
O sacro Tejo á sombra recostado,
Co'os seus olhos no chão, a mão na face,
Está para te ouvir apparelhado;
E com silencio triste estão as Nymphas
Dos olhos destillando claras lymphas.
  O prado as flores brancas e vermelhas
Está suavemente presentando;
As doces e solícitas abelhas,
Com susurro agradavel vão voando;
As candidas, pacíficas ovelhas,
Das hervas esquecidas, inclinando
As cabeças estão ao som divino
Que faz, passando, o Tejo crystallino.
  O vento d'entre as árvores respira,
Fazendo companhia ao claro rio;
Nas sombras a ave garrula suspira,{150}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/224]]==
<poem>
Sua mágoa espalhando ao vento frio.
Toca, Frondelio, toca a doce lira;
Que d'aquelle verde alamo sombrio
A branda Philomela entristecida
Ao mais saudoso canto te convida.
            FRONDELIO.
  Aquelle dia as águas não gostárão
As mimosas ovelhas; e os cordeiros
O campo enchêrão d'amorosos gritos.
E não se pendurárão dos salgueiros
As cabras, de tristeza; mas negárão
O pasto a si, e o leite a os cabritos.
Prodigios infinitos
Mostrava aquelle dia,
Quando a Parca queria
Princípio dar ao fero caso triste.
E tu tambem (ó corvo) o descobriste,
Quando da mão direita em voz escura,
Voando, repetiste
A tyrannica lei da morte dura.
  Tionio meu, o Tejo crystallino,
E as árvores que ja desamparaste
Chórão o mal de tua ausencia eterna.
Não sei porque tão cedo nos deixaste!
Mas foi consentimento do Destino,
Por quem o mar e a terra se governa.
A noite sempiterna,
Que tu tão cedo viste
Cruel, acerba e triste,
Sequer de tua idade não te dera
Que lográras a fresca primavera?{151}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/225]]==
<poem>

Não usára comnosco tal crueza,
Que nem nos montes fera,
Nem pastor ha no campo sem tristeza.
  Os Faunos, certa guarda dos pastores,
Ja não seguem as Nymphas na espessura,
Nem as Nymphas aos cervos dão trabalho.
Tudo, qual vês, he cheio de tristura:
Ás abelhas o campo nega as flores,
Como ás flores a aurora nega o orvalho.
Eu que cantando espalho
Tristezas todo o dia,
A frauta que soia
Mover as altas árvores tangendo,
Se me vai de tristeza enrouquecendo;
Que tudo vejo triste neste monte:
E tu tambem correndo
Manas envolta e triste, ó clara fonte.
  As Tagides no rio, e na aspereza
Do monte as Oreádas, conhecendo
Quem te obrigou ao duro e fero Marte;
Como em geral sentença vão dizendo,
Que não póde no mundo haver tristeza
Em cuja causa amor não tenha parte.
Porqu'elle, enfim, dest'arte
Nos olhos saudosos,
Nos passos vagarosos,
E no rosto, que Amor com phantasia
Da pallida viola lhe tingia,
A todos de si dava sinal certo
Do fogo que trazia;
Que nunca soube amor ser encoberto.{152}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/226]]==
<poem>
  Ja diante dos olhos lhe voavão
Imagens e phantasticas pinturas,
Exercicios do falso pensamento;
Ja por as solitarias espessuras
Entre os penedos sós, que não fallavão,
Fallava e descobria seu tormento.
Em longo esquecimento
De si, todo embebido,
Andava tão perdido,
Que quando algum pastor lhe perguntava
A causa da tristeza que mostrava,
Como quem para penas só vivia,
Sorrindo, lhe tornava:
Se não vivesse triste, morreria.
  Mas como este tormento o sinalou,
E tanto no seu rosto se mostrasse,
Entendendo-o ja bem o pae sisudo,
Porque do pensamento lho tirasse,
Longe da causa delle o apartou;
Porque, emfim, longa ausencia acaba tudo.
Oh falso Marte rudo,
Das vidas cobiçoso!
Que donde o generoso
Peito resuscitava em tanta gloria
De seus Antecessores a memoria,
Alli, fero e cruel, lhe destruiste,
Por injusta victoria,
Primeiro que o cuidado, a vida triste.
  Parece-me, Tionio, que te vejo,
Por tingires a lança cobiçoso
Naquelle infido sangue Mauritano,{
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/227]]==
<poem>
153}
No Hispanico ginete bellicoso,
Que ardendo tambem vinha no desejo
De atropellar por terra ao Tingitano.
Oh confiado engano!
Oh encurtada vida!
Que a virtude opprimida
Da multidão forçosa do inimigo
Não pôde defender-se do perigo:
Porqu'assi o Destino o permittio;
E assi levou comsigo
O mais gentil pastor que o Tejo vio.
  Qual o mancebo Euryalo enredado
Entre o poder dos Rutulos, fartando
As íras da soberba e dura guerra;
Do cristallino rosto a côr mudando,
Cujo purpureo sangue, derramado
Por as alvas espaldas, tinge a serra;
Que como flor, que a terra
Lhe nega o mantimento,
Porque o tempo avarento
Tambem o largo humor lhe t~ee negado,
O collo inclina languido e cansado:
Tal te pinto, ó Tionio, dando o esprito
A quem to tinha dado;
Qu'este he somente eterno e infinito.
  Da congelada boca a alma pura,
Co'o nome juntamente da inimiga
E excellente Marfida, derramava.
E tu, gentil Senhora, não te obriga
A pranto sempiterno a morte dura
De quem por ti somente a vida amava?{154}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/228]]==
<poem>
Por ti aos ecos dava
Accentos numerosos;
Por ti aos bellicosos
Exercicios se deo do fero Marte.
E tu ingrata o amor ja n'outra parte
Porás, como acontece ao fraco intento:
Que, emfim, emfim, dest'arte
Se muda o feminino pensamento.
  Pastores deste valle ameno e frio,
Que de Tionio o caso desastrado
Quereis nas altas serras que se conte;
Hum tumulo, de flores adornado,
Lhe edificai ao longo deste rio,
Que a vela enfreie ao duro navegante:
E o lasso caminhante,
Vendo tamanha mágoa,
Arraze os olhos d'ágoa,
Lendo na pedra dura o verso escrito,
Que diga assi: Memoria sou, que grito
Para dar testimunho em toda parte
Do mais gentil Esprito
Que tirárão do mundo Amor e Marte.
            UMBRANO.
  Qual o quieto somno aos cansados
Debaixo de algum'árvore sombria;
Ou qual aos sequiosos encalmados
O vento respirante e a fonte fria:
Taes me forão teus versos delicados,
Teu numeroso canto e melodia:
E ainda agora o tom suave e brando
Os ouvidos me fica adormentando.{155}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/229]]==
<poem>

  Em quanto os peixes humidos tiverem
As areosas covas deste rio,
E correndo estas águas conhecerem
Do largo mar o antiguo senhorio;
E em quanto estas hervinhas pasto derem
Ás petulantes cabras, eu te fio
Que em virtude dos versos que cantaste
Sempre viva o pastor que tanto amaste.
  Mas ja que pouco a pouco o sol nos falta,
E dos montes as sombras se accrescentão;
De flores mil o claro ceo se esmalta,
Que tão ledas aos olhos se presentão;
Levemos por o pé desta serra alta
Os gados, que ja agora se contentão
Do que comido t~ee, Frondelio amigo:
Anda; que até o outeiro irei comtigo.
            FRONDELIO.
  Antes por este valle, amigo Umbrano,
Se t'aprouver, levemos as ovelhas;
Porque, se eu por acêrto não me engano,
De lá me sôa hum eco nas orelhas:
O doce accento não parece humano.
E, se em contrário tu não m'aconselhas,
Eu quero descobrir que cousa seja;
Que o tom m'espanta, e a voz me faz inveja.
            UMBRANO.
  Comtigo vou, que quanto mais me chego,
Mais gentil me parece a voz que ouviste,
Peregrina, excellente; e não te nego
Que me faz cá no peito a alma triste.
Vês como t~ee os ventos em socêgo?{156}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/230]]==
<poem>
Nenhum rumor da serra lhe resiste:
Nenhum passaro vôa, mas parece
Que, do canto vencido, lhe obedece.
  Porém, irmão, melhor me parecia
Que não fôssemos lá; que estorvaremos;
Mas sobidos nest'árvore sombria,
Todo o valle de aqui descobriremos.
Os çurrões e cajados, todavia,
Neste comprido tronco penduremos:
Para subir fica homem mais ligeiro.
Deixa-me tu, Frondelio, ir primeiro.
            FRONDELIO.
  Espera, assi, dar-te-hei de pé, se queres:
Subirás sem trabalho e sem ruido;
E despois que subido lá 'stiveres,
Dar-me-has a mão de cima; que he partido.
Mas primeiro me dize, se o puderes
Ver, donde nasce o canto nunca ouvido;
Quem lança o doce accento delicado.
Falla; que ja te vejo estar pasmado.
            UMBRANO.
  Cousas não costumadas na espessura,
Que nunca vi, Frondelio, vejo agora:
Formosas Nymphas vejo na verdura,
Cujo divino gesto o ceo namora.
Huma de desusada formosura,
Que das outras parece ser Senhora,
Sôbre hum triste sepulcro, não cessando,
Está perlas dos olhos destillando.
  De todas estas altas semidêas,
Qu'em tôrno estão do corpo sepultado,{
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/231]]==
<poem>
157}
Humas, regando as humidas arêas,
De flores t~ee o tumulo adornado;
Outras, queimando lagrimas Sabêas,
Enchem o ar de cheiro sublimado;
Outras em ricos pannos, mais avante,
Envolvem brandamente hum novo infante.
  Huma, que d'entre as outras se apartou,
Com gritos, que a montanha entristecêrão,
Diz, que despois que a morte a flor cortou
Que as estrellas somente merecêrão,
Este penhor charissimo ficou
Daquelle, a cujo imperio obedecêrão
Douro, Mondego, Tejo e Guadiana,
Até o remoto mar da Taprobana.
  Diz mais, que se encontrar este menino
A noite intempestiva, amanhecendo,
O Tejo, agora claro e crystallino,
Tornará a fera Alecto em vulto horrendo.
Mas que, a ser conservado do Destino,
As benignas estrellas promettendo
Lh'estão o largo pasto de Ampelusa,
Co'o monte que em mao ponto vio Medusa.
  Este prodigio grande Nympha bella
Com abundantes lagrimas recita.
Porém, qual a eclipsada clara estrella,
Qu'entre as outras o ceo primeiro habita:
Tal coberta de negro vejo aquella,
A quem só n'alma toca a grã desdita.
Dá cá, Frondelio, a mão; e sobe a ver
Tudo o mais qu'eu de dor não sei dizer.{158}
            FRONDELIO.
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/232]]==
<poem>
  Oh triste morte, esquiva e mal olhada,
Que a tantas formosuras injurías!
Áquella deosa bella e delicada
Sequer algum respeito ter devias.
Esta he, por certo, Aonia filha amada
Daquelle grã Pastor, qu'em nossos dias
Danubio enfreia, manda o claro Ibero,
E espanta o morador do Euxino fero.
  Morreo-nos o excellente e poderoso,
(Que a isto está sujeita a vida humana)
Doce Aonio, d'Aonia charo Esposo.
Ah lei dos fados, aspera e tyrana!
Mas o som peregrino e piedoso,
Com que a formosa Nympha a dor engana,
Escuta hum pouco. Nota e vê, Umbrano,
Quão bem que sôa o verso Castelhano.
            AONIA.
  Alma, y primero amor del alma mia,
Espíritu dichoso, en cuya vida
La mia estuvo en cuanto Dios queria!
  Sombra gentil de su prision salida,
Que del mundo á la patria te volviste,
Donde fuiste engendrada y procedida!
  Recibe allá este sacrificio triste,
Que te offrecen los ojos que te vieron;
Si la memoria dellos no perdiste.
  Que, pues los altos Cielos permitieron,
Que no te acompañase en tal jornada,
Y para ornarse solo á ti quisieron;
  Nunca permitirán, que acompañada{
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/233]]==
<poem>
159}
De mi no sea esta memoria tuya,
Que está de tus despojos adornada.
  Ni dejará, por mas que el tiempo huya,
De estar en mí con sempiterno llanto,
Hasta que vida y alma se destruya.
  Mas tú, gentil Espíritu, entretanto
Que otros campos y flores vas pisando,
Y otras zampoñas oyes, y otro canto;
  Agora embevecido estés mirando
Allá en el Empireo aquella Idea,
Que el mundo enfrena y rige con su mando;
  Agora te posuya Citherea
En el tercero asiento, ó porque amaste,
Ó porque nueva amante allá te sea;
  Agora el sol te admire, si miraste
Como vá por los Signos, encendido,
Las tierras alumbrando que dejaste:
  Si en ver estos milagros no has perdido
La memoria de mí, ó fué en tu mano
No pasar por las aguas del olvido;
  Vuelve un poco los ojos á este llano,
Verás una, que á ti con triste lloro
Sobre este mármol sordo llama en vano.
  Pero si entraren en los Signos de oro
Lágrimas y gemidos amorosos,
Que muevan el supremo y santo coro;
  La lumbre de tus ojos tan hermosos
Yo la veré muy presto: y podré verte;
Que á pesar de los hados enojosos
Tambiem para los tristes hubo muerte.{160}

</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/234]]==
<poem>
ECLOGA II.
INTERLOCUTORES.
ALMENO e AGRARIO.
Ao longo do sereno
Tejo, suave e brando,
N'hum valle d'altas árvores sombrio
Estava o triste Almeno
Suspiros espalhando
Ao vento, e doces lagrimas ao rio.
No derradeiro fio
O tinha a esperança,
Que com doces enganos
Lhe sustentára a vida tantos anos
N'h~ua amorosa e branda confiança;
Que quem tanto queria,
Parece que não erra, se confia.
  A noite escura dava
Repouso aos cansados
Animaes esquecidos da verdura;
O valle triste estava
Co'huns ramos carregados,
Qu'inda a noite fazião mais escura.
Offrecia a espessura
Hum temeroso espanto:
As roucas rãas soavão
N'hum charco de água negra e ajudavão
Do passaro nocturno o
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/235]]==
<poem>
triste canto:{161}
O Tejo com som grave
Corria mais medonho que suave.
  Como toda a tristeza
No silencio consiste,
Parecia que o valle estava mudo.
E com esta graveza
Estava tudo triste,
Porém o triste Almeno mais que tudo:
Tomando por escudo
De sua doce pena,
Para poder soffrella,
Estar imaginando a causa della;
Qu'em tanto mal he cura bem pequena.
Maior o he o tormento,
Que toma por allívio hum pensamento.
  Ao rio se queixava
Com lagrimas em fio,
Com que as ondas crescião outro tanto.
Seu doce canto dava
Tristes águas ao rio,
E o rio triste som ao doce canto.
Ao sonoroso pranto,
Que as águas enfreava,
Responde o valle umbroso.
De tanta voz o accento temeroso
Na outra parte do rio retumbava;
Quando, da phantasia
O silencio rompendo, assi dizia:
  Corre suave e brando
Com tuas claras ágoas,
Sahidas de meus olhos, doce Tejo;{162}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/236]]==
<poem>

Fé de meus males dando,
Para que minhas mágoas
Sejão castigo igual de meu desejo:
Que, pois em mim não vejo
Remedio, nem o espero;
E a morte se despreza
De me matar, deixando-me á crueza
Daquella por quem meu tormento quero;
Saiba o mundo meu dano,
Porque se desengane em meu engano.
  Ja que minha ventura,
Ou a causa qu'a ordena,
Quer qu'em pago da dor tome o soffrella;
Será mais certa cura
Para tamanha pena
Desesperar d'haver ja cura nella.
Porque se minha estrella
Causou tal esquivança,
Consinta meu cuidado
Que me farte de ser desesperado,
Para desenganar minha esperança:
Pois somente nasci
Para viver na morte, e ella em mi.
  Não cesse meu tormento
De fazer seu officio,
Pois aqui t~ee hum'alma ao jugo atada:
Nem falte o soffrimento,
Porque parece vício
Para tão doce mal faltar-me nada.
Oh Nympha delicada,
Honra da natureza!{
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/237]]==
<poem>
163}
Como póde isto ser,
Que de tão peregrino parecer
Pudesse proceder tanta crueza?
Não vem de nenhum geito
De causa divinal contrário effeito.
  Pois como pena tanta
He contra a causa della?
Fóra he do natural minha tristeza.
Mas a mi que m'espanta?
Não basta (ó Nympha bella)
Que podes perverter a natureza?
Não he a gentileza
De teu gesto celeste
Fóra do natural?
Não póde a natureza fazer tal:
Tu mesma (ó bella Nympha) te fizeste;
Porém, porque tomaste
Tão dura condição, se te formaste?
  Por ti o alegre prado
Me he penoso e duro;
Abrolhos me parecem suas flores.
Por ti do manso gado,
Como de mi, não curo,
Por não fazer offensa a teus amores.
Os jogos dos pastores,
As lutas entr'a rama,
Nada me faz contente:
E sou ja do que fui tão differente,
Que quando por meu nome alguem me chama,
Pasmo, porque conheço
Qu'inda comigo proprio me pareço.{164}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/238]]==
<poem>

  O gado, que apascento,
São n'alma os meus cuidados;
As flores, que no campo sempre vejo,
São no meu pensamento
Teus olhos debuxados,
Com qu'estou enganando o meu desejo.
Do frio e doce Tejo
As águas se tornárão
Ardentes e salgadas,
Despois que minhas lagrimas cansadas
Com seu puro licor se misturárão;
Como quando mistura
Hyppanis co'o Exampêo sua água pura.
  Se ahi no mundo houvesse
Ouvires-me algum'hora,
Assentados na praia deste rio;
E d'arte te dissesse
O mal que passo agora,
Que pudesse mover-te o peito frio!..
Oh quanto desvario,
Qu'estou imaginando!
Ja agora meu tormento
Não póde pedir mais ao pensamento,
Qu'este phantasiar, donde penando
A vida me reserva.
Querer mais de meu mal será soberba.
  Ja a esmaltada Aurora
Descobre o negro manto
Da sombra, que as montanhas encobria.
Descansa, frauta, agora,
Pois meu escuro canto{
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/239]]==
<poem>
165}
Não merece que veja o claro dia.
Não canse a phantasia
D'estar em si pintando
O gesto delicado,
Em quanto traz ao pasto o manso gado
Esse pastor, que lá só vem fallando.
Callar-me-hei somente;
Que o meu mal nem ouvir se me consente.
            AGRARIO.
  Formosa manhãa clara e deleitosa,
Que, como fresca rosa na verdura,
Te mostras bella e pura, marchetando
As Nymphas, espalhando teus cabellos
Nos verdes montes bellos; tu só fazes,
Quando a sombra desfazes triste e escura,
Formosa a espesura e a clara fonte,
Formoso o alto monte e o rochedo,
Formoso o arvoredo e deleitoso,
E emfim tudo formoso co'o teu rosto
D'ouro e rosas composto e claridade;
Trazes a saudade ao pensamento,
Mostrando em hum momento o roxo dia,
Com a doce harmonia nos cantares
Dos passaros a pares, que voando
Seu pasto andão buscando nos raminhos,
Para os amados ninhos que mantém.
Oh grande e summo bem da natureza!
Estranha subtileza de pintora,
Que matiza em hum'hora de mil côres
O ceo, a terra, as flores, monte e prado!
Oh tempo ja passado! quão presente{166}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/240]]==
<poem>
Te vejo abertamente na vontade!
Quão grande saudade tenho agora
Do tempo que a pastora minha amava,
E de quanto prezava a minha dor!
Então tinha o amor maior poder,
Quando em hum só querer nos igualava;
Porque quando hum amava a quem queria,
Logo eco respondia d'affeição
No brando coração da doce imiga.
Nesta amorosa liga concertavão
Os tempos, que passavão com prazeres.
Mostrava a flava Ceres por as eiras
Das brancas sementeiras ledo fruto,
Pagando seu tributo aos Lavradores;
E enchia aos pastores todo o prado
Pales do manso gado guardadora.
Hião Zéphyro e Flora passeando,
Os campos esmaltando de boninas;
Nas fontes cristallinas triste estava
Narciso, qu'inda olhava n'água pura
Sua linda figura e delicada:
Mas Eco, namorada de tal gesto,
Com pranto manifesto, seu tormento
No derradeiro accento lamentava.
Alli tambem se achava o sangue tinto
Do purpureo Jacintho; e o destrôço
De Adonis bello moço; morte fêa
Da bella Cytherêa tão chorada;
Toda a terra esmaltada destas rosas.
Hião Nymphas formosas por os prados;
E os Faunos namorados apos ellas,{
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/241]]==
<poem>
167}
Mostrando-lhes capellas de mil côres,
Ordenadas das flores que colhião:
As Nymphas lhe fugião espantadas,
As faldas levantadas, por os montes.
Via-sea água das fontes espalhar-se;
Vertumno transformar-se alli se via;
Pomona, que trazia os doces fruitos;
Alli pastores muitos, que tangião
As gaitas que trazião, e cantando
Estavão enganando as suas penas,
Tomando das Sirenas o exercicio.
Ouvia-se Salicio lamentar-se;
Da mudança queixar-se crua e fêa
Da dura Galathêa tão formosa:
E da morte invejosa Nemoroso
Ao monte cavernoso se querella,
Que a sua Elisa bella em pouco espaço
Cortou inda em agraço. Ah dura sorte!
Oh immatura morte, que a ninguem
De quantos vida t~ee jamais perdoas!
Mas tu, tempo, que voas apressado,
Hum deleitoso estado quão asinha
Nesta vida mesquinha transfiguras
Em mil desaventuras, e a lembrança
Nos deixas por herança do que levas!
Assi que se nos cevas com prazeres,
He para nos comeres no melhor.
Cada vez em peor te vás mudando:
Quanto v~ees inventando, qu'hoje approvas,
Logo á manhãa reprovas com instancia.
Oh perversa inconstancia e tão profana{168}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/242]]==
<poem>
De toda cousa humana inferior,
A quem o cego error sempre anda annexo!
Mas eu de que me queixo? ou eu que digo?
Vive o tempo comigo? ou elle tem
Culpa no mal que vem da cega gente?
Por ventura elle sente, ou elle entende
Aquillo que defende o ser divino?
Elle usa de contino seu officio,
Que ja por exercicio lhe he devido:
Dá-nos fructo colhido na sazão
Do formoso verão; e no inverno,
Com seu humor eterno congelado,
Do vapor levantado co'a quentura
Do sol, a terra dura lhe dá alento,
Para que o mantimento produzindo,
Estê sempre cumprindo seu costume.
Assi que não consume de si nada,
Nem muda da passada vida hum dedo:
Antes sempre está quedo no devido,
Porqu'este he seu partido e sua usança;
E nelle esta mudança he mais firmeza.
Mas quem a Lei despreza, e pouco estima,
De quem de lá de cima está movendo
O ceo sublime e horrendo, o mundo puro,
Este muda o seguro e firme estado
Do tempo, não mudado de verdade.
Não foi naquella idade d'ouro claro
O firme tempo charo e excellente?
Vivia então a gente moderada;
Sem ser a terra arada dava pão;
Sem ser cavado o chão as fructas dava;{
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/243]]==
<poem>
169}
Nem águas desejava, nem quentura;
Suppria então natura o necessario.
Pois quem foi tão contrário a esta vida?
Saturno, que, perdida a luz serena,
Causou, qu'em dura pena, desterrado,
Fosse do ceo lançado, onde vivia;
Porque os filhos comia, que gerava.
Por isso se mudava o tempo igual
Em mais baixo metal: e assi descendo
Nos veio, emfim, trazendo a este estado.
Mas eu, desatinado, aonde vou?
Para onde me levou a phantasia?
Qu'estou gastando o dia em vãas palavras?
Quero ora minhas cabras ir levando
Ao Tejo claro e brando; porque achar
No mundo qu'emendar, não he d'agora:
Basta que a vida fóra delle tenho:
Com meu gado me avenho, e estou contente.
Porém, se me não mente a vista, eu vejo
Nesta praia do Tejo estar deitado
Almeno, que enlevado em pensamentos,
As horas e os momentos vai gastando:
Vou-me a elle chegando, só por ver
Se poderei fazer que o mal que sente,
Hum pouco se lhe ausente da memoria.
            ALMENO.
  Oh doce pensamento! oh doce gloria!
São estes por ventura os olhos bellos,
Que t~ee de meus sentidos a victoria?
  São estas, Nympha, as tranças dos cabellos,
Que fazem de seu preço o ouro alheio,{170}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/244]]==
<poem>
Como a mi de mi mesmo só com vellos?
  He esta a alva columna, o lindo esteio,
Sustentador das obras mais que humanas,
Qu'eu nestes braços tenho, e não o creio?
  Ah falso pensamento, que me enganas!
Fazes-me pôr a boca onde não devo,
Com palavras de doudo, ou quasi insanas!
  Como a alçar-te tão alto assi me atrevo?
Taes azas dou-tas eu, ou tu mas dás?
Levas-me tu a mi, ou eu te levo?
  Não poderei eu ir onde tu vás?
Porém, pois ir não posso onde tu fores,
Quando fores, não tornes onde estás.
            AGRARIO.
  Oh que triste successo foi de amores,
O que a este pastor aconteceo,
Segundo ouvi contar a outros pastores!
  Tanto emfim, por seu damno se perdeo,
Que o longo imaginar em seu tormento,
Em desatino Amor lh'o converteo.
  Oh forçoso vigor do pensamento,
Que póde em outra cousa estar mudando
A fórma, a vida, o siso, o entendimento!
  Está-se hum triste amante transformando
Na vontade daquella, que tanto ama,
De si a propria essencia transportando.
  E nenhum'outra cousa mais desama,
Que a si, se vê qu'em si ha algum sentido,
Que deste fogo insano não se inflama.
  Almeno, que aqui 'stá tão influido
No phantastico sonho, que o cuidado{
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/245]]==
<poem>
171}
Lhe traz sempre ante os olhos esculpido,
  Está-se-lhe pintando, de enlevado,
Que t~ee ja da phantastica pastora
O peito diamantino mitigado.
  Em este doce engano estava agora
Fallando como em sonho, mas achando
Ser vento o que sonhava, grita e chora.
  Dest'arte andavão sonhos enganando
O pastor somnolento, que a Diana
Andava entre as ovelhas celebrando;
  Dest'arte a nuvem falsa, em fórma humana,
O vão pae dos Centauros enganava:
(Que Amor quando contenta, sempre engana)
  Como este, que comsigo só fallava,
Cuidando que fallava, de enleado,
Com quem lhe o pensamento figurava.
  Não póde quem quer muito, ser culpado
Em nenhum êrro, quando vem a ser
Este amor em doudice transformado.
  Amor não será amor, se não vier
Com doudices, deshonras, dissensões,
Pazes, guerras, prazer e desprazer;
  Perigos, linguas más, murmurações
Ciumes, arruidos, competencias,
Temores, nojos, mortes, perdições.
  Estas são verdadeiras penitencias
De quem põe o desejo onde não deve,
De quem engana alheias innocencias.
  Mas isto t~ee o amor, que não se escreve
Senão donde he illicito e custoso;
E donde he mais o risco, mais se atreve.{172}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/246]]==
<poem>
  Passava o tempo alegre e deleitoso
O Troiano pastor, em quanto andava
Sem ter alto desejo e perigoso.
  Seus furiosos touros coroava,
E nos álamos altos escrevia
Teu nome (Enone) quando a ti só amava.
  Os álamos crescião, e crescia
O amor qu'elle te tinha: sem perigo,
E sem temor, contente te servia.
  Mas despois que deixou entrar comsigo
Illicito desejo e pensamento,
De sua quietação tão inimigo;
  A toda a patria poz em detrimento
Com mortes de parentes e de irmãos,
Com crú incendio, e grande perdimento.
  Nisto fenecem pensamentos vãos:
Tristes serviços mal galardoados,
Cuja glória se passa d'entre as mãos.
  Lagrimas e suspiros arrancados
D'alma, todos se pagão com enganos:
E oxalá forão muitos enganados!
  Andão com seu tormento tão ufanos,
Que gastão na doçura d'hum cuidado
Apos huma esperança muitos anos.
  E talha tão perdido namorado,
Tão contente co'o pouco, que daria
Por hum só volver d'olhos todo o gado.
  Em todo povoado e companhia,
Sendo ausentes de si, se vem presentes
Com quem lhes pinta sempre a phantasia.
  Co'hum certo não sei que andão contentes,{
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/247]]==
<poem>
173}
E logo hum nada os torna, ao contrário,
De todo ser humano differentes.
  Oh tyrannico Amor, oh caso vario,
Que obrigas a hum querer que sempre seja
De si contínuo e aspero adversario!
  E qu'outr'hora nenhuma alegre esteja,
Senão quando do seu despôjo amado
Sua inimiga estar triumphando veja.
  Quero fallar com este, qu'enredado
Nesta cegueira está sem nenhum tento.
Acorda ja, pastor, desacordado.
            ALMENO.
  Oh porque me tiraste hum pensamento,
Que agora estava aos olhos debuxando,
De quem aos meus foi doce mantimento?
            AGRARIO.
  Nesta imaginação estás gastando
O tempo e vida, Almeno? Perda grande!
Não vês quão mal os dias vás passando?
            ALMENO.
  Formosos olhos, ande a gente e ande;
Que nunca vos ireis dest'alma minha,
Por mais qu'o tempo corra, a morte o mande.
            AGRARIO.
  Quem poderá cuidar que tão asinha
Se perca o curso assi do siso humano,
Que corre por direita e justa linha?
  Que sejas tão perdido por teu dano,
Almeno meu, não he por certo aviso;
He só doudice grande, grande engano.{174}
            ALMENO.
  Ó Agrario
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/248]]==
<poem>
meu, que vendo o doce riso,
E o rosto tão formoso, como esquivo,
O menos que perdi foi todo o siso.
  E não entendo, desque sou captivo,
Outra cousa de mi, senão que mouro:
Nem isto entendo bem, pois inda vivo.
  Á sombra deste umbroso e verde louro
Passo a vida, ora em lagrimas cansadas,
Ora em louvores dos cabellos d'ouro.
  Se perguntares porque são choradas,
Ou porque tanta pena me consume,
Revolvendo memorias magoadas;
  Desque perdi da vida o claro lume,
E perdi a esperança e causa della,
Não chóro por razão, mas por costume.
  Jamais pude co'o fado ter cautella;
Nem houve nunca em mi contentamento,
Que não fosse trocado em dura estrella.
  Que bem livre vivia e bem isento,
Sem qu'ao jugo me visse submettido
De nenhum amoroso pensamento!
  Lembra-me, amigo Agrario, que o sentido
Tão fóra d'amor tinha, que me ria
De quem por elle via andar perdido.
  De várias côres sempre me vestia;
De boninas a fronte coroava;
Nenhum pastor cantando me vencia.
  A barba então nas faces me apontava;
Na luta, na carreira, em qualquer manha,
Sempre a palma entre todos alcançava.{
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/249]]==
<poem>
175}
  Da minha idade tenra, em tudo estranha,
Vendo (como acontece) affeiçoadas
Muitas Nymphas do rio e da montanha;
  Com palavras mimosas e forjadas,
De solta liberdade e livre peito,
As trazia contentes e enganadas.
  Mas não querendo Amor, que deste geito
Dos corações andasse triumphando,
Em quem elle criou tão puro affeito;
  Pouco a pouco me foi de mi levando
Dissimuladamente ás mãos de quem
Toda esta injuria agora está vingando.
            AGRARIO.
  Deste teu caso, Almeno, eu sei mui bem
O princípio e o fim; que Nemoroso
Contado tudo isso, e mais, me tem.
  Mas (quero-to dizer) se este enganoso
Amor he tão usado a desconcertos,
Que nunca amando fez pastor ditoso;
  Ja que nelle estes casos são tão certos,
Porqu'os estranhas tanto, que de mágoa
Te chorão valles, montes e desertos?
  Vejo-te estar gastando em viva fragoa,
E juntamente em lagrimas; vencendo
A grã Sicilia em fogo, o Nilo em ágoa.
  Vejo que as tuas cabras, não querendo
Gostar as verdes hervas, se emmagrecem,
As tetas aos cabritos encolhendo.
  Os campos, que co'o tempo reverdecem,
Os olhos alegrando descontentes,
Em te vendo, parece, se entristecem.{176}
  De
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/250]]==
<poem>
todos teus amigos e parentes,
Que lá da serra vem por consolar-te,
Sentindo na alma a pena, que tu sentes,
  Se querem de teus males apartar-te,
Deixando a choça e gado vás fugindo,
Como cervo ferido, a outra parte.
  Não vês que Amor, as vidas consumindo,
Vive só de vontades enlevadas
No falso parecer d'hum gesto lindo?
  Nem as hervas das águas desejadas
Se fartão; nem de flores as abelhas;
Nem este Amor de lagrimas cansadas.
  Quantas vezes, perdido entr'as ovelhas,
Chorou Phebo de Daphne as esquivanças,
Regando as flores brancas e vermelhas?
  Quantas vezes as asperas mudanças
O namorado Gallo t~ee chorado
De quem o tinha envolto em esperanças?
  Estava o triste amante recostado,
Chorando ao pé d'hum freixo o triste caso,
Que o falso Amor lhe tinha destinado.
  Por elle o sacro Pindo e o grão Parnaso,
Na fonte de Aganippe destillando,
Se fazião de lagrimas hum vaso.
  O intonso Apollo o vinha alli culpando,
A sobeja tristeza perigosa
Com asperas palavras reprovando.
  Gallo, porqu'endoudeces? que a formosa
Nympha, que tanto amaste, descobrindo
Por falsa a fé, que dava, e mentirosa;
  Por as Alpinas neves vai seguindo{
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/251]]==
<poem>
177}
Outro bem, outro amor, outro desejo;
Como inimiga, emfim, de ti fugindo.
  Mas o misero amante, que o sobejo
Mal empregado amor lhe defendia
Ter de tamanha fé vergonha ou pejo;
  Da falsífica Nympha não sentia
Senão que o frio do gelado Rheno
Os delicados pés lhe offenderia.
  Ora se tu vês claro, amigo Almeno,
Que d'Amor os desastres são de sorte,
Que para matar basta o mais pequeno,
  Porque não pões hum freio a mal tão forte,
Qu'em estado te põe, que sendo vivo,
Ja não se entende em ti vida nem morte?
            ALMENO.
  Agrario; se do gesto fugitivo,
Por caso de fortuna desastrado,
Algum'hora deixar de ser captivo;
  Ou sendo para as Ursas degradado,
Adonde Boreas t~ee o Oceano
Co'os frios Hyperboreos congelado;
  Ou donde o filho de Climene insano,
Mudando a côr das gentes totalmente,
As terras apartou do trato humano;
  Ou se ja por qualquer outro accidente
Deixar este cuidado tão ditoso,
Por quem sou de ser triste tão contente;
  Este rio, que passa deleitoso,
Tornando para traz, irá negando
Á natureza o curso pressuroso.
  As cabras por o mar irão buscando{178}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/252]]==
<poem>
Seu pasto; e andar-se-hão por a espessura
Das hervas os delfins apascentando.
  Ora se tu vês, n'alma quão segura
Deste amor tenho a fé, para qu'insistes
Nesse conselho e prática tão dura?
  Se de tua porfia não desistes,
Vae repastar teu gado a outra parte;
Qu'he dura a companhia para os tristes.
  Huma só cousa quero encomendarte,
Para repouso algum de meu engano,
Antes que o tempo, emfim, de mi te aparte:
  Que s'esta fera, qu'anda em traje humano,
Por a montanha vires ir vagando,
De meu despôjo rica e de meu dano,
  Comos vivos espritos inflammando
O ar, o monte e a serra, que comsigo
Continuamente leva namorando;
  Se queres contentar-me, como amigo,
Passando, lhe dirás: Gentil pastora,
Não ha no mundo vício sem castigo.
  Tornada em puro marmore não fôra
A fera Anaxarete, se amoroso
Mostrára o rosto angelico algum'hora.
  Foi bem justo o castigo rigoroso:
Porém quem te ama (Nympha) não queria
Nódoa tão feia em gesto tão formoso.
            AGRARIO.
  Tudo farei, Almeno, e mais faria
Por algum dia ver-te descansado,
Se s'acabão trabalhos algum dia.
  Mas bem vês como Phebo ja empinado{
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/253]]==
<poem>
179}
Me manda que da calma iniqua e crua,
Recolha em algum valle o manso gado.
  Tu nessa phantasia falsa e nua,
Para engano maior de teu perigo,
Não queres companhia mais que a sua.
  Vou-me d'aqui, e fique Deos comtigo;
E ficarás melhor acompanhado.
            ALMENO.
  Elle comtigo vá, como comigo
Me fica acompanhando o meu cuidado.
ECLOGA III.
INTERLOCUTORES.
ALMENO e BELISA.
Passado ja algum tempo que os amores
D'Almeno, por seu mal, erão passados,
Porque nunca Amor cumpre o que promette;
Entr'huns verdes ulmeiros apartado,
Regando por o campo as brancas flores,
Em lagrimas cansadas se derrete:
Quando a linda pastora, que compete
Co'o monte em aspereza,
Co'o prado em gentileza,
Por quem o pastor triste endoudecia,
Por a praia do Tejo
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/254]]==
<poem>
discorria{180}
A lavar a beatilha e o trançado:
O sol ja consentia
Que sahisse da sombra o manso gado.
  Ja acordado daquelle pensamento
Que tão desacordado sempre o teve,
Vio por acêrto o bem, que incerto tinha.
E porque donde amor a mais se atreve,
Alli mais enfraquece o entendimento,
Não lhe soube dizer o que convinha.
Como homem que á aprazada briga vinha,
A quem de fóra engana
A confiança humana,
E despois, vendo o rosto a quem resiste,
Treme, e teme o perigo e não insiste;
Ja se arrepende, a audacia lhe fallece:
Dest'arte o pastor triste
Ousa, receia, esforça e enfraquece.
  E tendo assi ja attonito o sentido,
Cometteo com furor desatinado,
E tirou da fraqueza coração.
Comettimento foi desesperado:
Qu'huma só salvação t~ee hum perdido,
Perder toda a esperança á salvação.
As mágoas, que passárão, se dirão:
Mas as qu'ella dizia,
Lembrando-lhe que via
As águas murmurar do Tejo amenas,
Remetto a vós, ó Tagides Camenas;
Qu'eu, de mágoa, não posso dizer tanto;
Porqu'em tamanhas penas
Me cansa a penna, e a dor m'impede o canto.{
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/255]]==
<poem>
181}
            BELISA.
  Que alegre campo e praia deleitosa!
Quão saudosa faz esta espessura
A formosura angelica e serena
Da tarde amena! Quão saudosamente
A sesta ardente abranda, suspirando,
De quando em quando o vento alegre e frio!
No fundo rio os mudos peixes sáltão;
Os ceos se esmaltão todos d'ouro e verde,
E Phebo perde a fôrça da quentura.
Por a espessura levão, passeando,
O gado brando ao som das çanfoninas,
Pizando as finas e formosas flores,
Os Guardadores, que cantando o gesto
Formoso e honesto das pastoras qu'amão,
Por o ar derramão mil suspiros vãos.
Hum louva as mãos, louva outro os raios bellos,
Outro os cabellos d'ouro, em som suave:
E a amorosa ave leva o contraponto.
Mas oh que conto e saudosa historia
Que na memoria aqui se m'offerece!
Se não m'esquece, ja deste lugar
Ouvi soar os valles algum dia,
E respondia o eco o nome em vão
N'hum coração, Belisa retumbando.
Estou cuidando como o tempo passa,
E quão escaça he toda alegre vida;
E quão comprida, quando he triste e dura.
Nesta 'spessura longo tempo amei:
Se m'enganei com quem do peito amava,
Não me pezava de ser enganada.{182}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/256]]==
<poem>

Fui salteada, emfim, d'hum pensamento,
Que hum movimento tinha casto e são.
Conversação foi fonte dest'engano
Que, por meu dano, entrou com falsa côr.
Porque o amor na Nympha, que he segura,
Entra em figura de vontade honesta.
Mas que me presta agora dar desculpa?
Pois se houve culpa, foi do firme amor
Só, n'hum pastor, que nunca sol nem l~ua,
Ou serra alg~ua, desde o Ibero ao Indo,
Outro tão lindo vírão, tão manhoso.
Nest'amoroso estado, e fé que tinha
Nest'alma minha tão secretamente,
Vivi contente, amando e encobrindo.
Elle fingindo mentirosos danos,
Que são enganos que não custão nada;
Tendo alcançada ja no entendimento
A fé e intento meu só nelle pôsto;
(Que logo o rosto mostra os corações,
E as affeições co'os olhos se praticão
Que mais publicão muito, que palavras)
Com suas cabras sempre á parte vinha,
Ond'eu mantinha os olhos do desejo.
Tu, manso Tejo, e tu, florído prado,
Do mais passado, emfim, que aqui não digo,
Sereis, m'obrigo, testimunho certo;
Pois descoberto vos foi tudo e claro.
Oh tempo avaro! oh sorte nunca igual!
Quão grande mal quereis á humana gente!
Porque hum contente estado assi trocastes?
Vós me tirastes do meu peito isento{183}

</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/257]]==
<poem>
O pensamento honesto e repousado,
Ja dedicado ao côro de Diana;
Vós n'huma ufana vida me puzestes,
E alli quizestes que gozasse o dano
Do doce engano, que se chama amor,
Com cujo error passava o tempo ledo:
E vós tão cedo me tirais hum bem,
Que Amor ja tem impresso n'alma minha,
Despois qu'a tinha envolta em esperanças;
E com lembranças tristes me deixais?
Mal me pagais a fé que sempre tive.
Mas assi vive quem sem dita nace.
Mas ja a face alegre o sol esconde;
E não responde alguem a tantas mágoas,
Senão as ágoas, que dos olhos sahem.
As sombras cahem; vão-se as alimarias,
Fartas das várias hervas, seu caminho;
Buscão seu ninho os passaros sem dono:
Ja por o sono esquecem o comer.
Quero esquecer tambem tão doce historia,
Pois he memoria que traz mor cuidado.
Isto he passado; e se me deo paixão,
Os dias vão gastando o mal e o bem;
E não convém querer-me magoar
Do qu'emendar não posso ja com mágoas.
Nas claras ágoas deste rio brando,
Que vão regando o valle matizado,
Este trançado lavar quero emfim;
Que ja de mim m'esqueço co'a lembrança
Desta mudança, qu'esquecer não sei:
Bem qu'eu verei mudar a opinião,{184}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/258]]==
<poem>

Pois homens são: a quem o esquecimento
Depressa faz mudar o pensamento.
            ALMENO.
  Se a vista não m'engana a phantasia,
Como ja m'enganou mil vezes, quando
Minha ventura enganos me soffria;
  Parece-me, que vejo estar lavando
Huma Nympha algum véo no claro Tejo,
Que se m'está Belisa figurando.
  Não póde ser verdade isto que vejo;
Que facilmente aos olhos se figura
Aquillo que se pinta no desejo.
  Oh acontecimento, qu'a ventura
Me dá para mor damno! Esta he, certo;
Que não he d'outrem tanta formosura.
  Se poderei fallar-lhe de mais perto?
Mas fugir-me-ha. Não póde ser; qu'o rio
Para acolá não t~ee caminho aberto.
  Oh temor grande! oh grande desvario,
Qu'a voz m'impede, e a lingua negligente
Assi m'está tornando, e o peito frio!
  De quanto me sobeja, estando ausente,
Que para lhe fallar sempre imagino,
Tudo me falta quando estou presente.
  Oh aspecto suave e peregrino!
Pois como? tão asinha assi s'esquece
Huma fé verdadeira, hum amor fino?
            BELISA.
  Oh altas semideas! pois padece
Em vosso rio a honra delicada
De quem tamanha fôrça não merece:{
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/259]]==
<poem>
185}
  Ou seja por vós, Nymphas, preservada;
Ou em arvore alguma, ou pedra dura
Me deixai velozmente transformada.
            ALMENO.
  Ah Nympha! não te mudes a figura:
Nem vós, deosas, queirais qu'eu seja parte
De se mudar tão rara formosura.
  Porqu'a quem falta a voz para fallar-te,
E a quem falta o despejo da ousadia,
Tambem faltarão mãos para tocar-te.
            BELISA.
  Que me queres, Almeno, ou que porfia
Foi a tua tão aspera comigo?
Minha vontade não to merecia.
  Se com amor o fazes, eu te digo,
Qu'amor, que tanto mal me faz em tudo,
Não póde ser amor, mas inimigo.
  Não es tu de saber tão falto e rudo,
Que tão sem siso amasses, como amaste.
            ALMENO.
Onde viste tu, Nympha, amor sisudo?
  Porque ja não te lembra que folgaste
Com meus tormentos tristes, e algum'hora
Com teus formosos olhos ja m'olhaste?
  Como t'esquece ja (gentil pastora)
Que folgavas de ler nos freixos verdes
O que de ti 'screvia cada hora?
  Porqu'a memoria tão á pressa perdes
Do amor que me mostravas, qu'eu não digo,
Se o vós, ó altos montes, não disserdes?
  E como te não lembras do perigo,{186}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/260]]==
<poem>
A que só por m'ouvir t'aventuravas,
Buscando horas de sesta, horas d'abrigo?
  Co'a maçãa da discordia me tiravas;
Qu'a Venus, qu'a ganhou por formosura,
Tu, como mais formosa, lha ganhavas.
  E escondendo-te logo na'spessura,
Hias fugindo, como vergonhosa
Da namorada e doce travessura.
  Não era esta a maçãa d'ouro formosa
Com qu'encoberta assi d'astucia tanta
Cydippe s'enganou por cubiçosa,
  Nem a que o curso teve d'Atalanta;
Mas era aquella, com que Galathêa
O pastor captivou, como elle canta.
  Se más tenções puzerão nodoa fêa
Em nosso firme amor, d'inveja pura,
Porque pagarei eu a culpa alhea?
  Quem desta fé, quem dest'amor não cura,
Nunca teve sujeito o coração;
Queo firme amor com a alma eterna dura.
            BELISA.
  Mal conheces, Almeno, huma affeição;
Que s'eu desse amor tenho esquecimento,
Meus olhos magoados to dirão.
  Mas teu sobejo e livre atrevimento,
E teu pouco segredo, descuidando,
Foi causa deste longo apartamento.
  Vês as Nymphas do Tejo, que mudando
Me vão ja pouco a pouco, o claro gesto
N'outra mais dura fórma traspassando.
  Hum só segredo meu te manifesto:{
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/261]]==
<poem>
187}
Que te quiz muito em quanto Deos queria;
Mas de pura affeição, d'amor honesto.
  E pois de teus descuidos e ousadia
Nasceo tão dura e aspera mudança,
Fólgo; que muitas vezes to dizia.
  Fica-te embora, e perde a confiança
De ver-me nunca mais, como ja viste:
Que assi se desengana huma esperança.
            ALMENO.
  Oh duro apartamento! oh vida triste!
Oh nunca acontecida desventura!
Pois como, Nympha? assi te despediste?
  Assi s'ha d'ir tornando (ah sorte dura!)
Nesta sylvestre e aspera rudeza
Tão branda e excellente formosura?
  Tua nunca entendida gentileza,
E teus membros assi se transformárão,
Negando-se-lhe a propria natureza?
  Dest'arte os teus cabellos se tornárão
(Deixando ja seu preço ao ouro fino)
Em fôlhas, que a côr t~ee do que negárão?
  S'este consentimento foi divino,
Consinta-me tambem que perca a vida,
Antes que a mais m'obrigue o desatino.
  Pois se a fortuna sempre embravecida
Em meu tormento tanto se desmede,
Não viva mais hum'alma tão perdida.
  E vós, feras do monte, pois vos pede
Minha pena o remedio derradeiro,
Fartae ja de meu sangue vossa sêde.
  E vós, pastores rudos deste outeiro,{188}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/262]]==
<poem>
Porque a todos, emfim, se manifeste
Que cousa he amor puro e verdadeiro;
  Á sombra deste funebre cypreste
Me fareis hum sepulcro sem arrêo
De boninas que o prado ameno veste.
  As desusadas musicas de Orphêo
Aqui me cantareis; e desta sorte
Não haverei inveja ao mausolêo.
  E porqu'a minha cinza se conforte,
Em vossos metros doces e suaves
As exequias direis de minha morte.
  Alli responderão as altas aves,
Não módulas no canto nem lascivas,
Mas de dor ora roucas, ora graves.
  Não correrão as águas fugitivas,
Alegres por aqui, mas saudosas,
Que pareça que vem dos olhos vivas.
  Nascerão por as praias deleitosas
Os asperos abrolhos em lugar
Dos roxos lirios, das pudicas rosas.
  Não trarão as ovelhas a pastar
De redor do sepulcro os guardadores;
Pois nada comerião de pezar.
  Virão os Faunos, guarda dos pastores,
Se morri por amores, perguntando;
Responderão os ecos: Por amores.
  Dos que por aqui forem caminhando,
Hum epitaphio triste se lerá,
Qu'esteja minha morte declarando.
  E no tronco de huma árvore estara,
N'huma rude cortiça pendurado{189}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/263]]==
<poem>
Escripto co'huma fouce, e assi dirá:
  Almeno fui, pastor de manso gado,
Em quanto o consentio minha ventura,
De Nymphas e pastores celebrado.
  Se algum dia, por caso, na 'spessura
Se perder o amor e a affeição,
Tirem a pedra desta sepultura,
  E em figura de cinza os acharão.
ECLOGA IV.
INTERLOCUTORES.
FRONDOSO e DURIANO.
Cantando por hum valle docemente
Descião dous pastores, quando Phebo
No reino Neptunino se escondia:
De idade cada qual era mancebo;
Mas velho no cuidado, e descontente
Do que lh'elle causava parecia.
O que cada hum dizia
Lamentando seu mal, seu duro fado,
Não sou eu tão ousado,
Que o pretenda cantar sem vossa ajuda:
Porque se a minha ruda
Frauta deste favor vosso for dina,
Posso escusar a fonte Caballina.
  Em vós tenho Helicon, ten
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/264]]==
<poem>
ho Pegáso;{190}
Em vós tenho Calliope e Thalia;
E as outras sete irmãas, co'o fero Marte;
Em vós deixou Minerva sua valia;
Em vós estão os sonhos do Parnaso;
Das Pierides em vós s'encerra a arte.
Com qualquer pouca parte,
Senhora, que me deis d'ajuda vossa
Podeis fazer qu'eu possa
Escurecer ao sol resplandecente:
Podeis fazer que a gente
Em mi do grão poder vosso s'espante;
E que vossos louvores sempre cante.
  Podeis fazer que cresça d'hora em hora
O nome Lusitano, e faça inveja
A Esmirna, que d'Homero s'engrandece.
Podeis fazer tambem que o mundo veja
Soar na ruda frauta o que a sonora
Cithara Mantuana só merece.
Ja agora me parece,
Que podem começar os meus pastores
A cantar seus amores.
Porqu'inda que presentes não estejão
As qu'elles ver desejão,
Mudança de lugar, menos d'estado,
Não muda hum coração do seu cuidado.
  Ja deixava dos montes a altura,
E nas salgadas ondas s'escondia
O sol, quando Frondoso e Duriano,
Ao longo d'hum ribeiro, que corria
Por a mais fresca parte da verdura
Claro, suave e manso, todo o ano,{191}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/265]]==
<poem>

Lamentando seu dano,
Vinhão ja recolhendo o manso gado.
Hum estava callado,
Em quanto hum pouco o outro se queixava;
Apos elle tornava
A dizer de seu mal o que sentia;
E em quanto este fallava, aquelle ouvia.
  Vinhão-se assi queixando aos penedos,
Aos sylvestres montes e á aspereza,
Que quasi de seus males se doião.
Alli as pedras perdião a dureza;
Alli correntes rios estar quedos,
Promptos ás suas queixas, parecião.
Somente as que podião
Estes males curar, pois os causavão,
O ouvido lhes negavão,
Por perderem de todo a esperança:
Mas elles, que mudança
D'amor com tantos damnos não fazião,
Com ellas fallando inda, assi dizião:
            FRONDOSO.
  Isto he o que aquella verdadeira
Fé, com que t'amei sempre, merecia,
Sem nunca te deixar hum só momento?
Como (cruel Belisa) t'esquecia
Hum mal, cuja esperança derradeira
Em ti só tinha pôsto o seu assento?
Não vias meu tormento?
Não vias tu a fé, com que t'amava?
Porque não t'abrandava
Est'amor, que me tu tão mal pagaste?{192}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/266]]==
<poem>
Mas pois ja me deixaste
Co'a esperança de ti toda perdida,
Perca, quem te perdeo, tambem a vida.
            DURIANO.
  Se os males que por ti tenho soffrido
(Oh Silvana, em meus males tão constante!)
Quizesses que algum'hora te dissera;
Inda que, qual durissimo diamante,
Fôra o teu cruel peito endurecido,
Creio que a piedade te movêra.
Ja agora em branda cera
Os montes são tornados e os penedos;
E os rios, qu'estão quedos,
Sentírão meus suspiros, minhas queixas.
Tu só, cruel, me deixas,
Qu'es mais, que montes e penedos, dura,
E fugitiva mais qu'a fonte pura.
            FRONDOSO.
  Ond'está aquella falla, que sohia
Só com seu doce tom, que me chegava,
Avivar-me os espiritos cansados?
Onde está o olhar brando, que cegava
O sol resplandecente ao meio dia?
Ond'estão os cabellos delicados,
Que ao vento espalhados
Escurecião o ouro, a mi matavão;
E a quantos os olhavão,
Causavão tambem novos accidentes?
Porque, cruel, consentes
Qu'outro goze da gloria a mi devida?
Perca, quem te perdeo, tambem a vida.{
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/267]]==
<poem>
193}
            DURIANO.
  Nenhum bem vejo, que a meu mal espere,
Se não fosse esperar que morte dura
Me venha emfim a dar a saudade.
Vejo faltar-me a tua formosura;
A vontade me diz que desespere,
Contradiz-me a razão esta vontade.
Diz qu'em huma beldade,
Em quem mostrou o cabo a natureza,
Não ha tanta crueza,
Qu'hum tão constante amor desprezar queira,
E fé tão verdadeira;
Mas tu, que de razão jamais curaste,
Porqu'era dar-me a vida, ma tiraste.
            FRONDOSO.
  A quem, Belisa ingrata, t'entregaste?
A quem déste, cruel, a formosura,
Qu'a meu tormento só, só se devia?
Porqu'huma fé deixaste, firme e pura?
Porque tão sem respeito me trocaste
Por quem só nem olhar-te merecia?
O bem que t'eu queria,
E que não perderei se não por morte,
Não he de maior sorte,
Que quanto a cega gente estima e preza?
Só a tua crueza
Foi nisto contra mi endurecida.
Perca, quem te perdeo, tambem a vida.
            DURIANO.
  Levaste-me o meu bem n'hum só momento;
Levaste-me com elle juntamente{194}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/268]]==
<poem>

De cobrá-lo jamais a confiança:
Deixaste-me em lugar delle sómente
Huma contínua dor, hum grão tormento,
Hum mal, de que não póde haver mudança.
Tu, qu'eras a esperança
Dos males que, cruel, tu me causaste,
De todo te trocaste,
Com Amor conjurada em minha morte.
Porém se a minha sorte
Consente que por ti seja causada,
Morte não foi mais bem-aventurada.
            FRONDOSO.
  Não nasceste d'alguma pedra dura;
Não te gerou alguma Tigre Hyrcana;
Não te criaste, não, entre a rudeza,
A quem, cruel, sahiste deshumana?
No ceo formada foi tal formosura,
Onde a mesma brandura he natureza.
Pois, logo, essa dureza
Donde teve princípio, ou a tomaste?
Porque, dura, engeitaste
De hum verdadeiro amor, que tu bem vias,
A fé, que conhecias,
Por outra de ti nunca conhecida?
Perca, quem te perdeo, tambem a vida.
            DURIANO.
  Vai-se co'o seu pastor o manso gado,
Porque d'amor entende aquella parte,
Qu'a natureza irracional lh'ensina.
O rustico leão sem algum'arte,
Do natural instincto só ensinado,{
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/269]]==
<poem>
195}
Aonde sente amor, logo se inclina.
E tu, que de divina
Não tens menos queVenus e Cupido,
Porque sequer co'o ouvido
Hum amor verdadeiro não soccorres?
Ah! porque te não corres
De que o leão te vença em piedade,
Se não te vence Venus na beldade?
            FRONDOSO.
  A mi não me faltava o que se preza
Entre os celestes deoses, que formárão
A tua mais que humana formosura:
Em mi os voluntarios ceos faltárão;
Em mi se perverteo a natureza
D'huma cruel formosa creatura.
Mas, pois, Belisa dura,
Que do mais alto ceo a nós vieste,
E em teu peito celeste
Hum tal contrário pôde aposentar-se,
Não he contrário achar-se
Tamanha fé tão mal agradecida.
Perca, quem te perdeo, tambem a vida.
            DURIANO.
  Por ti a noite escura me contenta;
Por ti o claro dia m'aborrece;
Abrolhos me parecem frescas flores;
A doce Philomela m'entristece:
Todo contentamento m'atormenta
Com a contemplação de teus amores;
As festas dos pastores,
Que podem alegrar toda a tristeza.{196}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/270]]==
<poem>
Em mi tua crueza
Faz que o mal cada hora vá dobrando.
Oh cruel! até quando
Ha de durar em ti tal pensamento,
E a vida em mi, que soffre tal tormento?
            FRONDOSO.
  Fugiste d'hum amor tão conhecido,
Fugiste d'huma fé tão clara e firme;
E seguiste a quem nunca conheceste,
Não por fugir d'amor, mas por fugir-me;
Pois bem vês, quanto eu tinha merecido
Esse amor que tu a outro concedeste.
A mi não me fizeste
Alguma sem razão; que bem conheço
Que tanto não mereço:
Fizeste-a áquelle bem firme e sincero
Que sabes que te quero,
Em lhe tirar a gloria merecida.
Perca, quem te perdeo, tambem a vida.
            DURIANO.
  Cresce cad'hora em mi mais o cuidado,
E vejo qu'em ti cresce juntamente
Cad'hora mais de mi o esquecimento.
Oh Silvana cruel! porque consente
Esse peito formoso e delicado
Que s'esqueça hum tão aspero tormento?
Tal aborrecimento
Merece hum capital teu inimigo:
Não eu, que só comtigo
Estou contente, e nada mais desejo,
Se algum'hora te vejo.{
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/271]]==
<poem>
197}
Tu es hum só meu bem, huma só gloria,
Que nunca se m'aparta da memoria.
            FRONDOSO.
  Olhos, que vírão tua formosura;
Vida, que só de ver-te se sostinha;
Vontade, qu'em ti'stava transformada;
Alma, qu'ess'alma tua em si só tinha,
Tão unida comsigo, quanto a pura
Alma co'o debil corpo está liada;
E que agora apartada
Te vê de si com tal apartamento,
Qual será seu tormento?
Qual será aquelle mal que t~ee presente?
Maior he que o que sente
O triste corpo em última partida.
Perca, quem te perdeo, tambem a vida.
            DURIANO.
  Regendo em outro tempo o manso gado,
Tangendo a minha frauta nestes vales,
Passava a doce vida alegremente:
Não sentia o tormento destes males;
Menos sentia o mal deste cuidado;
Que tudo então em mi era contente.
Agora não somente
Desta vida suave m'apartaste.
Mas outra me deixaste,
Que ao duro mal que sinto ca no peito,
Me t~ee ja tão affeito,
Que sinto ja por gloria a minha pena,
Por natureza o mal, que me condena.{198}
            FRONDOSO.
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/272]]==
<poem>
  Juntamente viver compridos anos,
Os fados te concedão, que quizerão
Ajuntar-te com tal contentamento.
Pois os bens para ti todos nascêrão,
Nascêrão para mi todos os danos,
Logra tu tua gloria, eu meu tormento.
Nenhum apartamento,
Belisa, me fara deixar d'amar-te;
Porqu'em nenhuma parte
Poderás nunca estar sem mi hum'hora.
Consente pois agora,
Qu'em pago desta fé tão conhecida,
Perca, quem te perdeo, tambem a vida.
            DURIANO.
  Veja-t'eu, crua, amar quem te desame,
Porque saibas que cousa he ser amada
De quem tanto aborreces e desprezas.
Veja-t'eu ser ainda desprezada
De quem tu mais desejas que te ame,
Porque sintas em ti tuas cruezas,
Sintas tuas durezas,
E quanto póde o seu cruel effeito
N'hum coração sujeito.
Porqu'em sentindo o mal, qu'eu sinto agora,
Espero qu'algum'hora
Faça o teu proprio mal de mi lembrar-te,
Ja que não pôde o meu nunca abrandar-te.
            FRONDOSO.
  Mil annos de tormento me parece
Cad'hora que sem ti, sem esperança{
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/273]]==
<poem>
199}
Vivo de poder mais tornar a ver-te.
A vida só me dá tua lembrança;
A vida sôbre tudo m'entristece;
A vida antes perdêra, que perder-te.
Mas eu se, por querer-te
Hum bem qu'em ti só t~ee seu firme assento,
Padeço tal tormento,
Qu'esperará de ti quem te desama,
Ou quem ao menos te ama
Com algum falso amor, ou fé fingida?
Perca, quem te perdeo, tambem a vida.
            DURIANO.
  Então, cruel, verás se te merece
Com tamanho desprêzo ser tratada
Hum'alma, que d'amar-te só se preza.
Mas como poderás ser desprezada,
Se o menos qu'em ti fóra se parece,
Póde abrandar dos montes a aspereza?
Porque se a natureza
Em ti o remate poz da formosura,
Qual será a pedra dura,
Qu'a teu valor resista brandamente?
Que fará a fraca gente,
Se ao humano parecer não se defende,
E a mesma Venus deosa ao teu se rende?
            FRONDOSO.
  E pois fé verdadeira, amor perfeito,
Tormento desigual e vida triste,
Junta com hum contino soffrimento,
E hum mal, em que o mal todo, emfim, consiste,
Não puderão mover teu duro peito{200}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/274]]==
<poem>

A mostrares sequer contentamento
De ver o meu tormento;
Antes tudo soberba desprezaste,
E a outrem t'entregaste
Por nada me ficar em qu'esperasse,
Senão quando acabasse
A vida, a pezar meu, ja tão comprida,
Perca, quem te perdeo, tambem a vida.
            DURIANO.
  Longo curso de tempo, e apartado
Lugar a hum coração, que vive entregue,
Não podem apartar de seu intento.
Porque foges, cruel, a quem te segue?
Não vês que teu fugir he escusado,
Pois sem mim não estás hum só momento?
Nenhum apartamento,
Inda que a alma do corpo se m'aparte,
Poderá ja ausentar-te
Dest'alma triste, que continuamente
Em si te t~ee presente.
Torna, cruel; não fujas a quem t'ama:
Vem a dar vida, ou morte a quem te chama.
  A noite escura, triste e tenebrosa,
Que ja tinha estendido o negro manto,
D'escuridade a terra toda enchendo,
Fez pôr a estes pastores fim ao canto,
Que ao longo da ribeira deleitosa
Vinhão seu manso gado recolhendo.
Se aquillo, qu'eu pretendo
Deste trabalho haver, que he todo vosso,
Senhora, alcançar posso;{201}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/275]]==
<poem>
Não será muito haver tambem a gloria
E o louro da victoria,
Que Virgilio procura e haver pretende,
Pois o mesmo Virgilio a vós se rende.
ECLOGA V.
Falla hum só pastor.
A quem darei queixumes namorados
Do meu pastor queixoso e namorado?
A branda voz, suspiros magoados,
A causa porque n'alma he magoado?
De quem serão seus males consolados?
Quem lhe fara devido gasalhado?
Só vós, Senhor famoso e excellente,
Especial em graças entr'a gente.
  Por partes mil lançando a phantasia,
Busquei na terra estrella, que guiasse
Meu rudo verso; em cuja companhia
A santa piedade sempre andasse
Luzente e clara, como a luz do dia,
Que o rudo engenho meu m'allumiasse;
E em vossas perfeições, grão Senhor, vejo
Ainda além cumprido o meu desejo.
  A vós se dem, a quem junto se ha dado
Brandura, mansidão, engenho e arte,
D'hum esprito divino acompanhado,{202}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/276]]==
<poem>

Dos sobrehumanos hum em toda parte:
Em vós as graças todas se hão juntado;
De vós em outras partes se reparte.
Sois claro raio, sois ardente chama;
Gloria e louvor do tempo, azas da fama.
  Em quanto eu apparelho hum novo esprito,
E voz de cysne tal, que o mundo espante,
Com que de vós, Senhor, em alto grito
Louvores mil em toda parte cante;
Ouvi o canto agreste em tronco escrito,
Entre vaccas e gado petulante:
Que quando tempo for, em melhor modo
Ha de m'ouvir por vós o mundo todo.
  As vãas querellas, brandas e amorosas,
Sejão de vós tratadas brandamente;
Verdades d'alma pouco venturosas,
Sahidas com suspiro vivo e ardente:
Em vossas mãos s'entregão valerosas,
Porqu'ao futuro vivão entr'a gente,
Chorando sempre a antigua crueldade,
Para mover as almas a piedade.
  Ja declinava o sol contra o Oriente,
E o mais do dia ja era passado,
Quando o pastor co'o grave mal que sente,
Por dar allívio em parte a seu cuidado,
Se queixa da pastora docemente,
Cuidando de ninguem ser escutado.
Eu que o escutei, n'huma árvore escrevia
As mágoas que cantou; e assi dizia:
  Ou tu do monte Pindaso es nascida,
Ou marmor te pario formosa e dura:{203}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/277]]==
<poem>

Não póde ser que fosse concebida
Dureza tal de humana creatura:
Ou quiçá qu'es em pedra convertida,
Ou tens da natureza tal ventura;
Porém não fez em ti boa impressão,
Só de marmor tornar-te o coração.
  Ja, ja com minha voz rouca e chorosa
A gente mais austera moveria;
E com esta corrente lagrimosa
Os tigres em Hyrcania amansaria.
Se não fosses cruel, quanto formosa,
Meu longo suspirar t'abrandaria:
Mas suspirar por ti, mas bem querer-te,
Que fazem senão mais endurecer-te?
  Se deixáras vencer a crueldade
De tua tão perfeita formosura;
Hum pouco víras bem minha vontade,
E víras a fé minha, limpa e pura,
Por ventura, que houveras ja piedade,
E tivera eu quiçá melhor ventura:
Mas nunca achou igual tua belleza,
Se não se foi em ti tua dureza.
  Ja hum peito abrandára, que não sente,
Este meu grave mal, segundo he forte;
Se descêra do inferno ao Polo ardente,
A piedade movêra a propria morte.
Pois se huma gotta d'agua brandamente
Torna brando hum penedo, duro e forte,
Tantas lagrimas minhas não farão
Hum pequeno sinal n'hum coração?
  Na testa fonte viva tenho d'ágoa,{204}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/278]]==
<poem>
Que por meus olhos tristes se derrama;
E no peito de fogo viva fragoa,
Que tudo em si converte, tudo inflama:
Amor em de redor, por maior mágoa,
Voando mais accende a ardente chama.
Se queres ver se ardentes são seus tiros,
Ólha se são ardentes meus suspiros.
  Quando grita e rumor grande se sente,
Porque fogo se ateia em casa, ou torre,
De pura compaixão vai toda a gente,
Ágoa ao fogo gritando; e cada hum corre.
Dest'arte anda o meu peito em chamma ardente,
E com a ágoa dos olhos se soccorre;
Que quem me abraza, outra ágoa me defende,
Porque com esta o fogo mais se accende.
  Quando vemos que sahe lá no Oriente
O sol, seu curso antigo começando,
Formoso, intenso, puro, refulgente,
O monte, o campo, o mar, tudo alegrando;
Quando de nós s'esconde no Ponente,
E em outras terras sahe, allumiando,
Sempre, em quanto vai dando ao mundo giro,
Chórão por ti meus olhos, e eu suspiro.
  Caminha o dia todo o caminhante,
E, emfim, lhe chega a noite, em que descança;
Trabalha na tormenta o navegante,
Traz-lhe a clara manhãa feliz bonança;
Recobra o fructo fertil e abundante
Da terra o lavrador, se nella cança:
Mas eu de meu cuidado e mal tão forte
Tormento espero só, só crua morte.{205}
  D'ouvir
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/279]]==
<poem>
meu damno as rosas matutinas,
Condoidas se cerrão, s'emmurchecem;
Com meu suspiro ardente as côres finas
Perdem o cravo, o lyrio, e não florecem.
Co'a roxa aurora as pallidas boninas,
Em vez de se alegrarem, s'entristecem:
Deixão seu canto Progne e Philomena;
Que mais lhes doe, que a sua, a minha pena.
  Responde o monte concavo a meus ais,
E tu como aspid, cerras-lhe o ouvido;
Os indomitos feros animais,
Sem humano sentir, mostrão sentido:
Mas em ti minhas dores desiguais
Nunca movem o peito endurecido:
Por muito que te chame, não respondes;
E quanto mais te busco, mais t'escondes.
  Naquella parte donde costumavas
Apascentar meus olhos e teu gado;
Alli donde mil vezes me mostravas,
Qu'era o pastor de ti mais desejado,
Vezes mil te busquei, por ver se davas
Algum breve descanso a meu cuidado.
Busco-te em vão no valle, em vão no monte,
Qual o ferido cervo busca a fonte.
  Este lugar de ti desamparado,
Com cujas sombras frias ja folgaste,
Agora triste, escuro he ja tornado;
Que todo o bem comtigo nos levaste.
Eras tu nosso sol mais desejado;
Não temos luz, despois que nos deixaste.{206}

</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/280]]==
<poem>
Torna, meu claro sol; torna, meu bem:
Qual he o Josué que te detém?
  Despois que deste valle t'apartaste,
Não pasce ja algum gado, com seccura;
Seccou-se o campo, des que lhe negaste
Dos teus formosos olhos a luz pura;
Seccou-se a fonte, donde ja te olhaste,
Quando menos, que agora, aspera e dura;
Nega sem ti a terra, ouvindo gritos,
Ás cabras pasto e leite a os cabritos.
  Sem ti, doce cruel minha inimiga,
A clara luz, escura me parece:
Este ribeiro, quando a dor m'obriga,
Com meu chorar por ti contino crece.
Não ha fera, a que a fome não persiga;
Algum prado sem ti ja não florece:
Cegos estão meus olhos; nada vem,
Porque não podem ver seu claro bem.
  O campo, como d'antes, não s'esmalta
De boninas azues, brancas, vermelhas;
Falta ágoa ao pasto, e sentem d'ágoa a falta
As candidas pacíficas ovelhas:
Bem conhecem tambem que o ceo lhes falta
As doces e solícitas abelhas:
Com lagrimas, que manão dos meus olhos,
A terra nos produz duros abrolhos.
  Torna pois ja, pastora, ao nosso prado,
Se restituir-lhe queres a alegria:
Alegrarás o valle, o campo, o gado,
E aquelle espelho teu da fonte fria.
Torna, torna, meu sol tão desejado,{
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/281]]==
<poem>
207}
Faras a noite escura, claro dia;
E alegra ja esta vida magoada,
Em que só tua ausencia he Parca irada.
  Vem, como quando o raio transparente
Deste nosso horizonte, qu'escondido,
Deixa hum certo temor á mortal gente,
Causado de ver o Orbe escurecido;
E quando torna a vir claro e luzente,
Alegra o mundo todo entristecido:
Que assi he para mi tua luz pura
Claro sol, como a ausencia noite escura.
  Mas tu 'squecida ja do bem passado,
E do primeiro amor, que me mostraste,
Teu coração de mi t~ees apartado,
Não menos que do valle t'apartaste.
Não te quero eu a ti mais qu'a meu gado?
Não sou eu mesmo aquelle que tu amaste?
Onde o meu êrro viste, ou desvario,
Que pôde merecer-te hum tal desvio?
  Bem vês que por Amor se move tudo,
E que delle não ha quem seja isento;
O mais simple animal, mais baixo e rudo,
O demais levantado pensamento:
Debaixo d'ágoa fria o peixe mudo
Tambem lá t~ee d'ardor seu movimento.
Pois as aves, que no ar cantando vôão,
Não menos humas d'outras s'affeiçôão.
  A musica do leve passarinho
Que sem concêrto algum sólta e derrama,
De hum raminho saltando a outro raminho,
Mostra que por amor suspira e chama.{208}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/282]]==
<poem>
Em quanto no secreto amado ninho
Não acha aquelle, que só busca e ama,
No canto, a nós alegre, triste chora,
Porque teme perder a quem namora.
  A fera, que he mais fera, e o leão,
Sempre acha outro leão, sempre outra fera,
Em quem possa empregar huma affeição,
Que o conversar no peito seu lhe gera:
Tambem sabe sentir sua paixão,
Tambem suspira, morre, desespera;
Acena, salta, brada, ferve e geme;
E não temendo a nada, a Amor só teme.
  O cervo, qu'escondido e emboscado,
Temendo ao cobiçoso caçador,
Está na selva, monte, bosque, ou prado,
Alli donde anda e vive, vive amor.
De temor e d'amor acompanhado,
Com justa causa amor t~ee e temor:
Temor a quem para feri-lo vinha,
Amor a quem ja, ja ferido o tinha.
  Pois se a fera insensivel, que não sente,
Tambem sente d'Amor a frecha dura,
Porqu'a ti não t'abranda hum fogo ardente,
Que procede da tua formosura?
Porqu'escondes a luz do sol á gente,
Que nesses olhos trazes bella e pura?
Mais pura, mais suave, mais formosa,
Que, lyrio, que jasmim, que cravo e rosa.
  Póde ser, se me visses, que sentiras
Ver liquidar hum peito em triste pranto;
E bem pouco fizeras, se me viras,{
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/283]]==
<poem>
209}
Pois eu só por te ver suspiro tanto:
As mágoas, os suspiros, que m'ouviras
Te puderão mover a grande espanto,
A dor, a piedade, a sentimento,
E a mais, que para mais he meu tormento.
  Os pensamentos vãos, que o vento leve:
O suspirar em vão tambem ao vento;
Hum esperar á calma, á chuva, á neve,
E nunca poder ver-te hum só momento;
Tormento he, que somente a ti se deve.
E se póde inda haver maior tormento,
Quem te vio, e se vê de ti ausente,
Muito mais passará mais levemente.
  Faz mossa a pedra dura em sua dureza
Com a ágoa que lhe toca brandamente;
Abranda o ferro forte a fortaleza,
Se lhe toca tambem o fogo ardente:
Em ti só desconheço a natureza;
Que, a ser de pedra ou ferro totalmente,
Ja teu peito cruel fôra desfeito
Das ágoas e das chammas do meu peito.
  Quando a formosa Aurora mostra a fronte,
Alegra toda a terra, vendo o dia;
Quando Phebo apparece no horizonte,
Manifesta tambem grande alegria;
Contente pasce o gado ao pé do monte,
Contente a beber vai na fonte fria:
Está tudo contente, alegre tudo;
Eu só, só pensativo, triste e mudo.
  Se ja d'alma e do corpo tens a palma,
E do corpo sem alma não tens dó,{210}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/284]]==
<poem>

Ha dó do corpo só, qu'está sem alma,
Pois sem alma não vive o corpo só.
Nas chammas e no ardor, no fogo e calma,
Na affeição, no querer eu sou hum só:
Não acharás vontade tão captiva;
Nem outra como a tua tão esquiva.
  Se te apartas por não ouvir meu rôgo,
Onde estiveres te hei d'importunar:
Postoque vás por ágoa, ferro, ou fogo,
Comtigo em toda parte m'has d'achar;
Que o fogo em que ardo, e a ágoa em que m'affogo,
Emquanto eu vivo for, hão de durar;
Pois o nó, que m'enlaça, he de tal sorte,
Que não se ha de soltar em vida, ou morte.
  Neste meu coração sempr'estaras,
Emquanto a alma estiver com elle unida:
Tambem o meu esprito possuirás
Despois que a alma do corpo for partida.
Por mais e mais que faças, não faras
Que deixe o amar-te nesta e ess'outra vida:
Impossivel sera qu'eternamente
Ausente estês de mim, estando ausente.
  Cá m'acompanhará vossa memoria,
Se o rio, que se diz do esquecimento,
Da minha não borrar tão longa historia,
Tão grave mal, tão duro apartamento.
Até quando vos veja entrar na gloria,
Viverei n'hum contino sentimento:
E ainda então vereis (s'isto ser possa)
Esta minh'alma lá servir a vossa.
  Aqui com grave dor, com triste accento,{
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/285]]==
<poem>
211}
Deo o triste pastor fim a seu canto:
Co'o rosto baixo e alto o pensamento,
Seus olhos começárão novo pranto:
Mil vezes parar fez no ar o vento,
E apiedou no ceo o coro santo:
As circumstantes sylvas s'inclinárão,
Condoidas das mágoas qu'escutárão.
  Com h~ua mão na face, reclinado,
Tão enlevado em sua dor estava,
Que, como em grave somno sepultado,
Não via que ja o sol no mar entrava.
Berrando andava em roda o manso gado,
Que o seguro curral ja desejava:
Nas covas as raposas, e em seus ninhos
Se recolhem os simples passarinhos.
  Ja sôbre hum sêcco ramo estava pôsto
O mocho com funesto e triste canto:
Ao som delle o pastor ergueo o rosto,
E vio a terra envolta em negro manto.
Quebrando então o fio de seu gôsto,
E o fio não quebrando de seu pranto,
Por não se descuidar de seu cuidado,
Levou para os curraes o manso gado.{212}

</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/286]]==
<poem>
ECLOGA VI
INTERLOCUTORES
AGRARIO, Pastor. ALICUTO, Pescador.
A rustica contenda desusada
Entr'as Musas dos bosques, das areias,
De seus rudos cultores modulada;
  A cujo som attonitas e alheias
Do monte as brancas vaccas estiverão,
E do rio as saxatiles lampreias;
  Desejo de cantar. Que se movêrão
Os troncos ás avenas dos pastores,
E ja sylvestres brutos suspendêrão.
  Não menos o cantar dos pescadores
As ondas amansou do fundo pégo,
E fez ouvir os mudos nadadores.
  E se por sustentar-se o moço cego
Nos trabalhos agrestes a alma inflama,
O que he mais proprio no ocio e no socêgo;
  Mais maravilhas dando á voz da fama,
No mesmo mar undoso e vento frio
Brazas roxas accende a roxa flama.
  Vós, ó ramo d'hum Tronco alto e sombrio,
Cuja frondente coma ja cobrio
De Luso todo o gado e senhorio;
  E cujo são madeiro ja sahio
A lançar a forçosa e larga rede
No mais remoto mar que o m
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/287]]==
<poem>
undo vio;{213}
  E vós, cujo valor tão alto excede,
Que, a cantá-lo com voz alta e divina,
A fonte do Parnaso move a sêde;
  Ouvi da minha humilde çanfonina
A harmonia, que vós ja levantais
Tanto, que de vós mesmo a fazeis dina.
  Mas se agora que affabil m'escutais,
Não ouvirdes cantar com alta tuba
O que vos deve o mundo, que dourais;
  E se os Reis avós vossos, que de Juba
Os Reinos debellárão, não ouvis
Que nas azas do excelso verso suba;
  Se não sabem as frautas pastoris
Pintar de Toro os campos semeados
D'armas e corpos fortes e gentis;
  Por hum Moço animoso sustentados,
Contra o indomito Rei de toda Hespanha,
Contra a fortuna vãa e injustos fados:
  Hum Moço, cujo esfôrço, brio e manha,
Do Olympo fez descer o duro Marte,
E dar-lhe a quinta esphera, que acompanha;
  Se não sabem cantar a menor parte
Do sapiente peito e grão conselho,
Que pôde, ó Reino illustre, descansar-te;
  Peito, que ao douto Apollo faz, vermelho,
Deixar o sacro Monte e as nove Irmãas,
Porque a elle se affeitem como a espelho;
  Saberão bem cantar, em nada vãas,
D'Alicuto as contendas e d'Agrario;
Hum d'escamas coberto, outro de lãas.
  Vereis, Duque sereno, o estylo vário,{214}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/288]]==
<poem>
A nós novo, mas n'outro mar cantado
De hum, que só foi das Musas secretario:
  O pescador Sincero, que amansado
T~ee o pégo de Prochyta co'o canto
Por as sonoras ondas compassado.
  Deste seguindo o som, que póde tanto,
E misturando o antigo Mantuano,
Façamos novo estylo, novo espanto.
  Partira-se do monte Agrario insano
Para onde a fôrça só do pensamento
Lh'encaminhava o lasso pêzo humano.
  Embebido em hum longo esquecimento
De si, e do seu gado e pobre fato,
Apos hum doce sonho e fingimento,
  Rompendo as sylvas horridas do mato,
Vai por cima d'outeiros e penedos,
Fugindo, emfim, de todo humano trato.
  Ante os seus olhos leva os olhos ledos
Da branca Dinamene, qu'enverdece
Só co'o meneo valles e rochedos.
  Ora se ri comsigo, quando tece
Na phantasia algum prazer fingido;
Ora falla; ora mudo s'entristece.
  Qual a tenra novilha, que corrido
T~ee montanhas fragosas e espessuras,
Por buscar o cornigero marido;
  E cansada nas humidas verduras
Cahir se deixa ao longo d'hum ribeiro,
Ja quando as sombras vem cahindo escuras;
  E nem co'a noite ao valle seu primeiro
Se lembra de tornar, como sohia,{215}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/289]]==
<poem>

Perdida por o bruto companheiro:
  Tal Agrario chegado, emfim, se via
Onde o grão pégo horrisono suspira
N'huma praia arenosa, humida e fria.
  Tanto que ao mar estranho os olhos vira,
Tornando em si, de longe ouvio tocar-se
De douta mão não vista e nova lira.
  Fez-lhe o som desusado desviar-se
Para onde mais soava, desejando
D'ouvir e conversar, e de provar-se.
  Muito não tinha proseguido, quando
Em a concavidade d'hum penedo,
Que pouco a pouco fôra o mar cavando,
  Topou hum pescador, que prompto e quedo,
N'huma pedra assentado, brandamente
Tangendo, faz o mar sereno e ledo.
  Mancebo era d'idade florecente,
Pescador grande do alto, conhecido
Por o nome de toda humida gente:
  Alicuto se chama: que perdido
Era por a formosa Lemnoria;
Nympha que t~ee o mar ennobrecido.
  Por ella as redes lança noite e dia;
Por ella as ondas tumidas despreza;
Por ella soffre o sol e a chuva fria.
  Co'o seu nome mil vezes a braveza
D'irados ventos amansou co'o verso,
Que remove das rochas a dureza.
  E agora em som de voz, suave e terso,
Está seu nome aos ecos ensinando
Por estylo do agreste som diverso.{216}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/290]]==
<poem>
  Ouvindo Agrario, attonito, affroxando
Da phantasia hum pouco seu cuidado,
Suspenso esteve os numeros notando.
  Mas Alicuto, vendo-se estorvado
Por hum pastor da musica divina,
O rosto levantou bem socegado,
  E disse assi: Vaqueiro da campina,
Que vens buscar ás arenosas praias,
Onde a bella Amphitrite só domina?
  Que razão ha, pastor, para que saias
A este nosso escamoso e vil terreno
Dos teus floridos myrtos e altas faias?
  Pois s'agora o mar vês brando e sereno,
E estender-se estas ondas por a areia,
Amansadas das mágoas, com que peno,
  Logo verás o como desenfreia
Eolo o vento por o mar undoso,
De sorte que Neptuno se receia.
  Responde Agrario: Oh musico e amoroso
Pescador! eu não venho a ver o lago
Bravo e quieto, ou vento brando e iroso;
  Mas o meu pensamento, com que apago
As flammas ao desejo, me trazia
Sem ouvir e sem ver, suspenso e vago:
  Até que a tua angelica harmonia
M'acordou, vendo o som, com que aqui cantas
A tua perigosa Lemnoria.
  Mas se de ver-me cá no mar t'espantas,
Eu m'espanto tambem do estylo novo
Com que as ondas horrisonas quebrantas.
  Porém se com verdade o louvo e approvo,{217}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/291]]==
<poem>
Desejo de o provar contra o sylvestre
Antigo pastoril, qu'eu mal renóvo.
  E tu, que no tocar pareces mestre,
Bem julgarás se ha clara differença
Entr'o canto maritimo e o campestre.
  Não ha (disse Alicuto) em mi detença:
Alvorôço antes ha, por mais que veja
Que a tua confiança só me vença.
  Mas, porque saibas que nenhuma inveja
Os pescadores temos aos pastores
Do som que pelo mundo se deseja,
  Toma a lyra na mão, que os moradores
Do vitreo fundo vendo estou juntar-se
Para ouvir nossos rusticos amores.
  Bem vês por essa praia presentar-se
Nas conchas vária côr á vista humana;
E o mar vir por entr'ellas e tornar-se.
  Socegada do vento a furia insana,
Encrespa brandamente o ameno rio,
Que seu licor aqui mistura e dana.
  Estepenedo concavo e sombrio,
Que de cangrejos ves estar coberto,
Nos dá abrigo do sol, quieto e frio.
  Tudo nos mostra, emfim, repouso certo,
E nos convida ao canto, com que os mudos
Peixes sahem ouvindo ao ar aberto.
  Assi se desafião estes rudos
Poetas, nos officios discrepantes;
Nos engenhos porém subtis e agudos.
  Eis ja mil companheiros circumstantes{218}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/292]]==
<poem>
Estavão para ouvir, e apparelhavão
Ao vencedor os premios semelhantes.
  As bem sonantes lyras se tocavão;
Agrario começava, e da harmonia
Os pescadores todos s'admiravão;
E dest'arte Alicuto respondia.
            AGRARIO.
  Vós semicapros deoses do alto monte,
Faunos longevos, Satyros, Sylvanos;
E vós, deosas do bosque e clara fonte,
E dos troncos que vivem largos anos;
Se tendes prompta hum pouco a sacra fronte
A nossos versos rusticos e humanos,
Ou me dae ja a capella de loureiro,
Ou penda a minha lyra d'hum pinheiro.
            ALICUTO.
  Vós humidas deidades deste pégo,
Tritões ceruleos, Próteo, com Palemo;
Vós, Nereidas do sal em que navego,
Por quem do vento as furias pouco temo;
Se ás vossas sacras aras nunca nego
O congro nadador na pá do remo,
Não consintais, que a musica marinha
Vencida seja aqui na lyra minha.
            AGRARIO.
  Pastor se fez hum tempo o moço louro,
Que do sol as carretas move e guia;
Ouvio o rio Amphriso a lyra d'ouro,
Que o seu claro inventor alli tangia.
Io foi vacca; Jupiter foi touro:
Mansas ovelhas junto d'ágoa fria{219}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/293]]==
<poem>

Guardou formoso Adonis; e tornado
Em bezerro Neptuno foi ja achado.
            ALICUTO.
  Pescador ja foi Glauco, e deos agora
He do mar; e Protêo Phocas guarda.
Nasceo no pégo a deosa, que he senhora
Do amoroso prazer, que sempre tarda.
Se foi bezerro o deos, que cá se adora,
Tambem ja foi delfim. Se se resguarda,
Vê-se que os moços pescadores erão,
Que o escuro enigma ao primo Vate derão.
            AGRARIO.
  Formosa Dinamene, se dos ninhos
Os implumes penhores ja furtei
Á doce Philomela; e dos murtinhos
Para ti (fera!) as flores apanhei;
E se os crespos madronhos nos raminhos
Com tanto gôsto ja te presentei,
Porque não dás a Agrario desditoso
Hum só revolver d'olhos piedoso?
            ALICUTO.
  Para quem trago d'ágoa em vaso cavo
Os curvos camarões vivos saltando?
Para quem as conchinhas ruivas cavo
Na praia, os brancos buzios apanhando?
Para quem de mergulho no mar bravo
Os ramos de coral vou arrancando,
Senão para a formosa Lemnoria,
Que co'hum só riso a vida me daria?
            AGRARIO.
  Quem vio o desgrenhado e crespo Inverno,{220}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/294]]==
<poem>
D'atras nuvens vestido, horrido e feio,
Ennegrecendo á vista o ceo superno,
Quando os troncos arranca o rio cheio;
Raios, chuvas, trovões, hum triste inferno,
Que ao mundo mostra hum pallido receio:
Tal o amor he cioso, a quem suspeita
Que outrem de seus trabalhos se aproveita.
            ALICUTO.
  Se alguem vê, se alguem ouve o sibilante
Furor lançando flammas e bramidos,
Quando as pasmosas serras traz diante,
Horrido aos olhos, horrido aos ouvidos:
A braços derribando o ja nutante
Mundo, co'os elementos destruidos:
Assi me representa a phantasia
A desesperação de ver hum dia.
            AGRARIO.
  Minha alva Dinamene, a primavera,
Que os deleitosos campos pinta e veste,
E rindo-se huma côr aos olhos gera,
Qu'em terra lhes faz ver o Arco celeste;
As aves, as boninas, a verde hera,
E toda a formosura amena agreste
Não he para os meus olhos tão formosa,
Como a tua, que abate o lirio e rosa.
            ALICUTO.
  As conchinhas da praia, que presentão
A côr das nuvens, quando nasce o dia;
O canto das Sirenas, que adormentão;
A tinta, que no Murice se cria;
O navegar por ondas, que se assentão{221}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/295]]==
<poem>
Co'o brando bafo, com que o sol s'enfria,
Não podem, Nympha minha, assi aprazer-me,
Como o ver-te, se em tanto chego a ver-me.
            AGRARIO.
  A deosa, que na Lybica lagôa
Em fórma virginal appareceo,
Cujo nome tomou, que tanto sôa,
Os olhos bellos t~ee da côr do ceo:
Garços os t~ee; mas huma, que a corôa
Das formosas do campo mereceo,
Da côr do campo os mostra graciosos.
Quem diz, que não são estes os formosos?
            ALICUTO.
  Perdoem-me as deidades; mas tu, diva,
Que no liquido marmore es gerada,
A luz dos olhos teus, celeste e viva,
T~ees por vício amoroso atravessada:
Nós petos lhe chamâmos; mas quem priva
De luz o dia, baixa e socegada
Traz a dos seus nos meus, qu'eu o não nego;
E com toda esta luz sempre estou cego.
  Assi cantavão ambos os cultores
Do monte e praia, quando os atalhárão;
A hum pastores, a outro pescadores.
  E quaesquer a seu Vate coroárão
De capellas idoneas e formosas,
Que as Nymphas lhes tecêrão e ordenárão:
  A Agrario de murtinhos e de rosas;
A Alicuto d'hum fio de torcidos
Buzios, e conchas ruivas e lustrosas.
  Estavão n'ágoa os peixes embebidos{
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/296]]==
<poem>
222}
Com as cabeças fóra; e quasi em terra
Os musicos delfins estão perdidos.
  Julgavão os pastores que na serra
O cume e preço está do antigo canto;
Que quem o nega, contra as Musas erra.
  Dizem os pescadores que outro tanto
T~ee na sonora frauta, quanto teve
O monte pastoril da antigua Manto.
  Mas ja o pastor d'Admeto o carro leve
Molhava n'ágoa amara, e compellia
A recolher a roxa tarde e breve:
  E foi fim da contenda o fim do dia.
ECLOGA VII.
INTERLOCUTORES.
SATYRO I. SATYRO II.
As doces cantilenas, que cantavão
Os semicapros deoses, amadores
Das Napêas, que os montes habitavão,
  Cantando escreverei: que se os amores
A sylvestres deidades maltratárão,
Ja ficão desculpados os pastores.
  Vós, Senhor Dom Antonio, aonde achárão
O claro Apollo e Marte hum ser perfeito,
Em quem suas altas mentes
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/297]]==
<poem>
assinárão;{223}
  Se o meu engenho he rudo, ou imperfeito,
Bem sabe onde se salva, pois pretende
Levantar com a causa o baixo effeito.
  Em vós minha fraqueza se defende;
Em vós instilla a fonte do Pegáso,
O que o meu canto por o mundo estende.
  Vêdes que as altas Musas do Parnaso
Cantando vos estão na doce lira,
Tomando-me das mãos tão alto caso.
  Vêdes o louro Apollo, que me tira
De louvar vossa estirpe, e escurece
O que a vosso louvor meu canto aspira.
  Ou por me haver inveja me fallece,
Ou por não ver soar na frauta ruda
O que a sonora cithara merece.
  Pois sei dizer, Senhor, que a lingua muda,
Em quanto Progne triste o sentimento
Da corrompida irmãa co'o pranto ajuda;
  E em quanto Galatea ao manso vento
Sólta os cabellos louros da cabeça,
E Tityro nas sombras faz assento;
  E em quanto flor aos campos não falleça,
(Se não recebeis isto por affronta)
Fará que o Douro e o Ganges vos conheça.
  E ja que a lingua nisto fica pronta,
Consenti que a minha Ecloga se conte,
Em quanto Apollo as vossas cousas conta.
  No cume do Parnaso, duro monte,
De sylvestre arvoredo rodeado,
Nasce huma crystallina e clara fonte,
  Donde hum manso ribeiro derivado,{224}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/298]]==
<poem>
Por cima d'alvas pedras mansamente
Vai correndo suave e socegado.
  O murmurar das ondas excellente
Os passaros incita, que cantando
Fazem o verde monte mais contente.
  Tão claras vão as ágoas caminhando,
Que no fundo as pedrinhas delicadas
Se podem, huma e huma, estar contando.
  Não se verão em derredor pizadas
De fera ou de pastor, que alli chegasse,
Porque de espesso monte são vedadas.
  Herva se não verá, que alli criasse
O monte ameno, triste ou venenosa,
Senão que lá no centro as igualasse.
  O roxo lirio a par da branca rosa,
A cecem pura, a flor que dos amantes
A côr t~ee magoada e saudosa;
  Alli se vem os myrtos circumstantes
Que a crystallina Venus encobrírão,
Escondendo-a dos Faunos petulantes.
  Hortelãa, mangerona, alli respirão,
Onde nem frio inverno, ou quente estio,
As murchárão jamais, ou sêccas vírão.
  Dest'arte vai seguindo o curso o rio,
O monte inhabitado e o deserto
Sempre com verdes árvores sombrio.
  Aqui huma linda Nympha, por acêrto
Perdida da fragueira companhia,
A quem este lugar era encoberto;
  Cansada ja da caça vindo hum dia,
Quiz descansar á sombra da floresta,{225}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/299]]==
<poem>
E tirar nas mãos alvas d'ágoa fria.
  A novidade vendo manifesta
Do sítio, e como as árvores co'o vento
As calmas defendião da alta sesta;
  Das aves o lascivo movimento,
Qu'em seus modulos versos occupadas
As azas dão ao doce pensamento;
  Tendo notado tudo, ja passadas
As horas da grã sesta, se tornou
A buscar as irmãas, no centro, amadas.
  Despois que largamente lhes contou
Do não visto lugar, que perto estava
E tanto por extremo a namorou,
  Que ao outro dia fossem, lhes rogava,
A lavar-se em aquella fonte amena,
Que tão formosas ágoas destillava.
  Ja tinha dado hum giro a luz serena
Do grão pastor d'Admeto, e já nascia
Aos ditosos amantes nova pena,
  Quando as formosas Nymphas em porfia
Para o lugar do monte caminhavão,
Rompendo a manhãa roxa, alegre e fria.
  D'huma os louros cabellos s'espalhavão
Por o formoso collo sem concêrto,
E com mil nós suaves s'enlaçavão;
  Outra, levando o collo descoberto,
Por mais despejo em tranças os atára,
Havendo por pezado o desconcêrto.
  Dinamene e Ephyre, a quem topára
Nuas Phebo em hum rio, e encobrirão
Seus delicados corpos n'ágoa clara;{226}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/300]]==
<poem>
  Syrinx e Nyse, que das mãos fugírão
Do Tegêo Pan; Amanta e mais Elisa,
Destras nos arcos mais que quantas tirão;
  A linda Daliana, com Belisa,
Ambas vindas do Tejo, que como ellas
Nenhuma tão formosa as hervas pisa:
  Todas estas angelicas donzellas,
Por o viçoso monte alegres hião,
Quaes no ceo largo as nitidas estrellas.
  Mas dous sylvestres deoses, que trazião
O pensamento em duas occupado,
A quem de longe mais que a si querião,
  Não lhes ficava monte, valle ou prado,
Nem árvore, por onde quer que andavão,
Que não soubesse delles seu cuidado.
  Quantas vezes os rios, que passavão,
Detiverão seu curso ouvindo os danos,
Que aos proprios duros montes magoavão!
  Quantas vezes amor de tantos anos
Abrandára qualquer vontade isenta,
Se em Nymphas corações houvesse humanos!
  Mas quem de seu cuidado se contenta,
Offereça de longe a paciencia;
Que Amor d'alegres mágoas se sustenta.
  Que o moço Idalio quiz nesta sciencia
Que se compadecessem dous contrários.
Diga-o quem tiver delle experiencia.
  Indo os deoses, emfim, por montes varios
Exercitando os olhos saudosos,
Ao crystallino rio tributarios;
  Topárão dos pés alvos e mimosos{227}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/301]]==
<poem>

As pizadas na terra conhecidas,
As quaes forão seguindo pressurosos.
  Mas, encontrando as Nymphas que despidas
Na clara fonte estavão, não cuidando
Que d'alguem fossem vistas ou sentidas,
  Deixárão-se estar quedos, contemplando
As feições nunca vistas, de maneira
Que vissem, sem ser vistos, espreitando.
  Porém a espessa mata, mensageira
Da cilada dos dous, com o rugido
Dos raminhos d'huma aspera aveleira,
  Manifestando claro o escondido,
Todas huma alta grita levantárão,
Que o monte pareceo ser destruido.
  Assi despidas logo se lançárão
Por a espessura tão ligeiramente,
Que mais que o proprio vento então voárão.
  Qual o bando das pombas quando sente
A rapida aguia, cuja vista pura
Não obedece ao sol resplandecente;
  Empresta-lhe o temor da mortedura
Nas azas novo alento; e, não parando,
Veloz rompendo o ar fugir procura:
  Dest'arte as deosas timidas, deixando
De seu despôjo os ramos carregados,
Nuas por entre as sylvas vão voando.
  Mas os amantes ja desesperados,
Que para as alcançar, emfim, se vião
Nada dos pés caprinos ajudados;
  Com amorosos brados as seguião.
Hum só (que o outro ainda não tomava{228}

</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/302]]==
<poem>
Folego algum da pressa que trazião)
Desta sorte sentido se queixava:
            SATYRO PRIMEIRO.
  Ah Nymphas fugitivas,
Que só por não usar humanidade
Os perigos dos matos não temeis!
Para que sois esquivas?
Qu'inda de nós não peço piedade,
Mas dessas alvas carnes, que offendeis.
Ah Nymphas! não vereis
Que Eurydice, fugindo dessa sorte,
Fugio do amante, e não da fera morte?
Tambem assi Eperie foi mordida
Da vibora escondida.
Olhae a serpe occulta na herva verde.
Quem o rigor não perde, perde a vida.
  Que tigre, ou que leão,
Que peçonhenta fera venenosa,
Ou qu'inimigo, emfim, vos vai seguindo?
D'hum brando coração,
Que preso dessa vista rigorosa
De si para vós foge, andais fugindo?
Olhae que em gesto lindo
Não se consente peito tão disforme;
Se não quereis que tudo se conforme.
Posto que bellas n'ágoa vos vejais,
Á fonte não creais,
Que vos traz enganadas por vingança
Desta nossa esperança, que enganais.
  Mas ah! que não consinto
Que nem palavra minha vos offenda,{
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/303]]==
<poem>
229}
Postoque me desculpe a mágoa pura.
Digo, Nymphas, que minto:
Pois mal póde haver nunca quem pretenda
Negar-vos essa rara formosura.
Se amor de tanta dura
Por tanto mal tão pouco bem merece,
Não estranheis, minh'alma se endoudece:
Que se doudices falla d'improviso
Sem tento e sem aviso,
Queira Deos, que dureza tão crescida
Me não prive da vida além do siso.
  Cousas grandes e estranhas
Por o mundo t~ee feito e faz natura,
Que a quem vos não vio, Nymphas, muito espantão.
Nas Libycas montanhas
As Scitales são feras, de pintura
Tão singular, que só co'a vista encantão.
As hienas levantão
A voz tão natural á voz humana,
Que a quem as ouve, facilmente engana.
E vós (ó gentis feras) cujo aspeito
O mundo t~ee sujeito,
Tendes de natureza juntamente
A vista e voz de gente, e fero o peito.
  Das amorosas leis,
Com que liga natura os corações,
Andais fugindo (ó Nymphas) na espessura?
Como? E não vos correis
D'haver em vós tão duras condições,
Que possão mais que a próvida natura?
Se vossa formosura{230}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/304]]==
<poem>
He sobrenatural, não he forçado
Que assi tenha tambem o peito irado:
Antes ao puro Amor, em cuja mão
Os corações estão,
Por vossa gentileza tão formosa
Lhe deveis amorosa condição.
  Amor he hum brando affeito,
Que Deos no mundo poz e a natureza,
Para augmentar as cousas que creou.
De Amor está sugeito
Tudo quanto possue a redondeza:
Nada sem este affecto se gerou.
Por elle conservou
A causa principal o mundo amado,
Donde o pae famulento foi deitado.
As cousas elle as ata e as confórma
Com o mundo, e reforma
A materia. Quem ha que não o veja?
Quanto meu mal deseja sempre fórma.
  Entre as plantas do prado
Não ha machos e femias conhecidas,
Que junto huma da outra permanece?
Não estão carregados
Os ulmeiros das vides retorcidas,
Onde o cacho enforcado amadurece?
Não vêdes que padece
Tanta tristeza a rôla por a morte
Da sua amada e unica consorte?
Pois lá no Olympo, a quantos captivou
Cupido e maltratou?{231}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/305]]==
<poem>
Melhor qu'eu o dirá a subtil donzella,
Que ja na sua téla o debuxou.
  Ah caso grande e grave!
Ah peitos de diamante fabricados,
E das leis absolutos naturais!
Aquelle amor suave,
Aquelle poder alto, que forçados
Os deoses obedecem, desprezais?
Pois quero que saibais,
Que contra o fero Amor nunca houve escudo:
Costume he seu tomar vingança em tudo.
Eu vos verei lançar em hum momento
Suspiros mil ao vento,
Lagrimas, triste pranto e nova dor
Por quem tenha outro amor no pensamento.
  Mais quizera dizer
O desditoso amante, que ajudado
Se via então da mágoa e da tristeza;
Mas foi-lho defender
O outro companheiro, como irado
Com tão disforme e aspera dureza.
Aquillo que a rudeza
D'huma sciencia agreste lh'ensinára,
Disse, qual se em tal ponto despertára
D'horrendo sonho com pezado grito.
O mais que alli foi dito,
Vós, montes, o direis, e vós penedos;
Qu'em vossos arvoredos anda escrito.
            SATYRO SEGUNDO.
  Nem vós nascidas sois de gente humana,
Nem foi humano o leite que mamastes,{232}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/306]]==
<poem>
Mas de alguma disforme fera Hyrcana:
Lá no Caucaso horrendo vos criastes:
Daqui trouxestes a aspereza insana;
Daqui os calidos peitos congelastes.
Sois Esphinges nos gestos naturais,
Que de humanas os rostos só mostrais.
  Se vós fostes criadas na espessura,
Onde não houve cousa que se achasse,
Agoa, pedra, arbor, flor, ave, alma, dura,
Qu'em seu passado tempo não amasse,
Nem a quem a affeição suave e pura
Nessa presente fórma não mudasse;
Porque não deixareis tambem memoria
De vós em namorada e longa historia?
  Olhae como, na Arcadia soterrando
O namorado Alpheo su'ágoa clara,
Lá na ardente Sicilia vai buscando
Por debaixo do mar a Nympha chara.
Assi tambem vereis passar nadando
Atys, que Galatêa tanto amára,
Por onde do Cyclopea grande mágoa
Converteo do mancebo o sangue em ágoa.
  Virae os olhos, Nymphas, á Erycina
Espessura; vereis alli mudar-se
Egeria, e em fonte clara e crystallina
Por a morte de Numa distillar-se.
Olhae que a triste Byblis vos ensina,
Com perder-se de todo e transformar-se
Em lagrimas, qu'emfim puderão tanto,
Que accrescentarão sempre o verde manto.
  E s'entre as claras ágoas houve amores,{233}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/307]]==
<poem>
Os penedos tambem forão perdidos.
Olhae os dous conformes amadores
Lá no monte Ida em pedra convertidos:
Lethêa, por cahir em vãos errores
De sua formosura procedidos;
Oleno, porque a culpa em si tomava,
Por escusar a pena a quem amava.
  Tomae exemplo, e vêde em Cypro aquella,
Por quem Iphis no laço poz a vida.
Tambem vereis em pedra a Nympha bella,
Cuja voz foi por Juno consumida,
E, se queixar-se quer de sua estrella,
A voz extrema só lhe he concedida.
E tu tambem, ó Daphnis, que trouxeste
Primeiro ao monte o doce verso agreste!
  Tamanho amor lhe tinha a branda amiga,
Que em inimiga, emfim, se foi tornando:
Porque outra Nympha estranha ja o sogiga,
Suas magicas hervas vai buscando.
Olhae a quanto a crua dor obriga!
Por vingar-se, assi irada transformando
O foi em pedra. Oh dura confusão!
Despois lhe pezaria; mas em vão.
  Olhae, Nymphas, as árvores alçadas,
A cuja sombra andais colhendo flores,
Como em seu tempo forão namoradas;
Do qu'inda agora o tronco sente as dores.
Vereis, entre as de fructo matizadas,
Como a côr das amoras he de amores:
O sangue dos amantes na verdura
Testimunha de Tisbe a sepultura.{234}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/308]]==
<poem>

  E lá por a odorifera Sabêa
Não vêdes que de lagrimas daquella,
Que com seu pae se junta e se recrêa,
Arabia s'enriquece, e vive della?
Lembrai-vos da verde árvore Penêa,
Que foi ja n'outro tempo Nympha bella,
E Cyparisso angelico mancebo;
Ambos verdes com lagrimas de Phebo.
  De Phrygia vêde o moço delicado
No mais alto arvoredo convertido,
Que tantas vezes fere o vento irado;
Galardão de seus erros merecido:
Pois, da alta Berecynthia sendo amado,
Por huma Nympha baixa foi perdido;
E a deosa, a quem perdeo do pensamento,
Quiz que tambem perdesse o entendimento.
  O subito furor lhe figurava
Que as árvores e os montes se cahião;
Ja dos pudicos membros se privava,
Que os horrores a tanto o constrangião;
Ja indignado no monte se lançava:
De sua morte as feras se doião.
Dest'arte perdeo Atys na espessura,
Despois de tantas perdas, a figura.
  Lembre-vos quando as gentes celebravão
Em Grecia as grandes festas de Liêo,
Onde as formosas Nymphas se juntavão,
E os sacros moradores do Licêo.
Todos em doce somno se occupavão
Por o monte, despois que anoiteceo;{235}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/309]]==
<poem>
Mas o deos do Hellesponto não dormia;
Que hum novo amor o somno lh'impedia.
  Mas ella emfim, os braços estendendo,
Em ramos se lhe forão transformando;
Em raizes os pés se vão torcendo;
E o nome Loto só lhe vai ficando.
Vêde, Napêas, este caso horrendo,
Que vos está de longe ameaçando.
Assi tambem daquella, a quem seguia
O sacro Pan, a fórma se perdia.
  Que vos direi de Filis, pois perdida
Da saudosa dor com que vivia,
Á desesperação emfim trazida
Do comprido esperar de dia em dia,
Por desatar do corpo a triste vida
Atava ao collo a cinta que trazia.
Mas o tronco sem fôlha por o monte
Rhodope abraça o lento Demophonte.
  Nas boninas, tambem vereis Jacinto,
Porquem Phebo de si se queixa em vão;
Vereis o monte Idalio em sangue tinto
Do neto de seu pae, da mãe irmão.
Chora Venus a dor do moço extinto,
Maldiz o ceo e a terra, com razão;
A terra, porque logo não se abrio;
O ceo, porque tal morte permittio.
  E tu, constante Clycie, a quem fallece
A fé de teus amores enganosos,
No louro amante, que de ti s'esquece,
S'esquecem os teus olhos saudosos.
Nenhum alegre estado permanece;{236}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/310]]==
<poem>

Que são do mundo os gostos mentirosos;
E á tua clara luz, por quem suspiras,
Ainda agora em herva os olhos víras.
  Trago-vos estas cousas á lembrança,
Porque s'estranhe mais vossa crueza
Com ver que a criação e longa usança
Vos não perverte e muda a natureza.
Dou as lagrimas minhas em fiança,
Qu'em tudo quanto está na redondeza,
Cousa d'Amor isenta, se attentais,
Em quanto vos não virdes, não vejais.
  Ja disse, que d'Amor sempre tiverão
As cousas insensiveis pena e gloria.
Vêde as sensiveis como se perdêrão.
E dir-vos-hei das aves larga historia:
As penas, qu'em su'alma se soffrêrão,
Nas azas lhes ficárão por memoria;
E aquelle altivo e leve movimento
Lhes ficou do voar do pensamento.
  O doce rouxinol e a andorinha,
Donde lhes veio o ir-se transformando,
Senão do puro amor que o Thracio tinha,
Qu'em poupa ainda a amada vai chamando?
Clama sem culpa a misera avezinha,
Que n'areia de Phasis habitando,
Do rio toma o nome; e quando clama,
Cruel á mãe, ao pae injusto chama.
  Vêde a que engeitou Pallas por fallar,
(Que dos amores he maior defeito)
E aquella, que succede em seu lugar,
Ambas aves; de amor usado effeito;{
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/311]]==
<poem>
237}
Huma, porque fugia ao deos do mar;
Outra, porque tentára o patrio leito:
E Scylla, que a seu pae poz em perigo,
Só por ser muito amiga do inimigo.
  E Pico, a quem ficárão inda as côres
Da purpura Real, que antes vestia;
Esaco, que o seguir de seus amores
O trouxe a ver tão cedo o extremo dia:
Ou vêde os dous tão firmes amadores,
Que amor aves tornou na praia fria.
Do Rei dos ventos era genro o triste;
Mas contra o fado, emfim, nada resiste.
  Estava a triste Halcyone, esperando
Com longos olhos o marido ausente;
Mas os ventos indomitos soprando,
Nas ágoas o affogárão tristemente.
Em sonhos se lh'está representando;
Que o coração preságo nunca mente:
Só do bem as suspeitas mentirão,
Mas as do mal futuro certas são.
  Ao pranto os olhos seus a triste ensaia;
Buscando o mar com elles hia e vinha:
Quando o corpo sem alma achou na praia.
Sem alma o corpo achou, que n'alma tinha!
Ó Nereidas do Egêo, consolai-a,
Pois este pio officio vos convinha.
Consolai-a; sahi das vossas ágoas;
Se consolação ha em grandes mágoas.
  Mas oh nescio de mi! qu'estou fallando
Das avezinhas mansas e amorosas?
Pois tambem teve Amor natural mando{238}
Entr'as
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/312]]==
<poem>
feras montezes venenosas.
O leão e a leoa, como, ou quando
Taes formas alcançárão temerosas?
Sabe-o da deosa Dindymene o templo,
E a que a Adonis o dava por exemplo.
  Quem fosse a mansa vacca di-lo-hia;
Mas o grão Nilo o diga, pois a adora.
Que fórma teve á Ursa, saber-se-hia
Do Pólo Boreal, onde ella mora.
O caso d'Acteon tambem diria
Em cervo transformado; e melhor fôra
Se dos olhos perdêra a vista pura,
Que em seus galgos achar a sepultura.
  Tudo isto Acteon vio na fonte clara,
Onde a si d'improviso em cervo vio:
Que quem assi dest'arte alli o topára,
Que se mudasse em cervo permittio.
Mas, como o triste Principe em si achára
A desusada fórma, se partio.
Os seus, desconhecendo-o, o vão chamando;
E, tendo-o alli presente, o vão buscando.
  Co'os olhos e co'o gesto lhes fallava;
Que a voz humana ja perdida tinha.
Qualquer delles por elle então chamava,
E a multidão dos cães contr'elle vinha.
Hum cervo acude a ver (qualquer gritava)
Acteon, donde estás? acude asinha,
Que tardar tanto he este? (repetia)
He este, he este, o eco respondia.
  Quantas cousas em vão estou fallando
(Oh Napêas esquivas!) sem que veja{
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/313]]==
<poem>
239}
O peito de diamante hum pouco brando
De quem meu damno tanto só deseja.
Pois, por mais que de mi me andais tirando,
E por mais longa emfim que a vida seja,
Nunca em mi se verá tamanha dor,
Que Amor a não converta em mais amor.
  Aqui (formosas Nymphas) vos pintei
Todo d'amores hum jardim suave;
D'ágoas, de pedras, d'árvores contei,
De flores, d'almas, feras, de huma, outra ave.
Se este amor, que no peito aposentei,
Que dos contentamentos t~ee a chave,
Por dita em tempo algum determinasse
Que de tão longos damnos vos pezasse,
  Quanto mais devagar vos contaria
De minha larga historia e não alheia?
E com quanta mais ágoa regaria,
Que o rio, de contente, a branca areia?
Novo contentamento me seria
Formar de meu cuidado a nova ideia:
E vós, gostando deste estado ufano,
Zombarieis então de vosso engano.
  Mas com quem fallo ja? que estou gritando,
Pois não ha nos penedos sentimento?
Ao vento estou palavras espalhando;
A quem as digo, corre mais que o vento.
A voz e a vida a dor m'está tirando,
E o tempo não me tira o pensamento.
Direi, emfim, ás duras esquivanças
Que só na morte tenho as esperanças.
  Aqui, sentido, o Satyro acabou,{240}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/314]]==
<poem>

Com huns soluços que a alma lhe arrancavão.
Os montes insensiveis, que abalou,
Nas ultimas respostas o ajudavão.
Então Phebo nas ágoas se encerrou
Co'os animaes que o mundo allumiavão;
E co'o luzente gado appareceo
A candida pastora por o ceo.
ECLOGA VIII.
PISCATORIA.
Sereno.
Arde por Galatêa branca e loura
Sereno pescador pobre, forçado
D'huma estrella, que quer á míngoa moura.
  Os outros pescadores t~ee lançado
No Tejo as redes: elle só fazia
Este queixume ao vento descuidado:
  Quando virá (formosa Nympha) hum dia,
Em que te possa dar a conta estreita
Desta doudice triste e vãa porfia?
  Não vês, que me foge a alma e que m'engeita,
Buscando em hum só riso d'essa boca,
Nos teus olhos azues mansa colheita?
  Se ao teu esprito alg~ua mágoa toca,
Se d'amor fica nelle huma pégada,
Que te vai, Galatêa, nesta
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/315]]==
<poem>
troca?{241}
  Dar-te-hei minh'alma: lá ma tens roubada:
Não ta demandarei: dá-me por ella
Huma só volta d'olhos descuidada.
  Se muito te parece, e minha estrella
Não consentir ventura tão ditosa,
Dou-te as azas do Amor perdidas nella.
  Que mais te posso dar, Nympha formosa,
Inda que o mar d'aljofar me cubríra
Toda esta praia leda e graciosa?
  Amansão-se ondas, quebra o vento a ira:
Minha tormenta só nunca socega;
O meu peito arde em vão, em vão suspira.
  Anda no romper d'alva a nevoa cega
Sôbre os montes d'Arrabida viçosos,
Em quanto o solar raio lhes não chega.
  Eu, vendo apparecer outros formosos
Raios, que a graça e côr ao ceo roubárão,
Se os olhos cegos vi, vejo saudosos.
  Quantas vezes as ondas se encrespárão
Com meus suspiros! quantas com meu pranto
As fiz parar de mágoa e me escutárão!
  Se na fôrça da dor a voz levanto,
E ao som do remo, que ágoa vai ferindo,
Perante a lua meu cuidado canto;
  Os maviosos delfins m'estão ouvindo;
A noite socegada; o mar callado:
Tu só foges d'ouvir-me, e te vás rindo.
  Estranhas, por ventura, o mar cercado
Da fraca rede; a barca ao vento solta;
E hum pobre pescador aqui lançado?
  Antes que o sol no ceo cerre huma volta{242}

</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/316]]==
<poem>
Se póde melhorar minha ventura,
Como a outros succede, n'ágoa envolta.
  Igual preço não he da formosura
D'ouro a areia, que o rico Tejo espraia,
Mas hum amor, que para sempre dura.
  Vejão teus olhos (bella Nympha) a praia;
Verás teu nome na mimosa areia.
Nunca sôbre elle o mar com furia saia!
  Vento algum atégora o não salteia:
Tres dias ha que escripto aqui o deixou
Amor, e o veda a toda fôrça alheia.
  Elle com suas mãos proprio ajudou
A escolher estas conchas, affirmando
Que o sol para ti só as matizou.
  Hum ramo te colhi de coral brando:
Antes que o ar lhe désse, parecia
O que de tua boca estou cuidando.
  Ditoso se o soubesse inda algum dia!
ECLOGA IX.
PISCATORIA.
Palemo.
Despois que o leve barco ao duro remo,
Onde menos das ondas se temia,
Atou o pescador pobre Palemo;
  Em quanto as negras redes estendia
Seu companheiro Alcão na branca arê
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/317]]==
<poem>
a,{243}
E Lico as longas cordas envolvia;
  De cima d'huma rocha, a qual rodêa
O mar, quebrando nella de contino,
Começou a chamar por Galatêa.
  Deixa o molle licor e crystallino,
(Dizia) ó Nympha, ja, que o sol deseja
Enxugar teu cabello d'ouro fino.
  Inda que t~ee de ti tão grande inveja,
Não temas que te queime o rosto brando:
Basta para abrandar-se que te veja.
  Não te detenhas mais, vem ja cortando
Com teu candido peito as brancas ondas,
Escumas menos brancas levantando.
  Dar-te-hei (com condição que não t'escondas
De mi lá nessas humidas moradas,
E que algum'hora, branda me respondas)
  Mil conchas n'hum cordão verde enfiadas,
Todas d'huma feição; não d'huma côr,
Pois dellas são azues, dellas rosadas.
  Indaque seja pobre pescador,
Não sei se em desprezar-me muito acertas,
Pois rico do amor teu me fez Amor.
  Para ti n'outras praias mais desertas
Irei pescar por entre pedras duras,
Que sempre verde musgo t~ee cobertas,
  As pardas ostras, onde gottas puras
De fresco orvalho, dentro endurecidas,
Não podem da cobiça estar seguras.
  Porque deixas de vir? porque duvídas?
Por ventura d'algum meu companheiro?
Inda as redes ao sol t~ee estendidas.{244}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/318]]==
<poem>
  Toda a noite pescárão, e primeiro
Querem dormir a sesta nesta praia,
Que o barco polo mar levem ligeiro.
  Eu, vigiando aqui como atalaia,
Te chamarei, até que de cansado
Hum dia desta rocha abaixo caia,
  Deixando este lugar tão infamado
Com minha morte, que dos marinheiros
Com o dedo de lá será mostrado.
  Dirão os naturaes e os estrangeiros:
Alli morreo Palemo. Ai triste historia!
Guardae a nao de alli, ventos ligeiros.
  Antes que tal succeda, vê que gloria
Alcanças com deixar aos navegantes
Da tua ingratidão esta memoria.
  Da nossa differença não te espantes:
Tu Nympha, eu pescador: Glauco, deos vosso,
Qual eu agora sou, tal era d'antes.
  Tambem eu entre as hervas achar posso
Aquella, a quem o ceo deo tal virtude,
Que muda n'outro ser este ser nosso.
  Mas este amor, qu'eu cá mudar não pude,
Inda que vá a morar lá nessas ágoas,
Não temas que a mudança em mi o mude.
  Serão as vivas ondas vivas frágoas,
Em que estarei ardendo noite e dia,
Se não tiveres dó de tantas mágoas.
  As horas naturaes da pescaria
Não vês que vão passando? Como as passas?
Quem deste passatempo te desvia?
  Ah rigorosa Nympha! ah! não me faças{
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/319]]==
<poem>
245}
Dar em vão tantos gritos: vem; iremos
Ambos a levantar as verdes naças.
  Ambos os anzoes curvos cobriremos
De mentirosas iscas, com que os peixes
A todo prazer nosso prenderemos.
  Assi d'Amor cruel nunca te queixes,
E dessa formosura as mais formosas
Nymphas do mar azul vencidas deixes;
  Que venhas (pois por ti com saudosas
Lagrimas vou gastando a vida e alma)
A tirar-me esperanças duvidosas.
  A praia está callada, o mar em calma;
Por cima desta rocha brandamente
Zephyro respirando a desencalma.
  Aqui não sinto cousa certamente
Porque deixes de vir, como sohías,
Senão, que não es tu disso contente.
  Se desgostas das grossas pescarias,
Marisco appetitoso aqui não falta,
Ja sejão luas cheias, ja vazias.
  Polos pés desta rocha dura e alta
Irei eu despegando huns como pés
D'hum pequeno animal, que nella salta.
  E vivos te darei (se delles es
Amiga) mil cangrejos vagarosos,
Que verás ir andando de revés.
  Não te darei ouriços espinhosos,
Porque te quero tanto, que receio
Qu'esses teus dedos piquem tão mimosos.
  Faz d'aqui perto o mar hum largo seio,
Onde de ameijoas lisas, sem trabalho,{246}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/320]]==
<poem>
Podemos apanhar hum cesto cheio.
  Mas além de tudo isto hum crespo galho
De vermelho coral te darei logo,
Que por dita arrastou o meu tresmalho.
  Mas ai! qu'em vão te chamo, em vão te rógo;
Que nem tu a meus rogos tens respeito,
Nem eu, por mais que grite, desaffógo.
  Hum coração em lagrimas desfeito
Como ja não te abranda? quem encerra
Crueza tal em tão formoso peito?
  Não reina Amor no mar, como na terra?
Bem sabes que mil vezes ja venceo
A Neptuno teu Rei em clara guerra.
  Sua formosa mãe onde nasceo,
Senão no proprio mar em que te banhas?
Onde Thetis por Péleo em fogo ardeo?
  Se das pedras nascesses nas montanhas,
Se com leite de tigres te criáras,
Mais duras não tiveras as entranhas.
  Apparecêras tu, e então tornáras
Logo a esconder-te, logo, se quizeras
Nas ondas, que de ti me são avaras.
  Com h~ua mostra só que de ti deras,
A vida, que me foge em não te vendo,
Co'os teus formosos olhos detiveras.
  Então víras os meus, donde correndo
De lagrimas se vem dous largos rios,
Que o mar tambem em si vai recolhendo.
  Ah nescio pescador! que desvarios
Me deixo aqui dizer! a quem os digo!
A surdas ondas ja, ja a ventos frios.{247}
  Elles e
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/321]]==
<poem>
ellas ja crescem: ja em p'rigo
O barco vejo: ai! ei-lo combatido.
Ellas e elles o levão ja comsigo.
  Olhos, que lá me tendes o sentido,
A culpa he vossa só, que me não vêdes.
Mas, pois o pescador anda perdido,
  Perca-se o barco seu, percão-se as redes.
ECLOGA X.
PISCATORIA.
Meliso.
Encheo do mar azul a branca praia
Meliso pescador de mil querellas;
Meliso, que por Lilia arde e desmaia.
  Despois que á luz da lua e das estrellas,
Sôbre dura fatexa o barco pôsto,
As redes recolheo, remos e velas:
  Que gôsto, ó Lilia, (disse) ou que desgôsto
Te move a me negar, vendo qual ando,
Teus olhos côr do ceo, teu alvo rosto?
  Se tu queres que pene desejando,
Se queres que no mar em fogo viva;
Ardendo sempre estê, sempre penando.
  Mas ólha, ó branda Lilia, (antes esquiva)
Que não merece ser tão mal tratada
Hum'alma desses olhos tão captiva.
  Vives dos meus cuidados descuidad
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/322]]==
<poem>
a:{248}
Coitado de quem traz a duvidosa
Vida no mar e terra aventurada!
  Bem podes com razão ser piedosa
Com quem não quer mor bem, que bem quererte,
Não sendo tão cruel como es formosa.
  Ora deixa ja, ingrata, deixa ver-te
A meus cansados olhos, que de tantas
Lagrimas são movidos, sem mover-te.
  Se tu me vences, e se tu m'encantas
Com tua doce falla, doce riso,
Porque foges de mi? porque te espantas?
  Lembre-te a formosura de Narciso,
E qual pago lhe deo seu desamor:
Ólha que com amor disto te aviso.
  Mas quando essa crueza tanta for,
Que mereça do ceo novo castigo,
Qual herva será digna de tal flor?
  Amor que me persegue, Amor que sigo,
Me faz d'hum grave mal andar temendo;
D'hum mal, qu'eu sinto na alma e que não digo.
  Quanto mais ledo ja te estive vendo
Aqui as mansas ondas esperando,
Que por chegar a ti vinhão correndo,
  E da molhada areia despegando
Com a candida mão roxas conchinhas,
A fórma do teu pé nella deixando?
  Daquellas, de que tu mais gôsto tinhas,
Muitas te trago aqui, postoque temo
Que menos o terás por serem minhas.
  Hum temor tal me chega a tal extremo,
Que, vencido d'hum triste esquecimento,{
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/323]]==
<poem>
249}
No mar me cahe da mão o duro remo.
  E quando a branca vela sólto ao vento,
Tão descuidado vou do fiel leme,
Que me leva a perder meu pouco tento.
  Mas quem arde por ti, quem por ti treme,
Os seus maiores riscos não receia,
Os teus que sente mais, muito mais teme.
  Despois que te não vi, (não sei que creia
Desta tardança tua e morte minha)
Sendo a lua vazia, he quasi cheia.
  O tempo, que nos gostos passa asinha,
Detem-se neste mal da saudade,
Por me dobrar a dor que d'antes tinha.
  Não desprezes, ó Lilia, huma vontade,
Que por te contentar tudo despreza,
Tudo julga, sem ti, por pouquidade.
  Se pretendes amor, ja tens certeza
Que não podes ser nunca mais amada
Dos que vencidos traz tua belleza.
  Se por ventura estás affeiçoada
A gentil parecer, a bom engenho,
A ninguem nestas partes devo nada.
  Se fazes caso d'honra, ólha que venho
De geração d'honrados pescadores;
Se de riqueza, barco e redes tenho.
  Por erros julgarás estes louvores;
E oxalá não os julgues por doudice!
Mas quem siso quer ter não tenha amores.
  E mais tudo foi pouco quanto disse,
Pondo os olhos no muito que meu fado
Nos teus, que ver desejo, quiz que visse.{250}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/324]]==
<poem>
  Aconteceo-me hum caso desusado,
(Inda que d'huma cousa n'outra salto)
Digno, por ser de amor, de ser contado.
  Pescando hontem á tarde no mar alto,
Suspenso nessa rara formosura,
A quem com mil lembranças nunca falto,
  Comecei a cantar: Lilia, mais dura
Que a mais inculta rocha rodeada
Do mar, de cujo encontro está segura;
  Mais alva que jasmins, e mais córada
Que purpureas serejas polo Maio;
Mais loura que manhãa desentrançada;
  Não vês... dizer queria que desmaio,
Quando (cousa que mal me será crida)
No mar, vencido d'hum, do barco caio?
  Alli tivera fim a triste vida,
Se d'hum brando delfim, que me escuitava,
Não fôra, por ser tua, soccorrida.
  Parece que tambem vencido estava
Do mal, de que me via andar vencido,
Quem em tamanho risco m'ajudava.
  Trouxe-me sôbre si adormecido,
Nadando ao som das ondas mansamente,
Até que me sentio em meu sentido.
  Livre deste mortal, bravo accidente,
Tal foi o espanto meu, tal meu temor,
Que d'outro me livrei escaçamente.
  Mas logo o amoroso nadador
Me poz junto do barco, que tão perto
Esteve de ficar sem pescador.
  O sol era de todo ja coberto,{
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/325]]==
<poem>
251}
Quando eu, entrando nelle, sahi fóra
Do perigo, onde tive o fim tão certo.
  Porém outro maior me cansa agora,
De que mal sahirei, se te não vir
Amanhecer aqui co'a nova aurora.
  Não póde ella tardar em descobrir
As suas louras tranças dasatadas,
Das quaes as tuas bem se podem rir.
  Pois por cima das ondas, acordadas,
As Halcyoneas ouço lamentar-se,
Do seu antigo damno inda lembradas.
  E sinto o fresco orvalho derramar-se
Mais congelado e frio; e Venus bella
Polo Oriente ja vejo levantar-se.
  Bem podes, Lilia, competir com ella,
E com Pallas e Juno em gentileza;
Em amor não, pois elle nasceo della:
  Desterrou-o de ti tua aspereza,
Que desterra de mi prazer e vida,
Deixando em seu lugar mágoa e tristeza.
  No silencio da noite, que convida
A descanso commum, tanto me cança,
Que não sei se remedio ou morte pida.
  Se tu quizesses dar-me huma esperança
De te servir de mi ou tarde, ou cedo,
Nunca me negaria o mar bonança.
  Polas inchadas ondas, que põe medo,
Eu só, sem mais ajuda, levaria
Sempre á fôrça de braço o barco quedo.
  Tão seguro por ellas andaria,
Como polo seu campo o lavrador{252}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/326]]==
<poem>

No mais quieto, claro e bello dia.
  Ólha que não ha destro pescador,
Que mais manhoso as redes desencolha,
Nem os tortos anzoes isque melhor.
  Os peixes deixarei em tua escolha:
Aquelles de que fores mais amiga,
Nunca te faltarão de fôlha a fôlha.
  Não sei, Lilia formosa, que mais diga,
Que mova amor em ti, que mova mágoa;
Sei que mágoa, e que amor a mais obriga.
  Mas antes que o sol dê naquella frágoa,
Onde meus ais dilata a triste Ecco,
Vou-me segurar mais o barco na ágoa,
  Porque de baixa mar não fique em sêcco.
ECLOGA XI.
INTERLOCUTORES.
ANZINO e LIMIANO.
Parece-me, pastor, se mal não vejo,
Que ja te vi mais ledo andar outr'hora
Nos largos campos do famoso Tejo.
            LIMIANO.
  Podia ser; que muito tempo fóra
Andei desta ribeira, patria minha,
Onde triste me vez andar agora.
  Tinha lá para mi, que a vida tinha
Mais socegada cá e ma
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/327]]==
<poem>
is segura,{253}
Entre os meus, que com gôsto a buscar vinha.
  Foi d'outro parecer minha ventura:
Discordias sós achei, e achei dureza,
Em lugar de socêgo, e de brandura.
  Achei as boas leis da natureza
Vencidas do interesse; e a gente cega,
Tanto, que mais que o sangue, o gado préza.
  Dizem que quando o mar bonança nega,
Correndo vai aquella não mor prigo,
Que á desejada terra mais se chega.
  Assi m'aconteceo a mi comigo;
Seguro sempre ao longe, sempre ledo;
Triste ao perto, e tratado como imigo.
            ANZINO.
  Sempre (podes-me crer este segredo)
Desejei de te ver; mas com desgôsto,
Inda te não quizera ver tão cedo.
  Prestando para cousas de teu gôsto,
Como camaleão não mudo côres;
Qual he meu coração, tal he meu rosto.
            LIMIANO.
  Não são logo assi, não, outros pastores,
Que de promessas vãas te fazem rico,
E nunca fructo dão: tudo são flores.
  Mas desejo saber com quem pratíco,
Porque não caia em falta, e porque entenda
A quem tamanho amor devendo fico.
            ANZINO.
  Antes que tempo nisso se dispenda,
Busquemos hum lugar mais fresco e frio,
Que da calma, que cahe, bem nos defenda.{254}
            LIMIANO.
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/328]]==
<poem>
  Vamos alli, que alli bosque sombrio
Nos dara fresco abrigo, assento o prado,
Formosa vista o valle, o monte, o rio:
  O rio, que verás tão socegado,
Que te parecerá que se arrepende
De levar ágoa doce ao mar salgado.
  Nem cabra, nem ovelha alli offende
Herva, folha, nem flor, ou ferro duro:
A planta polo ar livre se estende.
  Verás cahindo em gottas crystal puro
No vão d'huma caverna carcomida,
Por entre o musgo molle, verde-escuro.
            ANZINO.
  Quem traz á saudade a alma rendida,
A saudade busca, onde descansa;
Maso descanso della encurta a vida.
  Com tudo, quem do ceo na terra alcansa
Poder gozar-se desta liberdade,
Que mais deseja ter? que mais o cansa?
  Affirmo-te de mi esta verdade,
Que muitos valles vi, muitas ribeiras;
Mas esta me dobrou a saudade.
  Oh que viçosas murtas! que oliveiras!
Que freixos! como estão d'hera cingidos!
Quantas voltas lhes dá de mil maneiras!
  Os lirios junto d'ágoa bem nascidos
Quanta graça que t~ee entre as boninas,
Sem ordem, com mais graça, entremetidos!
  Vem encrespando as ágoas crystallinas
A branda viração; a fôlha treme;{
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/329]]==
<poem>
255}
O movimento apenas determinas.
  A rôla seu amor suspira e geme;
Escondida se queixa Philomella:
Parece que do campo inda se teme.
  Espanta a quem se atreve, ver aquella
Rocha por cima d'ágoa pendurada
Como ja se não deixa cahir nella.
  Ó ribeira do Lima, celebrada
De mil brandos espritos sempre sejas,
Sempre de brandas Nymphas povoada.
  Fujão longe de ti duras invejas;
Peçonha de pastores, morte sua:
Tudo sintas amor, tudo amor vejas.
  De dia o claro sol, de noite a lua,
Em teu favor inspirem de maneira,
Que sempre fertil seja a praia tua.
  Tornando, emfim, á prática primeira,
Por dar-te, como queres, de mi conta,
Larga ta quero dar e verdadeira.
  Apartar-te do gado leva em conta;
Que, pois com elle fica o pegureiro,
Que te detenha hum pouco, pouco monta.
  O meu nome he Anzino: fui vaqueiro
Na grã serra da Estrella, que não tive;
Não sei se natural, ou se estrangeiro.
  Hum pastor me criou, que ja não vive;
De todos por seu filho era julgado;
E eu tambem neste engano hum tempo estive.
  Até que delle soube ser achado
Em huma anzina envolto em pobres panos;
E daqui veio, que Anzino fui chamado.{256}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/330]]==
<poem>
  Neste meu desengano outros enganos
Fundou de novo a pouca dita minha,
Com que o vim a servir mais de sete annos.
  Tinha muito de seu, e mais não tinha
De filhos, que huma filha bem formosa,
Á qual por morte delle tudo vinha.
  Conversação doméstica e damnosa,
Na livre formosura e tenra idade,
Em ambos accendeu chamma amorosa.
  Como ella de mi soube esta verdade,
Com outro amor, com outros exercicios,
Nella ganhei de novo outra vontade.
  Amor mestre me fez de mil officios
Para meio do fim que desejava;
E delle sinal davão mil indicios.
  Tecia alvos cestinhos, quando andava
Com as vaccas no prado: á noite hum cheio
De fructa, outro de flores lhe levava.
  Nas mangas muitas vezes e no seio
As nozes lhe levei com as castanhas,
Quer do souto do pae, quer d'outro alheio.
  Nos intricados bosques, nas montanhas,
Por seu amor as feras perseguia,
Fôrças agora usando, agora manhas.
  Vivos os mansos cervos lhe trazia;
Vivas medrosas lebres fugitivas:
Ligeireza de pés não lhes valia.
  Mas, se lhe dava as mansas feras vivas,
Mortas lhe dava as que por natureza,
Sem domar-se, são bravas, ou esquivas.
  Certo dia achei eu n'huma aspereza,{
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/331]]==
<poem>
257}
Sem mãe, hum cervo branco e pequenino;
Trouxe-lho; ella o criou; inda hoje o préza.
  Ou ja criação seja, ou ja destino,
Tanto que não o vê, geme e suspira.
Como menos fara o triste Anzino?
  Tangia mal na frauta, mal na lira;
Despois tão bem tangia, qu'era espanto
A quem antes d'amor tanger m'ouvíra.
  Ouvia celebrar sempre em meu canto
Ulina a sua rara formosura:
(Tal nome t~ee aquella, a que amo tanto.)
  Contava-lhe meus males por figura:
Ficava eu, de medroso, frio e mudo;
Ficava ella suspensa; a historia escura.
  Assi com tal temor, com tal estudo,
Amor fui grangeando longamente,
Á conta deste amor perdendo tudo.
  Ella, dos meus desejos innocente,
O mesmo amor me tinha, tanto, digo;
Que no ser era todo differente.
  Praticava seus gostos só comigo;
Seus desgostos tambem, seus pensamentos,
Com rara graça e com saber antigo.
  Outras vezes, confusa nos intentos,
Os modos me notava, e me dizia:
Entre irmãos de que servem comprimentos?
  Eu quizera, Senhora, (respondia)
Que soubesses de mi, qu'irmão não sendo,
Não com menos amor te serviria.
  Tornou-me: Essa resposta não entendo:
O que não quiz o ceo, queres que seja?{258}
Que castellos
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/332]]==
<poem>
no vento andas fazendo?
  Se me queres ver leda, não te veja
Soltar essas palavras ociosas:
Materia mais honesta nos sobeja.
  Dizendo assi, nascião-lhe outras rosas
Naquellas proprias suas, sôbre a neve
Das suas faces mais que o sol formosas.
  Destas quebras comigo algumas teve;
Cujas fôrças amor quebrava logo
N'outra conversação mais branda e leve.
  Cresceo desta maneira o vivo fogo,
Que ardendo dentro na alma encurta a vida;
Cujo principio foi hum brinco, ou jôgo.
  Mas ella neste tempo era pedida
De muitos a seu pae em casamento;
Nova dor para mi, mortal ferida!
  Elle lhe nomeava mais de cento:
Delles paternamente lhe rogava
Hum escolhesse a seu contentamento.
  Com mil razões fingidas s'escusava,
Sendo só a razão, não ser contente;
Com que desgôsto ao pae, gôsto a mi dava.
  Estando nós por huma sesta ardente
Á sombra d'huns madronhos repousando,
Affastados da casa e mais da gente,
  Ja d'huma e d'outra cousa praticando;
Soltou com hum suspiro estas palabras:
Desde hontem para cá em mi não ando.
  Logo que nosso pae tornou das labras,
Me disse que assentára de casar-me
Com Tityro, pastor de muitas cabras.{259}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/333]]==
<poem>
  Que não buscasse causas d'escusar-me,
Como por muitas vezes ja fizera,
Pois tinha muitas mais de contentar-me.
  Que afóra esta tenção, que a sua era,
O mesmo seus parentes lhe dizião,
A quem de seus intentos conta dera.
  As ágoas, que dos olhos me corrião,
Em quanto elle me disse o que te digo,
Por mi, que fiquei muda, respondião.
  Com seu chôro abrandou ao pae amigo;
Qu'emfim, deixando-a menos magoada,
Lhe disse que fallasse isto comigo.
  Assi me disse; e que determinada
Estava a qualquer mal que lhe viesse.
Antes que ser com Tityro casada.
  Que por mais de mil cabras que tivesse,
Jamais esta vontade mudaria;
Que buscava saber, não interesse.
  E que de melhor mente casaria
Com hum qualquer pastor, pobre de gado,
Se nelle as partes visse, que em mi via.
  Por extremo de mi lhe foi louvado
O pensamento seu; e sem detença
Tal resposta lhe dei acautelado:
  Se a dar meu parecer me dás licença,
Hum pastor te darei de qualidade,
Que em nada de mi tenha differença;
  Nem de menos saber, nem mais idade;
Nas manhas outro tal, e em corpo e gesto:
Da fazenda não sei a quantidade.
  Se esse me fazes bom, daqui protesto{260}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/334]]==
<poem>
De não receber outro por marido:
Me respondia com sembrante honesto.
  Pois sabe (respondi) que ja admittido
Me tens com gôsto teu por teu esposo;
Que com dar-te-me dou o promettido.
  Não pude dizer mais, de vergonhoso,
Nem ella me deixou com ouvir tal,
Suspeitando de mi amor vicioso.
  Logo me respondeo: Ah desleal!
Ah deshonesto irmão! isso pretendes?
Mas não irmão, imigo capital.
  O ceo, que com injusto amor offendes,
Tome, cruel, de ti justa vingança,
Antes que de tamanho error t'emendes.
  Andavas-me enganando na esperança
Com esses falsos e indevidos meios
Ao sangue nosso e minha confiança?
  Fizeste verdadeiros os receios,
A que confusamente me levavas
De sombras enganosas com rodeios.
  Desejo no teu peito agasalhavas
Tão torpe, tão infame, tão alheio
Do puro amor, a que obrigado estavas?
  Não te desculpes, não; que ja não creio
Lagrimas, nem palavras, nem desculpas
De quem imaginou caso tão feio.
  Timido respondi: De que me culpas?
Se ouvido me não dás, não tens razão;
Acaba de me ouvir o fim das culpas.
  T~ee-me, Ulina, por teu, não por irmão:
Se me não queres crer esta verdade,{
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/335]]==
<poem>
261}
De teu pae saberás se minto, ou não.
  Por filho me criou: a flor da idade
Gastei em o servir por teu respeito:
Ólha o que te merece esta vontade.
  Se com ser isto assi tenho êrro feito
Em grangear-te; que a ti só desejo;
Eis este ferro aqui, eis este peito.
  Isto ouvindo, mostrou hum ledo pejo,
Pondo os olhos no chão, formosa e branda;
E cuido qu'inda assi nos meus a vejo.
  Disse-me: Em que revoltas o amor anda!
No bem, como no mal, tambem me enleia:
Inda agora o senti, ja reina e manda.
  Como queres, Anzino, qu'eu te creia
Cousa que nem sonhada foi tégora?
Não sabes de quem ama, o que receia?
  Fallarei com meu pae: fica-t'embora:
No desengano seu teu bem consiste;
Da palavra que dei não estou fóra.
  Com isto me deixou alegre e triste.
O comêço ja ouviste de meu dano,
Amigo Limiano: o fim amargo,
Em que não serei largo, escuita agora.
Fulgencia, outra pastora, que vizinha
Era d'amada minha e grande amiga,
(Não sei como isto diga que não moura)
Pastora branca e loura, que na serra
Era a segunda guerra dos pastores,
Por mal dos meus amores me quiz bem.
Fundava-se porém em casamento;
E deste fundamento lhe nascia,{262}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/336]]==
<poem>
Que, como me não via, o valle, o monte,
O bosque, o rio, a fonte rodeava.
Em busca minha andava aquella sesta;
Entrou pola floresta, onde nos vio;
E tudo nos ouvio quanto fallámos,
Entre huns espessos ramos escondida.
Cruelmente ferida dos ciumes,
Foi-se a fazer queixumes (descobrindo
Mais do qu'esteve ouvindo) ao pae d'Ulina.
Eis logo desatina o triste velho;
Eis que sem mais conselho a filha entrega,
Que com chôro se nega e com palabras,
Ao simple guarda cabras, por esposa.
Ah hora desditosa! ah sorte dura!
Daquella formosura desusada,
De tantos desejada, e de mi tanto
Servida com espanto e puro amor,
Quizeste, por mais dor, enriquecer
Quem não sabe entender o preço della?
Ó tu, serra d'Estrella, que tal viste,
Como te não abriste; e no teu centro
Me não cerraste dentro, estando vivo,
Porque mal tão esquivo não sentíra?
Oh cega, oh cruel ira! oh pae fingido!
Para me ver perdido me criaste?
Porque me não deixaste no deserto?
Menos crueza, certo, então usáras,
Inda que me deixáras (não te aggraves)
Ás cruas feras e aves da montanha.
Não vês que o ceo estranha isso que tratas?
Não vês que a ti te matas cobiçoso?{263}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/337]]==
<poem>
Na porta o novo esposo tropeçou;
Na casa não entrou co'o pé direito:
Gritou sobolo teito a noite inteira
A ave, qu'he mensageira de fins tristes.
O mesmo vós sentistes, cães da aldeia,
Quando por má estreia, juntos todos,
Com differentes modos huiviastes.
Serranas, qu'esperastes nestas vodas
Cantar alegres todas Hymeneos,
Dos vossos alvos seios, alvas flores,
Em lugar dos licores mais custosos,
Por cima dos esposos derramando;
Ou vendo estar bailando, estando quedas,
Ao som das gaitas ledas no terreiro
O moço tão ligeiro á maravilha,
Que quasi o pé não trilha o junco mole;
Qual será que console a triste amiga,
A quem a fôrça obriga do pae duro,
A quem o Amor puro obriga tanto,
Que n'hum contino pranto se consume?
Assi do grande cume da esperança
Com subita mudança derribado,
Me poz em tal estado a triste nova,
Como sabe por prova quem bem ama.
Levou a leve fama a minha dor
A Sincero pastor, meu grande amigo,
Que com rogos comsigo me levou,
Do monte, onde me achou, ja noite escura,
Chorando a desventura em que me via.
As vaccas, vindo o dia, derramadas,
De mi desamparadas, vem bramando,{264}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/338]]==
<poem>

Sinal n'aldeia dando em seu bramido
De qu'era ja perdido o pastor seu.
Tamanha pena deo á bella Ulina
(Bella, porém mofina) a pena minha,
Sôbre quantas ja tinha no seu peito,
Que mais do triste leito não s'ergueo.
Seu pae adoeceo tambem de nojo:
Da morte foi despojo ao dia quinto.
A dor que daqui sinto he sem medida.
Pois m'apartou da vida, a vida acabe,
Ou n'alma, onde não cabe, faça pausa.
Fulgencia, que foi causa destes males,
Des que montes e valles descobrio,
Despois que me não vio em toda a serra,
Deixou, deixando a terra, mágoa aos pais,
Que della nunca mais novas souberão.
Emfim, tal fim tiverão meus amores.
Chorárão os pastores juntamente
D'Ulina descontente a triste sorte,
Do pae a breve morte, e de Fulgencia
A vingadoura ausencia de seu êrro;
De mi este destêrro em que me pôs.
  Mas mais chorastes vós, meus olhos tristes,
Quando de vossa luz, sem a do dia,
Por terras tão estranhas vos partistes.
  Cuido que meia noite então seria;
Cantando os gallos ja na triste aldeia,
Chorava só quem della se partia.
  Casa de meus suspiros sempre cheia,
(Disse eu, quando passei pela de Ulina)
Tal fructo colhe quem amor semeia!{
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/339]]==
<poem>
265}
  Fortuna, a mi cruel, sempre benina
Em tudo seja áquella, que em ti mora,
Indaqu'em outros braços se reclina.
  Fica-te aqui, minha alma, fica embora,
Que, pois assi o quiz fado inimigo,
Jamais te não verei dia nem hora.
  Dalli nos ricos campos dei comigo,
Que das ágoas do Tejo são regados;
Onde te vi mais ledo, como digo.
  Por ver se posso agora a meus cuidados
Achar algum repouso, algum socêgo,
Atravessando vou montes e prados.
  Passei as claras ágoas do Mondego,
Das Lusitanas Musas charo ninho;
As do Douro despois em turvo pégo.
  Daqui continuando meu caminho,
Espero ver a casa aos ceos acceita,
Na terra que da nossa aparta o Minho.
  Onde vou visitar na urna estreita
Os santos ossos do Varão divino,
Que pretendeo do Mestre o mão direita.
  Assi, d'hum lugar n'outro de contino,
O bem que ja cantei, chorando venho;
Tornei-me de vaqueiro, peregrino:
  Tal hábito me vês, tal vida tenho.
            LIMIANO.
  Anzino, he breve o dia
Para poder contar
O que sinto de tua desventura.
E sei bem qu'erraria,
Se quizesse louvar{266}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/340]]==
<poem>
O grave estylo teu, tua brandura.
Aquella formosura,
Por quem alegre fôras;
Que tu ledo cantaste,
E que despois choraste
Tão triste, qu'ind'agora triste choras;
Vivendo eterna nella,
Será mágoa commum, e louvor della.
  As mágoas deixo enfim;
Tambem louvores deixo,
Por grandes ellas, elles por pequenos.
Tu, por amor de mim,
(Dir-te-hei de que me queixo)
Repousa hoje comigo, quando menos:
Assi vejas serenos
Esses teus tristes lumes.
Abranda a dura mágoa,
Que tira fontes de ágoa
Do fogo em que chorando te consumes;
Dar-te-hei conta mais larga
Da vida que aqui passo tão amarga.
  E mais saber desejo
Se a fama nos engana,
Que diz, que o grão pastor dos Lusitanos,
Com todos os do Tejo,
E com fato e cabana,
Reside ja nos campos Africanos;
Onde mil soberanos
Triumphos, delle dinos,
Lh'ordena a fatal sorte,
Com grande estrago e morte{267}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/341]]==
<poem>
Dos brutos mal nascidos Sarracinos,
Que de si despejados
Os curraes deixão ja cheios de gados.
  Que sendo assi, te digo
Que não espero mais
Nesta para mi sempre ingrata terra.
Quem traz guerra comsigo
Entre seus naturais,
Não deve d'estranhar estranha guerra.
Sem mi de serra a serra
(O ceo assi o queira)
Logrem meus inimigos
Os valles e pacigos
Desta, donde nasci, fresca ribeira;
Na qual (se não m'engano)
Inda será chorado Limiano.
            ANZINO.
  Limiano, ja bem tenho entendido
Quanto sentes meu mal; mas eu te digo
Que o teu mal he de mi menos sentido.
  Ácerca de ficar hoje comtigo,
Farei pois (ja qu'assi nos detivemos)
Tudo o que tu quizeres, como amigo.
  E, pois o dia ja passado temos,
Vamos-nos mais chegando para o gado;
E lá nas outras cousas fallaremos.
  Todavia de funda e de cajado
Te vai apercebendo a som de guerra;
Que não foi tal pastor cá do ceo dado,
  Para não dar ao ceo tão larga terra.{268}

</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/342]]==
<poem>
ECLOGA XII.
INTERLOCUTORES.
DELIO, ALCIDO, GALASIO.
          DELIO.
  Agora, Alcido, em quanto o nosso gado
Pasce diante nós manso e seguro,
Sentemos-nos aqui neste abrigado.
  Logremos este sol sereno e puro,
Que livre se nos dá, antes que venha
A noite fria com seu manto escuro.
  O rico com seu ouro lá se avenha;
Não se farta a cobiça co'a riqueza:
Mais arde o fogo quando t~ee mais lenha.
  Com pouco se contenta a natureza.
Quem isto bem olhasse, certifico
Que não fugisse tanto da pobreza.
  O sol tambem m'aquenta, como ao rico;
A fonte ágoa me dá, fructos a terra:
Com pouco mantimento farto fico.
  Ah! que a má vaidade nos faz guerra!
(Para que gasto tempo em mais palabras?)
Os olhos da razão esta nos cerra.
  Alcido, tens ovelhas, e tens cabras,
De que tiras da lãa, tiras do leite;
E não te faltão campos em que labras.
  Inda tu queres mais? Amigo (eu hei-te
De fallar claro e sem lisongerias:
Não hajas medo tu, qu'
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/343]]==
<poem>
eu as affeite){269}
  Tu cantavas amor, amor tangias;
Faltava a tua frauta; agora he muda:
Que mal te mudou tanto em poucos dias?
            ALCIDO.
  Muda-se a idade, Delio; e se se muda
Com ella a condição, nada m'espanto;
O gôsto m'ajudou, ja não m'ajuda.
  Se ja cantei amor, se amor não canto,
Culpas do tempo são, que vai mudando
O meu cantar alegre em triste pranto.
  O tempo, que tão leve vai voando,
Delio, não torna mais; e assi fugindo,
Mil claros desenganos nos vai dando.
  Pouco a pouco se veio descobrindo
O mal d'huma esperança vãa e incerta,
Que me deixou chorando, e foi-se rindo.
  Quem nasce sem ventura, ou quem acerta
De fazer fundamento em peito alheio,
De mil contas que faz nenhuma he certa.
            DELIO.
  Pois se isso entendes tu, donde te veio
Sentir tão de verdade as sem-razões,
Não sendo d'outra cousa o mundo cheio?
            ALCIDO.
  Não queres tu que sintão corações
Obrigados com dor a sentimento,
Vendo a razão vencida d'affeições?
            DELIO.
  Emfim, todas as cousas querem tento:
Encobre a dor, e guarda-te d'extremos;
Que sempre trazem arrependimento.{270}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/344]]==
<poem>

  Ao nosso doce canto nos tornemos:
Das nossas Nymphas, bellas inimigas,
Crueza e formosura celebremos.
            ALCIDO.
  Como cantarei eu novas cantigas
Em terra tão esteril, cheia d'ira,
Que nega flores, e que nega espigas?
  Pendurei n'hum salgeiro a minha lira:
Ouvi-la ao som do vento he h~ua mágoa:
Em lugar de tanger, geme e suspira.
  A Amarilia pintei, pintada trago-a
Aqui neste meu seio, e tambem chora:
Seus olhos me dão fogo, os meus dão-lhe ágoa.
  Mas vejo vir Galasio.
            DELIO.
                        Venha embora.
Galasio, queres tu cantar comigo?
            GALASIO.
  Eu nunca me roguei: menos agora.
            DELIO.
  Cantaremos d'Amor cruel imigo,
Ou brando e amoroso, em razão pôsto,
Tyranno e cego, e cego até comsigo?
            GALASIO.
  Cada qual cante do que for seu gôsto;
Quer mimos, quer rigores d'Amor fero;
Ou d'olhos verdes cante, ou d'alvo rosto.
            ALCIDO.
  Em quanto vós cantais, recolher quero
O gado; que são horas de ordenhar:
Á noite na malhada vos espero.{
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/345]]==
<poem>
271}
            GALASIO.
  Isso não: has d'ouvir para julgar
Qual de nós melhor canta e melhor sente.
            DELIO.
  Eu ja não cantarei, sem apostar.
  Aposto o meu rafeiro, que Valente
Se chama, e com razão; que o lobo affasta,
Se não cantar mais branda e docemente.
            GALASIO.
  Hum cervo manso aposto.
            DELIO.
                          Isso não basta:
Põe mais hum par da cabras.
            GALASIO.
                             Deos me guarde;
Porque, Delio, este gado he da madrasta.
            ALCIDO.
  Fazeis-me vós juiz? Quereis que aguarde?
Ora cantae sem preço e sem inveja;
E seja logo, porque ja he tarde.
            DELIO.
  Learda minha, branca mais que a neve,
E muito mais corada que a grãa fina;
S'inda Amor a vencer-te não se atreve,
Que fara quem d'Amor por ti se fina?
Eu morro; e tu meu mal julgas por leve?
Não vês tu como ja me desatina?
Ai triste! que me vem valles e montes,
Regados de meus olhos feitos fontes.
            GALASIO.
  Marfida, branca mais que o branco leite;{272}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/346]]==
<poem>
Vermelha muito mais que a rosa pura;
Assi descuido em ti nunca suspeite,
Assi me trates inda com brandura;
Que a cabana, que a vida e a alma engeite
Por ti, quando tu mais que marmor dura.
Testimunhas serão montes e valles,
A quem dou larga conta de meus males.
            DELIO.
  Quando a minha Learda desencolhe
Os seus cabellos d'ouro, longo, ondado,
O sol, de pura inveja, se recolhe,
Corrido de se ver menos dourado.
Livre pastor não ha, que bem os olhe,
Sem se achar logo nelles enlaçado.
Ai! não soltes, Learda, os teus cabellos,
Pois tanto prendem quantos ousão vellos.
            GALASIO.
  Os tristes corações se tornão ledos,
Ouvindo de Marfida o doce canto;
Os furiosos ventos estão quedos;
Não guia o claro sol seu carro em tanto.
Converte-se a dureza dos penedos
Em brando amor: Amor desfaz-se em pranto,
Vencido dessa voz, doce Marfida;
Mas tu nunca d'Amor foste vencida.
            DELIO.
  O campo de verdura vejo pobre;
O ceo chuivoso sempre, e turvo o rio;
Da sua leve folha a terra cobre
O bosque, que foi ja verde e sombrio.{
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/347]]==
<poem>
273}
Mas se Learda o rosto seu descobre,
Logo desapparece o tempo frio:
Comsigo a primavera traz Learda.
Ai quem a visse ja! Ai quanto tarda!
            GALASIO.
  A triste Progne ja despareceo;
A toda flor o frio foi imigo;
A doce Philomela emmudeceo,
Rouca de lamentar seu mal antigo.
Mas venha por aqui quem me venceo
Com hum só volver d'olhos; qu'eu m'obrigo,
Que as aves tornem logo a seus amores,
E os campos se matizem de mil flores.
            DELIO.
  A viva chamma, aquelle vivo ardor,
Que brando sinto ja pelo costume,
De noite dá de si tal resplandor,
Que os pastores vem delle a tomar lume.
Pasmados ficão, vendo em mi d'amor
O fogo, que me queima e não consume:
E tu, por quem eu ardo noite e dia,
Quando vês tal ardor ficas mais fria!
            GALASIO.
  Eu sempre chóro, e tanto ja chorei,
Vencido da grã dor que n'alma tinha,
Que mil vezes de lagrimas fartei
Meu gado, quando a fonte a buscar vinha.
Chorando as duras pedras abrandei;
Mas nunca a ti, cruel imiga minha,
Que, vendo que por ti m'estillo em ágoa,
Nenh~ua mágoa tens de minha mágoa.{274}
            DELIO.
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/348]]==
<poem>
  Quando vires, Learda, o nosso Lima,
Que lá vai de meu chôro acompanhado,
Tornar com suas ágoas para cima,
De seu curso esquecido, costumado;
Então embora julga, então estima
Que tenho n'outra parte o meu cuidado.
Mas deixarão os rios de correr,
Primeiro que deixe eu de te querer.
            GALASIO.
  Estas serras, Marfida, por certeza
De minha firme fé só quero dar-te:
Quando com espantosa ligeireza
Daqui correr as vires a outra parte,
Então cuida que falta em mi firmeza,
Qu'então deixarei eu, meu bem, de amar-te.
Mas mudar-se daqui bem podem ellas,
E eu não mudar de mi graças tão bellas.
            ALCIDO.
  Se esta vontade minha não deseja
A vossos versos dar justos louvores,
Hora nunca na vida alegre veja.
  Acceitae meu desejo, meus pastores:
Mais vos não póde dar quem traz o esprito
De todo entregue a damnos, mágoas, dores.
  Mas porque dê de vós público grito
A leve fama, como vêdes, deixo
O vosso canto e o meu juizo escrito
  No liso tronco deste verde freixo.
Delio neste lugar doce cantou
Com Galasio, que doce respondia:{275}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/349]]==
<poem>

Hum Learda, Marfida outro louvou,
Com inveja de qual melhor diria.
Alcido, que o seu canto bem notou
Por ver quem a victoria levaria,
Como livre juiz, deo por sentença,
Que não havia entr'elles differença.
ECLOGA XIII.
Phyllis.
Pascei, minhas ovelhas: eu, em quanto
Aquelle passarinho canta ou chora,
Chamarei Corydon com triste pranto.
  Se entre vós, bellas plantas, amor mora
(Plantas, ja vós amastes) tende mágoa
De mi, pois que m'ouvis queixar agora.
  Ai cruel Corydon! cruel a frágoa
Em que vivo por ti! Não tens piedade
Dever meu peito fogo, os olhos ágoa?
  Ja não amas a Phyllis? Ah crueldade!
Ai triste! E que farei? Em poucos dias
Mudaste tu de mi tua vontade.
  A Phyllis ja deixaste, a quem trazias
No formoso verão formosas fruitas,
Sinal do grande bem que me querias?
  Sabes, cruel, que tenho causas muitas
Para te convencer, de que queixar-me;
Por isso vás fugindo e não me escuit
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/350]]==
<poem>
as.{276}
  Puderão os teus rogos abrandar-me:
Os meus (triste de mi!) mais te endurecem.
Ja não acho em que possa confiar-me.
  Aquelles doces versos ja t'esquecem,
Que tu nos lisos álamos cortavas,
Onde com teus enganos inda crescem?
  Arder por meu amor nelles mostravas:
Eu, crendo que era assi, não entendia
Quanto fingiste amar, quão pouco amavas.
  Tristes meus fados forão, triste o dia
Em que nasci: coitada de mi triste,
Qu'em mágoa se tornou minha alegria!
  Logo que a tua Galatêa viste,
Vi eu deste meu mal grandes agouros;
E tu da parte esquerda hum corvo ouviste.
  E não t~ee Galatêa mais thesouros,
Nem t~ee mais formosura, inda que seja
Ou d'alvo rosto, ou de cabellos louros.
  Á negra violeta t~ee inveja
O branco lirio, porque tal não tem
O cheiro, que vencido não se veja.
  Tityro arde por mi; Tityro, a quem
Mil Nymphas dão capellas de mil flores;
Mas elle a mi só chama, a mi quer bem.
  Eu desprézo por ti muitos pastores,
E tu por Galatêa me desprezas!
Tal pago dás, cruel, a meus amores?
  Em que te mereci tantas cruezas,
Quantas usas comigo? Por ventura
Usei comtigo d'ira, ou d'asperezas?
  Prouvera a Deos que tão isenta e dura{277}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/351]]==
<poem>
Me víras para ti, que nunca víras
Em mi sinal d'amor, ou de brandura!
  S'eu fugíra de ti, tu me seguiras;
Por mi ardêras, não por huma ingrata,
Por quem choras em vão, em vão suspiras.
  Bem me vinga de ti, pois te maltrata:
Mas eu te quero tanto, que desamo
(Por mais que tu me mates) quem te mata.
  Respondem-me estes montes, quando chamo
Por ti com triste voz; Ecco responde
Das lagrimas, movida, que derramo.
  E tu não me respondes, nem sei onde
Te leva esse desejo; mas bem sei
Que amor e desamor de mi t'esconde.
  Ai triste Phyllis! triste! Onde acharei
Remedio a tanto mal? O fogo puro
Em que m'abrazo, com que abrandarei?
  Ja fugíra daqui por mais que duro
Fosse o deixar o ninho em que nasci:
Mas não ha contra Amor lugar seguro.
  A morte só (mil vezes isto ouvi
Á nossa Celia) por remedio espere
Aquelle que a Amor fez senhor de si.
  Então, porque de todo desespere,
Este cego, a quem cegos nós seguimos,
A mi por ti, e a ti por outra fere.
  S'eu morrêra no ponto em que nos vimos,
Não víra tanto mal. Mas que da sua
Sorte fugisse alguem, nós nunca ouvimos.
  Eu me queixo de ti, e tu da tua
Galatêa te queixas; e não vês{278}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/352]]==
<poem>
Que mais piedosa te he, quando mais crua.
  Sendo tu tão cruel, (tão cego es!)
Queres achar piedade? Como queres
Que te creião teu mal, se o meu não crês?
  Qu'eu viva com pezar, tu com prazeres,
Não quer o justo Ceo. Ou ambos tristes,
Ou ledos ambos, si: mais não esperes.
  Selvas, que n'outro tempo nos cobristes
Com frescas sombras lá do ardor de cima,
Dizei, se a Corydon dizer ouvistes:
  Primeiro ha de tornar o brando Lima
As ágoas de crystal á fonte clara,
Que no meu peito novo amor s'imprima.
  Primeiro qu'eu te deixe, Phyllis chara,
Me ha de deixar a mi a propria vida.
Mas quem, por não deixar-te, a não deixára!
  Pois tu, Phyllis, ma dás, eu offrecida
A tenho a teu querer; tu della ordena
Como, doce amor meu, fores servida.
  Por ti me será branda a dura pena;
Por ti suave a dor, leve o tormento,
A que m'inclina o fado, ou me condena.
  Ah falso Corydon! teu pensamento
Era enganar-me: dada a fé me tinhas;
E a fé co'as palavras leva o vento.
  Mas (ai triste de mi!) tambem as minhas
O vento vai levando. O sol he pôsto.
Porque, ligeira luz, te não detinhas,
  Em quanto em meu queixume achava gôsto?{
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/353]]==
<poem>
279}
ECLOGA XIV.
INTERLOCUTORES.
ERGASTO, DELIO, LAURENO.
            ERGASTO.
  Agora, ja que o Tejo nos redeia,
Neste penedo, donde mansamente
Murmurando se quebra a branda veia,
  Espera, Delio, até que do Occidente
D'azul deixe a ribeira matizada
O sol, levando o dia a outra gente.
  Entretanto daqui verás pintada
A praia de conchinhas d'ouro e prata,
E a ágoa dos mansos sopros encrespada.
  Verás como do monte se desata
A vagarosa fonte por penedos,
Que pouco a pouco cava e desbarata;
  E como move os frescos arvoredos
Favonio, que de flores pinta o prado;
E como s'estão rindo os campos ledos.
  Ditoso o que do Ceo foi tão amado,
Que no campo alcançou passar a vida,
Livre de pena, livre de cuidado.
  O rouxinol na vara, que vestida
De verdes folhas, sombra faz ao rio,
Lhe canta o doce verso sem medida.
  Agora ao pé d'hum alamo sombrio
Vê como dous carneiros s'
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/354]]==
<poem>
offerecem,{280}
Os cornos inclinando, a desafio.
  Como ao que vence todos obedecem
E folgão de o ver fóra de perigo;
E outros com face esquiva o aborrecem.
  Ditoso aquelle, que co'o ferro antigo
Lavra os campos do pae, e se contenta,
Nos seus mólhos atando o louro trigo!
  Este a furia do mar não exprimenta,
Nem corre, por achar a pedra rica,
A estranha praia, que outro sol aquenta.
  Onde, quando a esperança o fortifica
Em adquirir mais ouro e mais riqueza,
Ouro, esperança, e vida a muitos fica.
  Este vive quieto na pobreza;
E deste confiarei que a anteponha
A quanto o mundo mais procura e préza.
  Comendo em mesa vil, não s'envergonha:
Antes bebe nas mãos a fonte pura,
Qu'em precioso metal cruel peçonha.
  Oh feliz tempo d'ouro! Ind'aqui dura,
Inda conversa aqui com os humanos
A Justiça, fugindo á gente impura!
  Quem visse bem tão claros desenganos,
E quanto mal nos vicios se apparelha,
No campo gastaria bem os anos.
  Ao dia a nossa vida se assemelha,
Porque quando no mar o sol se banha
Se costuma tingir de côr vermelha.
  Assi, se olharmos bem, sempre se ganha
Lá no occaso da mal gastada vida
Rubicunda vergonha em mágoa estranha.{281}
            DELIO.
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/355]]==
<poem>
  A gloria, Ergasto meu, qu'he possuida,
Nunca sabe de nós ser tida em preço:
Só despois que se perde he conhecida.
  E desta vida os bens, qu'eu não mereço,
Quando os perco e o mal da outra ja m'espera,
Com grandes mágoas d'alma os reconheço.
  Oh se em ditosa sorte me coubera
Por favor ou destino das estrellas,
Qu'entre pastores, eu pastor vivêra!
  Muitas vezes t'ouvira as luzes bellas
Cantar da linda Nise, nas quaes arde
Teu peito, sempre ufano d'arder nellas.
  Buscae pastor, ovelhas, que vos guarde;
Que o Ceo não quer qu'eu mais vos guarde e conte,
E despois vos recolha, sôbre a tarde.
  Nãovos verei saltar junto da fonte,
Cabras minhas, ja meu querido gado,
Nem da rocha pender no verde monte.
            ERGASTO.
  Consente agora, ó Delio, que chorado
Em triste verso seja apartamento,
Que assi me deixa triste e magoado.
            DELIO.
  Não: que se dobrará meu sentimento.
Mas se queres, Ergasto, que m'esqueça
Partida, que lembrada he só tormento,
  Canta aquelle Soneto, que começa:
Quantas vezes do fuso s'esquecia.
Que digas hum dos teus, não sei se o peça.{282}
            ERGASTO.
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/356]]==
<poem>
  Se com m'ouvir, a dor se te allivia,
Eu o direi. Mas eis cá vem Laureno,
Que a cantar vezes mil me desafia.
  Cantando venceo ja Tityro e Almeno:
E eu, inda que sei certo ser vencido,
Apostar a cantar com elle ordeno.
            LAURENO.
  Ergasto, pois o tempo se ha offrecido,
Celebremos amor e formosura,
Emquanto o gado á sombra está acolhido.
            ERGASTO.
  Postoque ja a victoria tens segura,
Não cantarei sem preço, porque saia
Mais ledo quem cantar com mais brandura.
            LAURENO.
  Eu hum vaso porei de lisa faia,
Divina obra de Alceo, que celebrado
Será sempre por claro nesta praia.
  A vide, de que em roda está cercado,
Os roxos cachos cobre; e primor teve
Em pôr no meio a Dama e Pan cansado.
  Parece que a beija-la o deos se atreve,
E que ainda dos beijos mal soffridos
Inclinado lhe foge o tronco leve.
            ERGASTO.
  Outro vaso porei d'hera cingido,
No qual Orpheo das aves esquecidas
E dos suspensos bosques he seguido.
  Não cuido que de faia são sahidas
De tal arte, lavor de tal maneira:{283}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/357]]==
<poem>

Tambem obra he d'Alceo, das mais polidas.
  Esta, das que me deo, foi a primeira;
Que a dar-ma o velho Alcido emfim s'abranda,
Ouvindo-me cantar nesta ribeira.
  Ouvio-m'então, estando desta banda;
E dando-ma, dizia-me: Este seja
O premio, Ergasto, dessa Musa branda.
            LAURENO.
  Delio o nosso cantar pondere, e veja
Qual dos dous a voz dá mais docemente;
Que huma tal causa tal juiz deseja.
            DELIO.
  Se o meu juizo cada qual consente,
Tu, Ergasto, ao doce canto dá comêço;
Tu responde, Laureno, juntamente:
  E eu fico que nenhum perca o seu preço.
            ERGASTO.
  Alcida, que na côr o leite puro,
E a rosa da manhãa deixas vencida,
Culpa he dos olhos teus, nelles o juro,
Est'amor de qu'estás tão offendida.
Castiga-os com me verem; qu'eu seguro
Que a vingança será delles sentida:
Nem temas tu d'os meus alegres serem,
Vendo tristes taes olhos por me verem.
            LAURENO.
  Violante minha, cuja côr iguala,
Mas antes vence os cravos, vence a neve;
Desta dor, que atéqui minha alma cala,
Teu amoroso riso a culpa teve.
Se só por viver della e por amá-la,{284}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/358]]==
<poem>
Julgas que algum castigo se me deve,
A ver-te sempre rindo me condena,
Pois crescendo o amor mais, mais cresce a pena.
            ERGASTO.
  Com a mãe, que maçãas colhendo andava,
Inda pequena, a bella Alcida vinha:
Eu os ramos da terra ja tocava,
Ja facil para amar o tempo tinha.
Não sei que fogo ou neve se passava
Daquelles olhos seus a est'alma minha,
Que me deixárão pôsto em tal extremo,
Que até de cuidar nelles ardo e tremo.
            LAURENO.
  No bosque a Violante vi hum dia,
Doce princípio destas doces dores;
A flor cahia nella, e parecia
Dizer cahindo: Aqui reinão amores.
Humilde em tanta gloria ella se ria,
E errando hião sôbre ella as várias flores:
Eu, que vencido fui d'hum error cego,
Áquelle honesto riso est'alma entrego.
            ERGASTO.
  Pastores deste bosque, que buscais,
Anoitecendo, o lume por costume;
Chegae a mi; qu'eu fico, se chegais,
Que destes meus suspiros leveis lume.
Accesos sahem d'alma os doces ais
No ardor, que pouco a pouco me consume;
Mas nem as chammas, qu'em suspiros deito,
Accendérão jamais hum frio peito.{
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/359]]==
<poem>
285}
            LAURENO.
  Pastores, que buscais na sombra amada
A fonte, por fugir o ardor do estio,
Vinde a mi, porque d'ágoa destillada
Por meus olhos, se sólta hum largo rio;
Tal, que a sêde d'Amor nunca apagada,
Fartá-la ja de lagrimas confio.
Mas com chôro de tanta quantidade
Não movo aquelles olhos a piedade.
            ERGASTO.
  Se quando a minha Alcida est'alma visse
Nos meus olhos, d'Amor tão maltratada;
Se quando a grave dor fóra sahisse
Entre suspiros mil rôta e quebrada,
Sequer com brandos olhos m'admittisse,
Ficando de vergonha mais córada;
Ditoso fôra, vendo-a, juntamente
Com ser mais bella, deste amor contente.
            LAURENO.
  Se á vista de Violante derramadas
As lagrimas d'amor, que vive nellas,
Tal fôrça lhe fizessem, que orvalhadas
Lhe ficassem de dor ambas estrellas,
E as rosas entre a neve semeadas,
Co'o piedoso orvalho, inda mais bellas;
Ditoso me fizera. Hora ditosa,
Se a víra ser mais bella e ser piedosa!
            ERGASTO.
  Claros olhos, que ao sol fazeis inveja,
Que brandos vos mostreis ja vos não peço;
Mas que poder-vos ver paga me seja,{286}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/360]]==
<poem>
Se por tamanho amor tanto mereço:
Armados d'esquivança então vos veja
Cheios d'hum não sei que, com que pereço;
Que doce me será tal esquivança.
Doce o morrer, qu'em olhos taes s'alcança!
            LAURENO.
  Olhos, que vos moveis tão docemente,
Que traz vós todo o mundo ides levando,
Eu não sei se tomais do ceo luzente
O movimento seu, se lho estais dando:
Sei certo (e não m'engano,) sei somente
Que a vós de mi minh'alma ides passando:
Mas não posso entender como deixais
Ao descuido o que vós em vós levais.
            ERGASTO.
  Por mais que a minha soberana Alcida
(Minha não, porque só sua belleza
Vem a ser minha em ser de mi querida)
Me trate vezes mil com aspereza;
Huma só vez que della acho admittida
Minha pequena vista na grandeza
Da luz do rosto seu, sinto tal gloria,
Que de todo o penar perco a memoria.
            LAURENO.
  Quando a minha mais que unica Violante
(Se minha póde ser a que he tão sua)
Aquella santa luz hum breve instante
Me deixa ver, por mais que a veja crua;
A vista tanto em mi vejo a diante,
Que não he muito, não, que m'attribua{
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/361]]==
<poem>
287}
A soberba de ser hum'aguia nova,
Que do ceo no ôlho claro a vista prova.
            DELIO.
  Pastores, que alcançar pudestes tanto
Com vossa branda Musa, que ja nesta
Idade renovais o antigo canto;
  Para vosso louvor, que verso presta?
Qu'hera digna será? que louro dino
Qu'em premio a cada qual adorne a testa?
  Em parte paga Amor, se de contino
Por dentro a cada hum gasta os espritos,
Pois co'o divino canto o faz divino.
  Nós veremos por annos infinitos
Nos altos troncos destas faias bellas
Os nomes vossos por memoria escritos.
  De unicas flores mereceis capellas:
T~ee Alcida e Violante sós taes flores;
E, pois ellas as t~ee, dem-vo-las ellas.
  Os vossos premios recolhei, pastores:
Cada qual igualmente o seu merece;
E ambos d'Apollo os mereceis maiores.
  Recolhamos o gado; que anoitece.{288}

</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/362]]==
<poem>
ECLOGA XV.
INTERLOCUTORES.
SOLISO e SYLVANO.
          SOLISO.
  De quanto alento e gôsto me causava
A vista da manhãa resplandecente,
Com que toda a tristeza s'alegrava;
  Que quando vinha o sol claro e luzente,
Bem claro então em mi se conhecia
Huma nova alegria differente;
  Tanto agora me offende o novo dia,
Vendo que me não mostra a formosura,
De que só me mantinha e só vivia.
  E não me quiz deixar triste ventura
Esperanças de mais tornar a vella!
Oh destino cruel! oh sorte dura!
  Oh querida Natercia! oh Nympha bella,
Em quem, emfim, mostrou a natureza
O mais que se podia esperar della!
  Se lá no assento da maior alteza
Te lembras de quem viste cá na terra,
Para te magoar sua tristeza;
  Lembre-te de contino a cruel guerra,
Que contínua me faz tua lembrança,
Esquecido do gado, valle e serra.
  Lembre-te que perdi a confiança
De ver os olhos teus
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/363]]==
<poem>
, e juntamente{289}
De todo o bem d'Amor toda a esperança.
  Lembre-te que por ti de mi ausente
A crystallina fonte me he nojosa,
Com que ja n'outro tempo fui contente.
  Que por ti a manhãa clara e formosa
Males cada momento me accrescenta;
Sendo-me em outros dias deleitosa.
  Por ti o puro sol me descontenta;
Com seu canto m'offende a Philomella:
Mas, porque nelle chora, me contenta.
  Por ti, Natercia pura, Nympha bella,
Na verdura suave deste prado
Os males multiplico só com vella.
  Por ti não curo ja do manso gado:
Com o mesmo qu'então meu bem crescia,
Agora vai crescendo o meu cuidado.
  Não sou ja, ja não sou quem ser sohia;
Mudou-se-me a vontade co'a ventura;
Mudou-se co'os tormentos a alegria;
  Trocou-se o claro dia em noite escura:
Nem he muito que tudo se mudasse,
Pois se mudou a tua formosura.
  Não via outro reparo, que cuidasse
Poder aproveitar ao meu tormento,
Nem outra gloria alguma em qu'esperasse,
  Senão em quanto o triste pensamento
Se punha a contemplar tua beldade,
Sem lhe lembrar tão longo apartamento.
  Agora que me falta a claridade,
Que de ver-te a minha alma recebia,
Ficando-me só della a saudade;{290}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/364]]==
<poem>

  Qual ficará hum'alma, que sabía
Somente desta gloria contentar-se?
Gloria de que gozar não merecia!
  Qual poderá ficar quem com lembrar-se
Mortalmente do bem qu'he ja passado,
Só t~ee por melhor vida á morte dar-se?
  E qual se póde ver quem hum cuidado
Sostem, que he só da dor certa morada,
E nelle vive só desesperado?
  Qual ha de ver-se, ó Nympha delicada,
Hum'alma que te via; e em te vendo
O fio lhe cortou a Parca irada?
  A causa deste mal eu não a entendo:
Só entendo que, perdida essa luz pura,
Por perdida a não ver, vivo morrendo.
  Vejo que me roubou fortuna escura
Hum bem por quem meu mal me contentava:
Lembra-te tu de tanta desventura.
  Lembra-te tu, que só de ti'sperava
Remedio aos males meus; e então verás
Qual ficou quem em ti só confiava.
  Lembre-te adonde estou, adonde estás,
E que tudo sem ti cá m'aborrece:
Dest'arte o estado meu entenderás.
            SYLVANO.
  Não sei por que razão nos amanhece
Este dia dos outros differente,
Com que toda a alegria s'entristece.
  O manso gado vejo, que contente
Buscando hia nos campos a verdura,
E dos rios a limpida corrente:{291}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/365]]==
<poem>

Agora triste errar pola espessura,
Alheio d'herva verde e d'ágoa fria;
Sinal d'alguma grande desventura.
  Suspensa está das aves a harmonia;
E em certo modo mostra que lá chora
A mesma sequidão da penedia.
  A candida, rosada, bella aurora,
Que sempre os altos montes vem dourando,
Com hum pallor mortal se mostra agora.
  Está-se nestas hervas enxergando
Tão triste côr, que della se conhece
Que algum mal se nos vai apparelhando.
  Emfim, vejo que tudo s'entristece;
A causa ignoro. O ceo piedoso queira
Que menos seja o mal, do que parece.
  Porque, desde que habíto esta ribeira,
Não m'acórdo de a ver tão carregada,
Nem de a ouvir murmurar desta maneira.
  Não m'acórdo que visse outra alvorada
Tão confusa sahir, como esta vejo,
De profunda tristeza acompanhada.
  Agora aqui tomára quem sem pejo
A causa, se a soubesse, m'ensinasse,
Para satisfazer a meu desejo.
  Porque não posso eu crer que resultasse
D'alguma baixa causa hum tal effeito,
Que até nos duros montes se enxergasse.
  O coração cá dentro no meu peito
M'assegura, que tanta novidade
Não traz a origem de commum respeito.
  Mas, por entre a confusa claridade,{292}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/366]]==
<poem>
Lá vejo vir Soliso com seu gado:
Delle espero entender toda a verdade.
  Mas não posso cuidar neste cuidado,
Que nos olhos não mostre onde me chega
A dor de o ver de dores traspassado.
  Mas aquelle, que a Amor cruel s'entrega,
Não he muito que passe hum tal tormento;
Porque todo mal dá, todo bem nega.
  Em quanto este pastor o pensamento
Logrou, sem qu'em amores o empregasse,
Senão só em buscar contentamento;
  Festa não se fazia em que faltasse
A sua frauta, qu'elle assi tangia,
Que outra nunca se ouvio que lhe igualasse.
  Ja agora não he aquelle que sohia;
Vejo-o na condição todo mudado;
Mudada tambem delle está a alegria.
  Não cura ja do seu querido gado;
Aborrecem-lhe as plantas, hervas, flores;
Aborrece-lhe a gente e o povoado.
  Não lhe lembrão as festas dos pastores;
Apartando se vai pola espessura,
Enlevado somente em seus amores.
  Contenta-se da noite triste e escura;
Odio t~ee com o sol puro e luzente.
Quem vio nunca tamanha desventura?
  Com esta vai passando tão contente,
Que diz que, quando o mal mais o atormenta,
Se gôsto sentirp óde, então o sente.
  Neste bosque huma Nympha se aposenta,
Por quem elle na vida anda morrendo;{
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/367]]==
<poem>
293}
E he causa desta dor que lhe contenta.
  E segundo o que delle agora entendo,
Se a vista não m'engana o pensamento,
Ou de vãa phantasia estou pendendo;
  Quando fôra maior o grão tormento,
Que Soliso padece, não pudera
Igualar-se com seu merecimento.
  Quero chegar-me a elle, em quanto espera
Que vá descendo o vagaroso gado:
Saberei delle o que saber quizera.
  Venho, Soliso, a ti com hum cuidado,
Que todo m'entristece; e com grão medo
De grão mal sôbre nós inopinado.
  Vês tu como está agora este arvoredo
Triste e pezado, lugubre e sombrio?
Como o vento parece que está quedo?
  Vês a commum corrente deste rio
Que ora tanto se pára, ora anda tanto,
Deixando de seu curso o certo fio?
  Vês como a Philomella deixa o canto,
Com que incita os pastores namorados,
E multiplica Progne o triste pranto?
  E vês, emfim, por todos esses prados
Desmaiadas as hervas, que sohião
Viçoso pasto dar aos nossos gados?
  Todos estes sinaes, que não se vião
Nas Auroras a esta antecedentes,
Algum damno mortal nos annuncião.
  Eu não sinto o que seja: se o tu sentes,
Não te seja o dizer-mo mui penoso;
E entenderei por ti taes accidentes.{294}
            SOLISO.
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/368]]==
<poem>
  N'outro tempo me fôra deleitoso
Por extremo, Sylvano, gôsto dar-te;
Mas todo gôsto agora me he nojoso.
  Bem quizera poder communicar-te
A causa deste horror; mas antes quero
Anojar-me a mi proprio, que anojar-te.
  Porém ja sinto o fado tão severo,
Que quanto mais me ponho a declará-lo,
Mais então d'entendê-lo desespero.
  E se acaso o entender para contá-lo,
Se quero começar, quer a ventura
Á fôrça de soluços atalhá-lo.
  Que despois que me falta a formosura
Daquella illustre Nympha, que contente
Pudera bem fazer a noite escura,
  Foi-me faltando o esprito juntamente:
Em suspirar só gasto a noite e dia,
Sem me fartar de ver-me descontente.
            SYLVANO.
  Novidade maior em mi sería
O espantar-me de ver-te estar queixando,
Que o ver em ti desejos d'alegria.
  Responde-me ao que t'hia perguntando
Da causa desta singular tristeza:
Não gastes todo o tempo lamentando.
            SOLISO.
  Sempre em ti conheci huma dureza,
E austera inclinação, que bem declara
Quão conforme he teu nome á natureza.
  Porque se o meu tormento t'alcançára,{295}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/369]]==
<poem>
O mor bem para ti o mor mal fôra;
E todo o mal maior te contentára.
  Deixa que chore quem com gôsto chora:
Deixa-me lamentar meu triste fado;
Que a hum triste a hora de chôro he melhor hora.
  Tu não trazes agora outro cuidado
Mais que buscar no valle a sombra fria,
Quando te offende o sol mais empinado.
  Coitado de quem passa a noite e dia
Porfiando em morrer, e a sorte dura
Em fugir-lhe co'a morte só porfia!
  Oh formosa Natercia! a excelsa altura
Do glorioso Olympo andas pizando;
E eu ausente da tua formosura!
            SYLVANO.
  Qu'he isso, que do ceo estás fallando?
Parece-me que ja não es Soliso,
Ou que de puro amar vás delirando.
            SOLISO.
  Quem ja perdeo aquelle doce riso,
Que siso produzia e dava vida,
Não he muito que perca a vida e siso.
            SYLVANO.
  Declara-me que cousa tens perdida,
De que tanto te queixas; que ao que sento,
Natercia destes valles he partida.
            SOLISO.
  Quão livre falla aquelle que o tormento
Alheio vê de fóra, mas não sente
Onde chega tamanho sentimento!
  A gloria qu'eu perdi não me consente{296}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/370]]==
<poem>
Palavras naturaes, razões expertas,
Que possão declarar a dor presente.
  Mas nesse teu error vejo que acertas;
Porque com nenhum mal deve turbar-se
Quem só delle esperanças logra certas.
            SYLVANO.
  A quem, Soliso meu, de declarar-se
Com outro em casos taes falta vontade,
Nunca faltão razões para escusar-se.
  Não sei donde te vem tal novidade;
Pois negando-me agora o que te peço,
Suspeito que me negas a amizade.
  Se pola que te guardo te aborreço,
Sabe que só hum cego entendimento
Ás amizades faz perder o preço.
  Eu te deixarei só com teu tormento;
Mas não sem dor de ver que tanto a peito
Tomes hum tão damnoso pensamento.
            SOLISO.
  Outra he, certo, a razão, outro o respeito
Que negar-te me fez o que pedias:
Não creias que de ti tão mal suspeito.
  Bem sei que o meu descanso pretendias;
E a mesma confiança faz negar-te
O que destes sinaes saber querias.
            SYLVANO.
  Não queiras mais, Soliso, prolongar-te;
Pois pende o gôsto meu da tua vida:
Se corre risco, dá-me delle parte.
            SOLISO.
  De todo a sinto ja desfallecida{
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/371]]==
<poem>
297}
Nas lembranças daquella breve historia,
Que foi para meus males tão comprida.
  Ja me vence a tristissima memoria
Da gloria que presente me animava.
Quem pudera voar traz tanta gloria!
  Natercia qu'estes montes alegrava,
E que á casta Diana fez inveja,
E que com sua vista o sol cegava;
  Aquella a quem render-se só deseja
Aquelle que de bella mãe presume,
E a quem as armas dá com que peleja;
  Natercia, que no mundo foi hum lume,
Onde a belleza de maior estado
Incendios aprendia por costume;
  Natercia, por quem ando acompanhado
De mágoa tal, que só da morte dura
Espero o feliz fim de meu cuidado;
  Ao ceo se foi co'aquella formosura,
Qu'era mostra do ceo, gloria da terra;
Qu'era o sogeito mor da mor ventura.
  Ja não fara no prado ás almas guerra
Com a vista, senão com a lembrança;
Guerra em que o damno mais cruel s'encerra.
  Ja de vê-la não tenhas esperança;
Qu'esta vida trocou de mal cercada
Por outra, em que do bem não ha mudança.
  E a causa vês aqui de que a alvorada
Visses desta manhãa tão differente
De outra qualquer, de ti mais ponderada.
  Dizer-te o mais não posso, porque sente
Est'alma no que disse tal tormento,{298}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/372]]==
<poem>
Qu'esta memoria apenas me consente.
  O espirito ja debil, sem alento,
No pouco que te tenho referido,
Nas azas se sostem do pensamento.
  Oh mundo! qual he aquelle tão perdido,
Qu'em ti crê, qual aquelle tão insano,
Vendo-te todo em damno instituido?
  Deixas passar hum gôsto d'anno em ano,
Porque, com nosso opprobrio e tua gloria,
Nos faças mais patente o teu engano.
  Sempre assi vai comtigo a mor victoria,
Deixando-nos somente por herança
D'hum possuido bem triste memoria.
  Quem faz de ti alguma confiança,
Sabendo ja que quem de ti confia,
D'hum engano penoso emfim se alcança?
  Aquelle da belleza novo dia
Cegaste, quando mais resplandecente
Triumphos mil d'Amor nos promettia.
  De qual tigre cruel peito inclemente
Não se rompe de mágoa, morta aquella,
Que a tristeza mil vezes fez contente?
  Quem, que vê eclipsada a vista bella,
Despois de visto haver sua beldade,
E não sabe morrer por hir traz ella?
  Como não te applacou tão tenra idade
Ao cortar do seu fio, ó Parca dura,
Que agora o mundo matas de saudade?
  Deixae, deixae, pastores, a verdura;
As frautas deixae ja, e os mansos gados;
E chorae todos vossa desventura.{
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/373]]==
<poem>
299}
  E vós, sylvestres Faunos namorados,
Tambem chorar podeis, pois ja perdêrão
O objecto mais gentil vossos cuidados.
  Nymphas, a quem os deoses concedêrão
Destes sagrados bosques a morada,
E em quem tamanhas graças escondêrão;
  Se aquella piedade costumada,
De que mais vos prezais, não esquecestes,
Que sempre foi de vós tão venerada;
  Se ja d'alheio damno vos doestes,
Do vosso proprio vos doei agora,
Pois com Natercia todo o bem perdestes.
  Oh Naiades! das ágoas sahi fóra;
E de vós ágoa saia em mal tão forte,
Pois de vê-lo tambem o monte chora.
  Oh Napêas! chorae a triste sorte
Dos miseros pastores, a quem nega
O fado por mais pena o mortal córte.
  Oh Dryas! vós, a quem Amor s'entrega,
Tomae todo o cuidado deste pranto,
Pois sabeis onde a causa delle chega.
  Deixae, ó Amadryas, entretanto
As plantas que guardais, por ajudar-me,
Pois deixa a Philomella o doce canto.
  E vós, ó vida minha, pois curar-me
Ja não podeis, deixae-me juntamente,
Porque lembranças taes possão deixar-me.
  Mas se dellas morreis, morro contente.{300}
CANÇÕES.
CANÇÃO
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/374]]==
<poem>
I.
Formosa e gentil Dama, quando vejo
A testa d'ouro e neve, o lindo aspeito,
A boca graciosa, o riso honesto,
O collo de crystal, o branco peito,
De meu não quero mais que meu desejo,
Nem mais de vós, que ver tão lindo gesto.
Alli me manifesto
Por vosso a Deos e ao mundo; alli m'inflamo
Nas lagrimas que chóro;
E de mi que vos amo,
Em ver que soube amar-vos me namóro;
E fico por mi só perdido de arte,
Qu'hei ciumes de mi por vossa parte.
  Se por ventura vivo descontente
Por fraqueza d'esprito, padecendo
A doce pena qu'entender não sei,
Fujo de mi, e acolho-me correndo
Á vossa vista; e fico tão contente,
Que zombo dos tormentos que passei.
De quem me queixarei,
Se vós me dais a vida deste geito{
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/375]]==
<poem>
301}
Nos males que padeço,
Senão de meu sogeito,
Que não cabe com bem de tanto preço?
Mas inda isto de mi cuidar não posso,
D'estar muito soberbo com ser vosso.
  Se por algum acêrto Amor vos erra
Por parte do desejo, commettendo
Algum nefando e torpe desatino;
E s'inda mais que ver, emfim, pretendo;
Fraquezas são do corpo, qu'he de terra,
Mas não do pensamento, qu'he divino.
Se tão alto imagino
Que de vista me perco, ou pecco nisto,
Desculpa-me o que vejo.
Porém como resisto
Contra hum tão atrevido e vão desejo,
Faço-me forte em vossa vista pura,
Armando-me da vossa formosura.
  Das delicadas sobrancelhas pretas
Os arcos com que fere Amor tomou,
E fez a linda corda dos cabellos:
E porque de vós tudo lhe quadrou,
Dos raios desses olhos fez as settas
Com que fere quem alça os seus a vellos.
Olhos que são tão bellos
Dão armas de vantajem ao Amor,
Com que as almas destrue.
Porém se he grande a dor
Com a alteza do mal a restitue;
E as armas com que mata são de sorte,
Que ainda lhe ficais devendo a morte.{302}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/376]]==
<poem>
  Lagrimas, e suspiros, pensamentos,
Quem delles se queixar, formosa Dama,
Mimoso está do mal que por vós sente.
Qual bem maior deseja quem vos ama,
Qu'estar desabafando seus tormentos,
Chorando, imaginando docemente?
Quem vive descontente
Não ha de dar allívio a seu desgôsto,
Porque se lhe agradeça;
Mas com alegre rôsto
Soffra seus males, para que os mereça:
Que quem do mal se queixa, que padece,
O faz porqu'esta gloria não conhece.
  De modo que se cahe o pensamento
Em alguma fraqueza, de contente,
He porqu'este segredo não conheço.
Assi que com razões não tãosomente
Desculpo ao Amor de meu tormento,
Mas inda a culpa sua lh'agradeço.
Por esta fé mereço
A graça qu'esses olhos acompanha,
E o bem do doce riso.
Mas ah! que não se ganha
Co'hum paraiso, outro paraiso.
E d'enleada assi minha esperança
Se satisfaz co'o bem que não alcança.
  Se com razões escuso meu remedio,
Sabe, Canção, que só porque o não vejo,
Engano com palavras o desejo.{303}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/377]]==
<poem>

CANÇÃO II.
A instabilidade da fortuna,
Os enganos suaves d'Amor cego,
(Suaves se durárão longamente)
Direi, por dar á vida algum socêgo;
Que pois a grave pena m'importuna,
Importune meu canto a toda gente.
E se o passado bem co'o mal presente
M'endurecer a voz no peito frio;
O grande desvario
Dara de minha pena sinal certo;
Que hum êrro em tantos erros he concêrto.
E pois nesta verdade me confio,
(Se verdade se achar no mal que digo)
Saiba o mundo d'Amor o desengano,
Que ja com a razão se fez amigo,
Só por não deixar culpa sem castigo.
  Ja Amor fez leis, sem ter comigo alguma;
Ja se tornou de cego razoado,
Só por usar comigo semrazões.
E se em alguma cousa o tenho errado,
Com siso grande dor não vi nenhuma:
Nem elle deo sem erros affeições.
Mas, por usar de suas isenções,
Buscou fingidas causas de matar-me:
Que para derribar-me
A este abysmo infernal de meu tormento,
Nunca soberbo foi meu pensamento,{304}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/378]]==
<poem>

Nem pretendeo mais alto levantar-me
D'aquillo qu'elle quiz; e s'elle ordena
Qu'eu pague seu ousado atrevimento,
Saibão que o mesmo Amor, que me condena,
Me fez cahir na culpa e mais na pena.
  Os olhos, qu'eu adoro, aquelle dia
Que descêrão ao baixo pensamento,
N'alma os aposentei suavemente;
E pretendendo mais, como avarento,
O coração lhe dei por iguaria,
Que a meu mandado tinha obediente.
Mas, como lhes esteve alli presente,
E entendêrão o fim do meu desejo,
Ou por outro despejo,
Que a lingua descobrio por desvario,
Morto de sêde estou pôsto em hum rio,
Onde de meu servir o fructo vejo;
Mas logo se alça se a colhê-lo venho,
E foge-me a ágoa s'em beber porfio.
Assi qu'em fome e sêde me mantenho:
Não t~ee Tantalo a pena qu'eu sostenho.
  Despois que aquella, em quem minh'alma vive,
Quiz alcançar o baixo atrevimento,
Debaixo d'este engano a alcancei:
A nuvem do contino pensamento
Ma figurou nos braços, e assi tive
Sonhando, o que acordado desejei.
E porque a meu desejo me gabei
De conseguir hum bem de tanto preço;
Além do que padeço,
Atado em huma roda estou penando,{
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/379]]==
<poem>
305}
Qu'em mil mudanças me anda rodeando;
Onde, se a algum bem subo, logo deço.
E assi ganho, e assi perco a confiança;
E assi de mi fugindo traz mim ando;
E assi me t~ee atado huma vingança,
Como Ixião, tão firme na mudança.
  Quando a vista suave e inhumana
Meu humano desejo, de atrevido,
Commetteo, sem saber o que fazia,
(Que da sua belleza foi nascido
O cego moço, que com setta insana
O peccado vingou desta ousadia)
Afora este penar, qu'eu merecia,
Me deo outra maneira de tormento:
Que nunca o pensamento,
Voando sempre d'huma a outra parte,
Destas entranhas tristes bem se farte,
Imaginando como o famulento,
Que come mais e a fome vai crescendo,
Porque de atormentar-me não se aparte.
Assi que para a pena estou vivendo:
Sou outro novo Ticio, e não m'entendo.
  De vontades alheias, qu'eu roubava,
E que enganosamente recolhia
Em meu fingido peito, me mantinha.
O engano de maneira lhes fingia,
Que despois que a meu mando as sobjugava,
Com amor as matava, qu'eu não tinha.
Porém logo o castigo que convinha
O vingativo Amor me fez sentir,
Fazendo-me subir{306}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/380]]==
<poem>
Ao monte da aspereza qu'em vós vejo,
Co'o pezado penedo do desejo,
Que do cume do bem me vai cahir:
Tórno a subi-lo ao desejado assento;
Torna a cahir-me: em vão, emfim pelejo.
Sisypho, não t'espantes deste alento,
Que ás costas o subi do soffrimento.
  Dest'arte o summo bem se m'offerece
Ao faminto desejo, porque sinta
A perda de perdê-lo mais penosa.
Bem como o avaro, a quem o sonho pinta
O achado d'hum thesouro, onde enriquece,
E farta a sua sêde cobiçosa;
E acordando, com furia pressurosa
Vai o sítio cavar com que sonhava;
Mas tudo o que buscava
Lhe converte em carvão a desventura;
Alli sua cobiça mais se apura,
Por lhe faltar aquillo qu'esperava:
O Amor assi me faz perder o siso.
Porque aquelles qu'estão na noite escura
Não sentirião tanto o triste abisso,
Se ignorassem o bem do Paraisso.
  Canção, não mais; que ja não sei que diga:
Mas, porque a dor me seja menos forte,
Diga o pregão a causa desta morte.{307}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/381]]==
<poem>
CANÇÃO III.
Ja a roxa manhãa clara
As portas do Oriente vinha abrindo;
Os montes descobrindo
A negra escuridão da luz avara.
O sol, que nunca pára,
Da sua alegre vista saudoso,
Traz ella pressuroso
Nos cavallos cansados do trabalho,
Que respirão nas hervas fresco orvalho,
S'estende claro, alegre e luminoso.
Os passaros voando,
De raminho em raminho vão saltando;
E com suave e doce melodia
O claro dia estão manifestando.
  A manhãa bella, amena,
Seu rosto descobrindo, a espessura
Se cobre de verdura
Clara, suave, angelica, serena.
Oh deleitosa pena!
Oh effeito d'Amor alto e potente!
Pois permitte e consente
Qu'ou donde quer qu'eu ande, ou dond'esteja,
O seraphico gesto sempre veja,
Por quem de viver triste sou contente.
Mas tu, Aurora pura,
De tanto bem dá graças á ventura,
Pois as foi pôr em ti tão excellentes,
Que representes tanta formosura.{308}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/382]]==
<poem>

  A luz suave e leda
A meus olhos me mostra por quem mouro,
Com os cabellos d'ouro,
Que nenhum ouro iguala, se os remeda.
Esta a luz he que arreda
A negra escuridão do sentimento
Ao doce pensamento;
Os orvalhos das flores delicadas
São nos meus olhos lagrimas cansadas,
Qu'eu chóro co'o prazer de meu tormento;
Os passaros que cantão,
Meus espiritos são, que a voz levantão,
Manifestando o gesto peregrino
Com tão divino som, que o mundo espantão.
  Assi como acontece
A quem a chara vida está perdendo,
Qu'em quanto vai morrendo,
Alguma visão santa lh'apparece;
A mim em quem fallece
A vida, que sois vós, minha Senhora,
A est'alma, qu'em vós mora
(Em quanto da prisão s'está apartando)
Vos estais justamente apresentando
Em fórma de formosa e roxa Aurora.
Oh ditosa partida!
Oh gloria soberana, alta e subida!
Se me não impedir o meu desejo;
Porque o que vejo, emfim, me torna a vida.
  Porém a natureza,
Que nesta pura vista se mantinha,
Me falta tão asinha,{
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/383]]==
<poem>
309}
Como o sol faltar soe á redondeza.
Se houverdes qu'he fraqueza
Morrer em tão penoso e triste estado,
Amor será culpado,
Ou vós, ond'elle vive tão isento,
Que causastes tão largo apartamento,
Porque perdesse a vida co'o cuidado.
Que se viver não posso,
Homem formado só de carne e osso,
Esta vida que perco, Amor ma deo;
Que não sou meu: se morro, o damno he vosso.
  Canção de cysne, feita em hora extrema,
Na dura pedra fria
Da memoria te deixo em companhia
Do letreiro da minha sepultura;
Que a sombra escura ja m'impede o dia.
CANÇÃO IV.
Vão as serenas ágoas
Do Mondego descendo,
E mansamente até o mar não parão;
Por onde as minhas mágoas
Pouco a pouco crescendo,
Para nunca acabar se começárão.
Alli se me mostrárão
Neste lugar ameno,
Em qu'inda agora mouro,{310}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/384]]==
<poem>
Testa de neve e d'ouro;
Riso brando e suave; olhar sereno;
Hum gesto delicado,
Que sempre n'alma m'estará pintado.
  Nesta florída terra,
Leda, fresca e serena,
Ledo e contente para mi vivia;
Em paz com minha guerra,
Glorioso co'a pena
Que de tão bellos olhos procedia.
D'hum dia em outro dia,
O esperar m'enganava:
Tempo longo passei;
Com a vida folguei,
Só porqu'em bem tamanho s'empregava.
Mas que me presta ja,
Que tão formosos olhos não os ha?
  Oh quem me alli dissera
Que d'Amor tão profundo
O fim pudesse ver eu algum'hora!
E quem cuidar pudera
Que houvesse ahi no mundo
Apartar-me eu de vós, minha Senhora!
Para que desde agora,
Ja perdida a esperança,
Visse o vão pensamento
Desfeito em hum momento,
Sem me poder ficar mais que a lembrança;
Que sempre estará firme
Até no derradeiro despedir-me.
  Mas a mor alegria{311}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/385]]==
<poem>
Que daqui levar posso,
E com que defender-me triste espero,
He que nunca sentia
No tempo que fui vosso,
Quererdes-me vós quanto vos eu quero.
Porque o tormento fero
De vosso apartamento,
Não vos dará tal pena
Como a que me condena;
Que mais sentirei vosso sentimento,
Que o que a minh'alma sente.
Morra eu, Senhora; e vós ficae contente.
  Tu, Canção, estarás
Agora acompanhando
Por estes campos estas claras ágoas;
E por mi ficarás
Com chôro suspirando;
Porque, ao mundo dizendo tantas mágoas,
Como huma larga historia
Minhas lagrimas fiquem por memoria.
CANÇÃO V.
S'este meu pensamento,
Como he doce e suave,
D'alma pudesse vir gritando fóra;
Mostrando seu tormento
Cruel, aspero e grave,{312}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/386]]==
<poem>
Diante de vós só, minha Senhora;
Pudera ser que agora
O vosso peito duro
Tornára manso e brando.
E então eu, que sempre ando
Passaro solitario, humilde e escuro,
Tornado hum cysne puro,
Brando e sonoro, por o ar voando,
Com canto manifesto
Pintára a minha pena, e o vosso gesto.
  Pintára os olhos bellos
Que trazem nas meninas
O menino que os seus nelles cegou;
Os dourados cabellos
Em tranças d'ouro finas,
A quem o sol os raios seus baixou;
A testa que ordenou
Natura tão formosa;
O bem proporcionado
Nariz, lindo, afilado,
Que cada parte t~ee da fresca rosa;
A boca graciosa,
Que o querê-la louvar he ja 'scusado.
Emfim, he hum thesouro;
Perolas dentes, e palavras ouro.
  Víra-se claramente,
(Oh Dama delicada!)
Qu'em vós s'esmerou mais a natureza.
Mas eu, de gente em gente,
Trouxera trasladada
Em meu tormento vossa gentileza;{
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/387]]==
<poem>
313}
E somente a aspereza
De vossa condição,
Senhora, não dissera,
Porque se não soubera
Qu'em vós podia haver algum senão.
E se alguem, com razão,
Porque morres? dissesse, respondêra:
Morro, porque he tão bella,
Qu'inda não sou para morrer por ella.
  E quando, por ventura,
Dama, vos offendesse,
Escrevendo de vós o que não sento,
E vossa formosura
Tanto á terra descesse,
Que a alcançasse humano entendimento;
Sería o fundamento
De tudo o qu'eu cantasse,
Todo de puro amor;
Porque o vosso louvor
Em figura de mágoas se mostrasse.
E aonde se julgasse
A causa por o effeito, a minha dor
Diria alli sem medo:
Quem me sentir verá de quem procedo.
  Logo então mostraria
Os olhos saudosos,
E o suspirar que traz a alma comsigo;
A fingida alegria;
Os passos vagarosos;
O fallar e esquecer-me do que digo;
Hum pelejar comigo,{314}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/388]]==
<poem>
E logo desculpar-me;
Hum recear ousando;
Andar meu bem buscando,
E de o poder achar acovardar-me;
E, emfim, averiguar-me
Que o fim de tudo quanto estou fallando,
São lagrimas e amores;
São vossas isenções e minhas dores.
  Mas quem terá, Senhora,
Palavras com qu'iguale
Com vossa formosura a minha pena;
E em doce voz de fóra
Aquella gloria falle
Que dentro na minh'alma Amor ordena?
Não póde tão pequena
Fôrça d'engenho humano
Com carga tão pezada,
Se não for ajudada
D'hum piedoso olhar, d'hum doce engano,
Que fazendo-me o dano
Vão deleitoso e a dor tão moderada,
Emfim se convertesse
No gôsto dos louvores qu'escrevesse.
  Canção, não digas mais; e se teus versos
Á pena vem pequenos,
Não queirão de ti mais; que dirás menos.{
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/389]]==
<poem>
315}
CANÇÃO VI.
Com força desusada
Aquenta o fogo eterno
Huma Ilha nas partes do Oriente,
D'estranhos habitada,
Aonde o duro inverno
Os campos reverdece alegremente.
A Lusitana gente
Por armas sanguinosas
T~ee della o senhorio.
Cercada está d'hum rio
De maritimas ágoas saudosas.
Das hervas qu'aqui nascem,
Os gados juntamente e os olhos pascem.
  Aqui minha ventura
Quiz que huma grande parte
Da vida, qu'eu não tinha, se passasse;
Para que a sepultura
Nas mãos do fero Marte
De sangue e de lembranças matizasse.
Se Amor determinasse
Que a trôco desta vida,
De mi qualquer memoria
Ficasse como historia,
Que d'huns formosos olhos fosse lida;
A vida e a alegria
Por tão doce memoria trocaria.
  Mas este fingimento,{316}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/390]]==
<poem>
Por minha dura sórte,
Com falsas esperanças me convida.
Não cuide o pensamento
Que póde achar na morte
O que não pôde achar tão longa vida.
Está ja tão perdida
A minha confiança,
Que de desesperado,
Em ver meu triste estado,
Tambem da morte perco a esperança.
Mas oh! que s'algum dia
Desesperar pudesse, viveria.
  De quanto tenho visto
Ja agora não m'espanto,
Que até desesperar se me defende.
Outrem foi causa disto,
Pois eu nunca fui tanto
Que causasse este fogo que m'encende.
Se cuidão que m'offende
Temor d'esquecimento,
Oxalá meu perigo
Me fôra tão amigo,
Que algum temor deixára ao pensamento!
Quem vio tamanho enleio,
Que houvesse ahi'sperança sem receio?
  Quem t~ee que perder possa,
Só póde recear.
Mas triste quem não póde ja perder!
Senhora, a culpa he vossa,
Que para me matar
Bastára hum'hora só de vos não ver.{
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/391]]==
<poem>
317}
Puzestes-me em poder
De falsas esperanças:
E do que mais m'espanto,
Que nunca vali tanto,
Que visse tanto bem, como esquivanças.
Valia tão pequena
Não póde merecer tão doce pena.
  Houve-se Amor comigo
Tão brando, ou pouco irado,
Quanto agora em meus males se conhece.
Que não ha mor castigo
Para quem t~ee errado,
Que negar-lhe o castigo que merece.
Da sórte que acontece
Ao misero doente,
Da cura despedido,
Que o Medico advertido
Tudo quanto deseja lhe consente;
O Amor me consentia
Esperanças, desejos e ousadia.
  E agora venho a dar
Conta do bem passado
A esta triste vida e longa ausencia.
Quem póde imaginar
Qu'houvesse em mi peccado
Digno d'huma tão grave penitencia?
Olhae que he consciencia
Por tão pequeno êrro,
Senhora, tanta pena.
Não vêdes que he onzena?
Mas se tão longo e misero destêrro{318}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/392]]==
<poem>
Vos dá contentamento,
Nunca m'acabe nelle o meu tormento.
  Rio formoso e claro,
E vós, ó arvoredos,
Que os justos vencedores coroais,
E ao cultor avaro,
Continuamente ledos,
D'hum tronco só diversos fructos dais;
Assi nunca sintais
Do tempo injúria alg~ua,
Qu'em vós achem abrigo
As mágoas que aqui digo,
Em quanto der o sol virtude á l~ua;
Porque de gente em gente
Saibão que ja não mata a vida ausente.
  Canção, neste destêrro viverás,
Voz nua e descoberta,
Até que o tempo em ecco te converta.
CANÇÃO VII.
Manda-me Amor que cante docemente
O qu'elle ja em minh'alma t~ee impresso,
Com presupposto de desabafar-me;
E porque com meu mal seja contente,
Diz que o ser de tão lindos olhos preso,
Cantá-lo bastaria a contentar-me.
Este excellente modo d'enganar-me{
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/393]]==
<poem>
319}
Tomára eu só d'Amor por interêsse,
Se não s'arrependesse,
Com a pena o engenho escurecendo.
Porém a mais me atrevo,
Em virtude do gesto de qu'escrevo.
E s'he mais o que canto que o qu'entendo,
Invoco o lindo aspeito,
Que póde mais que Amor, em meu defeito.
  Sem conhecer a Amor viver sohia,
Seu arco e seus enganos desprezando,
Quando vivendo delles me mantinha.
Hum Amor enganoso, que fingia,
Mil vontades alheias enganando,
Me fazia zombar de quem o tinha.
No Touro entrava Phebo, e Progne vinha;
O corno de Acheloo Flora entornava;
Quando o Amor soltava
Os fios d'ouro, as tranças encrespadas,
Ao doce vento esquivas;
Os olhos rutilando chammas vivas;
E as rosas entre a neve semeadas;
Co'o riso tão galante,
Que hum peito desfizera de diamante.
  Hum não sei que suave respirando,
Causava hum admiravel, novo espanto,
Que as cousas insensiveis o sentião.
Alli as garrulas aves, levantando
Vozes não ordinarias em seu canto,
Como eu no meu desejo, s'encendião.
As fontes crystallinas não corrião,
D'inflammadas na vista linda e pura;{320}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/394]]==
<poem>
Florecia a verdura,
Que andando co'os divinos pés tocava;
Os ramos se baixavão,
Ou d'inveja das hervas que pizavão,
Ou porque tudo ant'ella se baixava.
Não houve cousa, emfim,
Que não pasmasse della, e eu de mim.
  Porque, quando vi dar entendimento
Ás cousas que o não tinhão, o temor
Me fez cuidar qu'effeito em mi faria.
Conheci-me não ter conhecimento:
Porém só nisto o tive, porque Amor
Mo deixou para ver o que podia.
Tanta vingança Amor de mi queria,
Que mudava a humana natureza
Nos montes, e a dureza
Delles em mi por trôco traspassava.
Oh que gentil partido,
Trocar o ser do monte sem sentido,
Por o qu'em hum juizo humano estava!
Olhae que doce engano!
Tirar commum proveito de meu dano.
  Assi qu'indo perdendo o sentimento
A parte racional, m'entristecia
Vê-la a hum appetite submettida.
Mas dentro n'alma o fim do pensamento,
Por tão sublime causa, me dizia
Qu'era razão ser a razão vencida.
Assi que quando a via ser perdida,
A mesma perdição a restaurava:
E em mansa paz estava{321}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/395]]==
<poem>
Cada hum com seu contrário em hum sogeito.
Oh grão concêrto este!
Quem será que não julgue por celeste
A causa donde vem tamanho effeito,
Que faz n'hum coração
Que venha o appetite a ser razão?
  Aqui senti d'Amor a mor fineza,
Como foi ver sentir o insensivel,
E o ver a mi de mi proprio perder-me:
E, emfim, senti negar-se a natureza;
Por onde cri que tudo era possivel
Aos lindos olhos seus, senão querer-me.
Despois que ja senti desfallecer-me,
Em lugar do sentido que perdia,
Não sei quem m'escrevia
Dentro n'alma co'as letras da memoria
O mais deste processo,
Co'o claro gesto juntamente impresso,
Que foi a causa de tão longa historia.
Se bem a declarei,
Eu não a escrevo, d'alma a trasladei.
  Canção, se quem te ler
Não crer dos olhos lindos o que dizes,
Por o que a si s'esconde;
Os sentidos humanos (lhe responde)
Não podem dos divinos ser juizes,
Senão hum pensamento
Que a falta suppra a fé do entendimento.{322}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/396]]==
<poem>
CANÇÃO VIII.[3]
Manda-me Amor que cante o qu'a alma sente,
Caso que nunca em verso foi cantado,
Nem d'antes entre a gente acontecido.
Assi me paga em parte o meu cuidado;
Pois que quer que me louve e represente
Quão bem soube no mundo ser perdido.
Sou parte, e não serei da gente crido:
Mas he tamanho o gôsto de louvar-me,
E de manifestar-me
Por captivo de gesto tão formoso,{
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/397]]==
<poem>
323}
Que todo o impedimento
Rompe e desfaz a gloria do tormento
Peregrino, suave e deleitoso;
Que bem sei que o que canto
Ha d'achar menos credito qu'espanto.
  Em vivia do cego Amor isento,
Porém tão inclinado a viver preso,
Que me dava desgôsto a liberdade.
Hum natural desejo tinha acceso
D'algum ditoso e doce pensamento,
Que m'illustrasse a insana mocidade.
Tornava do anno ja a primeira idade;
A revestida terra s'alegrava,
Quando o Amor me mostrava
De fios d'ouro as tranças desatadas
Ao doce vento estivo;
Os olhos rutilando lume vivo,
As rosas entre a neve semeadas;
O gesto grave e ledo,
Que juntos move em mi desejo e medo.
  Hum não sei que suave respirando,
Causava hum desusado e novo espanto,
Que as cousas insensiveis o sentião.
Porque as garrulas aves, entretanto
Vozes desordenadas levantando,
Como eu em meu desejo, s'encendião.
As fontes crystallinas não corrião,
Inflammadas na vista clara e pura;
Florecia a verdura,
Que, andando, co'os ditosos pés tocava;
As ramas se baixavão,{324}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/398]]==
<poem>
Ou d'inveja das hervas que pizavão,
Ou porque tudo ant'elles se baixava:
O ar, o vento, o dia,
D'espiritos continuos influia.
  E quando vi que dava entendimento
A cousas fóra delle, imaginei
Que milagres faria em mi que o tinha:
Vi que me desatou da minha lei,
Privando-me de todo sentimento,
E em outra transformando a vida minha.
Com tamanhos poderes d'Amor vinha,
Que o uso dos sentidos me tirava.
E não sei como o dava
Contra o poder e ordem da natura,
Ás arvores, aos montes,
Á rudeza das hervas e das fontes,
Que conhecêrão logo a vista pura.
Fiquei eu só tornado
Quasi em hum rudo tronco d'admirado.
  Despois de ter perdido o sentimento,
D'humano hum só desejo me ficava,
Em que toda a razão se convertia.
Mas não sei quem no peito m'affirmava
Que por tão alto e doce pensamento,
Com razão, a razão se me perdia.
Assi que quando mais perdida a via,
Na sua mesma perda se ganhava.
Em doce paz estava
Com seu contrário proprio em hum sogeito.
Oh caso estranho e novo!
Por alta e grande certamente approvo{325}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/399]]==
<poem>
A causa, donde vem tamanho effeito,
Que faz n'hum coração
Que hum desejo, sem ser, seja razão.
  Despois d'entregue ja ao meu desejo,
Ou quasi nelle todo convertido,
Solitario, sylvestre e inhumano,
Tão contente fiquei de ser perdido,
Que me parece tudo quanto vejo
Escusado, senão meu proprio dano.
Bebendo este suave e doce engano,
A trôco dos sentidos que perdia,
Vi que Amor m'esculpia
Dentro n'alma a figura illustre e bella,
A gravidade, o siso,
A mansidão, a graça, o doce riso.
E porque não cabia dentro nella
De bens tamanhos tanto,
Sahe por a boca convertido em canto.
  Canção, se te não crerem
Daquelle claro gesto quanto dizes,
Por o que se lhe esconde;
Os sentidos humanos (lhe responde)
Não podem dos divinos ser juizes,
Senão hum pensamento,
Que a falta suppra a fé do entendimento.{326}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/400]]==
<poem>
CANÇÃO IX.
Tomei a triste pena
Ja de desesperado
De vos lembrar as muitas que padeço;
Vendo que me condena
A ficar eu culpado
O mal que me tratais, e o que mereço.
Confesso que conheço
Qu'em parte a causa dei
Ao mal em que me vejo,
Pois sempre o meu desejo
A tão largas promessas entreguei;
Mas não tive suspeita
Que seguisseis tenção tão imperfeita.
  S'em vosso esquecimento
Tão condemnado estou,
Como os sinaes demostrão, que mostrais;
Neste vivo tormento,
Lembranças mais não dou
Que as que desta razão tomar queirais:
Olhae que me tratais
Assi de dia em dia
Com vossas esquivanças;
E as vossas esperanças,
De que vãamente ja m'enriquecia,
Renovão a memoria;
Pois com a ter de vós só tenho gloria.
  E s'isto conhecesseis{
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/401]]==
<poem>
327}
Ser verdade mais pura
Do que d'Arabia o ouro reluzente;
Inda que não quizesseis,
Essa condição dura
Em branda se mudára facilmente.
Eu, vendo-me innocente,
Senhora neste caso,
Bem no arbitrio o puzera
De quem sentença dera,
Com que o que he justo se mostrasse raso;
Se, emfim, não receára
Que a vós por mi, e a mi por vós matára.
  Em vós escrita vi
Vossa grande dureza,
E n'alma escrita está, que de vós vive:
Não que acabasse alli
Sua grande firmeza
O triste desengano qu'então tive;
Porque antes que me prive
A dor de meus sentidos,
Ao penoso tormento
Acode o entendimento
Com dous fortes soldados guarnecidos
De rica pedraria,
Que ficão sendo minha luz e guia.
  Destes acompanhado
Estou pôsto sem medo
A tudo o que o fatal destino ordene:
Póde ser que cansado,
Ou seja tarde, ou cedo,
Com pena de penar-me, me despene.{328}

</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/402]]==
<poem>
E quando me condene
(Qu'he o que mais espero)
Inda a penas maiores;
Perdidos os temores,
Por mais que venhão, não direi, não quero.
Estou, emfim, tão forte,
Que não pode mudar-me a propria morte.
  Canção, se ja não queres
Crer tanta crueldade,
Lá vae onde verás minha verdade.
CANÇÃO X.
Junto d'hum sêcco, duro, esteril monte,
Inutil e despido, calvo e informe,
Da natureza em tudo aborrecido;
Onde nem ave vôa, ou fera dorme,
Nem corre claro rio, ou ferve fonte,
Nem verde ramo faz doce ruido;
Cujo nome, do vulgo introduzido,
He Feliz, por antiphrasi infelice;
O qual a natureza
Situou junto á parte,
Aonde hum braço d'alto mar reparte
A Abassia da Arabica aspereza,
Em que fundada ja foi Berenice,
Ficando á parte, donde
O sol, que nella ferve, se lh'esconde;{329}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/403]]==
<poem>
  O cabo se descobre, com que a costa
Africana, que do Austro vem correndo,
Limite faz, Arómata chamado:
Arómata outro tempo; que volvendo
A roda, a ruda lingua mal composta
Dos proprios outro nome lhe t~ee dado.
Aqui, no mar, que quer apressurado
Entrar por a garganta deste braço,
Me trouxe hum tempo e teve
Minha fera ventura.
Aqui nesta remota, aspera e dura
Parte do mundo, quiz que a vida breve
Tambem de si deixasse hum breve espaço;
Porque ficasse a vida
Por o mundo em pedaços repartida.
  Aqui me achei gastando huns tristes dias,
Tristes, forçados, maos e solitarios,
De trabalho, de dor, e d'ira cheios:
Não tendo tãosomente por contrarios
A vida, o sol ardente, as ágoas frias,
Os ares grossos, férvidos e feios,
Mas os meus pensamentos, que são meios
Para enganar a propria natureza,
Tambem vi contra mi;
Trazendo-me á memoria
Alguma ja passada e breve gloria,
Qu'eu ja no mundo vi, quando vivi;
Por me dobrar dos males a aspereza;
Por mostrar-me que havia
No mundo muitas horas d'alegria.
  Aqui'stive eu com estes pensamentos{330}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/404]]==
<poem>
Gastando tempo e vida; os quaes tão alto
Me subião nas asas, que cahia
(Oh vêde se seria leve o salto!)
De sonhados e vãos contentamentos
Em desesperação de ver hum dia.
O imaginar aqui se convertia
Em improvisos choros e em suspiros,
Que rompião os ares.
Aqui a alma captiva,
Chagada toda, estava em carne viva,
De dores rodeada e de pezares,
Desamparada e descoberta aos tiros
Da soberba Fortuna;
Soberba, inexoravel e importuna.
  Não tinha parte donde se deitasse,
Nem esperança alguma, onde a cabeça
Hum pouco reclinasse, por descanso:
Tudo dor lhe era e causa que padeça,
Mas que pereça não; porque passasse
O que quiz o destino nunca manso.
Oh qu'este irado mar gemendo amanso!
Estes ventos, da voz importunados,
Parece que se enfreião:
Somente o Ceo severo,
As estrellas e o fado sempre fero,
Com meu perpétuo damno se recreião;
Mostrando-se potentes e indignados
Contra hum corpo terreno,
Bicho da terra vil e tão pequeno.
  Se de tantos trabalhos só tirasse
Saber inda por certo que algum'hora{
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/405]]==
<poem>
331}
Lembrava a huns claros olhos que ja vi;
E s'esta triste voz, rompendo fóra,
As orelhas angelicas tocasse
Daquella em cuja vista ja vivi;
A qual, tornando hum pouco sôbre si,
Revolvendo na mente pressurosa
Os tempos ja passados
De meus doces errores,
De meus suaves males e furores,
Por ella padecidos e buscados,
E (pôsto que ja tarde) piedosa,
Hum pouco lhe pezasse,
E lá entre si por dura se julgasse:
  Isto só que soubesse me seria
Descanso para a vida que me fica;
Com isto affagaria o soffrimento.
Ah Senhora! Ah Senhora! E que tão rica
Estais, que cá tão longe d'alegria
Me sustentais com doce fingimento!
Logo que vos figura o pensamento,
Foge todo o trabalho e toda a pena.
Só com vossas lembranças
Me acho seguro e forte
Contra o rosto feroz da fera morte;
E logo se me juntão esperanças
Com que, a fronte tornada mais serena,
Torno os tormentos graves
Em saudades brandas e suaves.
  Aqui com ellas fico perguntando
Aos ventos amorosos, que respirão
Da parte donde estais, por vós Senhora;{332}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/406]]==
<poem>
Ás aves qu'alli voão, se vos virão,
Que fazieis, qu'estaveis praticando;
Onde, como, com quem, que dia e que hora.
Alli a vida cansada se melhora,
Toma espiritos novos, com que vença
A fortuna e trabalho,
Só por tornar a ver-vos,
Só por ir a servir-vos e querer-vos.
Diz-me o tempo que a tudo dará talho:
Mas o desejo ardente, que detença
Nunca soffreo, sem tento
Me abre as chagas de novo ao soffrimento.
  Assi vivo; e s'alguem te perguntasse,
Canção, porque não mouro;
Podes-lhe responder; que porque mouro.
CANÇÃO XI.
Vinde cá meu tão certo Secretario
Dos queixumes que sempre ando fazendo,
Papel, com quem a pena desaffógo.
As semrazões digamos, que vivendo
Me faz o inexoravel e contrário
Destino, surdo a lagrimas e a rôgo.
Lancemos ágoa pouca em muito fogo,
Accenda-se com gritos hum tormento,
Que a todas as memorias seja estranho.
Digamos mal tamanho{
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/407]]==
<poem>
333}
A Deos, ao mundo, á gente e, emfim, ao vento,
A quem ja muitas vezes o contei,
Tanto debalde como o conto agora.
Mas ja que para errores fui nascido,
Vir este a ser hum delles não duvido.
E, pois ja d'acertar estou tão fóra,
Não me culpem tambem se nisto errei.
Se quer este refúgio só terei,
Fallar e errar, sem culpa, livremente.
Triste quem de tão pouco está contente!
  Ja me desenganei que de queixar-me
Não s'alcança remedio; mas quem pena,
Forçado lh'he gritar, se a dor he grande.
Gritarei; mas he debil e pequena
A voz para poder desabafar-me;
Porque nem com gritar a dor se abrande.
Quem me dará se quer que fóra mande
Lagrimas e suspiros infinitos,
Iguaes ao mal que dentro na alma mora?
Mas quem pôde algum'hora
Medir o mal com lagrimas, ou gritos?
Direi, emfim, aquillo que m'ensinão
A ira, e mágoa, e dellas a lembrança,
Que outra dor he por si mais dura e firme.
Chegae, desesperados, para ouvir-me;
E fujão os que vivem d'esperança,
Ou aquelles que nella se imaginão;
Porque Amor e Fortuna determinão
De lhes deixar poder para entenderem
Á medida dos males que tiverem.
  Quando vim da materna sepultura{334}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/408]]==
<poem>

De novo ao mundo, logo me fizerão
Estrellas infelices obrigado:
Com ter livre alvedrio, mo não derão;
Qu'eu conheci mil vezes na ventura
O melhor, e o peor segui forçado.
E para que o tormento conformado
Me dessem com a idade, quando abrisse
Inda menino os olhos brandamente,
Mândão que diligente
Hum menino sem olhos me ferisse.
As lagrimas da infancia ja manavão
Com huma saudade namorada;
O som dos gritos, que no berço dava,
Ja como de suspiros me soava.
Co'a idade e fado estava concertado:
Porque quando por caso m'embalavão,
Se d'Amor tristes versos me cantavão,
Logo m'adormecia a natureza;
Que tão conforme estava co'a tristeza!
  Foi minh'ama huma fera; que o destino
Não quiz que mulher fosse a que tivesse
Tal nome para mi; nem a haveria.
Assi criado fui, porque bebesse
O veneno amoroso de menino,
Que na maior idade beberia,
E por costume não me mataria.
Logo então vi a image e semelhança
Daquella humana fera tão formosa,
Suave e venenosa,
Que me criou aos peitos da esperança;
De quem eu vi despois o original,{335}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/409]]==
<poem>

Que de todos os grandes desatinos
Faz a culpa soberba e soberana.
Parece-me que tinha fórma humana,
Mas scintilava espiritos divinos.
Hum meneio, e presença tinha tal,
Que se vangloriava todo o mal
Na vista della: a sombra co'a viveza
Excedia o poder da natureza.
  Que genero tão novo de tormento
Teve Amor, sem que fosse não somente
Provado em mi, mas todo executado?
Implacaveis durezas, que ao fervente
Desejo, que dá fôrça ao pensamento,
Tinhão de seu proposito abalado,
E corrido de ver-se e injuriado:
Aqui sombras phantasticas, trazidas
D'algumas temerarias esperanças;
As bem-aventuranças
Tambem nellas pintadas e fingidas.
Mas a dor do desprêzo recebido,
Que todo o phantasiar desatinava,
Estes enganos punha em desconcêrto.
Aqui o adivinhar, e o ter por certo
Qu'era verdade quanto adivinhava,
E logo o desdizer-me de corrido;
Dar ás cousas que via outro sentido;
E para tudo, emfim, buscar razões:
Mas erão muitas mais as semrazões.
  Não sei como sabía estar roubando
Co'os raios as entranhas, que fugião
Par'ella por os olhos subtilmente!{336}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/410]]==
<poem>
Pouco a pouco invisiveis me sahião;
Bem como do véo humido exhalando
Está o subtil humor o sol ardente.
O gesto puro, emfim, e transparente,
Para quem fica baixo e sem valia
Este nome de bello e de formoso;
O doce e piedoso
Mover d'olhos, que as almas suspendia,
Forão as hervas magicas, que o Ceo
Me fez beber: as quaes por longos anos
N'outro ser me tiverão transformado,
E tão contente de me ver trocado,
Que as mágoas enganava co'os enganos;
E diante dos olhos punha o véo,
Que m'encobrisse o mal que assi cresceo:
Como quem com affagos se criava
Daquella para quem crescido estava.
  Pois quem póde pintar a vida ausente,
Com hum descontentar-me quanto via,
E aquell'estar tão longe donde estava;
O fallar sem saber o que dizia;
Andar sem ver por onde, e juntamente
Suspirar sem saber que suspirava?
Pois quando aquelle mal m'atormentava,
E aquella dor, que das Tartareas ágoas
Sahio ao mundo, e mais que todas doe,
Que tantas vezes soe
Duras íras tornar em brandas mágoas?
Agora co'o furor da mágoa irado,
Querer, e não querer deixar de amar;
E mudar n'outra parte, por vingança,{
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/411]]==
<poem>
337}
O desejo privado d'esperança,
Que tão mal se podia ja mudar?
Agora a saudade do passado,
Tormento puro, doce e magoado,
Que converter fazia estes furores
Em magoadas lagrimas d'amores?
  Que desculpas comigo só buscava,
Quando o suave Amor me não soffria
Culpa na cousa amada, e tão amada!
Erão, emfim, remedios que fingia
O medo do tormento, qu'ensinava
A vida a sustentar-se d'enganada.
Nisto huma parte della foi passada;
Na qual se tive algum contentamento
Breve, imperfeito, timido, indecente,
Não foi senão semente
D'hum cumprido, amarissimo tormento.
Este curso contino de tristeza,
Estes passos vãamente derramados,
Me forão apagando o ardente gôsto,
Que tão de siso n'alma tinha pôsto,
Daquelles pensamentos namorados
Com que criei a tenra natureza,
Que do longo costume da aspereza,
Contra quem fôrça humana não resiste,
Se converteo no gôsto de ser triste.
  Dest'arte a vida em outra fui trocando;
Eu não, mas o destino fero, irado;
Qu'eu, inda assi, por outra a não trocára.
Fez-me deixar o patrio ninho amado,
Passando o longo mar, que ameaçando{338}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/412]]==
<poem>
Tantas vezes m'esteve a vida chara.
Agora exprimentando a furia rara
De Marte, que nos olhos quiz que logo
Visse, e tocasse o acerbo fructo seu.
E neste escudo meu
A pintura verão do infesto fogo.
Agora peregrino, vago, errante,
Vendo nações, linguagens e costumes,
Ceos varios, qualidades differentes,
Só por seguir com passos diligentes
A ti, Fortuna injusta, que consumes
As idades, levando-lhes diante
Huma esperança em vista de diamante:
Mas quando das mãos cahe se conhece
Que he fragil vidro aquillo que apparece.
  A piedade humana me faltava,
A gente amiga ja contrária via,
No perigo primeiro; e no segundo,
Terra em que pôr os pés me fallecia,
Ar para respirar se me negava,
E faltava-me, emfim, o tempo e o mundo.
Que segredo tão arduo e tão profundo,
Nascer para viver e para a vida,
Faltar-me quanto o mundo t~ee para ella!
E não poder perdella,
Estando tantas vezes ja perdida!
Emfim, não houve trance de fortuna,
Nem perigos, nem casos duvidosos,
Injustiças daquelles que o confuso
Regimento do mundo, antigo abuso,
Faz sôbre os outros homens poderosos,{
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/413]]==
<poem>
339}
Qu'eu não passasse, atado á fiel coluna
Do soffrimento meu, que a importuna
Perseguição de males em pedaços
Mil vezes fez á fôrça de seus braços.
  Não conto tantos males, como aquelle
Que despois da tormenta procellosa,
Os casos della conta em porto ledo;
Qu'inda agora a fortuna fluctuosa
A tamanhas miserias me compelle,
Que de dar hum só passo tenho medo.
Ja de mal que me venha não m'arredo,
Nem bem que me falleça ja pretendo;
Que para mi não val astucia humana,
De fôrça soberana,
Da Providencia, emfim, Divina pendo.
Isto que cuido e vejo, ás vezes tomo
Para consolação de tantos danos.
Mas a fraqueza humana quando lança
Os olhos no que corre, e não alcança
Senão memoria dos passados anos;
As ágoas qu'então bebo, e o pão que como,
Lagrimas tristes são, qu'eu nunca domo,
Senão com fabricar na phantasia
Phantasticas pinturas d'alegria.
  Que se possivel fosse que tornasse
O tempo para traz, como a memoria,
Por os vestigios da primeira idade;
E de novo tecendo a antigua historia
De meus doces errores, me levasse
Por as flores que vi da mocidade;
E a lembrança da longa saudade{340}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/414]]==
<poem>

Então fosse maior contentamento,
Vendo a conversação leda e suave,
Onde huma e outra chave
Esteve de meu novo pensamento,
Os campos, as passadas, os sinais,
A vista, a neve, a rosa, a formosura,
A graça, a mansidão, a cortezia,
A singela amizade, que desvia
Toda a baixa tenção, terrena, impura,
Como a qual outra alguma não vi mais...
Ah vãas memorias! onde me levais
O debil coração, qu'inda não posso
Domar bem este vão desejo vosso?
  Não mais, Canção, não mais; qu'irei fallando,
Sem o sentir, mil annos; e se acaso
Te culparem de larga e de pezada;
Não póde ser (lhe dize) limitada
A ágoa do mar em tão pequeno vaso.
Nem eu delicadezas vou cantando
Co'o gôsto do louvor, mas explicando
Puras verdades ja por mi passadas.
Oxalá forão fábulas sonhadas!
CANÇÃO XII.
Nem roxa flor de Abril,
Pintor do campo ameno e da verdura,
Colhida entre outras mil,{
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/415]]==
<poem>
341}
Foi nunca assi agradavel á donzella
Cortez, alegre e bella,
De sua mãe cuidado e glória pura,
Como a mi foi a inculta formosura
Natural, que pudera
A Saturno render na sua Esphera.
  Natural fonte agreste,
Não lavrada d'Artifice excellente,
Mas por arte celeste
Derivada de rustico penedo,
Não fez ja mais tão ledo
Cansado caçador por sesta ardente,
Quanto o cuidado a mi me fez contente
Do ver tão descuidado,
Que faz sereno a Jupiter irado.
  Fructa, que sem concêrto
Naturalmente em ramos se pendura,
Achada por acêrto;
A quem pintada a vê de sangue e leite,
Não lhe dara o deleite,
Qu'essa graça me dá sem compostura,
Ornamento da mesma formosura,
E o toucado sem arte,
Que tornára pastor ao bravo Marte.
  A manhãa graciosa,
Que derramando sahe d'entre os cabellos
A flor, o lirio, a rosa,
Sem ajuda d'ornato, ou d'artificio,
Não faz o beneficio,
Que faz a luz dos vossos olhos bellos
A quem os vê tão puros e singelos;{342}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/416]]==
<poem>
E esse innocente riso,
Por quem Apollo o Tejo torna Amphriso.
  Outeiros coroados
Das árvores que fazem a espessura
Com os ramos copados
Alegre, que mão destra os não cultiva,
Graça tão excessiva
Não t~ee na sua natural verdura,
Quanta na d'esses olhos, clara e pura,
Deposita a esperança,
Com que Amor gôsto, a mãe tormento alcança.
  Dos simples passarinhos
A musica sem arte concertada,
D'entre os verdes raminhos,
Tão suave não he, tão deleitosa
A quem na selva umbrosa
Com mente ouvindo-a está toda enlevada,
Quanto a mi essa falla doce agrada,
E o natural aviso,
Que roubão a Mercurio sceptro e siso.
  De frescos rios ágoa,
Que clara entre arvoredos se deriva,
Cahindo d'alta fragoa,
Esmaltando de perolas no prado
O verde delicado,
Com brando som aos olhos fugitiva,
Não nos alegra quanto a graça esquiva
D'essa luz soberana,
Que faz cortez a rustica Diana.
  A tal luz (ó Canção, que ousaste vella!)
Vendo estás ja prostrado{343}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/417]]==
<poem>
Saturno triste, Jupiter irado,
Bravo Marte, aureo Apollo, Venus bella,
E Mercurio, e Diana, e toda estrella.
CANÇÃO XIII.
Oh pomar venturoso,
Onde co'a natureza
A subtil arte t~ee demanda incerta;
Qu'em sítio tão formoso
A maior subtileza
D'engenho em ti nos mostras descoberta!
Nenhum juizo acerta,
De cego e d'enlevado,
Se t~ee em ti mais parte
A natureza, ou arte;
Se Terra ou Ceo de ti t~ee mais cuidado,
Pois em feliz terreno
Gozas d'hum ar mais puro e mais sereno.
  De teu formoso pêzo
Se mostra o monte ledo,
E o caudaloso Zezere t'estranha,
Porque ólhas com desprêzo
Seu crystal puro e quedo,
Que com Pera os teus pés rodeia e banha.
Em ti pintura estranha,
A que Apelles cedêra,
Enigmas intricados,
E myrtos animados{344}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/418]]==
<poem>
Vemos, que o proprio Escopas não fizera;
Em ti, co'a paz interna,
T~ee o santo prazer morada eterna.
  Os jardins da famosa
Babel, tão nomeados,
Por maravilha o mundo não levante,
Inda que com gloriosa
Voz, qu'estão pendurados
Do instavel ar, a fama antigua cante:
Nem haja quem s'espante
Dos famosos d'Alcino;
Nem as mais doutas pennas
Cantem os de Mecenas,
Cultor de todo engenho peregrino;
Mas onde quer que vôe,
De ti só falle a Fama, e te pregôe.
  Que s'era antiguamente
De pomos d'ouro bellos
O jardim das Hesperidas ornado;
E, a pezar da serpente
Que os guardou, só colhellos
Pôde o famoso Alcides, d'esforçado;
Tu, mais avantajado,
Mostras a hum'alma casta
Seguir o que deseja,
Fugir da torpe inveja
(Pomos d'ouro que o tempo não contrasta):
Emfim, co'a caridade
Vencer o Inferno, abrir a Eternidade.
  Por tanto da ventura,
Para ti reservada,{345}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/419]]==
<poem>
Te deixe o Ceo gozar perpetuamente;
Porque sejas figura
Da gloria avantajada
Delle mesmo, e qu'em ti se represente;
Porqu'em quanto sustente
O ceo, o mar e a terra,
Seus feitos milagrosos,
Mysterios mais gloriosos,
Com que a morte das almas nos desterra,
Por onde em nossas almas
Com mais pompas triumpha e com mais palmas,
.......................
  Goza, pois, longamente
Teu venturoso fado,
Da mãe do teu autor bem possuido:
Qu'em ti, sempre contente
De seu sublime estado,
A alma dos seus alegra e o sentido.
Cada qual preferido
Nas grandes qualidades
Ao sabio Nestor seja,
Para que o mundo os veja
Exceder as longuissimas idades;
E com a longa vida
Seja sua memoria ennobrecida.
  Canção, pois mais famosas
Por ti não podem ser
Deste monte as estancias deleitosas;
Bem póde succeder
Que aquelle que os teus numeros governa,
Por querê-las cantar te faça eterna.{346}
CANÇÃO
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/420]]==
<poem>
XIV.
Quem com sólido intento
Os segredos buscar da natureza,
Quanto d'Athenas préza,
Entregue ao mar irado, ao leve vento:
Em forjar meu tormento,
Nova Philosophia,
D'experiencias feita, Amor m'ensina.
Das Leis do antigo tempo bem declina;
Que Amor a natureza em mi varía;
Donde escola de Sabios nunca vio
Em natural sogeito
Quanto Amor em meu peito descobrio.
  As aves no ar sereno,
O gado de Proteo nas ágoas pasce;
Vive o homem e nasce
Neste mundo, qual mundo mais pequeno:
Eu tudo desordeno,
Em todos dividido;
A boca no ar, na terra o entendimento:
Dá-me esse Amor, dá-me esta o pensamento;
O coração no fogo he consumido:
Mas a ágoa, que dos olhos sempre desce,
T~ee effeito tão vário,
Qu'em hum humor contrário o fogo cresce.
  Da vista Amor sohia
Abrir ao coração segura entrada:
Lei he ja profanada;{
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/421]]==
<poem>
347}
Que quando a luz d'huns olhos me fería,
Amando o que não via,
Qual d'escopeta o lume,
Primeiro o querer vi, que a causa visse.
Quem o desejo co'a esperança unisse,
Cego iria apos cego e vil costume;
Qu'eu dest'alma, das leis do mundo isenta,
Morta a esperança vejo,
Onde sempre o desejo se sustenta.
  Em vão se considera
Que hum semelhante a outro busca e ama,
E que foge e desama
Todo mortal a morte esquiva e fera:
Sigo huma linda fera,
Qu'esconde em vista humana
Coração de diamante e peito d'aço,
De meu sangue faminta; e satisfaço
Com cruel morte a sêde deshumana.
Assi que, sendo em tudo differente,
Corro apos minha sorte,
E se m'entrego á morte, estou contente.
  Cahe em maior defeito
Quem cuida ser sciencia clara e certa,
Que a causa descoberta
Sempre produz a si conforme o effeito:
Rendeo-me hum lindo objeito,
Que, sendo neve pura,
Vivo me abraza, e o fogo interno aviva;
Qu'esta formosa fera fugitiva,
Com ser neve, do fogo s'assegura:
Donde infiro por certo (e cesse a fama{348}
Vãa,
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/422]]==
<poem>
mentirosa e leve)
Que não desfaz a neve ardente chama.
  Bem no effeito se sente
Cessar, cessando a causa donde pende;
Que o fogo mais se accende,
Estando á vista, donde mais ausente;
Mas n'alma vivamente
A trazem debuxada,
De noite Amor, de dia o pensamento:
E quando Apollo deixa o claro assento,
Por entre sombras vejo a Nympha amada.
Pois se sem luz Amor os olhos ceva,
Cego, se não concede
Qu'em nada a Amor impede a escura treva.
  Erra quem atrevido
Pregôa ser maior que a parte o todo:
Amor me t~ee de modo,
Qu'estou n'hum'alma minha convertido:
Desta gloria ha nascido
O temor de perdê-la:
E, postoque o receio a muitos finge
Lá na imaginação Chimera e Sfinge
De mal futuro, que urde imiga estrella,
Vejo em mi, por incognito segredo,
Quando estou mais contente,
Que só do bem presente nasce o medo.
  T~ee-se por manifesto
Parecer-se ao sogeito o accidente;
Mas inda em mi se sente
O pensamento, a côr, o riso, o gesto;
E, tendo todo o resto{349}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/423]]==
<poem>
Da vida ja perdido
Neste tormento meu tão duro e esquivo,
A gostos morto estou, a penas vivo.
E, sendo morto ja, vive o sentido,
Porque sinta que n'alma despedida
Póde em meu mal unir-se
O ficar e o partir-se, a morte e a vida.
  Destas razões, Canção, infiro e creio,
Que ou se mudou em tudo a fórma usada
Da natural firmeza,
Ou tenho a natureza em mi mudada.
CANÇÃO XV.
Qu'he isto? Sonho? Ou vejo a Nympha pura,
Que sempre na alma vejo?
Ou me pinta o desejo
O bem qu'em vão cad'hora m'assegura?
Mal póde a noite escura,
Amando a sombra fria,
Mandar-me em sonho a luz formosa e bella,
Que se não torne em dia,
De seus luzentes raios inflammada.
Oh vista desejada
De graciosa Nympha e viva estrella!
Que ha tanto que por este mar navego
(Sem ver meu claro Polo) escuro e cego.{350}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/424]]==
<poem>
  Nesses formosos olhos, d'enlevada,
Minh'alma se escondeo,
Quando ordenava o Ceo
Que vivesse comigo desterrada.
Vós a mais certa estrada
De ver a summa alteza,
Do efeito a causa abris a est'alma minha.
Assi mortal belleza
Só della nasce, e nella se resume;
Assi celeste lume
Lá dos ceos se deriva, e lá caminha.
Pois, como a Deos unir-me a vista possa,
Porque a negais, meu sol, a est'alma vossa?
  Se me quereis prender a parte a parte,
Cabello ondado e louro,
Tecei-me a rede de ouro
Em que prendeo Vulcano a Cypria e Marte.
Des que com gentil arte
Vestis de flores bellas
A terra em que tocais co'a bella planta,
Quantas vezes com vellas
Quiz n'huma d'essas flores transformar-me?
Porque, vendo pizar-me
D'esse candido pé, que a neve espanta,
Póde ser que na flor mudado fôra
Que deo a Juno irada a linda Flora.
  Mas onde te acolheste (ó doce vida!)
Mais leve e pressurosa,
Do que na selva umbrosa
Cerva d'aguda setta vai ferida?
Se para tal partida,{
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/425]]==
<poem>
351}
Meus olhos, vos abristes,
Cerrára-vos o somno eternamente,
Antes que ver-vos tristes,
Perdendo tão suave e doce engano!
Agora, com meu dano,
Vêdes, para mor mágoa, claramente,
Neste bem fugitivo e somno leve,
Que mal não ha mais longo, que hum bem breve.
  Ditoso Endymião que a deosa chara,
Que a noite vai guiando,
Teve em braços sonhando!
Ah quem de sonho tal nunca acordára!
Tu só, Aurora avara,
Quando os olhos feriste,
Me mataste cruel d'inveja pura.
Mas se d'esta alma triste
A negra escuridão vencer quizeste,
Sabe qu'em vão nasceste;
Que para desfazer-se a nevoa escura
De meus olhos, importa estar presente
Outro sol, outra aurora, outro Oriente.
  Se a luz de meu Planeta,
Não m'aviva, Canção, branda e quieta,
Qual flor de chuva, em breve consumida,
Verás desfeita em lagrimas a vida.{352}
CANÇÃO
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/426]]==
<poem>
XVI.
Por meio d'humas serras mui fragosas,
Cercadas de sylvestres arvoredos,
Retumbando por asperos penedos,
Correm perennes ágoas deleitosas.
Na ribeira de Buina, assi chamada,
Celebrada,
Porqu'em prados
Esmaltados
Com frescura
De verdura,
Assi se mostra amena, assi graciosa,
Qu'excede a qualquer outra mais formosa;
  As correntes se vem, que acceleradas,
As hervas regalando e as boninas,
Se vão a entrar nas ágoas Neptuninas,
Por diversas ribeiras derivadas.
Com mil brancas conchinhas a aurea areia
Bem se arreia;
Voão aves;
Mil suaves
Passarinhos
Nos raminhos
Acordemente estão sempre cantando,
Com doce accento os ares abrandando.
  O doce rouxinol n'hum ramo canta,
E d'outro o pintasirgo lhe responde;
A perdiz d'entre a mata, em que s'esconde,{353}

</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/427]]==
<poem>
O caçador sentindo, se levanta:
Voando vai ligeira mais que o vento;
Outro assento
Vai buscando;
Porém quando
Vai fugindo;
Retinindo,
Traz ella mais veloz a setta corre,
De que ferida logo cahe e morre.
  Aqui Progne d'hum ramo em outro ramo,
Co'o peito ensanguentado anda voando,
Cibato para o ninho indo buscando;
A leda codorniz vem ao reclamo
Do sagaz caçador, que a rede estende,
E pretende
Com engano
Fazer dano
Á coitada,
Qu'enganada
D'huns esparzidos grãos de louro trigo,
Nas mãos vai a cahir de seu imigo.
  Aqui sôa a calhandra na parreira;
A rôla geme; palra o estorninho;
Sahe a candida pomba do seu ninho;
O tordo pousa em cima da oliveira:
Vão as doces abelhas susurrando,
E apanhando
O rocio
Fresco e frio
Por o prado
D'herva or
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/428]]==
<poem>
nado,{354}
Com que o aureo licor fazem, que deo
Á humana gente a indústria d'Aristeo.
  Aqui as uvas luzidas, penduradas
Das pampinosas vides, resplandecem;
As frondiferas árvores se offrecem
Com differentes fructos carregadas:
Os peixes n'ágoa clara andão saltando,
Levantando
As pedrinhas,
E as conchinhas
Rubicundas,
Que as jucundas
Ondas comsigo trazem, crepitando
Por a praia alva com ruido brando.
  Aqui por entre as serras se levantão
Animaes Calidoneos, e os veados
Na fugida inda mal assegurados,
Porque do som dos proprios pés s'espantão.
Sahe o coelho, e lebre sahe manhosa
Da frondosa
Breve mata,
Donde a cata
Cão ligeiro.
Mas primeiro
Qu'ella ao contrário férvido s'entregue,
Ás vezes deixa em branco a quem a segue.
  Luzem as brancas e purpúreas flores,
Com que o brando Favonio a terra esmalta;
O formoso jacintho alli não falta,
Lembrado dos antiguos seus amores.
Inda na flor se mostrão
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/429]]==
<poem>
esculpidos{355}
Os gemidos:
Aqui Flora
Sempre mora;
E com rosas
Mais formosas,
Com lirios e boninas mil fragrantes,
Alegra os seus amores circumstantes.
  Aqui Narciso em líquido crystal
Se namora de sua formosura:
Nelle as pendentes ramas da'spessura
Debuxando-se estão ao natural.
Adonis, com que a linda Cytherêa
Se recrêa,
Bem florido,
Convertido
Na bonina,
Qu'Erycina
Por imagem deixou de qual sería
Aquelle por quem ella se perdia.
  Lugar alegre, fresco, accommodado
Para se deleitar qualquer amante,
A quem com sua ponta penetrante
O cego Amor tivesse derribado;
E para memorar ao som das ágoas
Suas mágoas
Amorosas,
As cheirosas
Flores vendo,
Escolhendo,
Para fazer preciosas mil capellas,
E dar por grão penhor a Nymphas b
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/430]]==
<poem>
ellas.{356}
  Eu dellas, por penhor de meus amores,
Huma capella á minha deosa dava:
Que lhe queria bem, bem lhe mostrava
O bem-mequeres entre tantas flores:
Porém, como se fôra mal-mequeres,
Os poderes
Da crueldade
Na beldade
Bem mostrou;
Desprezou
A dadiva de flores; não por minha,
Mas porque muitas mais ella em si tinha.
CANÇÃO XVII.
A vida ja passei assaz contente,
Livre tinha a vontade e o pensamento,
Sem receios d'Amor, nem da Ventura:
Mas isto foi hum bem d'hum só momento;
E á minha custa vejo claramente,
Que a vida não dá algum de muita dura.
No tempo em qu'eu vivia mais segura
D'Amor e seu cuidado,
Por me ver n'hum estado
Em qu'eu cuidei que Amor não tinha parte;
Não sinto por qual arte
Me vejo entregue a elle de tal sorte,
Qu'em quanto tarda
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/431]]==
<poem>
a morte,{357}
A esperança do bem tenho perdida.
Ai quão devagar passa a triste vida!
  Quantas vezes eu triste aqui ouvia
O meu Felicio, e outros mil pastores,
Queixar-se em vão de minha crueldade!
E mais surda então eu a seus clamores,
Que aspide surda, ou surda penedia,
Julgava os seus amores por vaidade.
Agora em pago disto a liberdade,
A vontade e o desejo
De todo entregue vejo
A quem, inda que brade, não responde;
Pois vejo que s'esconde
Ja debaixo da terra este qu'eu chamo,
Que he aquelle a quem amo,
Aquelle a quem agora estou rendida.
Ai quão devagar passa a triste vida!
  Que gloria, Amor cruel, com meu tormento,
Que louvor a teu nome accrescentaste?
Ou que te constrangeo a tal crueza,
Que com tal pressa esta alma sujeitaste
A hum mal, onde não basta o soffrimento?
Mas se, Amor, es cruel de natureza,
Bastava usar comigo da aspereza
Que usas com outra gente:
Mas tu como somente
De ver-me estar morrendo te contentas,
Quando mais me atormentas,
Então desejas mais d'atormentar-me;
E não queres matar-me{358}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/432]]==
<poem>
Porque este mal de mi se não despida.
Ai quão devagar passa a triste vida!
  Onde cousa acharei que alegre veja?
A quem chamarei ja que me responda?
Quem me dará remedio á dor presente?
Não ha bem, que de mi ja não s'esconda;
Nem algum verei ja, que a mi o seja,
Porqu'está quem o foi da vida ausente.
Eu alguma não vi tão descontente,
Que Amor tão mal tratasse,
Qu'inda não esperasse
A seus males remedio achar vivendo:
Eu só vivo soffrendo
Hum mal tão grave e tão desesperado,
Que tanto he mais pezado,
Quanto a vida com elle he mais comprida.
Ai quão devagar passa a triste vida!
  Suaves ágoas, dura penedia,
Arvoredo sombrio, verde prado,
Donde eu ja tive livre o pensamento;
Frescas flores; e vós, meu manso gado,
Que ja m'acompanhastes na alegria,
Não me deixeis agora no tormento.
Se do mal meu vos toca sentimento,
Dae-me par'elle ajuda,
Qu'eu tenho a lingua muda,
O alento me vai ja desamparando.
Mas quando (ai triste!) quando
D'hum dia hum'hora me virá contente,
Qu'eu te veja presente,{
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/433]]==
<poem>
359}
Pastor meu, e comtigo est'alma unida?
Ai quão devagar passa a triste vida!
  Mas não sei se he sobrado atrevimento
Querer-se est'alma minha unir comtigo,
Pois della foste ja tão desprezado.
Amor me livrará deste perigo;
Que despois que lá vires meu tormento,
Creio que t'haverás por bem vingado.
E s'inda em ti durar o amor passado,
E aquella fé tão pura,
Eu estou bem segura
Que has lá de receber-me brandamente.
Aprenda em mi a gente
Quão cara huma isenção com Amor custa:
A pena dá bem justa
A hum'alma que lhe he pouco agradecida.
Ai quão devagar passa a triste vida!{360}

</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/434]]==
<poem>
ODES.
ODE I.
Detem hum pouco, Musa, o largo pranto
Que Amor te abre do peito;
E vestida de rico e ledo manto,
Demos honra e respeito
Áquella, cujo objeito
Todo o mundo allumia,
Trocando a noite escura em claro dia.
  O Delia, que a pezar da nevoa grossa,
Co'os teus raios de prata
A noite escura fazes que não possa
Encontrar o que trata,
E o que n'alma retrata
Amor por teu divino
Raio, por qu'endoudeço e desatino:
  Tu, que de formosissimas estrellas
Corôas e rodeias
Tua candida fronte e faces bellas;
E os campos formoseias
Co'as rosas que semeias,
Co'as boninas que gera
O teu celeste humor na primavera:
  Para ti guarda o sítio fresco d'Ilio{361}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/435]]==
<poem>
Suas sombras formosas;
Para ti o Erymantho e o lindo Pylio
As mais purpureas rosas;
E as drogas mais cheirosas
Desse nosso Oriente
Guarda a felice Arabia mais contente.
  De qual panthera, ou tigre, ou leopardo
As asperas entranhas
Não temêrão teu fero e agudo dardo,
Quando por as montanhas
Mais remotas e estranhas
Ligeira atravessavas,
Tão formosa que a Amor d'amor matavas?
  Pois, Delia, do teu ceo vendo estás quantos
Furtos de purídades,
Suspiros, mágoas, ais, musicas, prantos,
As conformes vontades,
Humas por saudades,
Outras por crus indicios
Fazem das proprias vidas sacrificios:
  Ja veio Endymião por estes montes
O ceo, suspenso, olhando,
E teu nome, co'os olhos feitos fontes,
Em vão sempre chamando,
Pedindo (suspirando)
Mercês á tua beldade,
Sem que ache em ti hum'hora piedade.
  Por ti feito pastor de branco gado
Nas selvas solitarias,
Só de seu pensamento acompanhado,
Conversa as alimarias,{362}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/436]]==
<poem>
De todo Amor contrárias,
Mas não como ti duras,
Onde lamenta e chora desventuras.
  Das castas virgens sempre os altos gritos,
Clara Lucina, ouviste,
Renovando-lhe as fôrças e os espritos:
Mas os daquelle triste,
Ja nunca consentiste
Ouvi-los hum momento,
Para ser menos grave o seu tormento.
  Não fujas, não de mi! Ah não t'escondas
D'hum tão fiel amante!
Ólha como suspirão estas ondas,
E como o velho Atlante
O seu collo arrogante
Move piedosamente,
Ouvindo a minha voz fraca e doente.
  Triste de mi! Qu'alcanço por queixar-me,
Pois minhas queixas digo
A quem ja ergueo a mão para matar-me,
Como a cruel imigo?
Mas eu meu fado sigo,
Que a isto me destina,
E qu'isto só pretende e só m'ensina.
  Oh quanto ha ja que o Ceo me desengana!
Mas eu sempre porfio
Cada vez mais na minha teima insana.
Tendo livre alvedrio,
Não fujo o desvario;
Porque este em que me vejo
Engana co'a esperança o meu desejo.{
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/437]]==
<poem>
363}
  Oh quanto melhor fôra que dormissem
Hum somno perennal
Estes meus olhos tristes, e não vissem
A causa de seu mal
Fugir, a hum tempo tal,
Mais que d'antes proterva,
Mais cruel que ursa, mais fugaz que cerva!
  Ai de mi, que me abrazo em fogo vivo,
Com mil mortes ao lado;
E quando morro mais, então mais vivo!
Porque t~ee ordenado
Meu infelice fado,
Que quando me convida
A morte, para a morte tenha vida.
  Secreta noite amiga, a que obedeço,
Estas rosas (por quanto
Meus queixumes me ouviste) te offereço,
E este fresco amaranto,
Humido ja do pranto,
E lagrimas da esposa
Do cioso Titão, branca e formosa.
ODE II.
Tão suave, tão fresca e tão formosa,
Nunca no ceo sahio
A Aurora no princípio do verão,
Ás flores dando a graça costumada,{364}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/438]]==
<poem>
Como a formosa mansa fera, quando
Hum pensamento vivo m'inspirou,
Por quem me desconheço.
  Bonina pudibunda, ou fresca rosa,
Nunca no campo abrio,
Quando os raios do sol no Touro estão,
De côres differentes esmaltada,
Como esta flor, que os olhos inclinando,
O soffrimento triste costumou
Á pena que padeço.
  Ligeira, bella Nympha, linda, irosa,
Não creio que seguio
Satyro, cujo brando coração
D'amores commovesse fera irada,
Qu'assi fosse fugindo e desprezando
Este tormento, donde Amor mostrou
Tão próspero comêço.
  Nunca, emfim, cousa bella e rigorosa
Natura produzio,
Qu'iguale aquella fórma e condição,
Que as dores em que vivo estima em nada.
Mas com tão doce gesto, irado e brando,
O sentimento, e a vida m'enlevou,
Que a pena lhe agradeço.
  Bem cuidei d'exaltar em verso, ou prosa,
Aquillo que a alma vio
Entre a doce dureza e mansidão,
Primores de belleza desusada;
Mas quando quiz voar ao ceo cantando,
Entendimento e engenho me cegou
Luz de tão alto preço.{365}
  Naquella
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/439]]==
<poem>
alta pureza deleitosa
Que ao mundo s'encobrio;
E nos olhos Angelicos, que são
Senhores desta vida destinada;
E naquelles cabellos, que soltando
Ao manso vento, a vida me enredou,
M'alegro e m'entristeço.
  Saudade e suspeita perigosa,
Que Amor constituio
Por castigo daquelles que se vão;
Temores, penas d'alma desprezada,
Fera esquivança, que me vai tirando
O mantimento que me sustentou,
A tudo me offereço.
  Amor isento a huns olhos m'entregou,
Nos quaes a Deos conheço.
ODE III.
Se de meu pensamento
Tanta razão tivera d'alegrar-me,
Quanto de meu tormento
A tenho de queixar-me,
Puderas, triste lyra, consolar-me.
  E minha voz cansada,
Qu'em outro tempo foi alegre e pura,
Não fôra assi tornada,
Com tanta desventura,
Tão rouca, tão pezada, nem tão dura.{366}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/440]]==
<poem>
  A ser como sohia,
Pudera levantar vossos louvores;
Vós, minha Hierarchia,
Ouvíreis meus amores,
Qu'exemplo são ao mundo ja de dores.
  Alegres meus cuidados,
Contentes dias, horas e momentos,
Oh quanto bem lembrados
Sois de meus pensamentos,
Reinando agora em mi duros tormentos!
  Ai gostos fugitivos!
Ai gloria ja acabada e consumida!
Ai males tão esquivos!
Qual me deixais a vida!
Quão cheia de pezar! quão destruida!
  Mas como não he morta
Ja esta vida? como tanto dura?
Como não abre a porta
A tanta desventura,
Qu'em vão com seu poder o tempo cura?
  Mas para padecê-la
S'esforça o meu sogeito e convalece;
Que só para dizê-la,
A fôrça me fallece,
E de todo me cansa e m'enfraquece.
  Oh bem affortunado
Tu, que alcançaste com lyra toante,
Orphêo, ser escutado
Do fero Rhadamante,
E co'os teus olhos ver a doce amante!
  As infernaes figuras{
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/441]]==
<poem>
367}
Moveste com teu canto docemente;
As tres Furias escuras,
Implacaveis á gente,
Applacadas se vírão derepente.
  Ficou como pasmado
Todo o Estygio Reino co'o teu canto;
E quasi descansado
De seu eterno pranto,
Cessou de alçar Sisypho o grave canto.
  A ordem se mudava
Das penas que regendo está Plutão;
Em descanso se achava
A roda de Ixião,
E em glória quantas penas alli são.
  De todo ja admirada
A Rainha infernal e commovida,
Te deo a desejada
Esposa, que perdida
De tantos dias ja tivera a vida.
  Pois minha desventura,
Como ja não abranda hum'alma humana,
Qu'he contra mi mais dura,
E inda mais deshumana,
Que o furor de Callirrhoë profana?
  Oh crua, esquiva e fera,
Duro peito, cruel e empedernido,
D'alguma tigre fera
Lá na Hircania nascido,
Ou d'entre as duras rochas produzido!
  Mas que digo, coitado!
E de quem fio em vão minhas querellas?{368}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/442]]==
<poem>
Só vós, ó do salgado,
Humido Reino bellas
E claras Nymphas, condoei-vos dellas.
  E d'ouro guarnecidas
Vossas louras cabeças levantando
Sôbre as ondas erguidas,
As tranças gottejando,
Sahindo todas, vinde a ver qual ando.
  Sahi em companhia,
E cantando e colhendo as lindas flores;
Vereis minha agonia,
Ouvireis meus amores,
E sentireis meus prantos, meus clamores.
  Vereis o mais perdido
E mais infeliz corpo qu'he gerado;
Qu'está ja convertido
Em chôro, e neste estado
Somente vive nelle o seu cuidado.
ODE IV.
Formosa fera humana,
Em cujo coração soberbo e rudo
A fôrça soberana
Do vingativo Amor, que vence tudo,
As pontas amoladas
De quantas settas tinha t~ee quebradas:
  Amada Circe minha,{
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/443]]==
<poem>
369}
Postoque minha não, com tudo amada;
A quem hum bem que tinha
Da doce liberdade desejada,
Pouco a pouco entreguei,
E se mais tenho, mais entregarei;
  Pois natureza irosa
Da razão te deo partes tão contrárias,
Que sendo tão formosa,
Folgues de te queimar em flammas várias,
Sem arder em nenh~ua
Mais qu'em quanto allumia o mundo a l~ua;
  Pois triumphando vás
Com diversos despojos de perdidos,
Que tu privando estás
De razão, de juizo e de sentidos,
E quasi a todos dando
Aquelle bem que a todos vás negando;
  Pois tanto te contenta
Ver o nocturno moço, em ferro envolto,
Debaixo da tormenta
De Jupiter em ágoa e vento sôlto,
Á porta, que impedido
Lhe t~ee seu bem, de mágoa adormecido;
  Porque não tens receio
Que tantas insolencias e esquivanças
A deosa, que põe freio
A soberbas e doudas esperanças,
Castigue com rigor,
E contra ti se accenda o fero Amor?
  Ólha a formosa Flora;
De despojos de mil suspiros rica,{370}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/444]]==
<poem>

Por o Capitão chora,
Que lá em Thessalia, emfim, vencido fica,
E foi sublime tanto,
Que altares lhe deo Roma e nome santo.
  Ólha em Lesbos aquella
No seu salteiro insigne conhecida;
Dos muitos que por ella
Se perdêrão, perdeo a chara vida
Na rocha que se infama
Com ser remedio extremo de quem ama.
  Por o moço escolhido,
Onde mais se mostrárão as tres Graças;
Que Venus escondido
Para si teve hum tempo entre as alfaças,
Pagou co'a morte fria
A má vida que a muitos ja daria.
  E, vendo-se deixada
Daquelle por quem tantos ja deixára,
Se foi, desesperada,
Precipitar da infame rocha chara:
Que o mal de mal querida
Sabe que vida lhe he perder a vida.
  Tomae-me, bravos mares;
Vós me tomae, pois outrem me deixou.
Disse: e dos altos ares
Pendendo, com furor s'arremessou.
Acude tu, suave,
Acude, poderosa e divina ave.
  Toma-a nas azas tuas,
Menino pio, illesa e sem perigo,
Antes que nestas cruas{
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/445]]==
<poem>
371}
Ágoas cahindo apague o fogo antigo.
He digno amor tamanho
De viver, e ser tido por estranho.
  Não: qu'he razão que seja
Para as lobas isentas, que amor vendem,
Exemplo onde se veja
Que tambem ficão presas as que prendem.
Assi o deo por sentença
Nemesis, que Amor quiz que tudo vença.
ODE V.
Nunca manhãa suave
Estendendo seus raios por o mundo,
Despois de noite grave,
Tempestuosa, negra, em mar profundo
Alegrou tanto nao, que ja no fundo
Se vio em mares grossos,
Como a luz clara a mi dos olhos vossos.
  Aquella formosura,
Que só no virar delles resplandece;
E com que a sombra escura
Clara se faz, e o campo reverdece;
Quando o meu pensamento se entristece,
Ella e sua viveza
Me desfazem a nuvem da tristeza.
  O meu peito, onde estais,
He para tanto bem pequeno vaso;{372}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/446]]==
<poem>

Quando acaso virais
Os olhos, que de mi não fazem caso,
Todo, gentil Senhora, então me abraso
Na luz que me consume,
Bem como a borboleta faz no lume.
  Se mil almas tivera
Que a tão formosos olhos entregára,
Todas quantas pudera
Por as pestanas delles pendurára;
E, enlevadas na vista pura e clara,
(Postoque disso indinas)
Se andárão sempre vendo nas meninas.
  E vós, que descuidada
Agora vivereis de taes querellas,
D'almas minhas cercada,
Não pudesseis tirar os olhos dellas;
Não póde ser que, vendo a vossa entr'ellas
A dor que lhe mostrassem,
Tantas huma alma só não abrandassem.
  Mas, pois o peito ardente
Huma só póde ter, formosa Dama,
Basta que esta somente,
Como se fossem mil e mil, vos ama,
Para que a dor de sua ardente flama
Comvosco tanto possa,
Que não queirais ver cinza hum'alma vossa.{
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/447]]==
<poem>
373}
ODE VI.
Póde hum desejo immenso
Arder no peito tanto,
Que á branda e á viva alma o fogo intenso
Lhe gaste as nodoas do terreno manto;
E purifique em tanta alteza o esprito
Com olhos immortais,
Que faz que leia mais do que vê'scrito.
  Que a flamma, que se accende
Alto, tanto allumia,
Que se o nobre desejo ao bem s'estende
Que nunca vio, o sente claro dia;
E lá vê do que busca o natural,
A graça, a viva côr,
N'outra especie melhor que a corporal.
  Pois vós, ó claro exemplo
De viva formosura,
Que de tão longe cá noto e contemplo
N'alma, que este desejo sobe e apura;
Não creais que não vejo aquella imagem
Que as gentes nunca vem,
Se de humanos não tem muita vantagem.
  Que se os olhos ausentes
Não vem a compassada
Proporção, que das côres excellentes
De pureza e vergonha he variada;
Da qual a Poesia, que cantou{374}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/448]]==
<poem>
Atéqui só pinturas
Com mortaes formosuras igualou;
  Se não vem os cabellos
Que o vulgo chama de ouro;
E se não vem os claros olhos bellos,
De quem cantão que são de sol thesouro;
E se não vem do rosto as excellencias,
A quem dirão que deve
Rosa, e crystal, e neve as apparencias;
  Vem logo a graça pura,
A luz alta e severa,
Que he raio da divina formosura,
Que n'alma imprime e fóra reverbera;
Assi como crystal do sol ferido,
Que por fóra derrama
A recebida flamma esclarecido.
  E vem a gravidade,
Com a viva alegria
Que misturada t~ee de qualidade,
Que huma da outra nunca se desvia;
Nem deixa de ser huma receada
Por leda e por suave,
Nem outra, por ser grave, muito amada.
  E vem do honesto siso
Os altos resplandores
Temperados co'o doce e ledo riso,
A cujo abrir abrem no campo as flores;
As palavras discretas e suaves,
Das quaes o movimento
Fara deter o vento e as altas aves:
  Dos olhos o virar{
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/449]]==
<poem>
375}
Que torna tudo raso,
Do qual não sabe o engenho divisar
Se foi por artificio, ou feito acaso;
Da presença os meneios e a postura,
O andar e o mover-se,
Donde póde aprender-se formosura.
  Aquelle não sei que,
Que aspira não sei como,
Qu'invisivel sahindo, a vista o vê,
Mas para o comprender não lhe acha tomo;
E que toda a Toscana Poesia,
Que mais Phebo restaura,
Em Beatriz, nem Laura nunca via:
  Em vós a nossa idade,
Senhora, o póde ver,
S'engenho, se sciencia e habilidade,
Iguaes á vossa formosura der,
Qual a vi no meu longo apartamento,
Qual em ausencia a vejo.
Taes azas dá o desejo ao pensamento!
  Pois se o desejo afina
Hum'alma accesa tanto,
Que por vós use as partes de divina;
Por vós levantarei não visto canto,
Que o Betis me ouça, e o Tibre me levante:
Que o nosso claro Tejo,
Envolto hum pouco o vejo e dissonante.
  O campo não o esmaltão
Flores, mas só abrolhos
O fazem feio; e cuido que lhe faltão
Ouvidos para mi, para vós olhos.{376}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/450]]==
<poem>

Mas faça o que quizer o vil costume;
Que o sol, qu'em vós está,
Na escuridão dara mais claro lume.
ODE VII.
A quem darão de Pindo as moradoras,
Tão doctas como bellas,
Florecentes capellas
De triumphante louro, ou myrto verde;
Da gloriosa palma, que não perde
A presumpção sublime,
Nem por fôrça de pêzo algum se opprime?
  A quem trarão nas faldas delicadas,
Rosas a roxa Cloris,
Conchas a branca Doris;
Estas, flores do mar; da terra aquellas,
Argenteas, ruivas; brancas e amarellas,
Com danças e corêas
De formosas Nereidas e Napêas?
  A quem farão os Hymnos, Odes, Cantos,
Em Thebas Amphion,
Em Lesbos Arion,
Senão a vós, por quem restituida
Se vê da Poesia ja perdida
A honra e gloria igual,
Senhor Dom Manoel de Portugal?
  Imitando os espritos ja passados,{
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/451]]==
<poem>
377}
Gentis, altos, Reais,
Honra benigna dais
A meu tão baixo, quão zeloso engenho.
Por Mecenas a vós celebro e tenho;
E sacro o nome vosso
Farei, se alguma cousa em verso posso.
  O rudo canto meu, que resuscita
As honras sepultadas,
As palmas ja passadas
Dos bellicosos nossos Lusitanos
Para thesouro dos futuros anos,
Comvosco se defende
Da lei Lethêa, á qual tudo se rende.
  Na vossa árvore ornada d'honra e glória
Achou tronco excellente
A hera florecente
Para a minha atéqui de baixa estima:
Nelle, para trepar, s'encosta e arrima;
E nella subireis
Tão alto, quanto os ramos estendeis.
  Sempre forão engenhos peregrinos
Da Fortuna invejados;
Que quanto levantados
Por hum braço nas azas são da Fama,
Tanto por outro aquella, que os desama,
Co'o pêzo e gravidade
Os opprime da vil necessidade.
  Mas altos corações dignos d'Imperio,
Que vencem a Fortuna,
Forão sempre coluna
Da sciencia gentil: Octaviano,{378}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/452]]==
<poem>

Scipião, Alexandre e Graciano,
Que vemos immortais;
E vós, que o nosso seculo dourais.
  Pois, logo, em quanto a cithara sonora
S'estimar por o mundo,
Com som docto e jucundo;
E em quanto produzir o Tejo e o Douro
Peitos de Marte e Phebo crespo e louro,
Tereis glória immortal,
Senhor Dom Manoel de Portugal.
ODE VIII.
Aquelle unico exemplo
De fortaleza heroica e ousadia,
Que mereceo no templo
Da Fama eterna ter perpétuo dia;
O grão filho de Thetis, que dez anos
Flagello foi dos miseros Troianos;
  Não menos ensinado
Foi nas hervas e Medica polícia,
Que destro e costumado
No soberbo exercicio da Milicia:
Assi que as mãos que a tantos morte derão,
Tambem a muitos vida dar puderão.
  E não se desprezou
Aquelle fero e indomito mancebo
Das Artes qu'ensinou{
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/453]]==
<poem>
379}
Para o languido corpo o intonso Phebo;
Que se o temido Heitor matar podia,
Tambem chagas mortaes curar sabía.
  Taes Artes aprendeo
Do semiviro Mestre e docto velho,
Onde tanto cresceo
Em virtude, e em sciencia e em conselho,
Que Telepho, por elle vulnerado,
Só delle pôde ser despois curado.
  Pois vós, ó excellente
E illustrissimo Conde, do ceo dado
Para fazer presente
D'altos Heroes o seculo passado;
E em quem bem trasladada está a memoria
De vossos ascendentes, a honra e glória:
  Postoque o pensamento
Occupado tenhais na guerra infesta,
Ou co'o sanguinolento
Taprobano, ou Achem, que o mar molesta,
Ou co'o Cambaico, occulto imigo nosso,
Que qualquer delles teme o nome vosso;
  Favorecei a antiga
Sciencia que ja Achilles estimou;
Olhae que vos obriga
O ver qu'em vosso tempo rebentou
O fructo daquell'Orta onde florecem
Plantas novas, que os doctos não conhecem.
  Olhae qu'em vossos anos
Huma Orta produze várias hervas
Nos campos Indianos,
As quaes aquellas doctas e protervas,{380}
Medêa e Circe,
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/454]]==
<poem>
nunca conhecêrão,
Postoque a lei da Magica excedêrão.
  E vêde carregado
D'annos e traz a vária experiencia
Hum velho, qu'ensinado
Das Gangeticas Musas na sciencia
Podaliria subtil, e arte sylvestre,
Vence ao velho Chiron, d'Achilles mestre.
  O qual está pedindo
Vosso favor e amparo ao grão volume,
Qu'impresso á luz sahindo,
Dara da Medicina hum vivo lume;
E descobrir-nos-ha segredos certos,
A todos os Antiguos encobertos.
  Assi que não podeis
Negar a que vos pede benigna aura:
Que se muito valeis
Na sanguinosa guerra Turca e Maura,
Ajudae quem ajuda contra a morte;
E sereis semelhante ao Grego forte.
ODE IX.
Fogem as neves frias
Dos altos montes quando reverdecem
As árvores sombrias;
As verdes hervas crecem,
E o prado ameno de mil côres tecem.{
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/455]]==
<poem>
381}
  Zephyro brando espíra;
Suas settas Amor afia agora;
Progne triste suspira,
E Philomela chora:
O ceo da fresca terra se namora.
  Ja a linda Cytherêa
Vem, do côro das Nymphas rodeada;
A branca Pasitêa Despida e delicada,
Com as duas irmãas acompanhada.
  Em quanto as officinas
Dos Cyclopas Vulcano está queimando,
Vão colhendo boninas
As Nymphas, e cantando,
A terra co'o ligeiro pé tocando.
  Desce do aspero monte
Diana, ja cansada da espessura,
Buscando a clara fonte,
Onde por sorte dura
Perdeo Actêo a natural figura.
  Assi se vai passando
A verde Primavera e o sêcco Estio;
O Outono vem entrando;
E logo o Inverno frio,
Que tambem passará por certo fio.
  Ir-se-ha embranquecendo
Com a frigida neve o sêcco monte;
E Jupiter chovendo
Turbará a clara fonte:
Temerá o marinheiro a Orionte.
  Porque, emfim, tudo passa;{382}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/456]]==
<poem>
Não sabe o Tempo ter firmeza em nada;
E a nossa vida escassa
Foge tão apressada,
Que quando se começa he acabada.
  Que se fez dos Troianos
Heitor temido, Enêas piedoso?
Consumírão-te os anos,
Ó Cresso tão famoso,
Sem te valer teu ouro precioso.
  Todo o contentamento
Crias qu'estava em ter thesouro ufano!
Oh falso pensamento!
Que á custa de teu dano
Do sabio Solon crêste o desengano.
  O bem que aqui se alcança,
Não dura por passante, nem por forte:
Que a bem-aventurança
Duravel, de outra sorte
Se ha de alcançar na vida para a morte.
  Porque, emfim, nada basta
Contra o terrivel fim da noite eterna;
Nem póde a deosa casta
Tornar á luz superna
Hippolyto da escura sombra averna.
  Nem Thesêo esforçado,
Ou com manha, ou com fôrça valerosa,
Livrar póde o ousado
Perithoo da espantosa
Prisão Lethêa escura e tenebrosa.{383}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/457]]==
<poem>

ODE X.
Aquelle moço fero
Nas Pelethronias covas doctrinado
Do Centauro severo;
Cujo peito esforçado
Com tutanos de tigres foi criado.
  N'ágoa fatal menino
O lava a mãe, presaga do futuro,
Para que ferro fino
Não passe o peito duro
Que de si mesmo a si se t~ee por muro.
  A carne lh'endurece,
Porque não seja d'armas offendida.
Cega! pois não conhece
Que póde haver ferida
N'alma, e que menos doe perder a vida.
  Que donde o braço irado
Dos Troianos passava arnez e escudo,
Alli se vio passado
Daquelle ferro agudo
Do menino qu'em todos póde tudo.
  Alli se vio captivo
Da captiva gentil que serve e adora;
Alli se vio que vivo
Em vivo fogo mora,
Porque de seu senhor a vê senhora.
  Ja toma a branda lyra{384}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/458]]==
<poem>
Na mão que a dura Pelias meneára;
Alli canta e suspira,
Não como lh'ensinára
O velho, mas o moço que o cegára.
  Pois, logo, quem culpado
Será, se de pequeno offerecido
Foi todo a seu cuidado;
No berço instituido
A não poder deixar de ser ferido?
  Quem logo fraco infante
D'outro mais poderoso foi sujeito,
E para cego amante
Desd'o princípio feito,
Com lagrimas banhando o tenro peito?
  Se agora foi ferido
Da penetrante ponta e fôrça d'herva;
E se Amor he servido
Que sirva á linda serva,
Para quem minha estrella me reserva?
  O gesto bem talhado;
O airoso meneio e a postura;
O rosto delicado,
Que na vista figura
Que s'ensina por arte a formosura,
  Como póde deixar
De render a quem tenha entendimento?
Que quem não penetrar
Hum doce gesto, attento,
Não lhe he nenhum louvor viver isento.
  Aquelles, cujos peitos
Ornou d'altas sciencias o destino.{385}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/459]]==
<poem>
Se vírão mais sujeitos
Ao cego e vão menino,
Arrebatados do furor divino.
  O Rei famoso Hebreio,
Que mais que todos soube, mais amou;
Tanto, que a deos alheio
Falso sacrificou.
Se muito soube e teve, muito errou.
  E o grão Sabio qu'ensina,
Passeando, os segredos da Sophia,
Á baixa concubina
Do vil Eunuco Hermia
Aras ergueo, que aos deoses só devia.
  Aras ergue a quem ama
O Philosopho insigne namorado.
Doe-se a perpétua fama,
E grita qu'he culpado:
Da lesa divindade he accusado.
  Ja foge donde habita;
Ja paga a culpa enorme com destêrro.
Mas, oh grande desdita!
Bem mostra tamanho êrro
Que doctos corações não são de ferro.
  Antes na altiva mente,
No subtil sangue e engenho mais perfeito
Ha mais conveniente
E conforme sogeito,
Onde s'imprima o brando e doce affeito.{386}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/460]]==
<poem>
ODE XI.
Naquelle tempo brando
Em que se vê do mundo a formosura,
Que Thetis descansando
De seu trabalho está, formosa e pura,
Cansava Amor o peito
Do mancebo Peleo d'hum duro affeito.
  Com impeto forçoso
Lhe havia ja fugido a bella Nympha,
Quando no tempo aquoso
Noto irado revolve a clara lympha,
Serras no mar erguendo,
Que os cumes das da terra vão lambendo.
  Esperava o mancebo,
Com a profunda dor que n'alma sente,
Hum dia em que ja Phebo
Começava a mostrar-se ao mundo ardente,
Soltando as tranças d'ouro,
Em que Clicie d'amor faz seu thesouro.
  Era no mez que Apolo
Entre os irmãos celestes passa o tempo:
O vento enfreia Eolo,
Para que o deleitoso passatempo
Seja quieto e mudo;
Que a tudo Amor obriga, e vence tudo.
  O luminoso dia
Os amorosos corpos despertava
Á cega idolatria,
Que ao peito mais contenta e mais aggrava;{
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/461]]==
<poem>
387}
Onde o cego menino
Faz que os humanos crêão que he divino:
  Quando a formosa Nympha,
Com todo o ajuntamento venerando,
Na crystallina lympha
O corpo crystallino está lavando;
O qual nas ágoas vendo,
Nelle, alegre de o ver, s'está revendo:
  O peito diamantino,
Em cuja branca teta Amor se cria;
O gesto peregrino,
Cuja presença torna a noite em dia;
A graciosa boca
Que a Amor com seus amores mais provoca;
  Os rubins graciosos;
As pérolas qu'escondem vivas rosas
Dos jardins deleitosos,
Que o ceo plantou em faces tão formosas;
O transparente collo,
Que ciumes a Daphne faz d'Apollo;
  O subtil mantimento
Dos olhos, cuja vista a Amor cegou;
A Amor que, com tormento
Glorioso, nunca delles se apartou,
Pois elles de contino
Nas meninas o trazem por menino;
  Os fios derramados
Daquelle ouro que o peito mais cobiça,
Donde Amor enredados
Os corações humanos traz e atiça,
E donde com desejo{388}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/462]]==
<poem>
Mais ardente começa a ser sobejo.
  O mancebo Peleo,
Que de Neptuno estava aconselhado,
Vendo na terra o ceo
Em tão bella figura trasladado,
Mudo hum pouco ficou,
Porque Amor logo a falla lhe tirou.
  Emfim, querendo ver
Quem tanto mal de longe lhe fazia,
A vista foi perder,
Porque de puro amor, Amor não via:
Vio-se assi cego e mudo
Por a fôrça d'Amor que póde tudo.
  Agora s'apparelha
Para a batalha; agora remettendo;
Agora s'aconselha;
Agora vai; agora está tremendo;
Quando ja de Cupido
Com nova setta o peito vio ferido.
  Remette o moço logo
Para ond'estava a chamma sem socêgo;
E co'o sobejo fogo
Quanto mais perto estava, então mais cego:
E cego, e co'hum suspiro,
Na formosa donzella emprega o tiro.
  Vingado assi Peleo,
Nasceo deste amoroso ajuntamento
O forte Larisseo,
Destruição do Phrygio pensamento;
Que, por não ser ferido,
Foi nas ágoas Estygias submergido.{
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/463]]==
<poem>
389}
ODE XII.
Ja a calma nos deixou
Sem flores as ribeiras deleitosas;
Ja de todo seccou
Candidos lirios, rubicundas rosas:
Fogem do grave ardor os passarinhos
Para o sombrio amparo de seus ninhos.
  Meneia os altos freixos
A branda viração de quando em quando;
E d'entre vários seixos
O liquido crystal sahe murmurando:
As gottas, que das alvas pedras sáltão,
O prado, como pérolas, esmaltão.
  Da caça ja cansada
Busca a casta Titanica a espessura,
Onde á sombra inclinada
Logre o doce repouso da verdura,
E sôbre o seu cabello ondado e louro
Deixe cahir o bosque o seu thesouro.
  O ceo desimpedido
Mostrava o lume eterno das estrellas;
E de flores vestido
O campo, brancas, roxas e amarellas,
Alegre o bosque tinha, alegre o monte,
O prado, o arvoredo, o rio, a fonte.
  Porém como o menino,
Que a Jupiter por a aguia foi levado,
No cêrco crystallino{390}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/464]]==
<poem>
For do amante de Clicie visitado;
O bosque chorará, chorará a fonte,
O rio, o arvoredo, o prado, o monte.
  O mar, que agora brando
He das Nereidas candidas cortado,
Logo se irá mostrando
Todo em crespas escumas empolado:
O soberbo furor de negro vento
Fara por toda parte movimento.
  Lei he da natureza
Mudar-se desta sorte o tempo leve:
Succeder á belleza
Da Primavera o fructo; a elle a neve;
E tornar outra vez por certo fio
Outono, Inverno, Primavera, Estio.
  Tudo, emfim, faz mudança
Quanto o claro sol vê, quanto allumia;
Não se acha segurança
Em tudo quanto alegra o bello dia:
Mudão-se as condições, muda-se a idade,
A bonança, os estados e a vontade.
  Somente a minha imiga
A dura condição nunca mudou;
Para que o mundo diga
Que nella lei tão certa se quebrou:
Em não ver-me ella só sempre está firme,
Ou por fugir d'Amor, ou por fugir-me.
  Mas ja soffrivel fôra
Qu'em matar-me ella só mostre firmeza,
Se não achára agora
Tambem em mi mudada a natureza;{391}
</poem>
==[[Página:Obras completas de Luis de Camões II (1843).djvu/465]]==
<poem>

Pois sempre o coração tenho turbado,
Sempre d'escuras nuvens rodeado.
  Sempre exprimento os fios
Qu'em contino receio Amor me manda;
Sempre os dous caudaes rios,
Qu'em meus olhos abrio quem nos seus anda,
Correm, sem chegar nunca o Verão brando,
Que tamanha aspereza vá mudando.
  O sol sereno e puro,
Que no formoso rosto resplandece,
Envolto em manto escuro
Do triste esquecimento, não parece;
Deixando em triste noite a triste vida
Que nunca de luz nova he soccorrida.
  Porém seja o que for:
Mude-se por meu damno a natureza;
Perca a inconstancia Amor;
A Fortuna inconstante ache firmeza;
Tudo mudável seja contra mi,
Mas eu firme estarei no qu'emprendi.
</poem>

Revisão das 01h55min de 3 de dezembro de 2014


LXXXII.

Se pena por amar-vos se merece,
Quem della estará livre? quem isento?
E que alma, que razão, que entendimento
No instante em que vos vê não obedece?

Qual mor gloria na vida ja se offrece,
Que a de occupar-se em vós o pensamento?
Não só todo rigor, todo tormento
Com ver-vos não magôa, mas se esquece.

Porém se heis de matar a quem amando,
Ser vosso de amor tanto só pretende,
O mundo matareis, que todo he vosso.

Em mi podeis, Senhora, ir começando,
Pois bem claro se mostra e bem se entende
Amar-vos quanto devo e quanto posso.



LXXXIII.

Que levas, cruel Morte? Hum claro dia.
A que horas o tomaste? Amanhecendo.
E entendes o que levas? Não o entendo.
Pois quem to faz levar? Quem o entendia.

Seu corpo quem o goza? A terra fria.
Como ficou sua luz? Anoitecendo.
Lusitania que diz? Fica dizendo...
Que diz? Não mereci a grã Maria.

Mataste a quem a vio? Ja morto estava.
Que discorre o Amor? Fallar não ousa.
E quem o faz callar? Minha vontade.

Na Corte que ficou? Saudade brava.
Que fica lá que ver? Nenhuma cousa.
Que gloria lhe faltou? Esta beldade

LXXXIV.

Ondados fios de ouro reluzente,
Que agora da mão bella recolhidos,
Agora sôbre as rosas esparzidos
Fazeis que a sua graça se accrescente;

Olhos, que vos moveis tão docemente,
Em mil divinos raios incendidos,
Se de cá me levais a alma e sentidos,
Que fôra, se eu de vós não fôra ausente?

Honesto riso, que entre a mór fineza
De perlas e coraes nasce e apparece;
Oh quem seus doces ecos ja lhe ouvisse!

Se imaginando só tanta belleza,
De si com nova gloria a alma se esquece,
Que será quando a vir? Ah quem a visse!



LXXXV.

Foi ja n'hum tempo doce cousa amar,
Em quanto me enganou huma esperança:
O coração com esta confiança
Todo se desfazia em desejar.

Oh vão, caduco e debil esperar!
Como, em fim, desengana huma mudança!
Que quanto he mor a bem-aventurança,
Tanto menos se crê que ha de durar.

Quem ja se vio com gostos prosperado,
Vendo-se brevemente em pena tanta,
Razão tẽe de viver bem magoado.

Mas quem ja tẽe o mundo exprimentado,
Não o magôa a pena, nem o espanta;
Que mal se estranhára o costumado.

LXXXVI.

Dos antigos Illustres, que deixárão
Hum nome digno de immortal memoria,
Ficou por luz do tempo a larga historia
Dos feitos em que mais se avantajárão.

Se com suas acções se cotejárão
Mil vossas, cada huma tão notoria,
Vencêra a menor dellas a mor gloria
Que elles em tantos annos alcançárão.

A gloria sua foi: ninguem lha tome:
Seguindo cada qual varios caminhos
Estatuas mereceo no heroico Templo.

Vós honra Portugueza e dos Coutinhos,
Clarissimo Dom João, com melhor nome
A vós encheis de gloria, a nós de exemplo.



LXXXVII.

Conversação doméstica affeiçoa,
Ora em fórma de limpa e sãa vontade,
Ora de huma amorosa piedade,
Sem olhar qualidade de pessoa.

Se despois, por ventura, vos magôa
Com desamor e pouca lealdade,
Logo vos faz mentira da verdade
O brando Amor, que tudo, em fim, perdoa,

Não são isto que fallo conjecturas
Que o pensamento julga na apparencia,
Por fazer delicadas escripturas.

Metida tenho a mão na consciencia,
E não fallo senão verdades puras
Que me ensinou a viva experiencia.

LXXXVIII.

Esfôrço grande, igual ao pensamento,
Pensamentos em obras divulgados,
E não em peito timido encerrados,
E desfeitos despois em chuva e vento;

Ánimo da cobiça baixa isento,
Digno por isto só de altos estados,
Fero açoute dos nunca bem domados
Povos do Malabar sanguinolento;

Gentileza de membros corporaes
Ornados de pudica continencia,
Obra por certo da celeste altura:

Estas virtudes raras e outras mais,
Dignas todas da Homerica eloquencia,
Jazem debaixo desta sepultura.



LXXXIX.

No mundo quiz o Tempo que se achasse
O bem que por acêrto, ou sorte vinha;
E por exprimentar que dita tinha,
Quiz que a Fortuna em mi se exprimentasse.

Mas porque o meu destino me mostrasse
Que nem ter esperanças me convinha,
Nunca nesta tão longa vida minha
Cousa me deixou ver que desejasse.

Mudando andei costume, terra, estado,
Por ver se se mudava a sorte dura;
A vida puz nas mãos de hum leve lenho.

Mas, segundo o que o Ceo me tẽe mostrado,
Ja sei que deste meu buscar ventura
Achado tenho ja que não a tenho.

XC.

A perfeição, a graça, o doce geito,
A Primavera cheia de frescura,
Que sempre em vós florece; a que a ventura,
E a razão entregárão este peito;

Aquelle crystallino e puro aspeito,
Que em si comprehende toda a formosura;
O resplandor dos olhos e a brandura,
Donde Amor a ninguem quiz ter respeito;

S'isto que em vós se vê, ver desejais,
Como digno de ver-se claramente,
Por muito que de Amor vos isentais;

Traduzido o vereis tão fielmente
No meio deste espirito onde estais,
Que vendo-vos sintais o que elle sente.



XCI.

Vós, que de olhos suaves e serenos,
Com justa causa a vida captivais,
E que os outros cuidados condemnais
Por indevidos, baixos e pequenos;

Se de Amor os domesticos venenos
Nunca provastes, quero que sintais
Que he tanto mais o amor despois que amais,
Quanto são mais as causas de ser menos.

E não presuma alguem que algum defeito,
Quando na cousa amada se apresenta,
Possa diminuir o amor perfeito:

Antes o dobra mais; e se atormenta,
Pouco a pouco desculpa o brando peito;
Que Amor com seus contrarios se accrescenta.

XCII.

Que poderei do mundo ja querer,
Pois no mesmo em que puz tamanho amor,
Não vi senão desgôsto e desfavor,
E morte, em fim; que mais não póde ser?

Pois me não farta a vida de viver,
Pois ja sei que não mata grande dor,
Se houver cousa que mágoa dê maior,
Eu a verei; que tudo posso ver.

A Morte, a meu pezar, me assegurou
De quanto mal me vinha: ja perdi
O que a perder o medo me ensinou.

Na vida desamor somente vi,
Na morte a grande dor que me ficou:
Parece que para isto só nasci.



XCIII.

Pensamentos, que agora novamente
Cuidados vãos em mi resuscitais,
Dizei-me: E ainda não vos contentais
De ter a quem vos tẽe tão descontente?

Que phantasia he esta, que presente
Cad'hora ante os meus olhos me mostrais?
Com huns sonhos tão vãos inda tentais
Quem nem por sonhos póde ser contente?

Vejo-vos, pensamentos, alterados,
E não quereis, de esquivos, declarar-me
Que he isto que vos traz tão enleados?

Não mo negueis, se andais para negar-me;
Porque se contra mi 'stais levantados,
Eu vos ajudarei mesmo a matar-me.

XCIV.

Se tomo a minha pena em penitencia
Do error em que cahio o pensamento,
Não abrando, mas dóbro meu tormento,
Que a tanto, e mais, obriga a paciencia.

E se huma côr de morto na apparencia,
Hum espalhar suspiros vãos ao vento
Não faz em vós, Senhora, movimento,
Fique o meu mal em vossa consciencia.

Mas se de qualquer aspera mudança
Toda vontade isenta Amor castiga,
(Como eu vejo no mal que me condena)

E se em vós não se entende haver vingança,
Será forçado (pois Amor me obriga)
Que eu só da culpa vossa pague a pena.



XCV.

Aquella que, de pura castidade,
De si mesma tomou cruel vingança
Por huma breve e subita mudança
Contrária á sua honra e qualidade;

Venceo á formosura a honestidade,
Venceo no fim da vida a esperança,
Porque ficasse viva tal lembrança,
Tal amor, tanta fé, tanta verdade.

De si, da gente e do mundo esquecida,
Ferio com duro ferro o brando peito,
Banhando em sangue a fôrça do tyrano.

Oh ousadia estranha! estranho feito!
Que dando breve morte ao corpo humano,
Tenha sua memoria larga vida!

XCVI.

Os vestidos Elisa revolvia,
Que Eneas lhe deixára por memoria;
Doces despojos da passada gloria;
Doces quando seu fado o consentia.

Entre elles a formosa espada via,
Que instrumento, em fim, foi da triste historia;
E como quem de si tinha a victoria,
Fallando só com ella, assi dizia:

Formosa e nova espada, se ficaste
Só porque executasses os enganos
De quem te quiz deixar, em minha vida;

Sabe que tu comigo te enganaste;
Que para me tirar de tantos danos
Sobeja-me a tristeza da partida.



XCVII.

Oh quão caro me custa o entender-te,
Molesto Amor que, só por alcançar-te,
De dor em dor me tens trazido a parte
Donde em ti odio e íra se converte!

Cuidei que para em tudo conhecer-te
Me não faltava experiencia e arte;
Mas na alma vejo agora accrescentar-te
Aquillo que era causa de perder-te.

Estavas tão secreto no meu peito,
Que eu mesmo, que te tinha, não sabia
Que me senhoreavas deste geito.

Descubriste-te agora; e foi por via
Que teu descobrimento e meu defeito,
Hum me envergonha e outro me injuria.

XCVIII.

Se despois de esperança tão perdida,
Amor por causa alguma consentisse
Que inda algum'hora breve alegre visse
De quantas tristes vio tão longa vida;

Hum'alma ja tão fraca e tão cahida
(Quando a sorte mais alto me subisse)
Não tenho para mi que consentisse
Alegria tão tarde consentida.

Nem tamsomente o Amor me não mostrou
Hum'hora em que vivesse alegremente,
De quantas nesta vida me negou;

Mas inda tanta pena me consente,
Que co'o contentamento me tirou
O gôsto de algum'hora ser contente.



XCIX.

O raio crystallino se estendia
Por o mundo da Aurora marchetada,
Quando Nise, pastora delicada,
Donde a vida deixava se partia.

Dos olhos, com que o sol escurecia,
Levando a luz em lagrimas banhada,
De si, do fado, e tempo magoada,
Pondo os olhos no Ceo, assi dizia:

Nasce, sereno sol, puro e luzente;
Resplandece, purpurea e branca aurora,
Qualquer alma alegrando descontente;

Que a minha, sabe tu que desde agora
Jamais na vida a podes ver contente,
Nem tão triste nenhuma outra pastora.

C.

No mundo poucos annos e cansados
Vivi, cheios de vil miseria e dura:
Foi-me tão cedo a luz do dia escura,
Que não vi cinco lustros acabados.

Corri terras e mares apartados,
Buscando á vida algum remedio ou cura:
Mas aquillo que, em fim, não dá ventura
Não o dão os trabalhos arriscados.

Criou-me Portugal na verde e chara
Patria minha Alemquer; mas ar corruto,
Que neste meu terreno vaso tinha,

Me fez manjar de peixes em ti, bruto
Mar, que bates a Abássia fera e avara,
Tão longe da ditosa patria minha.



CI.

Vós, que escuitais em Rimas derramado
Dos suspiros o som que me alentava
Na juvenil idade, quando andava
Em outro em parte do que sou mudado;

Sabei que busca só do ja cantado
No tempo em que ou temia ou esperava,
De quem o mal provou, que eu tanto amava,
Piedade, e não perdão, o meu cuidado.

Pois vejo que tamanho sentimento
Só me rendeo ser fábula da gente,
(Do que comigo mesmo me envergonho)

Sirva de exemplo claro meu tormento,
Com que todos conheção claramente
Que quanto ao mundo apraz he breve sonho.

CII.

De amor escrevo, de amor trato e vivo;
De amor me nasce amar sem ser amado;
De tudo se descuida o meu cuidado,
Quanto não seja ser de amor captivo:

De amor que a lugar alto voe altivo,
E funde a gloria sua em ser ousado;
Que se veja melhor purificado
No immenso resplandor de hum raio esquivo.

Mas ai que tanto amor só pena alcança!
Mais constante ella, e elle mais constante,
De seu triumpho cada qual só trata.

Nada, em fim, me aproveita; que a esperança,
Se anima alguma vez a hum triste amante,
Ao perto vivifica, ao longe mata.



CIII.

Se da célebre Laura a formosura
Hum numeroso cysne ufano escreve,
Huma angelica penna se te deve,
Pois o Ceo em formar-te mais se apura.

E se voz menos alta te procura
Celebrar, (oh Natercia!) em vão se atreve:
De ver-te ja a ventura Liso teve,
Mas de cantar-te falta-lhe a ventura.

No ceo nasceste, certo, e não na terra:
Para gloria do mundo cá desceste:
Quem mais isto negar, muito mais erra.

E eu imagino que de lá vieste
Para emendar os vicios que elle encerra,
Co'os divinos poderes que trouxeste.

CIV.

Esses cabellos louros e escolhidos,
Que o ser ao aureo sol estão tirando;
Esse ar immenso, adonde naufragando
Estão continuamente os meus sentidos;

Esses furtados olhos tão fingidos
Que minha vida e morte estão causando;
Essa divina graça, que em fallando
Finge os meus pensamentos não ser cridos;

Esse compasso certo, essa medida
Que faz dobrar no corpo a gentileza;
A divindade em terra, tão subida;

Mostrem ja piedade, e não crueza,
Que são laços que Amor tece na vida,
Sendo em mi sofrimento, em vós dureza.



CV.

Quem pudéra julgar de vós, Senhora,
Que huma tal fé pudesse assi perder-vos?
Se por amar-vos chego a aborrecer-vos,
Deixar não posso o amar-vos algum'hora.

Deixais a quem vos ama, ou vos adora,
Por ver a quem quiçá não sabe ver-vos?
Mas eu sou quem não soube merecer-vos,
E esta minha ignorancia entendo agora.

Nunca soube entender vossa vontade,
Nem a minha mostrar-vos verdadeira,
Indaque clara estava esta verdade.

Esta, em quanto eu viver, vereis inteira;
E se em vão meu querer vos persuade,
Mais vosso não querer faz que vos queira.

CVI.

Quem, Senhora, presume de louvar-vos
Com discurso que baixe de divino,
De tanto maior pena será dino,
Quanto vós sois maior ao contemplar-vos.

Não aspire algum canto a celebrar-vos,
Por mais que seja raro, ou peregrino;
Pois de vossa belleza eu imagino
Que só comvosco o Ceo quiz comparar-vos.

Ditosa esta alma vossa, a que quizestes
Pôr em posse de prenda tão subida,
Qual esta que benigna, em fim, me déstes.

Sempre será anteposta á mesma vida:
Esta estimar em menos me fizestes,
Se antes que ess'outra a quero ver perdida.



CVII.

Moradoras gentis e delicadas
Do claro e aureo Tejo, que metidas
Estais em suas grutas escondidas,
E com doce repouso socegadas;

Agora esteis de amores inflammadas,
Nos crystallinos paços entretidas;
Agora no exercicio embevecidas
Das télas de ouro puro matizadas;

Movei dos lindos rostos a luz pura
De vossos olhos bellos, consentindo
Que lagrimas derramem de tristura.

E assi com dor mais propria ireis ouvindo
As queixas que derramo da Ventura,
Que com penas de Amor me vai seguindo.

CVIII.

Brandas águas do Tejo que, passando
Por estes verdes campos que regais,
Plantas, hervas, e flores, e animais,
Pastores, Nymphas, ides alegrando;

Não sei, (ah doces águas!) não sei quando
Vos tornarei a ver; que mágoas tais,
Vendo como vos deixo, me causais,
Que de tornar ja vou desconfiando.

Ordenou o destino, desejoso
De converter meus gostos em pezares,
Partida que me vai custando tanto.

Saudoso de vós, delle queixoso,
Encherei de suspiros outros ares,
Turbarei outras águas com meu pranto.



CIX.

Novos casos de Amor, novos enganos,
Envoltos em lisonjas conhecidas;
Do bem promessas falsas e escondidas,
Onde do mal se cumprem grandes danos;

Como não tomais ja por desenganos
Tantos ais, tantas lagrimas perdidas,
Pois que a vida não basta, nem mil vidas,
A tantos dias tristes, tantos anos?

Hum novo coração mister havia,
Com outros olhos menos aggravados,
Para tornar a crer o que eu vos cria.

Andais comigo, enganos, enganados;
E se o quizerdes ver, cuidai hum dia
O que se diz dos bem acutilados.

CX.

Onde porei meus olhos que não veja
A causa de que nasce o meu tormento?
A qual parte me irei co'o pensamento,
Que para descansar parte me seja?

Ja sei como se engana quem deseja
Em vão amor fiel contentamento;
E que nos gostos seus, que são de vento,
Sempre falta seu bem, seu mal sobeja.

Mas inda, sôbre o claro desengano,
Assi me traz esta alma sobjugada,
Que delle está pendendo o meu desejo.

E vou de dia em dia, de anno em ano,
Apoz hum não sei que, apoz hum nada,
Que quanto mais me chego, menos vejo.



CXI.

Ja do Mondego as águas apparecem
A meus olhos, não meus, antes alheios,
Que de outras differentes vindo cheios,
Na sua branda vista inda mais crecem.

Parece que tambem forçadas decem,
Segundo se detem em seus rodeios.
Triste! por quantos modos, quantos meios,
As minhas saudades me entristecem!

Vida de tantos males salteada,
Amor a põe em termos, que duvida
De conseguir o fim desta jornada.

Antes se dá de todo por perdida,
Vendo que não vai da alma acompanhada,
Que se deixou ficar onde tẽe vida.

CXII.

Que doudo pensamento he o que sigo?
Apos que vão cuidado vou correndo?
Sem ventura de mi! que não me entendo;
Nem o que callo sei, nem o que digo.

Pelejo com quem trata paz comigo;
De quem guerra me faz não me defendo.
De falsas esperanças que pertendo?
Quem do meu proprio mal me faz amigo?

Porque, se nasci livre, me captivo?
E pois o quero ser, porque o não quero?
Como me engano mais com desenganos?

Se ja desesperei, que mais espero?
E se inda espero mais, porque não vivo?
E se vivo, que accuso mortaes danos?



CXIII.

Hum firme coração posto em ventura;
Hum desejar honesto, que se engeite
De vossa condição, sem que respeite
A meu tão puro amor, a fé tão pura;

Hum ver-vos de piedade e de brandura
Sempre inimiga, faz-me que suspeite
Se alguma Hyrcana fera vos deo leite,
Ou se nascestes de huma pedra dura.

Ando buscando causa, que desculpe
Crueza tão estranha; porém quanto
Nisso trabalho mais, mais mal me trata.

Donde vem, que não ha quem nos não culpe;
A vós, porque matais quem vos quer tanto,
A mim, por querer tanto a quem me mata.

CXIV.

Ar, que de meus suspiros vejo cheio;
Terra, cansada ja com meu tormento;
Agua, que com mil lagrimas sustento;
Fogo, que mais accendo no meu seio;

Em paz estais em mim; e assi o creio,
Sem esse ser o vosso proprio intento;
Pois em dor onde falta o soffrimento,
A vida se sostem por vosso meio.

Ai imiga Fortuna! ai vingativo
Amor! a que discursos por vós venho,
Sem nunca vos mover com minha mágoa!

Se me quereis matar, para que vivo?
E como vivo, se contrarios tenho
Fogo, Fortuna, Amor, Ar, Terra e Agoa?



CXV.

Ja claro vejo bem, ja bem conheço
Quanto augmentando vou o meu tormento;
Pois sei que fundo em água, escrevo em vento,
E que o cordeiro manso ao lobo peço;

Que Arachne sou, pois ja com Pallas teço;
Que a tigres em meus males me lamento;
Que reduzir o mar a hum vaso intento,
Aspirando a esse ceo que não mereço.

Quero achar paz em hum confuso inferno;
Na noite do sol puro a claridade;
E o suave verão no duro inverno.

Busco em luzente Olympo escuridade,
E o desejado bem no mal eterno,
Buscando amor em vossa crueldade.

CXVI.

De cá, donde somente o imaginar-vos
A rigorosa ausencia me consente,
Sôbre as azas de Amor, ousadamente
O mal soffrido esprito vai buscar-vos.

E se não receára de abrazar-vos
Nas chammas que por vossa causa sente,
Lá ficára comvosco e, vós presente,
Aprendêra de vós a contentar-vos.

Mas, pois que estar ausente lhe he forçado,
Por senhora, de cá, vos reconhece,
Aos pés de imagens vossas inclinado.

E pois vêdes a fé que vos offrece,
Ponde os olhos, de lá, no seu cuidado,
E dar-lhe-heis inda mais do que merece.



CXVII.

Não ha louvor que arribe á menor parte
De quanto em vós se vê, bella Senhora:
Vós sois vosso louvor: quem vos adora
Reduz somente a este o engenho e arte.

Quanto por muitas damas se reparte
De bello e de formoso, em vós agora
Se junta em modo tal, que pouco fôra
Dizer que sois o todo, ellas a parte.

Culpa, logo, não he, se vou louvar-vos,
Ver incapazes todos os louvores,
Pois tanto quiz o Ceo avantajar-vos.

Seja a culpa de vossos resplandores;
E a que elles tẽe vos dou, só para dar-vos
O mor louvor de todos os maiores.

CXVIII.

Não vás ao monte, Nise, com teu gado;
Que lá vi que Cupido te buscava:
Por ti somente a todos perguntava,
No gesto menos placido que irado.

Elle publíca, em fim, que lhe has roubado
Os melhores farpões da sua aljava;
E com hum dardo ardente assegurava
Traspassar esse peito delicado.

Fuge de ver-te lá nesta aventura,
Porque se contra ti o tens iroso,
Póde ser que te alcance com mão dura.

Mas ai! que em vão te advirto temeroso,
Se á tua incomparavel formosura
Se rende o dardo seu mais poderoso!



CXIX.

A violeta mais bella que amanhece
No valle por esmalte da verdura,
Com seu pallido lustre e formosura,
Por mais bella, Violante, te obedece.

Perguntas-me porque? Porque apparece
Em ti seu nome, e sua côr mais pura;
E estudar em teu rosto só procura
Tudo quanto em beldade mais florece.

Oh luminosa flor! Oh sol mais claro!
Unico roubador de meu sentido,
Não permittas que Amor me seja avaro.

Oh penetrante setta de Cupido!
Que queres? Que te peça por reparo
Ser neste valle Eneas desta Dido?

CXX.

Tornae essa brancura á alva assucena,
E essa purpurea côr ás puras rosas;
Tornae ao sol as chammas luminosas
De essa vista que a roubos vos condena.

Tornae á suavissima sirena
D'essa voz as cadencias deleitosas:
Tornae a graça ás Graças, que queixosas
Estão de a ter por vós menos serena:

Tornae á bella Venus a belleza;
A Minerva o saber, o engenho, e a arte;
E a pureza á castissima Diana.

Despojae-vos de toda essa grandeza
De dões; e ficareis em toda parte
Comvosco só, que he só ser inhumana.



CXXI.

De mil suspeitas vãas se me levantão
Trabalhos e desgostos verdadeiros.
Ai que estes bens de Amor são feiticeiros,
Que com hum não sei que toda alma encantão!

Como serêas docemente cantão
Para enganar os tristes marinheiros:
Os meus assi me attrahem lisongeiros,
E despois com horrores mil me espantão.

Quando cuido que tomo porto ou terra,
Tal vento se levanta em hum instante,
Que subito da vida desconfio.

Mas eu sou quem me faz a maior guerra,
Pois conhecendo os riscos de hum amante
Fiado a ondas de Amor, dellas me fio

CXXII.

Mil vezes determino não vos ver,
Por ver se abranda mais o meu penar:
E se cuido de assi me magoar,
Cuidai o que será, se houver de ser.

Pouco me importa ja muito soffrer,
Despois que Amor me poz em tal lugar;
E o que inda me doe mais he só cuidar,
Que mal sem esta dor posso viver.

Assi não busco eu cura contra a dor,
Porque, buscando alguma, entendo bem
Que nesse mesmo ponto me perdi.

Quereis que viva, em fim, neste rigor?
Somente o querer vosso me convem.
Assi quereis que seja? Seja assi.



CXXIII.

A chaga que, Senhora, me fizestes,
Não foi para curar-se em hum só dia;
Porque crescendo vai com tal porfia,
Que bem descobre o intento que tivestes.

De causar tanta dor vos não doestes?
Mas a doer-vos, dor me não sería,
Pois ja com esperança me veria
Do que vós que em mi visse não quizestes.

Os olhos com que todo me roubastes
Forão causa do mal que vou passando;
E vós estais fingindo o não causastes.

Mas eu me vingarei. E sabeis quando?
Quando vos vir queixar porque deixastes
Ir-se a minha alma nelles abrazando.

CXXIV.

Se com desprezos, Nympha, te parece
Que podes desviar do seu cuidado
Hum coração constante, que se offrece
A ter por gloria o ser atormentado.

Deixa a tua porfia, e reconhece
Que mal sabes de amor desenganado;
Pois não sentes, nem vês que em teu mal crece,
Crescendo em mi de ti mais desamado.

O esquivo desamor, com que me tratas,
Converte em piedade, se não queres
Que cresça o meu querer, e o teu desgosto.

Vencer-me com cruezas nunca esperes:
Bem me podes matar, e bem me matas;
Mas sempre ha de viver meu presupposto.



CXXV.

Senhora minha, se eu de vós ausente
Me defendêra de hum penar severo,
Suspeito que offendêra o que vos quero,
Esquecido do bem de estar presente.

Traz este, logo sinto outro accidente,
E he ver que se da vida desespero,
Perco a gloria que vendo-vos espero;
E assi estou em meus males differente.

E nesta differença meus sentidos
Combatem com tão aspera porfia,
Que julgo este meu mal por deshumano.

Entre si sempre os vejo divididos;
E se acaso concordão algum dia,
He só conjuração para meu dano.

CXXVI.

No regaço de mãe Amor estava
Dormindo tão formoso, que movia
O coração que mais isento o via;
E a sua propria mãe de amor matava.

Ella, co'os olhos nelle, contemplava
A quanto estrago o mundo reduzia:
Elle porém, sonhando, lhe dizia
Que todo aquelle mal ella o causava.

Soliso que, graduado em seus amores,
De saber de ambos mais teve a ventura,
Assi soltou a dúvida aos pastores:

Se bem me ferem sempre sem ter cura
Do menino os ardentes passadores,
Mais me fere da mãe a formosura.



CXXVII.

Este terreste caos com seus vapores
Não póde condensar as nuvens tanto,
Que o claro sol não rompa o negro manto
Cum suas bellas e luzentes côres.

A ingratidão esquiva de rigores
Opposta nuvem he, que dura em quanto
Nos não converte o Ceo em triste pranto
Suas vãas esperanças, seus favores.

Póde-se contrapôr ao ceo a terra,
E estar o sol por horas eclipsado;
Mas não póde ficar escurecido.

Póde prevalecer a vossa guerra;
Mas, a pezar das nuvens, declarado
Ha de ser vosso sol, e obedecido.

CXXVIII.

Huma admiravel herva se conhece,
Que vai ao sol seguindo de hora em hora,
Logo que elle do Euphrates se vê fóra,
E quando está mais alto, então florece.

Mas quando ao Oceano o carro dece,
Toda a sua belleza perde Flora,
Porque ella se emmurchece e se descora:
Tanto co'a luz ausente se entristece!

Meu sol, quando alegrais esta alma vossa,
Mostrando-lhe esse rosto que dá vida,
Cria flores em seu contentamento.

Mas logo, em não vos vendo, entristecida
Se murcha e se consume em grão tormento:
Nem ha quem vossa ausencia soffrer possa.



CXXIX.

Crescei, desejo meu, pois que a Ventura
Ja vos tẽe nos seus braços levantado;
Que a bella causa de que sois gerado
O mais ditoso fim vos assegura.

Se aspirais por ousado a tanta altura,
Não vos espante haver ao sol chegado;
Porque he de aguia Real vosso cuidado,
Que quanto mais o soffre, mais se apura.

Ánimo, coração; que o pensamento
Te póde inda fazer mais glorioso,
Sem que respeite a teu merecimento.

Que cresças inda mais he ja forçoso;
Porque se foi de ousado o teu intento,
Agora de atrevido he venturoso.

CXXX.

He o gozado bem em água escrito;
Vive no desejar, morre no effeito:
O desejado sempre he mais perfeito,
Porque tẽe parte alguma de infinito.

Dar a huma alma immortal gôzo prescrito,
Em verdadeiro amor, fôra defeito:
Por modo sup'rior, não imperfeito,
Sois excepção de quanto aqui limito.

De huma esperança nunca conhecida,
Da fé do desejar não alcançada,
Sereis mais desejada, possuida.

Não podeis da esperança ser amada;
Vista podereis ser, e então mais crida;
Porém não, sem aggravo, comparada.



CXXXI.

De quantas graças tinha a natureza
Fez hum bello e riquissimo thesouro;
E com rubis e rosas, neve e ouro,
Formou sublime e angelica belleza.

Poz na boca os rubis, e na pureza
Do bello rosto as rosas, por quem mouro;
No cabello o valor do metal louro;
No peito a neve, em que a alma tenho accesa.

Mas nos olhos mostrou quanto podia,
E fez delles hum sol, onde se apura
A luz mais clara que a do claro dia.

Em fim, Senhora, em vossa compostura,
Ella a apurar chegou quanto sabia
De ouro, rosas, rubis, neve e luz pura.

CXXXII.

Nunca em amor damnou o atrevimento;
Favorece a Fortuna a ousadia;
Porque sempre a encolhida covardia
De pedra serve ao livre pensamento.

Quem se eleva ao sublime Firmamento,
A estrella nelle encontra, que lhe he guia;
Que o bem que encerra em si a phantasia
São humas illusões que leva o vento.

Abrir se devem passos á ventura:
Sem si proprio ninguem será ditoso:
Os principios somente a sorte os move.

Atrever-se he valor, e não loucura.
Perderá por covarde o venturoso
Que vos vê, se os temores não remove.



CXXXIII.

Doces e claras águas do Mondego,
Doce repouso de minha lembrança,
Onde a comprida e perfida esperança
Longo tempo apos si me trouxe cego,

De vós me aparto, si; porém não nego
Que inda a longa memoria, que me alcança,
Me não deixa de vós fazer mudança,
Mas quanto mais me alongo, mais me achego

Bem poderá a Fortuna este instrumento
Da alma levar por terra nova e estranha,
Offerecido ao mar remoto, ao vento.

Mas a alma, que de cá vos acompanha,
Nas azas do ligeiro pensamento
Para vós, águas, vôa, e em vós se banha.

CXXXIV.

Senhor João Lopes, o meu baixo estado
Hontem vi posto em grao tão excellente,
Que sendo vós inveja a toda a gente,
Só por mi vos quizereis ver trocado.

O gesto vi suave e delicado,
Que ja vos fez contente e descontente,
Lançar ao vento a voz tão docemente,
Que fez o ar sereno e socegado.

Vi-lhe em poucas palavras dizer quanto
Ninguem diria em muitas: mas eu chego
A espirar só de ouvir a doce fala.

Oh mal o haja a Fortuna, e o moço cego!
Elle, que os corações obriga a tanto;
Ella, porque os estados desiguala.



CXXXV.

A Morte, que da vida o nó desata,
Os nós, que dá o Amor, cortar quizera
Co'a ausencia, que he sôbre elle espada fera,
E co'o tempo, que tudo desbarata.

Duas contrárias, que huma a outra mata,
A Morte contra Amor junta e altera;
Huma, Razão contra a Fortuna austera;
Outra, contra a Razão Fortuna ingrata.

Mas mostre a sua imperial potencia
A Morte em apartar de hum corpo a alma,
O Amor n'hum corpo duas almas una;

Para que assi triumphante leve a palma
Da Morte Amor a grão pesar da ausencia,
Do tempo, da Razão, e da Fortuna.

CXXXVI.

Árvore, cujo pomo bello e brando
Natureza de leite e sangue pinta,
Onde a pureza, de vergonha tinta,
Está virgineas faces imitando;

Nunca do vento a ira, que arrancando
Os troncos vai, o teu injúria sinta;
Nem por malícia de ar te seja extinta
A côr que está teu fructo debuxando.

E pois emprestas doce e idoneo abrigo
A meu contentamento, e favoreces
Com teu suave cheiro a minha gloria;

Se eu não te celebrar como mereces,
Cantando-te, se quer farei comtigo
Doce nos casos tristes a memoria.



CXXXVII.

O filho de Latona esclarecido,
Que com seu raio alegra a humana gente,
Matar pôde a Phytonica serpente
Que mortes mil havia produzido.

Ferio com arco, e de arco foi ferido,
Com ponta aguda de ouro reluzente:
Nas Thessalicas praias docemente
Por a nympha Penea andou perdido.

Não lhe pôde valer contra seu dano
Saber, nem diligencias, nem respeito
De quanto era celeste e soberano.

Pois se hum deos nunca vio nem hum engano
De quem era tão pouco em seu respeito,
Eu qu'espero de hum ser, qu'he mais que humano?

CXXXVIII.

Presença bella, angelica figura,
Em quem quanto o Ceo tinha nos tẽe dado;
Gesto alegre de rosas semeado,
Entre as quaes se está rindo a Formosura:

Olhos, onde tẽe feito tal mistura
Em crystal puro o negro marchetado,
Que vemos ja no verde delicado
Não esperança, mas inveja escura:

Brandura, aviso, e graça, que augmentando
A natural belleza co'hum desprezo,
Com que mais desprezada mais se augmenta:

São as prizões de hum coração, que prêzo,
Seu mal ao som dos ferros vai cantando,
Como faz a serêa na tormenta.



CXXXIX.

Por cima destas águas forte e firme
Irei aonde os Fados o ordenárão,
Pois por cima de quantas derramárão
Aquelles claros olhos pude vir-me.

Ja chegado era o fim de despedir-me;
Ja mil impedimentos se acabárão,
Quando rios de amor se atravessárão
A me impedir o passo de partir-me.

Passei-os eu com ânimo obstinado,
Com que a morte forçada gloriosa
Faz o vencido ja desesperado.

Em qual figura, ou gesto desusado,
Póde ja fazer medo a morte irosa
A quem tẽe a seus pés rendido e atado?

CXL.

Tal mostra de si dá vossa figura,
Sibela, clara luz da redondeza,
Que as fôrças e o poder da natureza
Com sua claridade mais apura.

Quem confiança ha visto tão segura,
Tão singular esmalte da belleza,
Que não padeça mal de mais graveza,
Se resistir a seu amor procura?

Eu, pois, por escusar tal esquivança,
A razão sujeitei ao pensamento,
A quem logo os sentidos se entregárão.

Se vos offende o meu atrevimento,
Inda podeis tomar nova vingança
Nas reliquias da vida que ficárão.



CXLI.

Na desesperação ja repousava
O peito longamente magoado,
E, com seu damno eterno concertado,
Ja não temia, ja não desejava;

Quando huma sombra vãa me assegurava
Que algum bem me podia estar guardado
Em tão formosa imagem, que o traslado
N'alma ficou, que nella se enlevava.

Que credito que dá tão facilmente
O coração áquillo que deseja,
Quando lhe esquece o fero seu destino!

Ah! deixem-me enganar; que eu sou contente;
Pois, postoque maior meu damno seja,
Fica-me a gloria ja do que imagino

CXLII.

Diversos dões reparte o Ceo benino,
E quer que cada huma alma hum só possua;
Por isso ornou de casto peito a Lua,
Que o primeiro orbe illustra crystallino;

De graça a Mãe formosa do Menino,
Que nessa vista tẽe perdido a sua;
Pallas de sciencia não maior que a tua:
Tẽe Juno da nobreza o imperio dino.

Mas junto agora o largo Ceo derrama
Em ti o mais que tinha, e foi o menos
Em respeito do Autor da natureza.

Que a seu pezar te dão, formosa dama,
Seu peito a Lua, sua graça Venos,
Sua sciencia Pallas, Juno sua nobreza.



CXLIII.

Gentil Senhora, se a Fortuna imiga,
Que contra mi com todo o Ceo conspira,
Os olhos meus de ver os vossos tira,
Porque em mais graves casos me persiga;

Comigo levo esta alma, que se obriga
Na mor pressa de mar, de fogo, e d'íra,
A dar-vos a memoria, que suspira
Só por fazer comvosco eterna liga.

Nesta alma, onde a fortuna póde pouco,
Tão viva vos terei, que frio e fome,
Vos não possão tirar, nem mais perigos.

Antes, com som de voz trémulo e rouco
Por vós chamando, só com vosso nome
Farei fugir os ventos, e os imigos.

CXLIV.

Que modo tão subtil da natureza
Para fugir ao mundo e seus enganos!
Permitte que se esconda em tenros anos
Debaixo de hum burel tanta belleza!

Mas não póde esconder-se aquella alteza
E gravidade de olhos soberanos,
A cujo resplandor entre os humanos
Resistencia não sinto, ou fortaleza.

Quem quer livre ficar de dor e pena,
Vendo-a ja, ja trazendo-a na memoria,
Na mesma razão sua se condena.

Porque quem mereceo ver tanta gloria
Captivo ha de ficar; que Amor ordena
Que de juro tenha ella esta victoria.



CXLV.

Quando se vir com água o fogo arder,
Juntar-se ao claro dia a noite escura,
E a terra collocada lá na altura
Em que se vem os ceos prevalecer;

Quando Amor á Razão obedecer,
E em todos for igual huma ventura,
Deixarei eu de ver tal formosura,
E de a amar deixarei depois de a ver.

Porém não sendo vista esta mudança
No mundo, porque, em fim, não póde ver-se,
Ninguem mudar-me queira de querer-vos.

Que basta estar em vós minha esperança,
E o ganhar-se a minha alma, ou o perder-se,
Para dos olhos meus nunca perder-vos.

CXLVI.

Quando a suprema dor muito me aperta,
Se digo que desejo esquecimento,
He fôrça que se faz ao pensamento,
De que a vontade livre desconcerta.

Assi de êrro tão grave me desperta
A luz do bem regido entendimento,
Que mostra ser engano, ou fingimento,
Dizer que em tal descanso mais se acerta.

Porque essa propria imagem, que na mente
Me representa o bem de que careço,
Faz-mo de hum certo modo ser presente.

Ditosa he, logo, a pena que padeço,
Pois que da causa della em mi se sente
Hum bem que, inda sem ver-vos, reconheço.



CXLVII.

Na margem de hum ribeiro, que fendia
Com liquido crystal hum verde prado,
O triste pastor Liso debruçado
Sôbre o tronco de hum freixo assi dizia:

Ah Natercia cruel! quem te desvia
Esse cuidado teu do meu cuidado?
Se tanto hei de penar desenganado,
Enganado de ti viver queria.

Que foi de aquella fé que tu me déste?
D'aquelle puro amor que me mostraste?
Quem tudo trocar pôde tão asinha?

Quando esses olhos teus n'outro puzeste,
Como te não lembrou que me juraste
Por toda a sua luz que eras só minha?

CXLVIII.

Se me vem tanta gloria só de olhar-te,
He pena desigual deixar de ver-te;
Se presumo com obras merecer-te,
Grão paga de hum engano he desejar-te.

Se aspiro por quem es a celebrar-te,
Sei certo por quem sou que hei de offender-te;
Se mal me quero a mi por bem querer-te,
Que premio querer posso mais que amar-te?

Porque hum tão raro amor não me soccorre?
Oh humano thesouro! oh doce gloria!
Ditoso quem á morte por ti corre!

Sempre escrita estaras nesta memoria;
E esta alma viverá, pois por ti morre,
Porque ao fim da batalha he a victoria.



CXLIX.

Sempre a Razão vencida foi de Amor;
Mas, porque assi o pedia o coração,
Quiz Amor ser vencido da Razão.
Ora que caso póde haver maior!

Novo modo de morte, e nova dor!
Estranheza de grande admiração!
Pois, em fim, seu vigor perde a affeição,
Porque não perca a pena o seu vigor.

Fraqueza, nunca a houve no querer;
Mas antes muito mais se esforça assim
Hum contrário com outro por vencer.

Mas a razão que a luta vence, em fim,
Não creio que he razão; mas deve ser
Inclinação que eu tenho contra mim.

CL.

Coitado! que em hum tempo chóro e rio;
Espero e temo, quero e aborreço;
Juntamente me allegro e me entristeço;
Confio de huma cousa e desconfio.

Vôo sem azas; estou cego e guio;
Alcanço menos no que mais mereço;
Entaõ fallo melhor, quando emmudeço;
Sem ter contradiçaõ sempre porfio.

Possivel se me faz todo o impossivel;
Intento com mudar-me estar-me quedo;
Usar de liberdade, e ser captivo;

Queria visto ser, ser invisivel;
Ver-me desenredado, amando o enredo:
Taes os extremos são com que hoje vivo!



CLI.

Julga-me a gente toda por perdido,
Vendo-me, tão entregue a meu cuidado,
Andar sempre dos homens apartado,
E de humanos commercios esquecido.

Mas eu, que tenho o mundo conhecido,
E quasi que sôbre elle ando dobrado,
Tenho por baixo, rustico, e enganado
Quem não he com meu mal engrandecido.

Vá revolvendo a terra, o mar, e o vento,
Honras busque e riquezas a outra gente,
Vencendo ferro, fogo, frio e calma.

Que eu por amor sómente me contento
De trazer esculpido eternamente
Vosso formoso gesto dentro da alma.

CLII.

Olhos, aonde o Ceo com luz mais pura
Quiz dar de seu poder claros signais,
Se quizerdes ver bem quanto possais,
Vêde-me a mi que sou vossa feitura.

Em mi viva vereis vossa figura
Mais propria que em purissimos crystais,
Porque nesta alma he certo que vejais
Melhor que em hum crystal tal formosura.

De meu não quero mais que o meu desejo,
Se acaso por querer-vos mais mereço,
Porque o vosso poder em mi se asselle.

Do mundo outra memoria em mi não vejo:
Com lembrar-me de vós, delle me esqueço,
Com triumphardes de mi, triumpharei delle.



CLIII.

Criou a natureza Damas bellas,
Que forão de altos plectros celebradas;
Dellas tomou as partes mais prezadas,
E a vós, Senhora, fez do melhor dellas.

Ellas diante vós são as estrellas,
Que ficão com vos ver logo eclipsadas.
Mas se ellas tẽe por sol essas rosadas
Luzes de sol maior, felices ellas!

Em perfeição, em graça e gentileza,
Por hum modo entre humanos peregrino,
A todo bello excede essa belleza.

Oh quem tivera partes de divino
Para vos merecer! Mas se pureza
De amor vai ante vós, de vós sou dino.

CLIV.

Que esperais, esperança?  Desespéro.
Quem disso a causa foi?  Hũa mudança.
Vós, vida, como estais?  Sem esperança.
Que dizeis, coração?  Que muito quero.

Que sentis, alma, vós?  Que amor he fero.
E, em fim, como viveis?  Sem confiança.
Quem vos sustenta, logo?  Huma lembrança.
E só nella esperais?  Só nella espero.

Em que podeis parar?  Nisto em que estou.
E em que estais vós?  Em acabar a vida.
E ténde-lo por bem?  Amor o quer.

Quem vos obriga assi?  Saber quem sou.
E quem sois?  Quem de todo está rendida.
A quem rendida estais?  A hum só querer.



CLV.

Se como em tudo o mais fostes perfeita,
Foreis de condição menos esquiva,
Fôra a minha fortuna mais altiva,
Fôra a sua altiveza mais sujeita.

Mas quando a vida a vossos pés se deita,
Porque não a acceitais, não quer que eu viva:
Ella propria de si ja a mi me priva;
Que, porque me engeitais, tambem me engeita.

Se nisso contradiz vossa vontade,
Mandai-lhe vós, Senhora, que dê fim
Á minha profundissima tristeza.

Pois ella não mo dá, porque piedade
Tenha deste meu mal, mas porque em mim
Possais assi fartar vossa crueza.

CLVI.

Se algum'hora essa vista mais suave
Acaso a mi volveis, em hum momento
Me sinto com hum tal contentamento,
Que não temo que damno algum me aggrave.

Mas quando com desdem esquivo e grave
O bello rosto me mostrais isento,
Huma dor provo tal, hum tal tormento,
Que muito vem a ser que não me acabe.

Assi está minha vida, ou minha morte
No volver de esses olhos; pois podeis
Dar co'huma volta delles morte, ou vida.

Ditoso eu, se o Ceo quer, ou minha sorte,
Que ou vida, para dar-vo-la, me deis,
Ou morte, para haver morte querida!



CLVII.

Tanto se forão, Nympha, costumando
Meus olhos a chorar tua dureza,
Que vão passando ja por natureza
O que por accidente hião passando.

No que ao somno se deve estou velando,
E venho a velar só minha tristeza:
O chôro não abranda esta aspereza,
E meus olhos estão sempre chorando.

Assi de dor em dor, de mágoa em mágoa,
Consumindo-se vão inutilmente,
E esta vida tambem vão consumindo.

Sôbre o fogo de amor inutil ágoa!
Pois eu em chôro estou continuamente,
E do que vou chorando te vás rindo.

Assi nova corrente
Levas de chôro em foro;
Porque de ver-te rir, de novo chóro.

CLVIII.

Eu me aparto de vós, Nymphas do Tejo,
Quando menos temia esta partida;
E se a minha alma vai entristecida,
Nos olhos o vereis com que vos vejo.

Pequenas esperanças, mal sobejo,
Vontade que razão leva vencida,
Presto verão o fim á triste vida,
Se vos não tórno a ver como desejo.

Nunca a noite entretanto, nunca o dia,
Verão partir de mi vossa lembrança:
Amor, que vai comigo, o certifica.

Por mais que no tornar haja tardança,
Me farão sempre triste companhia
Saudades do bem que em vós me fia.



CLIX.
Vencido está de amor
Meu pensamento
O mais que póde ser,
Vencida a vida,
Sujeita a vos servir e
Instituida,
Oferecendo tudo
A vosso intento.
 
Contente deste bem
Louva o momento,
Ou hora em que se vio
Tão bem perdida;
Mil vezes desejando,
Assi ferida,
Outras mil renovar
Seu perdimento.
 
Com esta pretenção
Está segura
A causa que me guia
Nesta empreza
Tão sobrenatural,
Honrosa, e alta.
 
Jurando não querer
Outra ventura,
Votando só por vós
Rara firmeza,
Ou ser no vosso amor
Achado em falta.
CLX.

Divina companhia, que nos prados
Do claro Eurotas, ou no Olympo monte,
Ou sôbre as margens da Castalia fonte
Vossos estudos tendes mais sagrados;

Pois por destino dos immoveis fados
Quereis qu'em vosso número me conte,
No eterno templo de Belorofonte
Ponde em bronze estes versos entalhados:

Soliso (porque em seculos futuros
Se veja da belleza o que merece
Quem de sábia doudice a mente inflama)

Seus escritos, da sorte ja seguros,
A estas aras em hũa mão offrece,
E a alma em outra á sua bella dama.



CLXI.

Á la margen del Tajo, en claro dia,
Con rayado marfil peinando estaba
Natercia sus cabellos, y quitaba
Con sus ojos la luz al sol que ardia.

Soliso que, cual Clicie, la seguia,
Lejos de sí, mas cerca della estaba:
Al son de su zampoña celebraba
La causa de su ardor, y así decia:

Si tantas, como tú tienes cabellos,
Tuviera vidas yo, me las llevaras
Colgada cada cual del uno dellos.

De no tenerlas tú me consolaras,
Si tantas veces mil, como son ellos,
En ellos la que tengo me enredaras.

CLXII.

 
Por gloria tuve un tiempo el ser perdido;
Perdíame de puro bien ganado;
Gané cuando perdí ser libertado;
Libre agora me veo, mas vencido.

Vencí cuando de Nise fuí rendido;
Rendíme por no ser della dejado:
Dejóme en la memoria el bien pasado;
Paso agora á llorar lo que he servido.

Servia al premio de la luz que amaba;
Amándola esperábale por cierto;
Incierto me salió cuanto esperaba.

La esperanza se queda en desconcierto;
El concierto en el mal que no pensaba;
El pensamiento con un fin incierto.



CLXIII.

Revuelvo en la incesable fantasía
Cuando me he visto en mas dichoso estado,
Si agora que de Amor vivo inflamado,
Si cuando de su ardor libre vivia.

Entonces desta llama solo huia,
Despreciando en mi vida su cuidado;
Agora, con dolor de lo pasado,
Tengo por gloria aquello que temia.

Bien veo que era vida deleitosa
Aquella que lograba sin temores,
Cuando gustos de Amor tuve por viento.

Mas viendo hoy á Natercia tan hermosa,
Hallo en esta prision glorias mayores,
Y en perderlas por libre hallo tormento.

CLXIV.

Las peñas retumbaban al gemido
Del misero zagal, que lamentaba
El dolor que á su alma lastimaba,
De un obstinado desamor nacido.

El mar, que las batia, su bramido
Con los retumbos dellas ayuntaba;
Confuso son el viento derramaba,
En cavernosos valles repetido.

Responden a mi llanto duras peñas,
Ai de mí! (dijo) la mar brama y gime;
Los ecos suenan de tristeza llenos:

Y tú, por quien la muerte en mí se imprime,
De oir las ansias mias te desdeñas;
Y cuando lloro mas, te abrando menos.



CLXV.

En una selva al dispuntar del dia
Estaba Endimion triste y lloroso,
Vuelto al rayo del sol, que presuroso
Por la falda de un monte descendia.

Mirando al turbador de su alegría,
Contrario de su bien y su reposo,
Tras un suspiro y otro, congojoso,
Razones semejantes le decia:

Luz clara, para mi la mas escura,
Que con esse paseo apresurado,
Mi sol con tu teniebla escureciste;

Si allà pueden moverte en esa altura
Las quejas de un pastor enamorado,
No tardes en volver á dó saliste.

CLXVI.

 
Orfeo enamorado que tañia
Por la perdida Ninfa que buscaba,
En el Orco implacable donde estaba,
Con la arpa, y con la voz la enternecia.

La rueda de Ixion no se movia,
Ningun atormentado se quejaba;
Las penas de los otros ablandaba,
Y todas las de todos él sentia.

El son pudo obligar de tal manera,
Que en dulce galardon de lo cantado,
Los infernales Reyes condolidos,

Le mandáron volver su compañera,
Y volvióla á perder el desdichado;
Con que fueron entrambos los perdidos.



CLXVII.

Eu cantei ja, e agora vou chorando
O tempo que cantei tão confiado:
Parece que no canto ja passado
Se estavão minhas lagrimas criando.

Cantei; mas se me alguem pergunta, quando?
Não sei; que tambem fui nisso enganado.
He tão triste este meu presente estado,
Que o passado por ledo estou julgando.

Fizerão-me cantar manhosamente
Contentamentos não, mas confianças:
Cantava, mas ja era ao som dos ferros.

De quem me queixarei, se tudo mente?
Porém que culpas ponho ás esperanças,
Onde a fortuna injusta he mais qu'os erros?

CLXVIII.

Ai amiga cruel! que apartamento
He este que fazeis da patria terra?
Ai! quem do amado ninho vos desterra,
Gloria dos olhos, bem do pensamento?

His tentar da fortuna o movimento,
E dos ventos crueis a dura guerra?
Ver brenhas de ondas? feito o mar em serra
Levantado de hum vento e de outro vento?

Mas ja que vós partis, sem vos partirdes,
Parta comvosco o Ceo tanta ventura,
Que se avantaje áquella qu'esperardes.

E só desta verdade ide segura,
Que fazeis mais saudades com vos irdes,
Do que levais desejos por chegardes.



CLXIX.

Campo! nas syrtes deste mar da vida,
Apos naufragios seus taboa segura;
Claras bonanças em tormenta escura,
Habitação da paz, de amor guarida;

A ti fujo: e se vence tal fugida,
E quem mudou lugar, mudou ventura,
Cantemos a victoria; e na espessura
Triumphe a honra da ambição vencida.

Em flor e fructo de verão e outono;
Utilmente murmurão claras ágoas;
Alegre me acha aqui, me deixa o dia.

Amantes rouxinoes rompem-me o sono
Que ata o descanso: aqui sepulto mágoas
Que ja forão sepulcros de alegri

CLXX.

Ah minha Dinamene! assi deixaste
Quem nunca deixar pôde de querer-te!
Que ja, Nympha gentil, não possa ver-te!
Que tão veloz a vida desprezaste!

Como por tempo eterno te apartaste
De quem tão longe andava de perder-te?
Puderão essas ágoas defender-te
Que não visses quem tanto magoaste?

Nem somente fallar-te a dura morte
Me deixou, qu'apressada o negro manto
Lançar sôbre os teus olhos consentiste.

Oh mar! oh ceo! oh minha escura sorte!
Qual vida perderei que valha tanto,
Se inda tenho por pouco o viver triste?



CLXXI.

Guardando em mi a Sorte o seu direito.
Em verde me cortou minha alegria.
Oh quanto feneceo naquelle dia,
Cuja triste lembrança arde em meu peito!

Quando mais o imagino, bem suspeito
Que a tal bem tal desconto se devia,
Por não dizer o mundo que podia
Achar-se em seus enganos bem perfeito.

Pois se a Fortuna o fez por descontar-me
Aquelle gôsto, em cujo sentimento
A memoria não faz senão matar-me;

Que culpas póde dar-me o pensamento,
Se a causa qu'elle tẽe de atormentar-me,
Tenho eu de soffrer mal o seu tormento?

CLXXII.

Cantando estava hum dia bem seguro,
Quando passava Sylvio, e me dizia:
(Sylvio, pastor antiguo que sabia
Por o canto das aves o futuro)

Liso, quando quizer o fado escuro,
A opprimir-te virão em hum só dia
Dous lobos; logo a voz e a melodia
Te fugirão, e o som suave e puro.

Bem foi assi; porque hum me degolou
Quanto gado vacum pastava e tinha,
De que grandes soldadas esperava.

E por mais damno o outro me matou
A cordeira gentil, qu'eu tanto amava,
Perpétua saudade da alma minha.



CLXXIII.

O ceo, a terra, o vento socegado,
As ondas que se estendem por a areia,
Os peixes que no mar o somno enfreia,
O nocturno silencio repousado;

O Pescador Aonio que, deitado
Onde co'o vento a água se meneia,
Chorando, o nome amado em vão nomeia,
Que não póde ser mais que nomeado,

Ondas, (dizia) antes que Amor me mate,
Tornae-me a minha Nympha, que tão cedo
Me fizestes á morte estar sujeita.

Ninguem responde; o mar de longe bate;
Move-se brandamente o arvoredo;
Leva-lhe o vento a voz, qu'ao vento deita.

CLXXIV.

Ah Fortuna cruel! ah duros Fados!
Quão asinha em meu damno vos mudastes!
Com os vossos cuidados me cansastes,
E agora descansais co'os meus cuidados.

Fizestes-me provar gostos passados,
E vossa condição nelles provastes:
Singelos em hum'hora mos levastes,
Deixando em seu lugar males dobrados.

Quanto melhor me fôra que não vira
Os doces bens de Amor? Ah bens suaves!
Quem me deixa sem vós, porque me deixa?

De queixar-te, alma minha, te retira:
Alma, de alto cahida em penas graves,
Pois tanto amaste em vão, em vão te queixa.



CLXXV.

Quanto tempo, olhos meus, com tal lamento
Vos hei de ver tão tristes e aggravados?
Não bástão meus suspiros inflammados,
Que sempre em mi renovão seu tormento?

Não basta consentir meu pensamento
Em mágoas, em tristezas e em cuidados,
Senão que haveis de andar tão maltratados,
Que lagrimas tenhais por mantimento?

Não sei porque tomais esta vingança,
Mostrando-vos na ausencia tão saudosos,
Se sabeis quanto póde huma esperança.

Olhos, não aggraveis outros formosos,
Tornando hum puro amor em esquivança,
Pois ficais por esquivos desdenhosos.

CLXXVI.

Lembranças, que lembrais o bem passado
Para que sinta mais o mal presente,
Deixae-me, se quereis, viver contente,
Morrer não me deixeis em tal estado.

Se de todo, comtudo, está do Fado,
Que eu morra de viver tão descontente,
Venha-me todo o bem por accidente,
E todo o mal me venha por cuidado.

Que muito melhor he perder-se a vida,
Perdendo-se as lembranças da memoria,
Pois fazem tanto damno ao pensamento.

Porque, em fim, nada perde quem perdida
A esperança tẽe ja daquella gloria
Que fazia suave o seu tormento.



CLXXVII.

Quando os olhos emprégo no passado,
De quanto passei me acho arrependido;
Vejo que tudo foi tempo perdido,
Que tudo emprêgo foi mal empregado.

Sempre no mais damnoso mais cuidado;
Tudo o que mais cumpria, mal cumprido;
De desenganos menos advertido
Fui, quando de esperanças mais frustrado.

Os castellos que erguia o pensamento,
No ponto que mais altos os erguia,
Por esse chão os via em hum momento.

Que erradas contas faz a phantasia!
Pois tudo pára em morte, tudo em vento,
Triste o que espera! triste o que confia!

CLXXVIII.

Ja cantei, ja chorei a dura guerra
Por Amor sustentada longos anos;
Vezes mil me vedou dizer seus danos,
Por não ver quem o segue o muito que erra.

Nymphas, por quem Castalia se abre e cerra;
Vós que fazeis á morte mil enganos,
Concedei-me ja alentos soberanos
Para que diga o mal que Amor encerra:

Para que aquelle, que o seguir ardente,
Veja em meus puros versos hum exemplo
De quanto em glorias promettidas mente.

Qu'inda qu'em triste estado me contemplo,
Se neste assumpto me inspirais, contente
Darei a minha lyra ao vosso templo.



CLXXIX.

Os meus alegres, venturosos dias
Passárão, como raio, brevemente;
Movem-se os tristes mais pezadamente
Apos das fugitivas alegrias.

Ah falsas pretenções! vãas phantasias!
Que me podeis ja dar que me contente?
Ja de meu triste peito a chamma ardente
O tempo reduzio a cinzas frias.

Nellas revolvo agora erros passados;
Que outro fructo não deo a mocidade,
A quem vergonha e dor minha alma deve

Revolvo mais de toda a mais idade,
Desejos vãos, vãos choros, vãos cuidados,
Para que leve tudo o tempo leve.

CLXXX.

Horas breves de meu contentamento,
Nunca me pareceo, quando vos tinha,
Que vos visse mudadas tão asinha
Em tão compridos annos de tormento.

As altas tôrres, que fundei no vento,
Levou, em fim, o vento que as sostinha:
Do mal, que me ficou, a culpa he minha,
Pois sôbre cousas vãas fiz fundamento.

Amor com brandas mostras apparece,
Tudo possivel faz, tudo assegura;
Mas logo no melhor desapparece.

Estranho mal! estranha desventura!
Por hum pequeno bem que desfallece,
Hum bem aventurar, que sempre dura!



CLXXXI.

Onde acharei lugar tão apartado,
E tão isento em tudo da ventura,
Que, não digo eu de humana criatura,
Mas nem de feras seja frequentado?

Algum bosque medonho e carregado,
Ou selva solitaria, triste e escura,
Sem fonte clara, ou placida verdura;
Em fim, lugar conforme a meu cuidado?

Porque alli nas entranhas dos penedos,
Em vida morto, sepultado em vida,
Me queixe copiosa e livremente.

Que, pois a minha pena he sem medida,
Alli não serei triste em dias ledos,
E dias tristes me farão contente.

CLXXXII.

Aqui de longos damnos breve historia
Verão os que se jactão de amadores:
Reparo póde ser das suas dores
Não apartar as minhas da memoria.

Escrevi, não por fama, nem por gloria,
De que outros versos são merecedores,
Mas por mostrar seus triumphos, seus rigores
A quem de mi logrou tanta victoria.

Crescendo foi a dor co'o tempo, tanto
Que em número me fez, alheio de arte,
Dizer do cego Amor, que me venceo.

Se ao canto dei a voz, dei a alma ao pranto;
E dando a penna á mão, esta só parte
De minhas tristes penas escreveo.



CLXXXIII.

Por sua Nympha Céphalo deixava
A Aurora, que por elle se perdia,
Postoque dá principio ao claro dia,
Postoque as roxas flores imitava.

Elle, que a bella Procris tanto amava,
Que só por ella tudo engeitaria,
Deseja de tentar se lhe acharia
Tão firme fé, como ella nelle achava.

Mudado o trage, tece hum duro engano;
Outro se finge, preço põe diante;
Quebra-se a fé mudavel, e consente.

Oh subtil invenção para seu dano!
Vêde que manhas busca hum cego amante
Para que sempre seja descontente!

CLXXXIV.

 
Sentindo-se alcançada a bella esposa
De Céphalo no crime consentido,
Para os montes fugia do marido;
E não sei se de astuta, ou vergonhosa.

Porque elle, em fim, soffrendo a dor ciosa,
Da cegueira obrigado de Cupido,
Apos ella se vai como perdido,
Ja perdoando a culpa criminosa.

Deita-se aos pés da Nympha endurecida,
Que do cioso engano está aggravada;
Ja lhe pede perdão, ja pede a vida.

Oh fôrça d'affeição desatinada!
Que da culpa contr'elle commettida,
Perdão pedia á parte que he culpada!



CLXXXV.

Seguia aquelle fogo, que o guiava,
Leandro, contra o mar e contra o vento;
Quebravão-lhe ondas o animoso alento,
Por mais e mais que Amor lho renovava.

Com sentir ja que quasi lhe faltava,
Sem nada esmorecer, no pensamento
(Não podendo fallar) de seu intento
O fim ao surdo mar encommendava.

Ó mar, (dizia o moço só comsigo)
Ja te não peço a vida; só queria
Que a d'Hero me salvasses: não me veja:

Este defunto corpo lá o desvia
D'aquella tôrre: sê-me nisto amigo,
Pois no meu maior bem me houveste inveja.

CLXXXVI.

Os olhos onde o casto Amor ardia,
Ledo de se ver nelles abrazado;
O rosto onde com lustre desusado
Purpurea rosa sôbre neve ardia;

O cabello, que inveja ao sol fazia,
Porque fazia o seu menos dourado;
A branca mão, o corpo bem talhado,
Tudo aqui se reduz a terra fria.

Perfeita formosura em tenra idade,
Qual flor, que antecipada foi colhida,
Murchada está da mão da morte dura.

Como não morre Amor de piedade?
Não della, que se foi á clara vida;
Mas de si, que ficou em noute escura.



CLXXXVII.

Ditosa penna, como a mão que a guia
Com tantas perfeições da subtil arte,
Que quando com razão venho a louvar-te,
Em teus louvores perco a phantasia.

Porém Amor, que effeitos varios cria,
De ti cantar me manda em toda parte,
Não em plectro belligero de Marte,
Mas em suave e branda melodia.

Teu nome, Emmanuel, de hum n'outro pólo,
Voando se levanta e te pregoa,
Agora que ninguem te levantava.

E porque immortal sejas, eis Apolo
Te offerece de flores a coroa,
Que ja de longo tempo te guardava.

CLXXXVIII.

Espanta crescer tanto o crocodilo
Só por seu limitado nascimento;
Que, se maior nascêra, mais isento
Estivera de espanto o patrio Nilo.

Em vão levantará meu baixo estilo
Vosso Pontifical, novo ornamento;
Pois no ventre o immortal merecimento
Vo-lo talhou, para despois vesti-lo.

Tardou, mas veio; que a quem mais merece
Vir o premio mais tarde he sempre certo,
Inda que vez alguma venha cedo.

Os ceos, que do primeiro estão mais perto,
Mais devagar se movem. Quem conhece,
Sôbre aquelle segredo, este segredo!



CLXXXIX.

Ornou sublime esfôrço ao grande Atlante,
Com qu'a celeste máchina sustenta;
Honrou a Homero o engenho, com que intenta
Grecia do quarto ceo passá-lo avante;

Coroou claro Amor de amor constante
A Orpheo, na paz firme e na tormenta;
Inspirou a Fortuna, em tudo isenta,
A Cesar, de quem foi hum tempo amante;

Exaltaste tu, Fama, a gloria alta
De Alcides lá no monte em que resides;
Mas Castro, em quem o Ceo seus dões derrama,

Mais orna, honra, coroa, inspira, exalta,
Que Atlante, Homero, Orpheo, Cesar e Alcides,
Esfôrço, engenho, Amor, Fortuna e Fama.

CXC.

Despois que vio Cibele o corpo humano
Do formoso Atys seu verde pinheiro,
Em piedade o vão furor primeiro
Convertido, chorava o grave dano.

E, á sua dor fazendo illustre engano,
A Jupiter pedio, que o verdadeiro
Preço da nobre palma e do loureiro
Ao seu pinheiro désse, soberano.

Mais lhe concede o filho poderoso
Que, crescendo, as estrellas tocar possa,
Vendo os segredos lá do ceo superno.

Oh ditoso pinheiro! oh mais ditoso
Quem se vir coroar da rama vossa,
Cantando á vossa sombra verso eterno!



CXCI.

Pois torna por seu Rei e juntamente
Por Christo a governar aquella parte
Onde se tẽe mostrado hum Numa, hum Marte
O famoso Luis, justo e valente;

O Tejo espere ver de todo o Oriente,
Onde tão raros dões o Ceo reparte,
Render a tanto esfôrço, aviso e arte,
Mil palmas, mil tributos novamente.

Os que bebem no Gange, os que no Indo,
A quem pouco valêrão lança e escudo,
O render-se terão por bom partido.

O Euphrates temerá, seu nome ouvindo;
Que para delle ver vencido tudo,
Ja vio do braço seu tudo vencido.

CXCII.

Agora toma a espada, agora a pena,
Estacio nosso, em ambas celebrado,
Sendo, ou no salso mar de Marte amado,
Ou n'água doce amante da Camena.

Cysne sonoro por ribeira amena
De mi para cantar-te he cobiçado;
Porque não podes tu ser bem cantado
De ruda frauta, nem de agreste avena.

Se eu, que a penna tomei, tomei a espada,
Para poder jogar licença tenho
Desta alta influïção de dous Planetas;

Com huma e outra luz delles lograda,
Tu com pujante braço, ardente engenho,
Serás pharo a Soldados e a Poetas.



CXCIII.

Erros meus, ma Fortuna, Amor ardente
Em minha perdição se conjurárão:
Os erros e a Fortuna sobejárão;
Que para mi bastava Amor somente.

Tudo passei; mas tenho tão presente
A grande dor das cousas, que passárão,
Que ja as frequencias suas me ensinárão
A desejos deixar de ser contente.

Errei todo o discurso de meus anos;
Dei causa a que a Fortuna castigasse
As minhas mal fundadas esperanças.

De Amor não vi senão breves enganos.
Oh quem tanto pudesse, que fartasse
Este meu duro Genio de vinganças!

CXCIV.

Cá nesta Babylonia donde mana
Materia a quanto mal o mundo cria;
Cá donde o puro Amor não tẽe valia;
Que a Mãe, que manda mais, tudo profana;

Cá donde o mal se affina, o bem se dana,
E póde mais que a honra a tyrannia;
Cá donde a errada e cega Monarchia
Cuida que hum nome vão a Deos engana;

Cá neste labyrintho onde a Nobreza,
O Valor e o Saber pedindo vão
Ás portas da Cobiça e da Vileza;

Cá neste escuro caos de confusão
Cumprindo o curso estou da natureza.
Vê se me esquecerei de ti, Sião!



CXCV.

Correm turbas as águas deste rio,
Que as rapidas enchentes enturbárão;
Os florecidos campos se seccárão;
Intratavel se fez o valle e frio.

Passou, como o verão, o ardente estio;
Humas cousas por outras se trocárão:
Os fementidos fados ja deixárão
Do mundo o regimento, ou desvario.

Ja o tempo a ordem sua tẽe sabida;
O mundo não; mas anda tão confuso,
Que parece que delle Deos se esquece.

Casos, opiniões, natura, e uso,
Fazem que nos pareça desta vida
Que não ha nella mais do que parece.

CXCVI.

Vós outros, que buscais repouso certo
Na vida, com diversos exercicios;
A quem, vendo do mundo os beneficios,
O regimento seu fica encoberto;

Dedicae, se quereis, ao Desconcêrto
Novas honras e cegos sacrificios;
Que, por castigo igual de antiguos vicios,
Quer Deos que andem as cousas por acêrto.

Não cahio neste modo de castigo
Quem poz culpa á Fortuna, quem somente
Crê que acontecimentos ha no mundo.

A grande experiencia he grão perigo:
Mas o que a Deos he justo e evidente
Parece injusto aos homens e profundo.



CXCVII.

Para se namorar do que criou,
Te fez Deos, sacra Phenix, Virgem pura.
Vêde que tal seria esta feitura
Que para si o seu Feitor guardou!

No seu alto conceito te formou
Primeiro que a primeira criatura,
Para que unica fosse a compostura
Que de tão longo tempo se estudou.

Não sei se digo em tudo quanto baste
Para exprimir as raras qualidades
Que quiz criar em ti quem tu criaste.

Es Filha, Mãe, e Esposa: e se alcançaste
Huma só, tres tão altas dignidades,
Foi porqu'a Tres de Hum só tanto agradaste.

CXCVIII.

Desce do ceo immenso Deos benino
Para encarnar na Virgem soberana.
Porque desce o divino a cousa humana?
Para subir o humano a ser divino.

Pois como vem tão pobre e tão menino,
Rendendo-se ao poder da mão tyrana?
Porque vem receber morte inhumana
Para pagar de Adão o desatino.

He possivel que os dous o fructo comem
Que de quem lhes deo tanto foi vedado?
Si; porque o proprio ser de deoses tomem.

E por esta razão foi humanado?
Si; porque foi com causa decretado,
Se quiz o homem ser Deos, que Deos fosse homem.



CXCIX.

Dos ceos á terra desce a mor Belleza,
Une-se á nossa carne, e a faz nobre;
E, sendo a humanidade d'antes pobre,
Hoje subida fica á mor riqueza.

Busca o Senhor mais rico a mor pobreza;
Que, como ao mundo o seu amor descobre,
De palhas vis o corpo tenro cobre,
E por ellas o mesmo ceo despreza.

Como? Deos em pobreza á terra dece?
O qu'he mais pobre tanto lhe contenta,
Qu'este somente rico lhe parece.

Pobreza este Presepio representa;
Mas tanto por ser pobre ja merece,
Que quanto mais o he, mais lhe contenta.

CC.

Porque a tamanhas penas se offerece
Por o peccado alheio, e êrro insano,
O Trino Deos? Porque o sogeito humano
Não póde co'o castigo que merece.

Quem padecerá as penas que padece?
Quem soffrerá deshonra, morte e dano?
Quem será, se não for o Soberano
Que reina, e servos manda, e obedece?

Foi a fôrça do homem tão pequena,
Que não pôde soster tanta aspereza,
Pois não sosteve a Lei que Deos ordena.

Mas soffre-a aquella immensa Fortaleza
Por amor puro; que a mortal fraqueza
Foi para o êrro, e não ja para a pena.



CCI.

Despois de haver chorado os meus tormentos,
Quer Amor que lhe cante as suas glorias.
Canto de huma belleza os vencimentos,
De hum longo padecer chóro as memorias.

Porém, se as minhas penas são victorias,
Por a causa, a meus altos pensamentos;
Dilatem-se em larguissimas historias
Estes meus gloriosos rendimentos.

Mova-se em todo o mundo unico espanto
De qu'he, por a belleza qu'eu adoro,
Do que cantado tenho premio o pranto.

Contente offreço a amor tão triste foro:
Que se chôro não ha como o meu canto,
Não sei canto melhor qu'este meu chôro.

CCII.

Onde mereci eu tal pensamento
Nunca de ser humano merecido?
Onde mereci eu ficar vencido
De quem tanto me honrou co'o vencimento?

Em gloria se converte o meu tormento,
Quando vendo-me estou tão bem perdido;
Pois não foi tanto mal ser atrevido,
Como foi gloria o mesmo atrevimento.

Vivo, Senhora, só de contemplar-vos;
E pois esta alma tenho tão rendida,
Em lagrimas desfeito acabarei.

Porque não me farão deixar de amar-vos
Receios de perder por vós a vida;
Que por vós vezes mil a perderei.



CCIII.

De frescas belvederes rodeadas
Estão as puras águas desta fonte;
Formosas Nymphas lhes estão defronte,
A vencer e a matar acostumadas.

Andão contra Cupido levantadas
As suas graças, que não ha quem conte:
D'outro valle esquecidas, d'outro monte,
A vida passão neste socegadas.

O seu poder juntou, sua valia
Amor, ja não soffrendo este desprêzo,
Somente por se ver dellas vingado;

Mas, vendo-as, entendeo que não podia
De ser morto livrar-se, ou de ser prêzo,
E ficou-se com ellas desarmado.

CCIV.

Nos braços de hum Sylvano adormecendo
Se estava aquella Nympha qu'eu adoro,
Pagando com a boca o doce foro,
Com que os meus olhos foi escurecendo.

Oh bella Venus! porqu'estás soffrendo
Que a maior formosura do teu côro
Em hum poder tão vil perca o decoro
Que o merito maior lhe está devendo?

Eu levarei daqui por presupposto
Desta nova estranheza que fizeste,
Que em ti não póde haver cousa segura.

Que, pois o claro lume, o bello rosto
Áquelle monstro tão disforme déste,
Não creio qu'haja Amor, senão Ventura.



CCV.

Quem diz que Amor he falso, ou enganoso,
Ligeiro, ingrato, vão, desconhecido,
Sem falta lhe terá bem merecido
Que lhe seja cruel, ou rigoroso,

Amor he brando, he doce, e he piedoso:
Quem o contrário diz não seja crido;
Seja por cego e apaixonado tido,
E aos homens, e inda aos deoses odioso.

Se males faz Amor, em mi se vem;
Em mi mostrando todo o seu rigor,
Ao mundo quiz mostrar quanto podia.

Mas todas suas iras são d'Amor;
Todos estes seus males são hum bem,
Qu'eu por todo outro bem não trocaria.

CCVI.

Formosa Beatriz, tendes taes geitos
N'hum brando revolver dos olhos bellos,
Que só no contemplá-los, se não ve-los,
Se inflammão corações e humanos peitos.

Em toda perfeição são tão perfeitos,
Que o desengano dão de merecê-los:
Não póde haver quem possa conhecê-los,
Sem nelle Amor fazer grandes effeitos.

Sentirão, por meu mal, tão graves danos
Os meus, que com os ver cegos e tristes
Ficarão sem prazer, co'a luz perdida.

Mas ja que vós com elles me feristes,
Tornai-me a ver com elles mais humanos,
E deixareis curada esta ferida.



CCVII.

Alegres campos, verdes, deleitosos,
Suaves me serão vossas boninas,
Em quanto forem vistas das meninas
Dos olhos de Ignez bella tão formosos.

Dos meus, que vos serão sempre invejosos
Por não verem estrellas tão divinas,
Sereis regados d'águas peregrinas,
Soprados de suspiros amorosos.

E vós, douradas flores, por ventura
Se Ignez quizer fazer de meus amores
Exp'riencias na folha derradeira,

Mostrai-lhe, para ver minha fé pura,
O bem que sempre quiz, formosas flores;
Qu'então não sentirei que mal me queira.

CCVIII.

Ondados fios de ouro, onde enlaçado.
Continuamente tenho o pensamento;
Que quanto mais vos sólta o fresco vento,
Mais preso fico então de meu cuidado;

Amor, d'huns bellos olhos sempre armado,
Me combate co'as fôrças do tormento,
Provando da minha alma o soffrimento
Que á justa lei da paz trago obrigado.

Assi que em vosso gesto mais que humano
Amo a paz juntamente e o perigo;
E em amar hum e outro não me engano.

Muitas vezes dizendo estou comigo
Que, pois he tal a causa de meu dano,
He justa a guerra, he justa a paz que sigo.



CCIX.

Amor, que em sonhos vãos do pensamento
Paga o zêlo maior de seu cuidado,
Em toda condição, em todo estado,
Tributario me fez de seu tormento.

Eu sirvo, eu canso; e o grão merecimento
De quanto tenho a Amor sacrificado,
Nas mãos da ingratidão despedaçado
Por prêza vai do eterno esquecimento.

Mas quando muito, em fim, cresça o perigo,
A que perpetuamente me condena
Amor, que amor não he, mas inimigo;

Tenho hum grande descanso em minha pena,
Que a gloria do querer, que tanto sigo,
Não póde ser co'os males mais pequena.

CCX.

Nem o tremendo estrépito da guerra
Com armas, com incendios espantosos
Que despachão pelouros perigosos,
Bastantes a abalar huma alta serra,

Podem pôr medo a quem nenhum encerra,
Despois que vio os olhos tão formosos,
Por quem o horror nos casos pavorosos
De mi todo se aparta e se desterra,

A vida posso ao fogo e ferro dar,
E perdê-la em qualquer duro perigo,
E nelle, como phenix, renovar.

Não póde mal haver para comigo,
De qu'eu ja me não possa bem livrar,
Senão do que me ordena Amor imigo.



CCXI.

Fiou-se o coração, de muito isento,
De si, cuidando mal que tomaria
Tão illicito amor, tal ousadia,
Tal modo nunca visto de tormento.

Mas os olhos pintárão tão a tento
Outros que vistos tẽe na phantasia,
Que a razão, temerosa do que via,
Fugio, deixando o campo ao pensamento.

Ó Hippolyto casto, que de geito
De Phedra tua madrasta foste amado,
Que não sabia ter nenhum respeito;

Em mi vingou Amor teu casto peito:
Mas está deste aggravo tão vingado,
Que se arrepende ja do que tẽe feito.

CCXII.

Quem quizer ver d'amor huma excellencia
Onde sua fineza mais se apura,
Attente onde me põe minha ventura,
Porque de minha fé faça exp'riencia.

Onde lembranças mata a larga ausencia,
Em temeroso mar, em guerra dura,
A saudade alli'stá mais segura,
Quando risco maior corre a paciencia.

Mas ponha-me a Fortuna e o duro Fado,
Em morte, ou nojo, ou damno, ou perdição,
Ou em sublime e próspera ventura;

Ponha-me, em fim, em baixo ou alto estado;
Que até na dura morte me acharão
Na lingua o nome, e n'alma a vista pura.



CCXIII.

Los ojos que con blando movimiento
Al pasar enternecen la alma mia,
Si detener pudiera solo un dia,
Pudiera bien libraria de tormento.

Deste tan amoroso sentimiento
El importuno mal se acabaria;
Ó tambien su accidente creceria
Para acabar la vida en un momento.

Oh! si ya tu esquivez me permitiese
Que al ver, o Ninfa, tu semblante hermoso,
A manos de tus ojos yo muriese!
Oh si los detuvieras! cuan dichoso
Seria aquel momento en que me viese
Vida en ellos cobrar, cobrar reposo!

CCXIV.

No bastaba que amor puro y ardiente
Por términos la vida me quitase;
Mas que la muerte así se apresurase
Con un deshumanisimo accidente?

No pretendió mi alma, aunque lo siente,
Que el riguroso curso se atajase,
Porque nunca morir se exprimentase
Desamado el que amó tan dulcemente.

Mas vuestra voluntad tan poderosa
Con esas gracias vuestras ordenaron
Crueldad asi imposible, ó nunca oída.

Aquel frio desden, y la amorosa
Furia, de un golpe solo, me quitaron
Con dós contrarias muertes una vida.



CCXV.

Ayudame, Señora, á hacer venganza
De tal selvatiquez, de tal rudeza,
Pues de mi poquedad, de mi bajeza
Osado á ti elevaba la esperanza.

Á esa tu perfeccion, que no se alcanza,
Á esas sublimes cumbres de belleza,
Donde una vez llegó naturaleza,
Mas de volver perdió la confianza.

Aquello que en ti miro contemplando,
(Que apenas contemplarlo me consiente)
Contemplándolo mas, menos lo espero.

Si gloria de mi pena en ti se siente,
Derrama en mí tus iras, desamando;
Que al ofenderme mas yo mas te quiero

CCXVI.

O claras águas deste blando rio,
Que en vos al natural estais pintando
El frondífero adorno con que alzando
Se vá á los cielos este bosque umbrio;

Así las lluvias, así el Austro frio
Jamás puedan veniros enturbiando,
Que os vais del seco estio preservando
Con socorreros deste llanto mio.

Y cuando en vos Marfisa se mirare,
Mi figura, cual veis desfallecida,
Ante sus claros ojos puesta sea.

Y si por mí de vos los apartare,
De verme alli mostrándose ofendida,
En pena de no verme no se vea.



CCXVII.

Mil veces entre sueños tu figura,
O bella Ninfa, claramente veo;
Y cuando mas la miro, mas deseo
Gozar libre de sueños su hermosura.

En tanto que este dulce engaño dura,
Vivo en la vana gloria que poseo:
Mas cuanto allí se eleva mi deseo,
Viene a caer despierto en sombra escura.

Duéleme el despertar por contemplarte;
Que si bien sé te huelgas de no verme,
Huélgome de ser ciego por mirarte.

Mas si quiero de engaños mantenerme,
Y tú quieres me pierda por amarte,
Sin gran ganancia no podré perderme.

CCXVIII.

Mi gusto y tu beldad se desposaron,
Terceros por mi mal mis ojos fueron:
Su logro ha sido tal, que, alfin, hicieron
Un hijo hermoso á quien amor llamaron.

Tan fuera de compás le regalaron,
Que cuando mas alegres estuvieron,
Sin entender el mal que produjeron,
Perdidos por amores se miraron.

La beldad desposada deste duelo,
Vino á parir un monstro con dós alas;
La madre es la soberbia, el niño el zelo.

Oh madre que á tu hijo en todo igualas!
Quien mortal hace al inmortal abuelo,
Y al padre mortal da inmortales zalas?



CCXIX.

Si el fuego que me enciende, consumido
De algun mas suelto Aquario ser pudiese;
Si el alto suspirar me convertiese
En aire por el aire desparcido;

Si un horrible rumor siendo sentido,
La alma á dejar el cuerpo redujese;
Ó por estos mis ojos al mar fuese
Este mi cuerpo en llanto convertido;

Nunca podria la fortuna airada,
Com todos sus horrores, sus espantos,
Derrocar la alma mia de su gloria.

Porque en vuestra beldad ya transformada,
Ni del Estigio lago eternos llantos
Os podrian quitar de mi memoria.

CCXX.

Que me quereis perpétuas saudades?
Com qu'esperanças inda me enganais?
O tempo, que se vai, não torna mais,
E se torna, não tornão as idades.

Razão he ja, ó annos, que vos vades,
Porque estes tão ligeiros que passais,
Nem todos para hum gôsto sois iguais,
Nem sempre são conformes as vontades.

Aquillo a que ja quiz he tão mudado,
Que quasi he outra cousa; porque os dias
Tẽe o primeiro gôsto ja damnado.

Esperanças de novas alegrias,
Não m'as deixa a Fortuna e o tempo irado,
Que do contentamento são espias.



CCXXI.

Oh rigorosa ausencia desejada
De mi sempre, mas nunca conhecida!
Saudade, n'outro tempo tão temida,
Como em meu damno agora exprimentada!

Ja rigorosamente começada
Tendes vossa esperança em minha vida;
Mas tanto, que ja temo que opprimida
Sejais com ella cedo, ou acabada.

Os dias mais alegres me entristecem;
As noites, com cuidados as desconto,
Em que sem vós sem conto me parecem.

Eu desejando espero, e os annos conto;
Mas com a vida, em fim, elles fallecem:
Nem basta á carne enfêrma esprito pronto.

CCXXII.

Ay! quien dará á mis ojos una fuente
De lágrimas que manen noche y dia?
Respirara si quiera la alma mia,
Llorando lo pasado, y lo presente.
  Quien me diera apartado de la gente,
De mi dolor siguiendo la porfía
Con la triste memoria y fantasía
Del bien por quien mal tanto así se siente!
  Quien me dará palabras con que iguale
El duro agravio que el amor me ha hecho,
Donde tan poco el sufrimiento vale?
  Quien me abrirá profundamente el pecho,
Dó está escrito el secreto que no sale,
Con tanto dolor mio, á mi despecho?



CCXXIII.

Con razon os vais, aguas, fatigando
Por llegar dó sereis bien recebidas;
Y en aquel mar inmenso convertidas,
Que ya de tantos dias vais buscando.
  Triste de aquel que siempre anda llorando
Las vanas esperanzas ya perdidas,
Y con dolor las lágrimas vertidas
Nunca al fin pretendido van llegando!
  Vosotras sin traer derecha via,
Al término llegais tan deseado,
Por mas que os embarace el gran rodeo;
  Mas yo siempre afligido noche y dia,
Por un camino, que no llevo errado,
Jamás puedo llegar donde deseo.

CCXXIV.

Oh cese ya, Señor, tu dura mano!
No llegues tanto al cabo con mi vida;
Baste el estar por ti tan consumida,
Que ya no se halla en ella lugar sano.
  Ay estraña hermosura! ay deshumano
Hado, á que nunca puedo hallar salida!
Si tú de tu piedad no eres movida,
Roto el hilo vital verás temprano.
  Un blando desamor, un amor blando,
Bien basta para un hombre tan perdido,
Que de su mal ningun remedio espera.
  Y si estimas en poco el ver cual ando,
Aqui me tienes ante ti rendido:
Viva tu gusto, mi esperanza muera.



CCXXV.

Dulces engaños de mis ojos tristes,
Cuan vivo despertais mi pensamiento!
Aquello que pudiera dar contento,
En sombra de pintura lo volvistes.
  De blando sobresalto enternecistes
Con vista arrebatada el sentimiento;
Mas no le asegurastes un momento
Aqueste vano bien que le ofrecistes.
  Veo que la figura era fingida,
Y no aquella que en sí mi alma esconde.
Aunque en esto se llega al natural:
  Así escucha mi llanto, así responde.
Así se condolece de mi vida,
Como si fuera el propio original.

CCXXVI.

Cuanto tiempo ha que lloro un dia triste,
Como si alguno alegre yo esperara?
Como, o Tajo, al pasar esa tu clara
Agua, no la alteraste, y no me hundiste?

El paso me cerraste, el pecho abriste,
O mi ventura, de mi bien avara!
Á Dios, montañas de hermosura rara;
Á Dios, mi corazon, que no partiste.

Si adonde quedas en dichosa suerte
No bebieres las aguas del olvido,
En tanto bien no quieras olvidarme.

Cantando mi dolor llora mi muerte;
Porque hasta el hueco monte sin sentido
Suelta su ronca voz por consolarme.



CCXXVII.

Levantai, minhas Tagides, a frente,
Deixando o Tejo ás sombras nemorosas;
Dourai o valle umbroso, as frescas rosas,
E o monte com as árvores frondente.

Fique de vós hum pouco o rio ausente,
Cessem agora as lyras numerosas,
Cesse vosso lavor, Nymphas formosas,
Cesse da fonte vossa a grã corrente.

Vinde a ver a Theodosio grande e claro,
A quem ’stá offrecendo maior canto
Na cithara dourada o louro Apolo.

Minerva do saber dá-lhe o dom raro,
Pallas lhe dá o valor de mais espanto,
E a Fama o leva ja de pólo a pólo.

CCXXVIII.

Vós, Nymphas da Gangetica espessura,
Cantae suavemente, em voz sonora,
Hum grande Capitão que a roxa Aurora
Dos filhos defendeo da noite escura.

Ajuntou-se a caterva negra e dura,
Que na Aurea Chersoneso affouta mora,
Para lançar do charo ninho fóra
Aquelles que mais podem que a ventura.

Mas hum forte leão, com pouca gente,
A multidão tão fera como necia,
Destruindo castiga e torna fraca.

Ó Nymphas, cantai, pois; que claramente
Mais do que Leonidas fez em Grecia,
O nobre Leoniz fez em Malaca.



CCXXIX.

Alma gentil, que á firme eternidade
Subiste clara e valerosamente,
Cá durará de ti perpetuamente
A fama, a gloria, o nome e a saudade.

Não sei se he mor espanto em tal idade
Deixar de teu valor inveja á gente,
Se hum peito de diamante, ou de serpente,
Fazeres que se mova a piedade.

Invejosa da tua acho mil sortes,
E a minha mais que todas invejosa,
Pois ao teu mal o meu tanto igualaste.

Oh ditoso morrer! sorte ditosa!
Pois o que não se alcança com mil mortes,
Tu com huma só morte o alcançaste.

CCXXX.

Debaixo desta pedra sepultada
Jaz do mundo a mais nobre formosura,
A quem a morte, só de inveja pura,
Sem tempo sua vida tẽe roubada,

Sem ter respeito áquella assi estremada
Gentileza de luz, que a noite escura
Tornava em claro dia; cuja alvura
Do sol a clara luz tinha eclipsada.

Do sol peitada foste, cruel morte,
Para o livrar de quem o escurecia;
E da lua, que ante ella luz não tinha.

Como de tal poder tiveste sorte?
E se a tiveste, como tão asinha
Tornaste a luz do mundo em terra fria?



CCXXXI.

Imagens vãas me imprime a phantasia;
Discursos novos acha o pensamento;
Com que dão á minha alma grão tormento
Cuidados de cem annos n'hum só dia.

Se fim grande tivessem, bem sería
Responder a esperança ao fundamento:
Mas o fado não corre tão a tento,
Que reserve á razão sua valia.

Caso e Fortuna pódem acertar;
Mas se por accidente dão victoria,
Sempre o favor da Fama he falsa historia.

Excede ao saber, determinar:
Á constancia se deve toda a gloria:
O ânimo livre he digno de memoria.

CCXXXII.

Quanta incerta esperança, quanto engano!
Quanto viver de falsos pensamentos!
Pois todos vão fazer seus fundamentos
Só no mesmo em qu'está seu proprio dano.

Na incerta vida estribão de hum humano;
Dão credito a palavras que são ventos;
Chórão despois as horas e os momentos,
Que rírão com mais gôsto em todo o ano.

Não haja em apparencias confianças;
Entendei que o viver he de emprestado;
Que o de que vive o mundo são mudanças.

Mudai, pois, o sentido e o cuidado,
Somente amando aquellas esperanças
Que durão para sempre com o amado.



CCXXXIII.

Mal, que de tempo em tempo vás crescendo,
Quem te visse de hum bem acompanhado!
A vida passaria descansado,
Da morte não temêra o rosto horrendo.

Se os vãos cuidados fôra convertendo
Em suspiros que dão outro cuidado,
Oh quão prudente, oh quão affortunado
A capella do louro irá tecendo!

Tempo he ja de esquecer contentamentos
Passados, co'a esperança que passou,
E de que triumphem novos pensamentos.

A fé, que viva n'alma me ficou,
Dê ja fim aos caducos ardimentos
A que o passado bem se condemnou.

CCXXXIV.

 
Oh quanto melhor he o supremo dia
Da mansa morte, que o do nascimento!
Oh quanto melhor he hum só momento,
Que livra de annos tantos de agonia!

De alcançar outro bem cesse a porfia;
Cesse todo applicado pensamento
De tudo quanto dá contentamento,
Pois só contenta ao corpo a terra fria.

O que do seu fez Deos seu despenseiro,
Tẽe mais estreita conta que lhe dar:
Então parece rico o ovelheiro.

Triste de quem no dia derradeiro
Tẽe o suor alheio por pagar,
Pois a alma ha de vender por o dinheiro!



CCXXXV.

Como podes (oh cego peccador!)
Estar em teus errores tão isento,
Sabendo que esta vida he hum momento,
Se comparada com a eterna for?

Não cuides tu que o justo Julgador
Deixará tuas culpas sem tormento,
Nem que passando vai o tempo lento
Do dia de horrendíssimo pavor.

Não gastes horas, dias, mezes, anos,
Em seguir de teus damnos a amisade
De que despois resultão mores danos.

E pois de teus enganos a verdade
Conheces, deixa ja tantos enganos,
Pedindo a Deos perdão com humildade.

CCXXXVI.

Verdade, Amor, Razão, Merecimento,
Qualquer alma farão segura e forte;
Porém Fortuna, Caso, Tempo, e Sorte,
Tẽe do confuso mundo o regimento.

Effeitos mil revolve o pensamento,
E não sabe a que causa se reporte:
Mas sabe que o que he mais que vida e morte
Não se alcança de humano entendimento.

Doctos varões darão razões subidas;
Mas são as exp'riencias mais provadas:
E por tanto he melhor ter muito visto.

Cousas ha hi que passão sem ser cridas:
E cousas cridas ha sem ser passadas.
Mas o melhor de tudo he crer em Christo.



CCXXXVII.

De Babel sôbre os rios nos sentámos,
De nossa doce patria desterrados,
As mãos na face, os olhos derribados,
Com saudades de ti, Sião, chorámos.

Os orgãos nos salgueiros pendurámos,
Em outro tempo bem de nós tocados;
Outro era elle, por certo, outros cuidados;
Mas por deixar saudades os deixâmos.

Aquelles que captivos nos trazião
Por cantigas alegres perguntavão:
Cantai (nos dizem) hymnos de Sião.

Sôbre tal pena, pena tal nos dão,
Pois tyranicamente pretendião
Que cantassem aquelles que choravão.

CCXXXVIII.

Sôbre os rios do Reino escuro, quando
Tristes, quaes nossas culpas o ordenárão,
Lagrimas nossos olhos derramárão,
Por ti, Sião divina, suspirando,

Os que hião nossas almas infestando,
De contino em error, as captivárão;
E em vão por nossos Psalmos perguntárão;
Que tudo era silencio miserando.

Dizendo estamos: Como cantaremos
As acceitas canções a Deos benino,
Quando a contrarios seus obedecemos?

Mas ja, Senhor só Santo, determino,
Deixando viciosissimos extremos,
Os cantos proseguir de Amor Divino.



CCXXXIX.

Em Babylonia sôbre os rios, quando
De ti, Sião sagrada, nos lembrámos,
Alli com grã saudade nos sentámos,
O bem perdido, miseros, chorando.

Os instrumentos musicos deixando,
Nos estranhos salgueiros pendurámos,
Quando aos cantares, que ja em ti cantámos,
Nos estavão imigos incitando.

Ás esquadras dizemos inimigas:
Como hemos de cantar em terra alhea
As cantigas de Deos, sacras cantigas?

Se a lembrança eu perder que me recrea
Cá nestas penosissimas fadigas,
Oblivioni detur dextra mea.

ra mea.{121}
CCXL.
Aponta a bella Aurora, luz primeira,
Que a grã nova nos deo do claro dia:
Vesti-vos, corações, ja de alegria,
E recebei da vida a Mensageira.
  Da humana Redempção nasce a Terceira:
Alegra-te, Divina Monarchia;
Da terra terás cedo a companhia,
Do ceo verás tambem a nossa feira.
  De tal obra se espanta a natureza,
Confuso fica de temor o inferno,
Vendo a que nasce isenta da defeza.
  Lei geral era posta desde eterno;
Mas o Senhor da Lei toda limpeza
Para o Sacrario seu guardou Materno.
CCXLI.
Porque a terra no ceo agasalhasse,
O ceo na terra Deos agasalhou:
Lá não cabendo, cá se accommodou,
Porque lá, de cá indo, se alargasse.
  Porqu'o homem a ser Deos por Deos chegasse,
Por o homem a ser homem Deos chegou:
Seu divino poder tanto humanou,
Porque o humano em divino se tornasse.
  Vêde bem o que deo e recebeo:
Não se perca hum bem tanto da memoria:
Deo-nos a vida, a morte padeceo.
  Trocou por nossa pena a sua gloria;
Deo-nos o triumpho qu'elle mereceo;
Porque amor foi auctor desta victoria.{122}

CCXLII.
Qu'estilla a Arvore sacra? Hum licor santo.
Para quem? Para o genero he humano.
Que faz delle? Hum remedio soberano.
Para que? Para a culpa e triste pranto.
  E que obra? Reduzir Lusbel a espanto.
Porque? Porque co'hum pomo fez grão dano.
Que foi? A morte deo com hum engano.
Tanto pôde? Sem falta pôde tanto.
  Quem sobe a ella? Quem do ceo desceo.
A que desce? A subir a creatura.
Que quiz da terra? Só levá-la ao Ceo.
  He escada para ir lá? E a mais segura.
Quem o obrigou? De amor só se venceo.
Que amava este Feitor? Sua feitura.
CCXLIII.
Oh Arma unicamente só triumphante,
Propugnaculo só de nossas vidas,
Por quem forão ganhadas as perdidas
Com que o Tartaro horrendo andava ovante!
  Sigua-se esta bandeira militante
Por quem são taes victorias conseguidas,
Por quantas almas, della divertidas,
No Ponente errão cá, lá no Levante.
  Oh Arvore sublime, e marchetada
De branco e carmesi, de ouro embutida,
Dos rubis mais preciosos esmaltada,
  E de trophéos mais claros guarnecida!
Á vida a morte vimos em ti dada,
Para qu'em ti se désse á morte

CCXLIV.

Aos homens hum só homem poz espanto,
E o poz a toda a humana natureza;
Que de homem teve o ser, de Anjo a pureza,
Porqu'antes que nascesse era ja Santo.

Propheta foi na Mãe; em fim, foi tanto,
Qu'entre os nascidos houve a mor alteza;
Que da Luz, sem a ver, vio a grandeza,
Tendo por trompa o Verbo Sacrosanto.

Aquella voz foi elle sonorosa,
No concavo dos Orbes resonante,
E que a Carne inculpavel baptizou;

Quem do mor Pae ouvio a voz amante;
Quem a subtil pergunta industriosa
Com sincera resposta socegou.



CCXLV.

Vós só podeis, sagrado Evangelista,
Angelico abrazado Seraphim,
E na sciencia mais alto Cherubim,
Do que he mais sabio Amor ser Coronista.

Divina e real Aguia, cuja vista
Vio o qu'he sem princípio, o qu'he sem fim,
De Jacob mais querido Benjamim,
Quem mais campêa de Joseph na lista.

Apostolo, e Propheta, e Patriarca,
Ao Principe dos Ceos o mais acceito,
Qu'em seu seio dormindo então mais via.

A quem o mesmo Deos por irmão marca;
Quem por filho da Mãe unica feito,
Em corpo e alma goza o claro dia.

.{124}
CCXLVI.
Como louvarei eu, Seraphim santo,
Tanta humildade, tanta penitencia,
Castidade, e pobreza, e paciencia,
Com este meu inculto e rudo canto?
  Argumento que ás Musas põe espanto,
Que faz muda a grandiloqua eloquencia.
Oh imagem, qu'a Divina Providencia
De si viva em vós fez para bem tanto!
  Fostes de Santos huma rara mina;
Almas de mil a mil ao ceo mandastes
Do mundo, que perdido reformastes.
  E não roubaveis só com a doutrina
As vontades mortaes, mas a Divina;
Pois os seus rubis cinco lhe roubastes.
CCXLVII.
Ditosas almas, que ambas juntamente
Ao ceo de Venus e de Amor voastes,
Onde hum bem que tão breve cá lograstes,
Estais logrando agora eternamente;
  Aquelle estado vosso tão contente,
Que só por durar pouco triste achastes,
Por outro mais contente ja o trocastes,
Onde sem sobresalto o bem se sente.
  Triste de quem cá vive tão cercado,
Na amorosa fineza, de hum tormento
Que a gloria lhe perturba mais crescida!
  Triste, pois me não val o soffrimento,
E Amor para mais damno me tẽe dado
Para tão duro mal tão larg

a vida!{125}
CCXLVIII.
Contente vivi ja, vendo-me isento
Deste mal de que a muitos queixar via:
Chamão-lhe amor; mas eu lhe chamaria
Discordia e semrazão, guerra e tormento.
  Enganou-me co'o nome o pensamento:
(Quem com tal nome não se enganaria?)
Agora tal estou, que temo hum dia
Em que venha a faltar-me o soffrimento.
  Com desesperação, e com desejo
Me paga o que por elle estou passando,
E inda está do meu mal mal satisfeito.
  Pois sôbre tantos damnos inda vejo
Para dar-me outros mil hum olhar brando,
E para os não curar hum duro peito.
CCXLIX.
Deixa Apollo o correr tão apressado,
Não sigas essa Nympha tão ufano:
Não te leva o amor, leva-te o engano
Com sombras de algum bem a mal dobrado.
  E quando seja amor, será forçado;
E se forçado for, será teu dano.
Hum parecer não queiras mais que humano
Em hum sylvestre adôrno ver tornado.
  Não percas por hum vão contentamento
A vista que te faz viver contente;
Modera em teu favor o pensamento.
  Porque menos mal he, tendo-a presente,
Soffrer sua crueza, e teu tormento,
Que sentir sua ausencia eternamente.{126}

CCL.
Nas Cidades, nos bosques, nas florestas,
Nos valles, e nos montes, teus louvores
Sempre te cantem musicos pastores
Nas manhãas frias, nas ardentes sestas.
  E neste Templo donde manifestas
E repartes agora teus favores,
Com Psalmos, hymnos, e com varias flores
Sejão celebres sempre as tuas festas.
  Estes te offreção pés, ess'outros mãos;
D'aquelles pendão sôbre os teus altares
Monstros do mar, de servidão prisões.
  Que eu cuidados, enganos e affeições,
Muito maiores monstros, e milhares
Te deixo aqui de pensamentos vãos.
CCLI.
Vi queixosos de Amor mil namorados,
E nenhuns inda vi com seus louvores;
E aquelle que mais chora o mal de amores,
Vejo menos fugir de seus cuidados.
  Se das dores de Amor sois mal tratados,
Porque tanto buscais de Amor as dores?
E se tambem as tendes por favores,
Porque dellas fallais como aggravados?
  Não queirais alegria achar algũa
No Amor, porque he composto de tristeza,
Na fortuna que acheis mais agradavel.
  Nella e nelle achei sempre a mesma lũa,
Em quem nunca se vio outra firmeza,
Que não seja a de ser sempre mudavel.

{127}
CCLII.
Se lagrimas choradas de verdade
O marmore abrandar podem mais duro,
Porque as minhas que nascem de amor puro
Hum coração não rendem a piedade?
  Por vós perdi, Senhora, a liberdade,
E nem da propria vida estou seguro.
Rompei desse rigor o forte muro,
Não passe tanto avante a crueldade.
  Ao prezar de desprezos dae ja fim:
Não vos chamem cruel; nome devido
A quem se ri de quem suspira e ama.
  Abrandai esse peito endurecido,
Por o que toca a vós, ja não por mim,
Que eu aventuro a vida, e vós a fama.
CCLIII.
Ja me fundei em vãos contentamentos,
Quando delles vivi todo enganado
De hum phantastico bem, e de hum cuidado,
De que só cuidão cegos pensamentos.
  Passava dias, horas e momentos,
Deste enleio de amores tão pagado,
Que tinha só por bem-aventurado
Quem só por elles mais bebia os ventos.
  Mas agora que ja cahi na conta,
Desengana-me quanto me enganava;
Que tudo o tempo dá, tudo descobre.
  O Amor mais caudaloso menos monta.
Qu'he de gostos mais rico, eu ignorava,
Aquelle que de amores he mais pobr

e.{128}
CCLIV.
Em huma lapa toda tenebrosa,
Adonde bate o mar com furia brava,
Sôbre hũa mão o rosto, vi qu'estava
Huma Nympha gentil, mas cuidadosa.
  Igualmente que linda, lastimosa,
Aljofar dos seus olhos distillava:
O mar os seus furores applacava
Com ver cousa tão triste e tão formosa.
  Alguma vez na horrivel penedia
Os bellos olhos punha com brandura,
Bastante a desfazer sua dureza.
  Com angelica voz assi dizia:
Ah! que falte mais vezes a ventura
Onde sobeja mais a natureza!
CCLV.
Se em mim, ó alma, vive mais lembrança
Que aquella só da gloria de querer-vos,
Eu perca todo o bem que lógro em ver-vos,
E de ver-vos tambem toda a esperança.
  Veja-se em mi tão rustica esquivança,
Que possa indigno ser de conhecer-vos;
E, quando em mor empenho de aprazer-vos,
Vos offenda, se em mi houver mudança.
  Confirmado estou ja nesta certeza:
Examine-me vossa crueldade,
Exprimente-se em mi vossa dureza.
  Conhecei ja de mi tanta verdade;
Pois em penhor e fé desta pureza
Tributo vos fiz ser o que he vontade.

{129}
CCLVI.
Ilustre Gracia, nombre de una moza,
Primera malhechora en este caso
Á Mondoñedo, á Palma, al cojo Traso,
Sugeto digno de immortal coroza;
  Si en medio de la Iglesia no reboza
El manto á vuestro rostro tan devaso,
Por vos dirán las gentes recio y paso:
Veis quien con el demonio se retoza.
  Puede mover los montes sin trabajo;
Con palabras el curso al agua enfrena;
Por las ondas hará camino enjuto.
  Averguenza su patria y rico Tajo,
Que por ella hombres lleva, mas que arena,
De que paga al infierno gran tributo.
CCLVII.
Qual tẽe a borboleta por costume,
Qu'enlevada na luz da acesa vella,
Dando vai voltas mil, até que nella
Se queima agora, agora se consume:
  Tal eu correndo vou ao vivo lume
D'esses olhos gentis, Aonia bella;
E abrazo-me, por mais que com cautella
Livrar-me a parte racional presume.
  Conheço o muito a que se atreve a vista,
O quanto se levanta o pensamento,
O como vou morrendo claramente;
  Porém não quer Amor que lhe resista,
Nem a minh'alma o quer; qu'em tal tormento,
Qual em gloria maior está content

e.{130}
CCLVIII.
Lembranças de meu bem, doces lembranças
Que tão vivas estais nesta alma minha,
Não queirais mais de mi, se os bens que tinha
Em poder vêdes todos de mudanças.
  Ai cego Amor! ai mortas esperanças
De qu'eu em outro tempo me matinha!
Agora deixareis quem vos sostinha;
Acabarão co'a vida as confianças.
  Co'a vida acabarão, pois a ventura
Me roubou n'hum momento aquella gloria,
Que, quando tão grande he, tão pouco dura.
  Oh se apoz o prazer fôra a memoria!
Ao menos estivera a alma segura
De ganhar-se com ella mais victoria.
CCLIX.
Formosos olhos, que cuidado dais
Á mesma luz do sol mais clara e pura;
Que sua esclarecida formosura,
Com tanta gloria vossa, atraz deixais;
  Se por serdes tão bellos desprezais
A fineza de amor que vos procura,
Pois tanto vêdes, vêde que não dura
O vosso resplandor quanto cuidais.
  Colhei, colhei do tempo fugitivo
E de vossa belleza o doce fruto;
Qu'em vão fóra de tempo he desejado.
  E a mi, que por vós morro, e por vós vivo,
Fazei pagar a Amor o seu tributo,
Contente de por vós lho haver pagado

.{131}
CCLX.
Pues siempre sin cesar, mais ojos tristes,
En lágrimas tratais la noche el dia,
Mirad si es lágrima esta que os envia
Aquel sol por quien vos tantas vertistes.
  Si vos me asegurais, pues ya la vistes,
Que es lágrima, será ventura mia;
Por empleadas bien desde hoy tendria
Las muchas que por ella sola distes.
  Mas cualquier cosa mucho deseada,
Aunque viendo se esté, nunca es creida;
Y menos esta, nunca imaginada.
  Pero della aseguro, si es fingida,
Que basta ser por lágrima enviada,
Para que sea por lágrima tenida.
CCLXI.
Tẽe feito os olhos neste apartamento
Hum mar de saudosa tempestade,
Que póde dar saudade á saudade,
Sentimentos ao proprio sentimento.
  Em dor vai convertido o soffrimento,
Em pena convertida a piedade;
A razão tão vencida da vontade,
Qu'escravo faz do mal o entendimento.
  A lingua não alcança o qu'a alma sente.
E assi, se alguem quizer em algum'hora
Saber que cousa he dor não comprehendida,
  Parta-se do seu bem, porque exprimente
Qu'antes de se partir, melhor lhe fôra
Partir-se do viver para ter vida.{132}

CCLXII.

A peregrinação d'hum pensamento,
Que dos males fez hábito e costume,
Tanto da triste vida me consume,
Quanto cresce na causa do tormento.

Leva a dor de vencida ao soffrimento;
Mas a alma está, de entregue, tão sem lume,
Qu'enlevada no bem que haver presume,
Não faz caso do mal qu'está de assento.

De longe receei (se me valêra)
O perigo que tanto á porta vejo,
Quando não acho em mi cousa segura.

 Mas ja conheço, (oh nunca o conhecêra!)
Qu'entendimentos presos do desejo
Não tẽe remedio mais que o da ventura.



CCLXIII.

Acho-me da fortuna salteado;
O tempo vai fugindo presuroso,
Deixando-me da vida duvidoso,
E cada instante mais desesperado.

Trocou-se o meu descuido em tal cuidado,
Que donde a gloria he mais, he mais penoso.
Nem vivo de perder-me receoso,
Nem de poder ganhar-me confiado.

Qualquer ave nos montes mais agrestes,
Qualquer fera na cova repousando,
Tẽe horas de alegria: eu todas tristes.

Vós, saudosos olhos, que o quizestes,
(Pois com tormento Amor me está pagando)
Chorai, como que vêdes, o que

vistes.{133}
CCLXIV.
Se no que tenho dito vos offendo,
Não he a intenção minha de offender-vos;
Qu'inda que não pretenda merecer-vos,
Não vos desmerecer sempre pretendo.
  Mas he meu fado tal, segundo entendo,
Que, por quanto ganhava em entender-vos,
Não me deixa atégora conhecer-vos,
Por a mi proprio m'ir desconhecendo.
  Os dias ajudados da ventura
A cada qual de si dão desenganos,
E a outros soe da-lo a desventura.
  Qual destas sirva a mi, dirão os danos
Ou gostos que eu tiver, em quanto dura
Esta vida, tão larga em poucos anos.
CCLXV.
Doce contentamento ja passado,
Em que todo o meu bem só consistia,
Quem vos levou de minha companhia,
E me deixou de vós tão apartado?
  Quem cuidou que se visse neste estado
Naquellas breves horas d'alegria,
Quando minha ventura consentia
Que d'enganos vivesse meu cuidado?
  Fortuna minha foi cruel e dura
Aquella que causou meu perdimento,
Com a qual ninguem póde ter cautella.
  Nem se engane nenhuma creatura;
Que não póde nenhum impedimento
Fugir o que lh'ordena sua estrella

.{134}
CCLXVI.
Sempre, cruel Senhora, receei,
Medindo vossa grã desconfiança,
Que désse em desamor vossa tardança,
E que me perdesse eu, pois vos amei.
  Perca-se, em fim, ja tudo o qu'esperei,
Pois n'outro amor ja tendes esperança.
Tão patente será vossa mudança,
Quanto eu encobri sempre o que vos dei.
  Dei-vos a alma, a vida e o sentido;
De tudo o qu'em mi ha vos fiz senhora.
Prometteis, e negais o mesmo Amor.
  Agora tal estou, que de perdido,
Não sei por onde vou, mas algum'hora
Vos dará tal lembrança grande dor.
CCLXVII.
Se a fortuna inquieta e mal olhada,
Que a justa lei do Ceo comsigo infama,
A vida quieta, qu'ella mais dasama,
Me concedêra honesta e repousada;
  Pudéra ser que a Musa, alevantada
Com luz de mais ardente e viva flama,
Fizera ao Tejo lá na patria cama
Adormecer co'o som da lyra amada.
  Porém, pois o destino trabalhoso,
Que m'escurece a Musa fraca e lassa,
Louvor de tanto preço não sustenta;
  A vossa, de louvar-me pouco escassa,
Outro sogeito busque valeroso,
Tal qual em vós ao mundo se apr

CCLXVIII.

Este amor, que vos tenho limpo e puro,
De pensamento vil nunca tocado,
Em minha tenra idade começado,
Tê-lo dentro nesta alma só procuro.

D'haver nelle mudança estou seguro,
Sem temer nenhum caso, ou duro fado,
Nem o supremo bem, ou baixo estado,
Nem o tempo presente, nem futuro.

A bonina e a flor asinha passa;
Tudo por terra o inverno e estio deita;
Só para meu amor he sempre Maio.

Mas ver-vos para mim, Senhora, escassa,
E qu'essa ingratidão tudo me engeita,
Traz este meu amor sempre em desmaio.



CCLXIX.

A formosura desta fresca serra,
E a sombra dos verdes castanheiros,
O manso caminhar destes ribeiros,
Donde toda a tristeza se desterra;

O rouco som do mar, a estranha terra,
O esconder do sol pelos outeiros,
O recolher dos gados derradeiros,
Das nuvens pelo ar a branda guerra:

Em fim, tudo o que a rara natureza
Com tanta variedade nos offrece,
M'está (se não te vejo) magoando.

Sem ti tudo me enoja, e me aborrece;
Sem ti perpetuamente estou passando
Nas mores alegrias môr tristeza.

a.{136}
CCLXX.
Sustenta meu viver huma esperança
Derivada de hum bem tão desejado,
Que quando nella estou mais confiado,
Mor dúvida me põe qualquer mudança.
  E quando inda este bem na mór pujança
De seus gostos me tẽe mais enlevado,
Me atormenta então ver eu qu'alcançado
Será por quem de vós não tẽe lembrança.
  Assi que, nestas redes enlaçado,
A penas dou a vida, sustentando
Huma nova materia a meu cuidado.
  Suspiros d'alma tristes arrancando,
Dos silvos d'huma pedra acompanhado,
Estou materias tristes lamentando.
CCLXXI.
Ja não sinto, Senhora, os desenganos,
Com que minha affeição sempre tratastes,
Nem ver o galardão, que me negastes,
Merecido por fé ha tantos anos.
  A mágoa chóro só, só chóro os danos
De ver por quem, Senhora, me trocastes;
Mas em tal caso vós só me vingastes
De vossa ingratidão, vossos enganos.
  Dobrada gloria dá qualquer vingança,
Que o offendido toma do culpado,
Quando se satisfaz com causa justa;
  Mas eu de vossos males e esquivança,
De que agora me vejo bem vingado,
Não a quizera tanto á vossa

custa.{137}
CCLXXII.
Quando, Senhora, quiz Amor qu'amasse
Essa grã perfeição e gentileza,
Logo deo por sentença, que a crueza
Em vosso peito amor accrescentasse.
  Determinou, que nada me apartasse,
Nem desfavor cruel, nem aspereza;
Mas qu'em minha rarissima firmeza
Vossa isenção cruel se executasse.
  E, pois tendes aqui offerecida
Est'alma vossa a vosso sacrificio,
Acabai de fartar vossa vontade.
  Não lhe alargueis, Senhora, mais a vida;
Acabará morrendo em seu officio,
Sua fé defendendo e lealdade.
CCLXXIII.
Eu vivia de lagrimas isento,
N'hum engano tão doce e deleitoso,
Qu'em qu'outro amante fosse mais ditoso
Não valião mil glorias hum tormento.
  Vendo-me possuir tal pensamento,
De nenhuma riqueza era invejoso;
Vivia bem, de nada receoso,
Com doce amor e doce sentimento.
  Cobiçosa a Fortuna, me tirou
Deste meu tão contente e alegre estado;
E passou-se este bem, que nunca fôra:
  Em trôco do qual bem só me deixou
Lembranças, que me mátão cada hora,
Trazendo-me á memoria o bem

passado.{138}
CCLXXIV.
Indo o triste pastor todo embebido
Na sombra de seu doce pensamento,
Taes queixas espalhava ao leve vento,
Co'hum brando suspirar d'alma sahido:
  A quem me queixarei, cego, perdido,
Pois nas pedras não acho sentimento?
Com quem fallo? A quem digo meu tormento?
Que onde mais chamo, sou menos ouvido.
  Ó bella Nympha, porque não respondes?
Porque o olhar-me tanto m'encareces?
Porque queres que sempre me querelle?
  Eu quanto mais te busco, mais te escondes!
Quanto mais mal me vês, mais te endureces!
Assim que co'o mal cresce a causa delle.
CCLXXV.
Dizei, Senhora, da belleza idêa,
Para fazerdes esse aureo crino,
Onde fostes buscar esse ouro fino?
De qu'escondida mina ou de que vêa?
  Dos vossos olhos essa luz Phebêa,
Esse respeito, de hum Imperio dino?
Se o alcançastes com saber divino,
Se com encantamentos de Medéa?
  De qu'escondidas conchas escolhestes
As perlas preciosas Orientais,
Que fallando mostrais no doce riso?
  Pois vos formastes tal, como quizestes,
Vigiai-vos de vós, não vos vejais,
Fugi das fontes; lembre-vos Narciso.{139}

CCLXXVI.
Na ribeira do Euphrates assentado,
Discorrendo me achei pela memoria
Aquelle breve bem, aquella gloria,
Que em ti, doce Sião, tinha passado.
  Da causa de meus males perguntado
Me foi: Como não cantas a historia
De teu passado bem, e da victoria
Que sempre de teu mal has alcançado?
  Não sabes, que a quem canta se lhe esquece
O mal, indaque grave e rigoroso?
Canta pois, e não chores dessa sorte.
  Respondi com suspiros: Quando crece
A muita saudade, o piedoso
Remedio he não cantar, senão a morte.
CCLXXVII.
Chorai, Nymphas, os fados poderosos
Daquella soberana formosura.
Onde forão parar? na sepultura?
Aquelles Reaes olhos graciosos?
  Oh bens do mundo falsos e enganosos!
Que mágoas para ouvir! Que tal figura
Jaza sem resplandor na terra dura
Com tal rosto e cabellos tão formosos!
  Das outras que será! pois poder teve
A morte sôbre cousa tanto bella,
Que ella eclipsava a luz do claro dia.
  Mas o mundo não era digno della,
Por isso mais na terra não esteve,
Ao ceo subio, que ja se lhe devia.{140}

CCLXXVIII.
Senhora ja desta alma, perdoae
De hum vencido de Amor os desatinos,
E sejão vossos olhos tão beninos
Com este puro amor, que d'alma sae.
  A minha pura fé sómente olhae,
E vêde meus extremos se são finos;
E se de alguma pena forem dinos,
Em mim, Senhora minha, vos vingae.
  Não seja a dor que abraza o triste peito
Causa por onde pene o coração,
Que tanto em firme amor vos he sujeito.
  Guardae-vos do que alguns, dama, dirão,
Que sendo raro em tudo vosso objeito,
Possa morar em vós ingratidão.
CCLXXIX.
Doce sonho, suave e soberano,
Se por mais longo tempo me durára!
Ah quem de sonho tal nunca acordára,
Pois havia de ver tal desengano!
  Ah deleitoso bem! ah doce engano!
Se por mais largo espaço me enganára!
Se então a vida misera acabára,
De alegria e prazer morrêra ufano.
  Ditoso, não estando em mi, pois tive
Dormindo o que acordado ter quizera.
Olhae com que me paga meu destino!
  Em fim, fóra de mim ditoso estive.
Em mentiras ter dita razão era,
Pois sempre nas verdades fui

mofino.{141}
CCLXXX.
Diana prateada, esclarecida
Com a luz que do claro Phebo ardente,
Por ser de natureza transparente,
Em si, como em espelho, reluzia,
  Cem mil milhões de graças lhe influia,
Quando me appareceo o excellente
Raio de vosso aspecto, diferente
Em graça e em amor do que sohia.
  Eu vendo-me tão cheio de favores,
E tão propinquo a ser de todo vosso,
Louvei a hora clara, e a noite escura,
  Pois nella déstes côr a meus amores:
Donde collijo claro que não posso
De dia para vós ja ter ventura.
CCLXXXI.
Em quanto Phebo os montes accendia
Do ceo com luminosa claridade,
Por conservar illesa a castidade
Na caça o tempo Delia despendia.
  Venus, qu' então de furto descendia
Por captivar de Anchises a vontade,
Vendo Diana em tanta honestidade,
Quasi zombando della, lhe dizia:
  Tu vás com tuas redes na espessura
Os fugitivos cervos enredando;
Mas as minhas enredão o sentido.
  Melhor he (respondia a deosa pura)
Nas redes leves cervos ir tomando,
Que tomar-te a ti nellas teu marido.{142}
CCLXXXII.

N'hum tão alto lugar, de tanto preço,
Este meu pensamento posto vejo,
Que desfallece nelle inda o desejo,
Vendo quanto par mi o desmereço.
  Quando esta tal baixeza em mi conheço,
Acho que cuidar nelle he grão despejo,
E que morrer por elle me he sobejo
E mór bem para mi, do que mereço.
  O mais que natural merecimento
De quem me causa hum mal tão duro e forte,
O faz que vá crescendo de hora em hora.
  Mas eu não deixarei meu pensamento,
Porque inda qu'este mal me causa a morte,
Un bel morir tutta la vita honora.
CCLXXXIII.
Quantas penas, Amor, quantos cuidados,
Quantas lagrimas tristes sem proveito,
De que mil vezes olhos, rosto e peito,
Por ti, cego, me viste ja banhados;
  Quantos mortaes suspiros derramados
Do coração por tanto a ti sujeito,
Quantos males, em fim, tu me tens feito,
Todos forão em mi bem empregados.
  A tudo satisfaz (confesso-te isto)
Huma só vista branda e amorosa
De quem me captivou minha ventura.
  Oh sempre para mi hora ditosa!
Que posso temer ja, pois tenho visto,
Com tanto gôsto meu, tanta

brandura?{143}
CCLXXXIV.
Posto me tẽe fortuna em tal estado,
E tanto a seus pés me tẽe rendido!
Não tenho que perder, ja de perdido,
Nem tenho que mudar, ja de mudado.
  Todo bem para mi he acabado:
D'aqui dou o viver ja por vivido;
Que aonde o mal he tão conhecido,
Tambem o viver mais será'scusado.
  Se me basta querer, a morte quero,
Que bem outra esperança não convem:
E curarei hum mal com outro mal.
  E pois do bem tão pouco bem espero,
Ja que o mal este só remedio tem,
Não me culpem em qu'rer remedio tal.
CCLXXXV.
Pues lágrimas tratais, mis ojos tristes,
Y en lágrimas pasais la noche y dia,
Mirad si es llanto este que os envia
Aquella por quien vos tantas vertistes:
  Sentid, mis ojos, bien esta que vistes;
Y si ella lo es, oh gran ventura mia!
Por muy bien empleadas las habria
Mil cuentos que por esta sola distes.
  Mas una cosa mucho deseada,
Aunque se vea cierta, no es creida,
Cuanto mas esta, que me es enviada.
  Pero digo, que aunque sea fingida,
Que basta que por lágrima sea dada,
Porque sea por lágrima teni

da.{144}
CCLXXXVI.
Que póde ja fazer minha ventura,
Que seja para meu contentamento?
Ou como fazer devo fundamento
De cousa que o não tẽe, nem he segura?
  Que pena póde ser tão certa e dura,
Que possa ser maior que meu tormento?
Ou como receará meu pensamento
Os males, se com elles mais se apura?
  Como quem se costuma de pequeno
Com peçonha criar por mão sciente,
Da qual o uso ja o tẽe seguro:
  Assim de acostumado co'o veneno,
O uso de soffrer meu mal presente
Me faz não sentir ja nada o futuro.{145}
ECLOGAS

ECLOGA I.
INTERLOCUTORES.
UMBRANO, FRONDELIO, AONIA.
Que grande variedade vão fazendo,
Frondelio amigo, as horas apressadas!
Como se vão as cousas convertendo
Em outras cousas várias e insperadas!
Hum dia a outro dia vai trazendo
Por suas mesmas horas ja ordenadas;
Mas quão conformes são na quantidade,
Tão differentes são na qualidade.
  Eu vi ja deste campo as várias flores
Ás estrellas do ceo fazendo inveja;
Adornados andar vi os pastores
De quanto por o mundo se deseja;
E vi co'o campo competir nas côres
Os trajes, de obra tanta e tão sobeja,
Que se a rica materia não faltava,
A obra de mais rica sobejava.
  E vi perder seu preço ás brancas rosas
E quasi escurecer-se o claro dia
Diante de hũas mostras perigosas,
Que Venus mais que nunca engrandecia.
As pastoras, emfim, vi tão

formosas,{146}
Que o Amor de si mesmo se temia;
Mas mais temia o pensamento falto
De não ser para ter temor tão alto.
  Agora tudo está tão differente,
Que move os corações a grande espanto;
E parece que Jupiter potente
Se enfada ja d'o mundo durar tanto.
O Tejo corre turvo e descontente,
As aves deixão seu suave canto,
E o gado, inda que a herva lhe fallece,
Mais que da falta della se emmagrece.
            FRONDELIO.
  Umbrano irmão, decreto he da natura,
Inviolavel, fixo e sempiterno,
Que a todo bem succeda desventura,
E não haja prazer que seja eterno:
Ao claro dia segue a noite escura,
Ao suave verão o duro inverno;
E se ha cousa que saiba ter firmeza,
He somente esta lei da natureza.
  Toda alegria grande e sumptuosa
A porta abrindo vem ao triste estado:
Se hum'hora vejo alegre e deleitosa,
Temendo estou do mal apparelhado.
Não vês que mora a serpe venenosa
Entre as flores do fresco e verde prado?
Ah! não te engane algum contentamento;
Que mais instavel he que o pensamento.
  E praza a Deos que o triste e duro fado
De tamanhos desastres se contente;
Que sempre hum grande mal inopinado{

147}
He mais do que o espera a incauta gente:
Que vejo este carvalho que queimado
Tão gravemente foi do raio ardente.
Não seja ora prodigio que declare
Que o barbaro cultor meus campos are.
            UMBRANO.
  Em quanto do seguro azambujeiro
Nos pastores de Luso houver cajados,
Como valor antiguo, que primeiro
Os fez no mundo tão assinalados,
Não temas tu, Frondelio companheiro,
Qu'em algum tempo sejão sobjugados,
Nem que a cerviz indomita obedeça
A outro jugo qualquer que se lhe offreça.
  E postoque a soberba se levante
De inimigos a torto e a direito,
Não crêas tu que a fôrça repugnante
Do fero e nunca ja vencido peito,
Que desde quem possue o monte Atlante
Adonde bebe o Hydaspe tẽe sujeito,
O possa nunca ser de fôrça alheia,
Em quanto o sol a terra e o ceo rodeia.
            FRONDELIO.
  Umbrano, a temeraria segurança
Qu'em fôrça, ou em razão não se assegura,
He falsa e vãa; que a grande confiança
Não he sempre ajudada da ventura.
Que lá junto das aras da esperança,
Némesis moderada, justa e dura,
Hum freio lhe está pondo e lei terribil,
Que os limites não passe do possibil.{148}

  E se attentares bem os grandes danos
Que se nos vão mostrando cada dia,
Poras freio tambem a esses enganos
Que te está figurando a ousadia.
Tu não vês como os lobos Tingitanos,
Apartados de toda cobardia,
Mátão os cães do gado guardadores,
E não somente os cães, mas os pastores?
  Pois o grande curral, seguro e forte,
Do alto monte Atlas não ouviste
Que com sanguinolenta e fera morte
Despovoado foi por caso triste?
Oh triste caso! oh desastrada sorte,
Contra quem fôrça humana não resiste!
Que alli tambem da vida foi privado
O meu Tionio, ainda em flor cortado!
            UMBRANO.
  Em lagrimas me banha rosto e peito
Desse caso terrivel a memoria,
Quando vejo quão sabio e quão perfeito,
E quão merecedor de longa historia
Era esse teu pastor, que sem direito
Deo ás Parcas a vida transitoria.
Mas não ha hi quem d'herva o gado farte,
Nem de juvenil sangue o fero Marte.
  Porém, se te não for muito pezado,
(Ja qu'esta triste morte me lembraste)
Canta-me desse caso desastrado
Aquelles brandos versos que cantaste,
Quando hontem, recolhendo o manso gado,
De nós-outros pastores te apartaste;{

149}
Qu'eu tambem que as ovelhas recolhia,
Não te podia ouvir como queria.
            FRONDELIO.
  Como queres renove ao pensamento
Tamanho mal, tamanha desventura?
Porqu'espalhar suspiros vãos ao vento,
Para os que tristes são, he falsa cura.
Mas, pois te move tanto o sentimento
Da morte de Tionio, triste e escura,
Eu porei teu desejo em doce effeito,
Se a dor me não congela a voz no peito.
            UMBRANO.
  Canta agora, pastor, que o gado pace
Entre as humidas hervas socegado;
E lá nas altas serras, onde nace,
O sacro Tejo á sombra recostado,
Co'os seus olhos no chão, a mão na face,
Está para te ouvir apparelhado;
E com silencio triste estão as Nymphas
Dos olhos destillando claras lymphas.
  O prado as flores brancas e vermelhas
Está suavemente presentando;
As doces e solícitas abelhas,
Com susurro agradavel vão voando;
As candidas, pacíficas ovelhas,
Das hervas esquecidas, inclinando
As cabeças estão ao som divino
Que faz, passando, o Tejo crystallino.
  O vento d'entre as árvores respira,
Fazendo companhia ao claro rio;
Nas sombras a ave garrula suspira,{150}

Sua mágoa espalhando ao vento frio.
Toca, Frondelio, toca a doce lira;
Que d'aquelle verde alamo sombrio
A branda Philomela entristecida
Ao mais saudoso canto te convida.
            FRONDELIO.
  Aquelle dia as águas não gostárão
As mimosas ovelhas; e os cordeiros
O campo enchêrão d'amorosos gritos.
E não se pendurárão dos salgueiros
As cabras, de tristeza; mas negárão
O pasto a si, e o leite a os cabritos.
Prodigios infinitos
Mostrava aquelle dia,
Quando a Parca queria
Princípio dar ao fero caso triste.
E tu tambem (ó corvo) o descobriste,
Quando da mão direita em voz escura,
Voando, repetiste
A tyrannica lei da morte dura.
  Tionio meu, o Tejo crystallino,
E as árvores que ja desamparaste
Chórão o mal de tua ausencia eterna.
Não sei porque tão cedo nos deixaste!
Mas foi consentimento do Destino,
Por quem o mar e a terra se governa.
A noite sempiterna,
Que tu tão cedo viste
Cruel, acerba e triste,
Sequer de tua idade não te dera
Que lográras a fresca primavera?{151}


Não usára comnosco tal crueza,
Que nem nos montes fera,
Nem pastor ha no campo sem tristeza.
  Os Faunos, certa guarda dos pastores,
Ja não seguem as Nymphas na espessura,
Nem as Nymphas aos cervos dão trabalho.
Tudo, qual vês, he cheio de tristura:
Ás abelhas o campo nega as flores,
Como ás flores a aurora nega o orvalho.
Eu que cantando espalho
Tristezas todo o dia,
A frauta que soia
Mover as altas árvores tangendo,
Se me vai de tristeza enrouquecendo;
Que tudo vejo triste neste monte:
E tu tambem correndo
Manas envolta e triste, ó clara fonte.
  As Tagides no rio, e na aspereza
Do monte as Oreádas, conhecendo
Quem te obrigou ao duro e fero Marte;
Como em geral sentença vão dizendo,
Que não póde no mundo haver tristeza
Em cuja causa amor não tenha parte.
Porqu'elle, enfim, dest'arte
Nos olhos saudosos,
Nos passos vagarosos,
E no rosto, que Amor com phantasia
Da pallida viola lhe tingia,
A todos de si dava sinal certo
Do fogo que trazia;
Que nunca soube amor ser encoberto.{152}

  Ja diante dos olhos lhe voavão
Imagens e phantasticas pinturas,
Exercicios do falso pensamento;
Ja por as solitarias espessuras
Entre os penedos sós, que não fallavão,
Fallava e descobria seu tormento.
Em longo esquecimento
De si, todo embebido,
Andava tão perdido,
Que quando algum pastor lhe perguntava
A causa da tristeza que mostrava,
Como quem para penas só vivia,
Sorrindo, lhe tornava:
Se não vivesse triste, morreria.
  Mas como este tormento o sinalou,
E tanto no seu rosto se mostrasse,
Entendendo-o ja bem o pae sisudo,
Porque do pensamento lho tirasse,
Longe da causa delle o apartou;
Porque, emfim, longa ausencia acaba tudo.
Oh falso Marte rudo,
Das vidas cobiçoso!
Que donde o generoso
Peito resuscitava em tanta gloria
De seus Antecessores a memoria,
Alli, fero e cruel, lhe destruiste,
Por injusta victoria,
Primeiro que o cuidado, a vida triste.
  Parece-me, Tionio, que te vejo,
Por tingires a lança cobiçoso
Naquelle infido sangue Mauritano,{

153}
No Hispanico ginete bellicoso,
Que ardendo tambem vinha no desejo
De atropellar por terra ao Tingitano.
Oh confiado engano!
Oh encurtada vida!
Que a virtude opprimida
Da multidão forçosa do inimigo
Não pôde defender-se do perigo:
Porqu'assi o Destino o permittio;
E assi levou comsigo
O mais gentil pastor que o Tejo vio.
  Qual o mancebo Euryalo enredado
Entre o poder dos Rutulos, fartando
As íras da soberba e dura guerra;
Do cristallino rosto a côr mudando,
Cujo purpureo sangue, derramado
Por as alvas espaldas, tinge a serra;
Que como flor, que a terra
Lhe nega o mantimento,
Porque o tempo avarento
Tambem o largo humor lhe tẽe negado,
O collo inclina languido e cansado:
Tal te pinto, ó Tionio, dando o esprito
A quem to tinha dado;
Qu'este he somente eterno e infinito.
  Da congelada boca a alma pura,
Co'o nome juntamente da inimiga
E excellente Marfida, derramava.
E tu, gentil Senhora, não te obriga
A pranto sempiterno a morte dura
De quem por ti somente a vida amava?{154}

Por ti aos ecos dava
Accentos numerosos;
Por ti aos bellicosos
Exercicios se deo do fero Marte.
E tu ingrata o amor ja n'outra parte
Porás, como acontece ao fraco intento:
Que, emfim, emfim, dest'arte
Se muda o feminino pensamento.
  Pastores deste valle ameno e frio,
Que de Tionio o caso desastrado
Quereis nas altas serras que se conte;
Hum tumulo, de flores adornado,
Lhe edificai ao longo deste rio,
Que a vela enfreie ao duro navegante:
E o lasso caminhante,
Vendo tamanha mágoa,
Arraze os olhos d'ágoa,
Lendo na pedra dura o verso escrito,
Que diga assi: Memoria sou, que grito
Para dar testimunho em toda parte
Do mais gentil Esprito
Que tirárão do mundo Amor e Marte.
            UMBRANO.
  Qual o quieto somno aos cansados
Debaixo de algum'árvore sombria;
Ou qual aos sequiosos encalmados
O vento respirante e a fonte fria:
Taes me forão teus versos delicados,
Teu numeroso canto e melodia:
E ainda agora o tom suave e brando
Os ouvidos me fica adormentando.{155}


  Em quanto os peixes humidos tiverem
As areosas covas deste rio,
E correndo estas águas conhecerem
Do largo mar o antiguo senhorio;
E em quanto estas hervinhas pasto derem
Ás petulantes cabras, eu te fio
Que em virtude dos versos que cantaste
Sempre viva o pastor que tanto amaste.
  Mas ja que pouco a pouco o sol nos falta,
E dos montes as sombras se accrescentão;
De flores mil o claro ceo se esmalta,
Que tão ledas aos olhos se presentão;
Levemos por o pé desta serra alta
Os gados, que ja agora se contentão
Do que comido tẽe, Frondelio amigo:
Anda; que até o outeiro irei comtigo.
            FRONDELIO.
  Antes por este valle, amigo Umbrano,
Se t'aprouver, levemos as ovelhas;
Porque, se eu por acêrto não me engano,
De lá me sôa hum eco nas orelhas:
O doce accento não parece humano.
E, se em contrário tu não m'aconselhas,
Eu quero descobrir que cousa seja;
Que o tom m'espanta, e a voz me faz inveja.
            UMBRANO.
  Comtigo vou, que quanto mais me chego,
Mais gentil me parece a voz que ouviste,
Peregrina, excellente; e não te nego
Que me faz cá no peito a alma triste.
Vês como tẽe os ventos em socêgo?{156}

Nenhum rumor da serra lhe resiste:
Nenhum passaro vôa, mas parece
Que, do canto vencido, lhe obedece.
  Porém, irmão, melhor me parecia
Que não fôssemos lá; que estorvaremos;
Mas sobidos nest'árvore sombria,
Todo o valle de aqui descobriremos.
Os çurrões e cajados, todavia,
Neste comprido tronco penduremos:
Para subir fica homem mais ligeiro.
Deixa-me tu, Frondelio, ir primeiro.
            FRONDELIO.
  Espera, assi, dar-te-hei de pé, se queres:
Subirás sem trabalho e sem ruido;
E despois que subido lá 'stiveres,
Dar-me-has a mão de cima; que he partido.
Mas primeiro me dize, se o puderes
Ver, donde nasce o canto nunca ouvido;
Quem lança o doce accento delicado.
Falla; que ja te vejo estar pasmado.
            UMBRANO.
  Cousas não costumadas na espessura,
Que nunca vi, Frondelio, vejo agora:
Formosas Nymphas vejo na verdura,
Cujo divino gesto o ceo namora.
Huma de desusada formosura,
Que das outras parece ser Senhora,
Sôbre hum triste sepulcro, não cessando,
Está perlas dos olhos destillando.
  De todas estas altas semidêas,
Qu'em tôrno estão do corpo sepultado,{

157}
Humas, regando as humidas arêas,
De flores tẽe o tumulo adornado;
Outras, queimando lagrimas Sabêas,
Enchem o ar de cheiro sublimado;
Outras em ricos pannos, mais avante,
Envolvem brandamente hum novo infante.
  Huma, que d'entre as outras se apartou,
Com gritos, que a montanha entristecêrão,
Diz, que despois que a morte a flor cortou
Que as estrellas somente merecêrão,
Este penhor charissimo ficou
Daquelle, a cujo imperio obedecêrão
Douro, Mondego, Tejo e Guadiana,
Até o remoto mar da Taprobana.
  Diz mais, que se encontrar este menino
A noite intempestiva, amanhecendo,
O Tejo, agora claro e crystallino,
Tornará a fera Alecto em vulto horrendo.
Mas que, a ser conservado do Destino,
As benignas estrellas promettendo
Lh'estão o largo pasto de Ampelusa,
Co'o monte que em mao ponto vio Medusa.
  Este prodigio grande Nympha bella
Com abundantes lagrimas recita.
Porém, qual a eclipsada clara estrella,
Qu'entre as outras o ceo primeiro habita:
Tal coberta de negro vejo aquella,
A quem só n'alma toca a grã desdita.
Dá cá, Frondelio, a mão; e sobe a ver
Tudo o mais qu'eu de dor não sei dizer.{158}
            FRONDELIO.

  Oh triste morte, esquiva e mal olhada,
Que a tantas formosuras injurías!
Áquella deosa bella e delicada
Sequer algum respeito ter devias.
Esta he, por certo, Aonia filha amada
Daquelle grã Pastor, qu'em nossos dias
Danubio enfreia, manda o claro Ibero,
E espanta o morador do Euxino fero.
  Morreo-nos o excellente e poderoso,
(Que a isto está sujeita a vida humana)
Doce Aonio, d'Aonia charo Esposo.
Ah lei dos fados, aspera e tyrana!
Mas o som peregrino e piedoso,
Com que a formosa Nympha a dor engana,
Escuta hum pouco. Nota e vê, Umbrano,
Quão bem que sôa o verso Castelhano.
            AONIA.
  Alma, y primero amor del alma mia,
Espíritu dichoso, en cuya vida
La mia estuvo en cuanto Dios queria!
  Sombra gentil de su prision salida,
Que del mundo á la patria te volviste,
Donde fuiste engendrada y procedida!
  Recibe allá este sacrificio triste,
Que te offrecen los ojos que te vieron;
Si la memoria dellos no perdiste.
  Que, pues los altos Cielos permitieron,
Que no te acompañase en tal jornada,
Y para ornarse solo á ti quisieron;
  Nunca permitirán, que acompañada{

159}
De mi no sea esta memoria tuya,
Que está de tus despojos adornada.
  Ni dejará, por mas que el tiempo huya,
De estar en mí con sempiterno llanto,
Hasta que vida y alma se destruya.
  Mas tú, gentil Espíritu, entretanto
Que otros campos y flores vas pisando,
Y otras zampoñas oyes, y otro canto;
  Agora embevecido estés mirando
Allá en el Empireo aquella Idea,
Que el mundo enfrena y rige con su mando;
  Agora te posuya Citherea
En el tercero asiento, ó porque amaste,
Ó porque nueva amante allá te sea;
  Agora el sol te admire, si miraste
Como vá por los Signos, encendido,
Las tierras alumbrando que dejaste:
  Si en ver estos milagros no has perdido
La memoria de mí, ó fué en tu mano
No pasar por las aguas del olvido;
  Vuelve un poco los ojos á este llano,
Verás una, que á ti con triste lloro
Sobre este mármol sordo llama en vano.
  Pero si entraren en los Signos de oro
Lágrimas y gemidos amorosos,
Que muevan el supremo y santo coro;
  La lumbre de tus ojos tan hermosos
Yo la veré muy presto: y podré verte;
Que á pesar de los hados enojosos
Tambiem para los tristes hubo muerte.{160}

ECLOGA II.
INTERLOCUTORES.
ALMENO e AGRARIO.
Ao longo do sereno
Tejo, suave e brando,
N'hum valle d'altas árvores sombrio
Estava o triste Almeno
Suspiros espalhando
Ao vento, e doces lagrimas ao rio.
No derradeiro fio
O tinha a esperança,
Que com doces enganos
Lhe sustentára a vida tantos anos
N'hũa amorosa e branda confiança;
Que quem tanto queria,
Parece que não erra, se confia.
  A noite escura dava
Repouso aos cansados
Animaes esquecidos da verdura;
O valle triste estava
Co'huns ramos carregados,
Qu'inda a noite fazião mais escura.
Offrecia a espessura
Hum temeroso espanto:
As roucas rãas soavão
N'hum charco de água negra e ajudavão
Do passaro nocturno o

triste canto:{161}
O Tejo com som grave
Corria mais medonho que suave.
  Como toda a tristeza
No silencio consiste,
Parecia que o valle estava mudo.
E com esta graveza
Estava tudo triste,
Porém o triste Almeno mais que tudo:
Tomando por escudo
De sua doce pena,
Para poder soffrella,
Estar imaginando a causa della;
Qu'em tanto mal he cura bem pequena.
Maior o he o tormento,
Que toma por allívio hum pensamento.
  Ao rio se queixava
Com lagrimas em fio,
Com que as ondas crescião outro tanto.
Seu doce canto dava
Tristes águas ao rio,
E o rio triste som ao doce canto.
Ao sonoroso pranto,
Que as águas enfreava,
Responde o valle umbroso.
De tanta voz o accento temeroso
Na outra parte do rio retumbava;
Quando, da phantasia
O silencio rompendo, assi dizia:
  Corre suave e brando
Com tuas claras ágoas,
Sahidas de meus olhos, doce Tejo;{162}


Fé de meus males dando,
Para que minhas mágoas
Sejão castigo igual de meu desejo:
Que, pois em mim não vejo
Remedio, nem o espero;
E a morte se despreza
De me matar, deixando-me á crueza
Daquella por quem meu tormento quero;
Saiba o mundo meu dano,
Porque se desengane em meu engano.
  Ja que minha ventura,
Ou a causa qu'a ordena,
Quer qu'em pago da dor tome o soffrella;
Será mais certa cura
Para tamanha pena
Desesperar d'haver ja cura nella.
Porque se minha estrella
Causou tal esquivança,
Consinta meu cuidado
Que me farte de ser desesperado,
Para desenganar minha esperança:
Pois somente nasci
Para viver na morte, e ella em mi.
  Não cesse meu tormento
De fazer seu officio,
Pois aqui tẽe hum'alma ao jugo atada:
Nem falte o soffrimento,
Porque parece vício
Para tão doce mal faltar-me nada.
Oh Nympha delicada,
Honra da natureza!{

163}
Como póde isto ser,
Que de tão peregrino parecer
Pudesse proceder tanta crueza?
Não vem de nenhum geito
De causa divinal contrário effeito.
  Pois como pena tanta
He contra a causa della?
Fóra he do natural minha tristeza.
Mas a mi que m'espanta?
Não basta (ó Nympha bella)
Que podes perverter a natureza?
Não he a gentileza
De teu gesto celeste
Fóra do natural?
Não póde a natureza fazer tal:
Tu mesma (ó bella Nympha) te fizeste;
Porém, porque tomaste
Tão dura condição, se te formaste?
  Por ti o alegre prado
Me he penoso e duro;
Abrolhos me parecem suas flores.
Por ti do manso gado,
Como de mi, não curo,
Por não fazer offensa a teus amores.
Os jogos dos pastores,
As lutas entr'a rama,
Nada me faz contente:
E sou ja do que fui tão differente,
Que quando por meu nome alguem me chama,
Pasmo, porque conheço
Qu'inda comigo proprio me pareço.{164}


  O gado, que apascento,
São n'alma os meus cuidados;
As flores, que no campo sempre vejo,
São no meu pensamento
Teus olhos debuxados,
Com qu'estou enganando o meu desejo.
Do frio e doce Tejo
As águas se tornárão
Ardentes e salgadas,
Despois que minhas lagrimas cansadas
Com seu puro licor se misturárão;
Como quando mistura
Hyppanis co'o Exampêo sua água pura.
  Se ahi no mundo houvesse
Ouvires-me algum'hora,
Assentados na praia deste rio;
E d'arte te dissesse
O mal que passo agora,
Que pudesse mover-te o peito frio!..
Oh quanto desvario,
Qu'estou imaginando!
Ja agora meu tormento
Não póde pedir mais ao pensamento,
Qu'este phantasiar, donde penando
A vida me reserva.
Querer mais de meu mal será soberba.
  Ja a esmaltada Aurora
Descobre o negro manto
Da sombra, que as montanhas encobria.
Descansa, frauta, agora,
Pois meu escuro canto{

165}
Não merece que veja o claro dia.
Não canse a phantasia
D'estar em si pintando
O gesto delicado,
Em quanto traz ao pasto o manso gado
Esse pastor, que lá só vem fallando.
Callar-me-hei somente;
Que o meu mal nem ouvir se me consente.
            AGRARIO.
  Formosa manhãa clara e deleitosa,
Que, como fresca rosa na verdura,
Te mostras bella e pura, marchetando
As Nymphas, espalhando teus cabellos
Nos verdes montes bellos; tu só fazes,
Quando a sombra desfazes triste e escura,
Formosa a espesura e a clara fonte,
Formoso o alto monte e o rochedo,
Formoso o arvoredo e deleitoso,
E emfim tudo formoso co'o teu rosto
D'ouro e rosas composto e claridade;
Trazes a saudade ao pensamento,
Mostrando em hum momento o roxo dia,
Com a doce harmonia nos cantares
Dos passaros a pares, que voando
Seu pasto andão buscando nos raminhos,
Para os amados ninhos que mantém.
Oh grande e summo bem da natureza!
Estranha subtileza de pintora,
Que matiza em hum'hora de mil côres
O ceo, a terra, as flores, monte e prado!
Oh tempo ja passado! quão presente{166}

Te vejo abertamente na vontade!
Quão grande saudade tenho agora
Do tempo que a pastora minha amava,
E de quanto prezava a minha dor!
Então tinha o amor maior poder,
Quando em hum só querer nos igualava;
Porque quando hum amava a quem queria,
Logo eco respondia d'affeição
No brando coração da doce imiga.
Nesta amorosa liga concertavão
Os tempos, que passavão com prazeres.
Mostrava a flava Ceres por as eiras
Das brancas sementeiras ledo fruto,
Pagando seu tributo aos Lavradores;
E enchia aos pastores todo o prado
Pales do manso gado guardadora.
Hião Zéphyro e Flora passeando,
Os campos esmaltando de boninas;
Nas fontes cristallinas triste estava
Narciso, qu'inda olhava n'água pura
Sua linda figura e delicada:
Mas Eco, namorada de tal gesto,
Com pranto manifesto, seu tormento
No derradeiro accento lamentava.
Alli tambem se achava o sangue tinto
Do purpureo Jacintho; e o destrôço
De Adonis bello moço; morte fêa
Da bella Cytherêa tão chorada;
Toda a terra esmaltada destas rosas.
Hião Nymphas formosas por os prados;
E os Faunos namorados apos ellas,{

167}
Mostrando-lhes capellas de mil côres,
Ordenadas das flores que colhião:
As Nymphas lhe fugião espantadas,
As faldas levantadas, por os montes.
Via-sea água das fontes espalhar-se;
Vertumno transformar-se alli se via;
Pomona, que trazia os doces fruitos;
Alli pastores muitos, que tangião
As gaitas que trazião, e cantando
Estavão enganando as suas penas,
Tomando das Sirenas o exercicio.
Ouvia-se Salicio lamentar-se;
Da mudança queixar-se crua e fêa
Da dura Galathêa tão formosa:
E da morte invejosa Nemoroso
Ao monte cavernoso se querella,
Que a sua Elisa bella em pouco espaço
Cortou inda em agraço. Ah dura sorte!
Oh immatura morte, que a ninguem
De quantos vida tẽe jamais perdoas!
Mas tu, tempo, que voas apressado,
Hum deleitoso estado quão asinha
Nesta vida mesquinha transfiguras
Em mil desaventuras, e a lembrança
Nos deixas por herança do que levas!
Assi que se nos cevas com prazeres,
He para nos comeres no melhor.
Cada vez em peor te vás mudando:
Quanto vẽes inventando, qu'hoje approvas,
Logo á manhãa reprovas com instancia.
Oh perversa inconstancia e tão profana{168}

De toda cousa humana inferior,
A quem o cego error sempre anda annexo!
Mas eu de que me queixo? ou eu que digo?
Vive o tempo comigo? ou elle tem
Culpa no mal que vem da cega gente?
Por ventura elle sente, ou elle entende
Aquillo que defende o ser divino?
Elle usa de contino seu officio,
Que ja por exercicio lhe he devido:
Dá-nos fructo colhido na sazão
Do formoso verão; e no inverno,
Com seu humor eterno congelado,
Do vapor levantado co'a quentura
Do sol, a terra dura lhe dá alento,
Para que o mantimento produzindo,
Estê sempre cumprindo seu costume.
Assi que não consume de si nada,
Nem muda da passada vida hum dedo:
Antes sempre está quedo no devido,
Porqu'este he seu partido e sua usança;
E nelle esta mudança he mais firmeza.
Mas quem a Lei despreza, e pouco estima,
De quem de lá de cima está movendo
O ceo sublime e horrendo, o mundo puro,
Este muda o seguro e firme estado
Do tempo, não mudado de verdade.
Não foi naquella idade d'ouro claro
O firme tempo charo e excellente?
Vivia então a gente moderada;
Sem ser a terra arada dava pão;
Sem ser cavado o chão as fructas dava;{

169}
Nem águas desejava, nem quentura;
Suppria então natura o necessario.
Pois quem foi tão contrário a esta vida?
Saturno, que, perdida a luz serena,
Causou, qu'em dura pena, desterrado,
Fosse do ceo lançado, onde vivia;
Porque os filhos comia, que gerava.
Por isso se mudava o tempo igual
Em mais baixo metal: e assi descendo
Nos veio, emfim, trazendo a este estado.
Mas eu, desatinado, aonde vou?
Para onde me levou a phantasia?
Qu'estou gastando o dia em vãas palavras?
Quero ora minhas cabras ir levando
Ao Tejo claro e brando; porque achar
No mundo qu'emendar, não he d'agora:
Basta que a vida fóra delle tenho:
Com meu gado me avenho, e estou contente.
Porém, se me não mente a vista, eu vejo
Nesta praia do Tejo estar deitado
Almeno, que enlevado em pensamentos,
As horas e os momentos vai gastando:
Vou-me a elle chegando, só por ver
Se poderei fazer que o mal que sente,
Hum pouco se lhe ausente da memoria.
            ALMENO.
  Oh doce pensamento! oh doce gloria!
São estes por ventura os olhos bellos,
Que tẽe de meus sentidos a victoria?
  São estas, Nympha, as tranças dos cabellos,
Que fazem de seu preço o ouro alheio,{170}

Como a mi de mi mesmo só com vellos?
  He esta a alva columna, o lindo esteio,
Sustentador das obras mais que humanas,
Qu'eu nestes braços tenho, e não o creio?
  Ah falso pensamento, que me enganas!
Fazes-me pôr a boca onde não devo,
Com palavras de doudo, ou quasi insanas!
  Como a alçar-te tão alto assi me atrevo?
Taes azas dou-tas eu, ou tu mas dás?
Levas-me tu a mi, ou eu te levo?
  Não poderei eu ir onde tu vás?
Porém, pois ir não posso onde tu fores,
Quando fores, não tornes onde estás.
            AGRARIO.
  Oh que triste successo foi de amores,
O que a este pastor aconteceo,
Segundo ouvi contar a outros pastores!
  Tanto emfim, por seu damno se perdeo,
Que o longo imaginar em seu tormento,
Em desatino Amor lh'o converteo.
  Oh forçoso vigor do pensamento,
Que póde em outra cousa estar mudando
A fórma, a vida, o siso, o entendimento!
  Está-se hum triste amante transformando
Na vontade daquella, que tanto ama,
De si a propria essencia transportando.
  E nenhum'outra cousa mais desama,
Que a si, se vê qu'em si ha algum sentido,
Que deste fogo insano não se inflama.
  Almeno, que aqui 'stá tão influido
No phantastico sonho, que o cuidado{

171}
Lhe traz sempre ante os olhos esculpido,
  Está-se-lhe pintando, de enlevado,
Que tẽe ja da phantastica pastora
O peito diamantino mitigado.
  Em este doce engano estava agora
Fallando como em sonho, mas achando
Ser vento o que sonhava, grita e chora.
  Dest'arte andavão sonhos enganando
O pastor somnolento, que a Diana
Andava entre as ovelhas celebrando;
  Dest'arte a nuvem falsa, em fórma humana,
O vão pae dos Centauros enganava:
(Que Amor quando contenta, sempre engana)
  Como este, que comsigo só fallava,
Cuidando que fallava, de enleado,
Com quem lhe o pensamento figurava.
  Não póde quem quer muito, ser culpado
Em nenhum êrro, quando vem a ser
Este amor em doudice transformado.
  Amor não será amor, se não vier
Com doudices, deshonras, dissensões,
Pazes, guerras, prazer e desprazer;
  Perigos, linguas más, murmurações
Ciumes, arruidos, competencias,
Temores, nojos, mortes, perdições.
  Estas são verdadeiras penitencias
De quem põe o desejo onde não deve,
De quem engana alheias innocencias.
  Mas isto tẽe o amor, que não se escreve
Senão donde he illicito e custoso;
E donde he mais o risco, mais se atreve.{172}

  Passava o tempo alegre e deleitoso
O Troiano pastor, em quanto andava
Sem ter alto desejo e perigoso.
  Seus furiosos touros coroava,
E nos álamos altos escrevia
Teu nome (Enone) quando a ti só amava.
  Os álamos crescião, e crescia
O amor qu'elle te tinha: sem perigo,
E sem temor, contente te servia.
  Mas despois que deixou entrar comsigo
Illicito desejo e pensamento,
De sua quietação tão inimigo;
  A toda a patria poz em detrimento
Com mortes de parentes e de irmãos,
Com crú incendio, e grande perdimento.
  Nisto fenecem pensamentos vãos:
Tristes serviços mal galardoados,
Cuja glória se passa d'entre as mãos.
  Lagrimas e suspiros arrancados
D'alma, todos se pagão com enganos:
E oxalá forão muitos enganados!
  Andão com seu tormento tão ufanos,
Que gastão na doçura d'hum cuidado
Apos huma esperança muitos anos.
  E talha tão perdido namorado,
Tão contente co'o pouco, que daria
Por hum só volver d'olhos todo o gado.
  Em todo povoado e companhia,
Sendo ausentes de si, se vem presentes
Com quem lhes pinta sempre a phantasia.
  Co'hum certo não sei que andão contentes,{

173}
E logo hum nada os torna, ao contrário,
De todo ser humano differentes.
  Oh tyrannico Amor, oh caso vario,
Que obrigas a hum querer que sempre seja
De si contínuo e aspero adversario!
  E qu'outr'hora nenhuma alegre esteja,
Senão quando do seu despôjo amado
Sua inimiga estar triumphando veja.
  Quero fallar com este, qu'enredado
Nesta cegueira está sem nenhum tento.
Acorda ja, pastor, desacordado.
            ALMENO.
  Oh porque me tiraste hum pensamento,
Que agora estava aos olhos debuxando,
De quem aos meus foi doce mantimento?
            AGRARIO.
  Nesta imaginação estás gastando
O tempo e vida, Almeno? Perda grande!
Não vês quão mal os dias vás passando?
            ALMENO.
  Formosos olhos, ande a gente e ande;
Que nunca vos ireis dest'alma minha,
Por mais qu'o tempo corra, a morte o mande.
            AGRARIO.
  Quem poderá cuidar que tão asinha
Se perca o curso assi do siso humano,
Que corre por direita e justa linha?
  Que sejas tão perdido por teu dano,
Almeno meu, não he por certo aviso;
He só doudice grande, grande engano.{174}
            ALMENO.
  Ó Agrario

meu, que vendo o doce riso,
E o rosto tão formoso, como esquivo,
O menos que perdi foi todo o siso.
  E não entendo, desque sou captivo,
Outra cousa de mi, senão que mouro:
Nem isto entendo bem, pois inda vivo.
  Á sombra deste umbroso e verde louro
Passo a vida, ora em lagrimas cansadas,
Ora em louvores dos cabellos d'ouro.
  Se perguntares porque são choradas,
Ou porque tanta pena me consume,
Revolvendo memorias magoadas;
  Desque perdi da vida o claro lume,
E perdi a esperança e causa della,
Não chóro por razão, mas por costume.
  Jamais pude co'o fado ter cautella;
Nem houve nunca em mi contentamento,
Que não fosse trocado em dura estrella.
  Que bem livre vivia e bem isento,
Sem qu'ao jugo me visse submettido
De nenhum amoroso pensamento!
  Lembra-me, amigo Agrario, que o sentido
Tão fóra d'amor tinha, que me ria
De quem por elle via andar perdido.
  De várias côres sempre me vestia;
De boninas a fronte coroava;
Nenhum pastor cantando me vencia.
  A barba então nas faces me apontava;
Na luta, na carreira, em qualquer manha,
Sempre a palma entre todos alcançava.{

175}
  Da minha idade tenra, em tudo estranha,
Vendo (como acontece) affeiçoadas
Muitas Nymphas do rio e da montanha;
  Com palavras mimosas e forjadas,
De solta liberdade e livre peito,
As trazia contentes e enganadas.
  Mas não querendo Amor, que deste geito
Dos corações andasse triumphando,
Em quem elle criou tão puro affeito;
  Pouco a pouco me foi de mi levando
Dissimuladamente ás mãos de quem
Toda esta injuria agora está vingando.
            AGRARIO.
  Deste teu caso, Almeno, eu sei mui bem
O princípio e o fim; que Nemoroso
Contado tudo isso, e mais, me tem.
  Mas (quero-to dizer) se este enganoso
Amor he tão usado a desconcertos,
Que nunca amando fez pastor ditoso;
  Ja que nelle estes casos são tão certos,
Porqu'os estranhas tanto, que de mágoa
Te chorão valles, montes e desertos?
  Vejo-te estar gastando em viva fragoa,
E juntamente em lagrimas; vencendo
A grã Sicilia em fogo, o Nilo em ágoa.
  Vejo que as tuas cabras, não querendo
Gostar as verdes hervas, se emmagrecem,
As tetas aos cabritos encolhendo.
  Os campos, que co'o tempo reverdecem,
Os olhos alegrando descontentes,
Em te vendo, parece, se entristecem.{176}
  De

todos teus amigos e parentes,
Que lá da serra vem por consolar-te,
Sentindo na alma a pena, que tu sentes,
  Se querem de teus males apartar-te,
Deixando a choça e gado vás fugindo,
Como cervo ferido, a outra parte.
  Não vês que Amor, as vidas consumindo,
Vive só de vontades enlevadas
No falso parecer d'hum gesto lindo?
  Nem as hervas das águas desejadas
Se fartão; nem de flores as abelhas;
Nem este Amor de lagrimas cansadas.
  Quantas vezes, perdido entr'as ovelhas,
Chorou Phebo de Daphne as esquivanças,
Regando as flores brancas e vermelhas?
  Quantas vezes as asperas mudanças
O namorado Gallo tẽe chorado
De quem o tinha envolto em esperanças?
  Estava o triste amante recostado,
Chorando ao pé d'hum freixo o triste caso,
Que o falso Amor lhe tinha destinado.
  Por elle o sacro Pindo e o grão Parnaso,
Na fonte de Aganippe destillando,
Se fazião de lagrimas hum vaso.
  O intonso Apollo o vinha alli culpando,
A sobeja tristeza perigosa
Com asperas palavras reprovando.
  Gallo, porqu'endoudeces? que a formosa
Nympha, que tanto amaste, descobrindo
Por falsa a fé, que dava, e mentirosa;
  Por as Alpinas neves vai seguindo{

177}
Outro bem, outro amor, outro desejo;
Como inimiga, emfim, de ti fugindo.
  Mas o misero amante, que o sobejo
Mal empregado amor lhe defendia
Ter de tamanha fé vergonha ou pejo;
  Da falsífica Nympha não sentia
Senão que o frio do gelado Rheno
Os delicados pés lhe offenderia.
  Ora se tu vês claro, amigo Almeno,
Que d'Amor os desastres são de sorte,
Que para matar basta o mais pequeno,
  Porque não pões hum freio a mal tão forte,
Qu'em estado te põe, que sendo vivo,
Ja não se entende em ti vida nem morte?
            ALMENO.
  Agrario; se do gesto fugitivo,
Por caso de fortuna desastrado,
Algum'hora deixar de ser captivo;
  Ou sendo para as Ursas degradado,
Adonde Boreas tẽe o Oceano
Co'os frios Hyperboreos congelado;
  Ou donde o filho de Climene insano,
Mudando a côr das gentes totalmente,
As terras apartou do trato humano;
  Ou se ja por qualquer outro accidente
Deixar este cuidado tão ditoso,
Por quem sou de ser triste tão contente;
  Este rio, que passa deleitoso,
Tornando para traz, irá negando
Á natureza o curso pressuroso.
  As cabras por o mar irão buscando{178}

Seu pasto; e andar-se-hão por a espessura
Das hervas os delfins apascentando.
  Ora se tu vês, n'alma quão segura
Deste amor tenho a fé, para qu'insistes
Nesse conselho e prática tão dura?
  Se de tua porfia não desistes,
Vae repastar teu gado a outra parte;
Qu'he dura a companhia para os tristes.
  Huma só cousa quero encomendarte,
Para repouso algum de meu engano,
Antes que o tempo, emfim, de mi te aparte:
  Que s'esta fera, qu'anda em traje humano,
Por a montanha vires ir vagando,
De meu despôjo rica e de meu dano,
  Comos vivos espritos inflammando
O ar, o monte e a serra, que comsigo
Continuamente leva namorando;
  Se queres contentar-me, como amigo,
Passando, lhe dirás: Gentil pastora,
Não ha no mundo vício sem castigo.
  Tornada em puro marmore não fôra
A fera Anaxarete, se amoroso
Mostrára o rosto angelico algum'hora.
  Foi bem justo o castigo rigoroso:
Porém quem te ama (Nympha) não queria
Nódoa tão feia em gesto tão formoso.
            AGRARIO.
  Tudo farei, Almeno, e mais faria
Por algum dia ver-te descansado,
Se s'acabão trabalhos algum dia.
  Mas bem vês como Phebo ja empinado{

179}
Me manda que da calma iniqua e crua,
Recolha em algum valle o manso gado.
  Tu nessa phantasia falsa e nua,
Para engano maior de teu perigo,
Não queres companhia mais que a sua.
  Vou-me d'aqui, e fique Deos comtigo;
E ficarás melhor acompanhado.
            ALMENO.
  Elle comtigo vá, como comigo
Me fica acompanhando o meu cuidado.
ECLOGA III.
INTERLOCUTORES.
ALMENO e BELISA.
Passado ja algum tempo que os amores
D'Almeno, por seu mal, erão passados,
Porque nunca Amor cumpre o que promette;
Entr'huns verdes ulmeiros apartado,
Regando por o campo as brancas flores,
Em lagrimas cansadas se derrete:
Quando a linda pastora, que compete
Co'o monte em aspereza,
Co'o prado em gentileza,
Por quem o pastor triste endoudecia,
Por a praia do Tejo

discorria{180}
A lavar a beatilha e o trançado:
O sol ja consentia
Que sahisse da sombra o manso gado.
  Ja acordado daquelle pensamento
Que tão desacordado sempre o teve,
Vio por acêrto o bem, que incerto tinha.
E porque donde amor a mais se atreve,
Alli mais enfraquece o entendimento,
Não lhe soube dizer o que convinha.
Como homem que á aprazada briga vinha,
A quem de fóra engana
A confiança humana,
E despois, vendo o rosto a quem resiste,
Treme, e teme o perigo e não insiste;
Ja se arrepende, a audacia lhe fallece:
Dest'arte o pastor triste
Ousa, receia, esforça e enfraquece.
  E tendo assi ja attonito o sentido,
Cometteo com furor desatinado,
E tirou da fraqueza coração.
Comettimento foi desesperado:
Qu'huma só salvação tẽe hum perdido,
Perder toda a esperança á salvação.
As mágoas, que passárão, se dirão:
Mas as qu'ella dizia,
Lembrando-lhe que via
As águas murmurar do Tejo amenas,
Remetto a vós, ó Tagides Camenas;
Qu'eu, de mágoa, não posso dizer tanto;
Porqu'em tamanhas penas
Me cansa a penna, e a dor m'impede o canto.{

181}
            BELISA.
  Que alegre campo e praia deleitosa!
Quão saudosa faz esta espessura
A formosura angelica e serena
Da tarde amena! Quão saudosamente
A sesta ardente abranda, suspirando,
De quando em quando o vento alegre e frio!
No fundo rio os mudos peixes sáltão;
Os ceos se esmaltão todos d'ouro e verde,
E Phebo perde a fôrça da quentura.
Por a espessura levão, passeando,
O gado brando ao som das çanfoninas,
Pizando as finas e formosas flores,
Os Guardadores, que cantando o gesto
Formoso e honesto das pastoras qu'amão,
Por o ar derramão mil suspiros vãos.
Hum louva as mãos, louva outro os raios bellos,
Outro os cabellos d'ouro, em som suave:
E a amorosa ave leva o contraponto.
Mas oh que conto e saudosa historia
Que na memoria aqui se m'offerece!
Se não m'esquece, ja deste lugar
Ouvi soar os valles algum dia,
E respondia o eco o nome em vão
N'hum coração, Belisa retumbando.
Estou cuidando como o tempo passa,
E quão escaça he toda alegre vida;
E quão comprida, quando he triste e dura.
Nesta 'spessura longo tempo amei:
Se m'enganei com quem do peito amava,
Não me pezava de ser enganada.{182}


Fui salteada, emfim, d'hum pensamento,
Que hum movimento tinha casto e são.
Conversação foi fonte dest'engano
Que, por meu dano, entrou com falsa côr.
Porque o amor na Nympha, que he segura,
Entra em figura de vontade honesta.
Mas que me presta agora dar desculpa?
Pois se houve culpa, foi do firme amor
Só, n'hum pastor, que nunca sol nem lũa,
Ou serra algũa, desde o Ibero ao Indo,
Outro tão lindo vírão, tão manhoso.
Nest'amoroso estado, e fé que tinha
Nest'alma minha tão secretamente,
Vivi contente, amando e encobrindo.
Elle fingindo mentirosos danos,
Que são enganos que não custão nada;
Tendo alcançada ja no entendimento
A fé e intento meu só nelle pôsto;
(Que logo o rosto mostra os corações,
E as affeições co'os olhos se praticão
Que mais publicão muito, que palavras)
Com suas cabras sempre á parte vinha,
Ond'eu mantinha os olhos do desejo.
Tu, manso Tejo, e tu, florído prado,
Do mais passado, emfim, que aqui não digo,
Sereis, m'obrigo, testimunho certo;
Pois descoberto vos foi tudo e claro.
Oh tempo avaro! oh sorte nunca igual!
Quão grande mal quereis á humana gente!
Porque hum contente estado assi trocastes?
Vós me tirastes do meu peito isento{183}

O pensamento honesto e repousado,
Ja dedicado ao côro de Diana;
Vós n'huma ufana vida me puzestes,
E alli quizestes que gozasse o dano
Do doce engano, que se chama amor,
Com cujo error passava o tempo ledo:
E vós tão cedo me tirais hum bem,
Que Amor ja tem impresso n'alma minha,
Despois qu'a tinha envolta em esperanças;
E com lembranças tristes me deixais?
Mal me pagais a fé que sempre tive.
Mas assi vive quem sem dita nace.
Mas ja a face alegre o sol esconde;
E não responde alguem a tantas mágoas,
Senão as ágoas, que dos olhos sahem.
As sombras cahem; vão-se as alimarias,
Fartas das várias hervas, seu caminho;
Buscão seu ninho os passaros sem dono:
Ja por o sono esquecem o comer.
Quero esquecer tambem tão doce historia,
Pois he memoria que traz mor cuidado.
Isto he passado; e se me deo paixão,
Os dias vão gastando o mal e o bem;
E não convém querer-me magoar
Do qu'emendar não posso ja com mágoas.
Nas claras ágoas deste rio brando,
Que vão regando o valle matizado,
Este trançado lavar quero emfim;
Que ja de mim m'esqueço co'a lembrança
Desta mudança, qu'esquecer não sei:
Bem qu'eu verei mudar a opinião,{184}


Pois homens são: a quem o esquecimento
Depressa faz mudar o pensamento.
            ALMENO.
  Se a vista não m'engana a phantasia,
Como ja m'enganou mil vezes, quando
Minha ventura enganos me soffria;
  Parece-me, que vejo estar lavando
Huma Nympha algum véo no claro Tejo,
Que se m'está Belisa figurando.
  Não póde ser verdade isto que vejo;
Que facilmente aos olhos se figura
Aquillo que se pinta no desejo.
  Oh acontecimento, qu'a ventura
Me dá para mor damno! Esta he, certo;
Que não he d'outrem tanta formosura.
  Se poderei fallar-lhe de mais perto?
Mas fugir-me-ha. Não póde ser; qu'o rio
Para acolá não tẽe caminho aberto.
  Oh temor grande! oh grande desvario,
Qu'a voz m'impede, e a lingua negligente
Assi m'está tornando, e o peito frio!
  De quanto me sobeja, estando ausente,
Que para lhe fallar sempre imagino,
Tudo me falta quando estou presente.
  Oh aspecto suave e peregrino!
Pois como? tão asinha assi s'esquece
Huma fé verdadeira, hum amor fino?
            BELISA.
  Oh altas semideas! pois padece
Em vosso rio a honra delicada
De quem tamanha fôrça não merece:{

185}
  Ou seja por vós, Nymphas, preservada;
Ou em arvore alguma, ou pedra dura
Me deixai velozmente transformada.
            ALMENO.
  Ah Nympha! não te mudes a figura:
Nem vós, deosas, queirais qu'eu seja parte
De se mudar tão rara formosura.
  Porqu'a quem falta a voz para fallar-te,
E a quem falta o despejo da ousadia,
Tambem faltarão mãos para tocar-te.
            BELISA.
  Que me queres, Almeno, ou que porfia
Foi a tua tão aspera comigo?
Minha vontade não to merecia.
  Se com amor o fazes, eu te digo,
Qu'amor, que tanto mal me faz em tudo,
Não póde ser amor, mas inimigo.
  Não es tu de saber tão falto e rudo,
Que tão sem siso amasses, como amaste.
            ALMENO.
Onde viste tu, Nympha, amor sisudo?
  Porque ja não te lembra que folgaste
Com meus tormentos tristes, e algum'hora
Com teus formosos olhos ja m'olhaste?
  Como t'esquece ja (gentil pastora)
Que folgavas de ler nos freixos verdes
O que de ti 'screvia cada hora?
  Porqu'a memoria tão á pressa perdes
Do amor que me mostravas, qu'eu não digo,
Se o vós, ó altos montes, não disserdes?
  E como te não lembras do perigo,{186}

A que só por m'ouvir t'aventuravas,
Buscando horas de sesta, horas d'abrigo?
  Co'a maçãa da discordia me tiravas;
Qu'a Venus, qu'a ganhou por formosura,
Tu, como mais formosa, lha ganhavas.
  E escondendo-te logo na'spessura,
Hias fugindo, como vergonhosa
Da namorada e doce travessura.
  Não era esta a maçãa d'ouro formosa
Com qu'encoberta assi d'astucia tanta
Cydippe s'enganou por cubiçosa,
  Nem a que o curso teve d'Atalanta;
Mas era aquella, com que Galathêa
O pastor captivou, como elle canta.
  Se más tenções puzerão nodoa fêa
Em nosso firme amor, d'inveja pura,
Porque pagarei eu a culpa alhea?
  Quem desta fé, quem dest'amor não cura,
Nunca teve sujeito o coração;
Queo firme amor com a alma eterna dura.
            BELISA.
  Mal conheces, Almeno, huma affeição;
Que s'eu desse amor tenho esquecimento,
Meus olhos magoados to dirão.
  Mas teu sobejo e livre atrevimento,
E teu pouco segredo, descuidando,
Foi causa deste longo apartamento.
  Vês as Nymphas do Tejo, que mudando
Me vão ja pouco a pouco, o claro gesto
N'outra mais dura fórma traspassando.
  Hum só segredo meu te manifesto:{

187}
Que te quiz muito em quanto Deos queria;
Mas de pura affeição, d'amor honesto.
  E pois de teus descuidos e ousadia
Nasceo tão dura e aspera mudança,
Fólgo; que muitas vezes to dizia.
  Fica-te embora, e perde a confiança
De ver-me nunca mais, como ja viste:
Que assi se desengana huma esperança.
            ALMENO.
  Oh duro apartamento! oh vida triste!
Oh nunca acontecida desventura!
Pois como, Nympha? assi te despediste?
  Assi s'ha d'ir tornando (ah sorte dura!)
Nesta sylvestre e aspera rudeza
Tão branda e excellente formosura?
  Tua nunca entendida gentileza,
E teus membros assi se transformárão,
Negando-se-lhe a propria natureza?
  Dest'arte os teus cabellos se tornárão
(Deixando ja seu preço ao ouro fino)
Em fôlhas, que a côr tẽe do que negárão?
  S'este consentimento foi divino,
Consinta-me tambem que perca a vida,
Antes que a mais m'obrigue o desatino.
  Pois se a fortuna sempre embravecida
Em meu tormento tanto se desmede,
Não viva mais hum'alma tão perdida.
  E vós, feras do monte, pois vos pede
Minha pena o remedio derradeiro,
Fartae ja de meu sangue vossa sêde.
  E vós, pastores rudos deste outeiro,{188}

Porque a todos, emfim, se manifeste
Que cousa he amor puro e verdadeiro;
  Á sombra deste funebre cypreste
Me fareis hum sepulcro sem arrêo
De boninas que o prado ameno veste.
  As desusadas musicas de Orphêo
Aqui me cantareis; e desta sorte
Não haverei inveja ao mausolêo.
  E porqu'a minha cinza se conforte,
Em vossos metros doces e suaves
As exequias direis de minha morte.
  Alli responderão as altas aves,
Não módulas no canto nem lascivas,
Mas de dor ora roucas, ora graves.
  Não correrão as águas fugitivas,
Alegres por aqui, mas saudosas,
Que pareça que vem dos olhos vivas.
  Nascerão por as praias deleitosas
Os asperos abrolhos em lugar
Dos roxos lirios, das pudicas rosas.
  Não trarão as ovelhas a pastar
De redor do sepulcro os guardadores;
Pois nada comerião de pezar.
  Virão os Faunos, guarda dos pastores,
Se morri por amores, perguntando;
Responderão os ecos: Por amores.
  Dos que por aqui forem caminhando,
Hum epitaphio triste se lerá,
Qu'esteja minha morte declarando.
  E no tronco de huma árvore estara,
N'huma rude cortiça pendurado{189}

Escripto co'huma fouce, e assi dirá:
  Almeno fui, pastor de manso gado,
Em quanto o consentio minha ventura,
De Nymphas e pastores celebrado.
  Se algum dia, por caso, na 'spessura
Se perder o amor e a affeição,
Tirem a pedra desta sepultura,
  E em figura de cinza os acharão.
ECLOGA IV.
INTERLOCUTORES.
FRONDOSO e DURIANO.
Cantando por hum valle docemente
Descião dous pastores, quando Phebo
No reino Neptunino se escondia:
De idade cada qual era mancebo;
Mas velho no cuidado, e descontente
Do que lh'elle causava parecia.
O que cada hum dizia
Lamentando seu mal, seu duro fado,
Não sou eu tão ousado,
Que o pretenda cantar sem vossa ajuda:
Porque se a minha ruda
Frauta deste favor vosso for dina,
Posso escusar a fonte Caballina.
  Em vós tenho Helicon, ten

ho Pegáso;{190}
Em vós tenho Calliope e Thalia;
E as outras sete irmãas, co'o fero Marte;
Em vós deixou Minerva sua valia;
Em vós estão os sonhos do Parnaso;
Das Pierides em vós s'encerra a arte.
Com qualquer pouca parte,
Senhora, que me deis d'ajuda vossa
Podeis fazer qu'eu possa
Escurecer ao sol resplandecente:
Podeis fazer que a gente
Em mi do grão poder vosso s'espante;
E que vossos louvores sempre cante.
  Podeis fazer que cresça d'hora em hora
O nome Lusitano, e faça inveja
A Esmirna, que d'Homero s'engrandece.
Podeis fazer tambem que o mundo veja
Soar na ruda frauta o que a sonora
Cithara Mantuana só merece.
Ja agora me parece,
Que podem começar os meus pastores
A cantar seus amores.
Porqu'inda que presentes não estejão
As qu'elles ver desejão,
Mudança de lugar, menos d'estado,
Não muda hum coração do seu cuidado.
  Ja deixava dos montes a altura,
E nas salgadas ondas s'escondia
O sol, quando Frondoso e Duriano,
Ao longo d'hum ribeiro, que corria
Por a mais fresca parte da verdura
Claro, suave e manso, todo o ano,{191}


Lamentando seu dano,
Vinhão ja recolhendo o manso gado.
Hum estava callado,
Em quanto hum pouco o outro se queixava;
Apos elle tornava
A dizer de seu mal o que sentia;
E em quanto este fallava, aquelle ouvia.
  Vinhão-se assi queixando aos penedos,
Aos sylvestres montes e á aspereza,
Que quasi de seus males se doião.
Alli as pedras perdião a dureza;
Alli correntes rios estar quedos,
Promptos ás suas queixas, parecião.
Somente as que podião
Estes males curar, pois os causavão,
O ouvido lhes negavão,
Por perderem de todo a esperança:
Mas elles, que mudança
D'amor com tantos damnos não fazião,
Com ellas fallando inda, assi dizião:
            FRONDOSO.
  Isto he o que aquella verdadeira
Fé, com que t'amei sempre, merecia,
Sem nunca te deixar hum só momento?
Como (cruel Belisa) t'esquecia
Hum mal, cuja esperança derradeira
Em ti só tinha pôsto o seu assento?
Não vias meu tormento?
Não vias tu a fé, com que t'amava?
Porque não t'abrandava
Est'amor, que me tu tão mal pagaste?{192}

Mas pois ja me deixaste
Co'a esperança de ti toda perdida,
Perca, quem te perdeo, tambem a vida.
            DURIANO.
  Se os males que por ti tenho soffrido
(Oh Silvana, em meus males tão constante!)
Quizesses que algum'hora te dissera;
Inda que, qual durissimo diamante,
Fôra o teu cruel peito endurecido,
Creio que a piedade te movêra.
Ja agora em branda cera
Os montes são tornados e os penedos;
E os rios, qu'estão quedos,
Sentírão meus suspiros, minhas queixas.
Tu só, cruel, me deixas,
Qu'es mais, que montes e penedos, dura,
E fugitiva mais qu'a fonte pura.
            FRONDOSO.
  Ond'está aquella falla, que sohia
Só com seu doce tom, que me chegava,
Avivar-me os espiritos cansados?
Onde está o olhar brando, que cegava
O sol resplandecente ao meio dia?
Ond'estão os cabellos delicados,
Que ao vento espalhados
Escurecião o ouro, a mi matavão;
E a quantos os olhavão,
Causavão tambem novos accidentes?
Porque, cruel, consentes
Qu'outro goze da gloria a mi devida?
Perca, quem te perdeo, tambem a vida.{

193}
            DURIANO.
  Nenhum bem vejo, que a meu mal espere,
Se não fosse esperar que morte dura
Me venha emfim a dar a saudade.
Vejo faltar-me a tua formosura;
A vontade me diz que desespere,
Contradiz-me a razão esta vontade.
Diz qu'em huma beldade,
Em quem mostrou o cabo a natureza,
Não ha tanta crueza,
Qu'hum tão constante amor desprezar queira,
E fé tão verdadeira;
Mas tu, que de razão jamais curaste,
Porqu'era dar-me a vida, ma tiraste.
            FRONDOSO.
  A quem, Belisa ingrata, t'entregaste?
A quem déste, cruel, a formosura,
Qu'a meu tormento só, só se devia?
Porqu'huma fé deixaste, firme e pura?
Porque tão sem respeito me trocaste
Por quem só nem olhar-te merecia?
O bem que t'eu queria,
E que não perderei se não por morte,
Não he de maior sorte,
Que quanto a cega gente estima e preza?
Só a tua crueza
Foi nisto contra mi endurecida.
Perca, quem te perdeo, tambem a vida.
            DURIANO.
  Levaste-me o meu bem n'hum só momento;
Levaste-me com elle juntamente{194}


De cobrá-lo jamais a confiança:
Deixaste-me em lugar delle sómente
Huma contínua dor, hum grão tormento,
Hum mal, de que não póde haver mudança.
Tu, qu'eras a esperança
Dos males que, cruel, tu me causaste,
De todo te trocaste,
Com Amor conjurada em minha morte.
Porém se a minha sorte
Consente que por ti seja causada,
Morte não foi mais bem-aventurada.
            FRONDOSO.
  Não nasceste d'alguma pedra dura;
Não te gerou alguma Tigre Hyrcana;
Não te criaste, não, entre a rudeza,
A quem, cruel, sahiste deshumana?
No ceo formada foi tal formosura,
Onde a mesma brandura he natureza.
Pois, logo, essa dureza
Donde teve princípio, ou a tomaste?
Porque, dura, engeitaste
De hum verdadeiro amor, que tu bem vias,
A fé, que conhecias,
Por outra de ti nunca conhecida?
Perca, quem te perdeo, tambem a vida.
            DURIANO.
  Vai-se co'o seu pastor o manso gado,
Porque d'amor entende aquella parte,
Qu'a natureza irracional lh'ensina.
O rustico leão sem algum'arte,
Do natural instincto só ensinado,{

195}
Aonde sente amor, logo se inclina.
E tu, que de divina
Não tens menos queVenus e Cupido,
Porque sequer co'o ouvido
Hum amor verdadeiro não soccorres?
Ah! porque te não corres
De que o leão te vença em piedade,
Se não te vence Venus na beldade?
            FRONDOSO.
  A mi não me faltava o que se preza
Entre os celestes deoses, que formárão
A tua mais que humana formosura:
Em mi os voluntarios ceos faltárão;
Em mi se perverteo a natureza
D'huma cruel formosa creatura.
Mas, pois, Belisa dura,
Que do mais alto ceo a nós vieste,
E em teu peito celeste
Hum tal contrário pôde aposentar-se,
Não he contrário achar-se
Tamanha fé tão mal agradecida.
Perca, quem te perdeo, tambem a vida.
            DURIANO.
  Por ti a noite escura me contenta;
Por ti o claro dia m'aborrece;
Abrolhos me parecem frescas flores;
A doce Philomela m'entristece:
Todo contentamento m'atormenta
Com a contemplação de teus amores;
As festas dos pastores,
Que podem alegrar toda a tristeza.{196}

Em mi tua crueza
Faz que o mal cada hora vá dobrando.
Oh cruel! até quando
Ha de durar em ti tal pensamento,
E a vida em mi, que soffre tal tormento?
            FRONDOSO.
  Fugiste d'hum amor tão conhecido,
Fugiste d'huma fé tão clara e firme;
E seguiste a quem nunca conheceste,
Não por fugir d'amor, mas por fugir-me;
Pois bem vês, quanto eu tinha merecido
Esse amor que tu a outro concedeste.
A mi não me fizeste
Alguma sem razão; que bem conheço
Que tanto não mereço:
Fizeste-a áquelle bem firme e sincero
Que sabes que te quero,
Em lhe tirar a gloria merecida.
Perca, quem te perdeo, tambem a vida.
            DURIANO.
  Cresce cad'hora em mi mais o cuidado,
E vejo qu'em ti cresce juntamente
Cad'hora mais de mi o esquecimento.
Oh Silvana cruel! porque consente
Esse peito formoso e delicado
Que s'esqueça hum tão aspero tormento?
Tal aborrecimento
Merece hum capital teu inimigo:
Não eu, que só comtigo
Estou contente, e nada mais desejo,
Se algum'hora te vejo.{

197}
Tu es hum só meu bem, huma só gloria,
Que nunca se m'aparta da memoria.
            FRONDOSO.
  Olhos, que vírão tua formosura;
Vida, que só de ver-te se sostinha;
Vontade, qu'em ti'stava transformada;
Alma, qu'ess'alma tua em si só tinha,
Tão unida comsigo, quanto a pura
Alma co'o debil corpo está liada;
E que agora apartada
Te vê de si com tal apartamento,
Qual será seu tormento?
Qual será aquelle mal que tẽe presente?
Maior he que o que sente
O triste corpo em última partida.
Perca, quem te perdeo, tambem a vida.
            DURIANO.
  Regendo em outro tempo o manso gado,
Tangendo a minha frauta nestes vales,
Passava a doce vida alegremente:
Não sentia o tormento destes males;
Menos sentia o mal deste cuidado;
Que tudo então em mi era contente.
Agora não somente
Desta vida suave m'apartaste.
Mas outra me deixaste,
Que ao duro mal que sinto ca no peito,
Me tẽe ja tão affeito,
Que sinto ja por gloria a minha pena,
Por natureza o mal, que me condena.{198}
            FRONDOSO.

  Juntamente viver compridos anos,
Os fados te concedão, que quizerão
Ajuntar-te com tal contentamento.
Pois os bens para ti todos nascêrão,
Nascêrão para mi todos os danos,
Logra tu tua gloria, eu meu tormento.
Nenhum apartamento,
Belisa, me fara deixar d'amar-te;
Porqu'em nenhuma parte
Poderás nunca estar sem mi hum'hora.
Consente pois agora,
Qu'em pago desta fé tão conhecida,
Perca, quem te perdeo, tambem a vida.
            DURIANO.
  Veja-t'eu, crua, amar quem te desame,
Porque saibas que cousa he ser amada
De quem tanto aborreces e desprezas.
Veja-t'eu ser ainda desprezada
De quem tu mais desejas que te ame,
Porque sintas em ti tuas cruezas,
Sintas tuas durezas,
E quanto póde o seu cruel effeito
N'hum coração sujeito.
Porqu'em sentindo o mal, qu'eu sinto agora,
Espero qu'algum'hora
Faça o teu proprio mal de mi lembrar-te,
Ja que não pôde o meu nunca abrandar-te.
            FRONDOSO.
  Mil annos de tormento me parece
Cad'hora que sem ti, sem esperança{

199}
Vivo de poder mais tornar a ver-te.
A vida só me dá tua lembrança;
A vida sôbre tudo m'entristece;
A vida antes perdêra, que perder-te.
Mas eu se, por querer-te
Hum bem qu'em ti só tẽe seu firme assento,
Padeço tal tormento,
Qu'esperará de ti quem te desama,
Ou quem ao menos te ama
Com algum falso amor, ou fé fingida?
Perca, quem te perdeo, tambem a vida.
            DURIANO.
  Então, cruel, verás se te merece
Com tamanho desprêzo ser tratada
Hum'alma, que d'amar-te só se preza.
Mas como poderás ser desprezada,
Se o menos qu'em ti fóra se parece,
Póde abrandar dos montes a aspereza?
Porque se a natureza
Em ti o remate poz da formosura,
Qual será a pedra dura,
Qu'a teu valor resista brandamente?
Que fará a fraca gente,
Se ao humano parecer não se defende,
E a mesma Venus deosa ao teu se rende?
            FRONDOSO.
  E pois fé verdadeira, amor perfeito,
Tormento desigual e vida triste,
Junta com hum contino soffrimento,
E hum mal, em que o mal todo, emfim, consiste,
Não puderão mover teu duro peito{200}


A mostrares sequer contentamento
De ver o meu tormento;
Antes tudo soberba desprezaste,
E a outrem t'entregaste
Por nada me ficar em qu'esperasse,
Senão quando acabasse
A vida, a pezar meu, ja tão comprida,
Perca, quem te perdeo, tambem a vida.
            DURIANO.
  Longo curso de tempo, e apartado
Lugar a hum coração, que vive entregue,
Não podem apartar de seu intento.
Porque foges, cruel, a quem te segue?
Não vês que teu fugir he escusado,
Pois sem mim não estás hum só momento?
Nenhum apartamento,
Inda que a alma do corpo se m'aparte,
Poderá ja ausentar-te
Dest'alma triste, que continuamente
Em si te tẽe presente.
Torna, cruel; não fujas a quem t'ama:
Vem a dar vida, ou morte a quem te chama.
  A noite escura, triste e tenebrosa,
Que ja tinha estendido o negro manto,
D'escuridade a terra toda enchendo,
Fez pôr a estes pastores fim ao canto,
Que ao longo da ribeira deleitosa
Vinhão seu manso gado recolhendo.
Se aquillo, qu'eu pretendo
Deste trabalho haver, que he todo vosso,
Senhora, alcançar posso;{201}

Não será muito haver tambem a gloria
E o louro da victoria,
Que Virgilio procura e haver pretende,
Pois o mesmo Virgilio a vós se rende.
ECLOGA V.
Falla hum só pastor.
A quem darei queixumes namorados
Do meu pastor queixoso e namorado?
A branda voz, suspiros magoados,
A causa porque n'alma he magoado?
De quem serão seus males consolados?
Quem lhe fara devido gasalhado?
Só vós, Senhor famoso e excellente,
Especial em graças entr'a gente.
  Por partes mil lançando a phantasia,
Busquei na terra estrella, que guiasse
Meu rudo verso; em cuja companhia
A santa piedade sempre andasse
Luzente e clara, como a luz do dia,
Que o rudo engenho meu m'allumiasse;
E em vossas perfeições, grão Senhor, vejo
Ainda além cumprido o meu desejo.
  A vós se dem, a quem junto se ha dado
Brandura, mansidão, engenho e arte,
D'hum esprito divino acompanhado,{202}


Dos sobrehumanos hum em toda parte:
Em vós as graças todas se hão juntado;
De vós em outras partes se reparte.
Sois claro raio, sois ardente chama;
Gloria e louvor do tempo, azas da fama.
  Em quanto eu apparelho hum novo esprito,
E voz de cysne tal, que o mundo espante,
Com que de vós, Senhor, em alto grito
Louvores mil em toda parte cante;
Ouvi o canto agreste em tronco escrito,
Entre vaccas e gado petulante:
Que quando tempo for, em melhor modo
Ha de m'ouvir por vós o mundo todo.
  As vãas querellas, brandas e amorosas,
Sejão de vós tratadas brandamente;
Verdades d'alma pouco venturosas,
Sahidas com suspiro vivo e ardente:
Em vossas mãos s'entregão valerosas,
Porqu'ao futuro vivão entr'a gente,
Chorando sempre a antigua crueldade,
Para mover as almas a piedade.
  Ja declinava o sol contra o Oriente,
E o mais do dia ja era passado,
Quando o pastor co'o grave mal que sente,
Por dar allívio em parte a seu cuidado,
Se queixa da pastora docemente,
Cuidando de ninguem ser escutado.
Eu que o escutei, n'huma árvore escrevia
As mágoas que cantou; e assi dizia:
  Ou tu do monte Pindaso es nascida,
Ou marmor te pario formosa e dura:{203}


Não póde ser que fosse concebida
Dureza tal de humana creatura:
Ou quiçá qu'es em pedra convertida,
Ou tens da natureza tal ventura;
Porém não fez em ti boa impressão,
Só de marmor tornar-te o coração.
  Ja, ja com minha voz rouca e chorosa
A gente mais austera moveria;
E com esta corrente lagrimosa
Os tigres em Hyrcania amansaria.
Se não fosses cruel, quanto formosa,
Meu longo suspirar t'abrandaria:
Mas suspirar por ti, mas bem querer-te,
Que fazem senão mais endurecer-te?
  Se deixáras vencer a crueldade
De tua tão perfeita formosura;
Hum pouco víras bem minha vontade,
E víras a fé minha, limpa e pura,
Por ventura, que houveras ja piedade,
E tivera eu quiçá melhor ventura:
Mas nunca achou igual tua belleza,
Se não se foi em ti tua dureza.
  Ja hum peito abrandára, que não sente,
Este meu grave mal, segundo he forte;
Se descêra do inferno ao Polo ardente,
A piedade movêra a propria morte.
Pois se huma gotta d'agua brandamente
Torna brando hum penedo, duro e forte,
Tantas lagrimas minhas não farão
Hum pequeno sinal n'hum coração?
  Na testa fonte viva tenho d'ágoa,{204}

Que por meus olhos tristes se derrama;
E no peito de fogo viva fragoa,
Que tudo em si converte, tudo inflama:
Amor em de redor, por maior mágoa,
Voando mais accende a ardente chama.
Se queres ver se ardentes são seus tiros,
Ólha se são ardentes meus suspiros.
  Quando grita e rumor grande se sente,
Porque fogo se ateia em casa, ou torre,
De pura compaixão vai toda a gente,
Ágoa ao fogo gritando; e cada hum corre.
Dest'arte anda o meu peito em chamma ardente,
E com a ágoa dos olhos se soccorre;
Que quem me abraza, outra ágoa me defende,
Porque com esta o fogo mais se accende.
  Quando vemos que sahe lá no Oriente
O sol, seu curso antigo começando,
Formoso, intenso, puro, refulgente,
O monte, o campo, o mar, tudo alegrando;
Quando de nós s'esconde no Ponente,
E em outras terras sahe, allumiando,
Sempre, em quanto vai dando ao mundo giro,
Chórão por ti meus olhos, e eu suspiro.
  Caminha o dia todo o caminhante,
E, emfim, lhe chega a noite, em que descança;
Trabalha na tormenta o navegante,
Traz-lhe a clara manhãa feliz bonança;
Recobra o fructo fertil e abundante
Da terra o lavrador, se nella cança:
Mas eu de meu cuidado e mal tão forte
Tormento espero só, só crua morte.{205}
  D'ouvir

meu damno as rosas matutinas,
Condoidas se cerrão, s'emmurchecem;
Com meu suspiro ardente as côres finas
Perdem o cravo, o lyrio, e não florecem.
Co'a roxa aurora as pallidas boninas,
Em vez de se alegrarem, s'entristecem:
Deixão seu canto Progne e Philomena;
Que mais lhes doe, que a sua, a minha pena.
  Responde o monte concavo a meus ais,
E tu como aspid, cerras-lhe o ouvido;
Os indomitos feros animais,
Sem humano sentir, mostrão sentido:
Mas em ti minhas dores desiguais
Nunca movem o peito endurecido:
Por muito que te chame, não respondes;
E quanto mais te busco, mais t'escondes.
  Naquella parte donde costumavas
Apascentar meus olhos e teu gado;
Alli donde mil vezes me mostravas,
Qu'era o pastor de ti mais desejado,
Vezes mil te busquei, por ver se davas
Algum breve descanso a meu cuidado.
Busco-te em vão no valle, em vão no monte,
Qual o ferido cervo busca a fonte.
  Este lugar de ti desamparado,
Com cujas sombras frias ja folgaste,
Agora triste, escuro he ja tornado;
Que todo o bem comtigo nos levaste.
Eras tu nosso sol mais desejado;
Não temos luz, despois que nos deixaste.{206}

Torna, meu claro sol; torna, meu bem:
Qual he o Josué que te detém?
  Despois que deste valle t'apartaste,
Não pasce ja algum gado, com seccura;
Seccou-se o campo, des que lhe negaste
Dos teus formosos olhos a luz pura;
Seccou-se a fonte, donde ja te olhaste,
Quando menos, que agora, aspera e dura;
Nega sem ti a terra, ouvindo gritos,
Ás cabras pasto e leite a os cabritos.
  Sem ti, doce cruel minha inimiga,
A clara luz, escura me parece:
Este ribeiro, quando a dor m'obriga,
Com meu chorar por ti contino crece.
Não ha fera, a que a fome não persiga;
Algum prado sem ti ja não florece:
Cegos estão meus olhos; nada vem,
Porque não podem ver seu claro bem.
  O campo, como d'antes, não s'esmalta
De boninas azues, brancas, vermelhas;
Falta ágoa ao pasto, e sentem d'ágoa a falta
As candidas pacíficas ovelhas:
Bem conhecem tambem que o ceo lhes falta
As doces e solícitas abelhas:
Com lagrimas, que manão dos meus olhos,
A terra nos produz duros abrolhos.
  Torna pois ja, pastora, ao nosso prado,
Se restituir-lhe queres a alegria:
Alegrarás o valle, o campo, o gado,
E aquelle espelho teu da fonte fria.
Torna, torna, meu sol tão desejado,{

207}
Faras a noite escura, claro dia;
E alegra ja esta vida magoada,
Em que só tua ausencia he Parca irada.
  Vem, como quando o raio transparente
Deste nosso horizonte, qu'escondido,
Deixa hum certo temor á mortal gente,
Causado de ver o Orbe escurecido;
E quando torna a vir claro e luzente,
Alegra o mundo todo entristecido:
Que assi he para mi tua luz pura
Claro sol, como a ausencia noite escura.
  Mas tu 'squecida ja do bem passado,
E do primeiro amor, que me mostraste,
Teu coração de mi tẽes apartado,
Não menos que do valle t'apartaste.
Não te quero eu a ti mais qu'a meu gado?
Não sou eu mesmo aquelle que tu amaste?
Onde o meu êrro viste, ou desvario,
Que pôde merecer-te hum tal desvio?
  Bem vês que por Amor se move tudo,
E que delle não ha quem seja isento;
O mais simple animal, mais baixo e rudo,
O demais levantado pensamento:
Debaixo d'ágoa fria o peixe mudo
Tambem lá tẽe d'ardor seu movimento.
Pois as aves, que no ar cantando vôão,
Não menos humas d'outras s'affeiçôão.
  A musica do leve passarinho
Que sem concêrto algum sólta e derrama,
De hum raminho saltando a outro raminho,
Mostra que por amor suspira e chama.{208}

Em quanto no secreto amado ninho
Não acha aquelle, que só busca e ama,
No canto, a nós alegre, triste chora,
Porque teme perder a quem namora.
  A fera, que he mais fera, e o leão,
Sempre acha outro leão, sempre outra fera,
Em quem possa empregar huma affeição,
Que o conversar no peito seu lhe gera:
Tambem sabe sentir sua paixão,
Tambem suspira, morre, desespera;
Acena, salta, brada, ferve e geme;
E não temendo a nada, a Amor só teme.
  O cervo, qu'escondido e emboscado,
Temendo ao cobiçoso caçador,
Está na selva, monte, bosque, ou prado,
Alli donde anda e vive, vive amor.
De temor e d'amor acompanhado,
Com justa causa amor tẽe e temor:
Temor a quem para feri-lo vinha,
Amor a quem ja, ja ferido o tinha.
  Pois se a fera insensivel, que não sente,
Tambem sente d'Amor a frecha dura,
Porqu'a ti não t'abranda hum fogo ardente,
Que procede da tua formosura?
Porqu'escondes a luz do sol á gente,
Que nesses olhos trazes bella e pura?
Mais pura, mais suave, mais formosa,
Que, lyrio, que jasmim, que cravo e rosa.
  Póde ser, se me visses, que sentiras
Ver liquidar hum peito em triste pranto;
E bem pouco fizeras, se me viras,{

209}
Pois eu só por te ver suspiro tanto:
As mágoas, os suspiros, que m'ouviras
Te puderão mover a grande espanto,
A dor, a piedade, a sentimento,
E a mais, que para mais he meu tormento.
  Os pensamentos vãos, que o vento leve:
O suspirar em vão tambem ao vento;
Hum esperar á calma, á chuva, á neve,
E nunca poder ver-te hum só momento;
Tormento he, que somente a ti se deve.
E se póde inda haver maior tormento,
Quem te vio, e se vê de ti ausente,
Muito mais passará mais levemente.
  Faz mossa a pedra dura em sua dureza
Com a ágoa que lhe toca brandamente;
Abranda o ferro forte a fortaleza,
Se lhe toca tambem o fogo ardente:
Em ti só desconheço a natureza;
Que, a ser de pedra ou ferro totalmente,
Ja teu peito cruel fôra desfeito
Das ágoas e das chammas do meu peito.
  Quando a formosa Aurora mostra a fronte,
Alegra toda a terra, vendo o dia;
Quando Phebo apparece no horizonte,
Manifesta tambem grande alegria;
Contente pasce o gado ao pé do monte,
Contente a beber vai na fonte fria:
Está tudo contente, alegre tudo;
Eu só, só pensativo, triste e mudo.
  Se ja d'alma e do corpo tens a palma,
E do corpo sem alma não tens dó,{210}


Ha dó do corpo só, qu'está sem alma,
Pois sem alma não vive o corpo só.
Nas chammas e no ardor, no fogo e calma,
Na affeição, no querer eu sou hum só:
Não acharás vontade tão captiva;
Nem outra como a tua tão esquiva.
  Se te apartas por não ouvir meu rôgo,
Onde estiveres te hei d'importunar:
Postoque vás por ágoa, ferro, ou fogo,
Comtigo em toda parte m'has d'achar;
Que o fogo em que ardo, e a ágoa em que m'affogo,
Emquanto eu vivo for, hão de durar;
Pois o nó, que m'enlaça, he de tal sorte,
Que não se ha de soltar em vida, ou morte.
  Neste meu coração sempr'estaras,
Emquanto a alma estiver com elle unida:
Tambem o meu esprito possuirás
Despois que a alma do corpo for partida.
Por mais e mais que faças, não faras
Que deixe o amar-te nesta e ess'outra vida:
Impossivel sera qu'eternamente
Ausente estês de mim, estando ausente.
  Cá m'acompanhará vossa memoria,
Se o rio, que se diz do esquecimento,
Da minha não borrar tão longa historia,
Tão grave mal, tão duro apartamento.
Até quando vos veja entrar na gloria,
Viverei n'hum contino sentimento:
E ainda então vereis (s'isto ser possa)
Esta minh'alma lá servir a vossa.
  Aqui com grave dor, com triste accento,{

211}
Deo o triste pastor fim a seu canto:
Co'o rosto baixo e alto o pensamento,
Seus olhos começárão novo pranto:
Mil vezes parar fez no ar o vento,
E apiedou no ceo o coro santo:
As circumstantes sylvas s'inclinárão,
Condoidas das mágoas qu'escutárão.
  Com hũa mão na face, reclinado,
Tão enlevado em sua dor estava,
Que, como em grave somno sepultado,
Não via que ja o sol no mar entrava.
Berrando andava em roda o manso gado,
Que o seguro curral ja desejava:
Nas covas as raposas, e em seus ninhos
Se recolhem os simples passarinhos.
  Ja sôbre hum sêcco ramo estava pôsto
O mocho com funesto e triste canto:
Ao som delle o pastor ergueo o rosto,
E vio a terra envolta em negro manto.
Quebrando então o fio de seu gôsto,
E o fio não quebrando de seu pranto,
Por não se descuidar de seu cuidado,
Levou para os curraes o manso gado.{212}

ECLOGA VI
INTERLOCUTORES
AGRARIO, Pastor. ALICUTO, Pescador.
A rustica contenda desusada
Entr'as Musas dos bosques, das areias,
De seus rudos cultores modulada;
  A cujo som attonitas e alheias
Do monte as brancas vaccas estiverão,
E do rio as saxatiles lampreias;
  Desejo de cantar. Que se movêrão
Os troncos ás avenas dos pastores,
E ja sylvestres brutos suspendêrão.
  Não menos o cantar dos pescadores
As ondas amansou do fundo pégo,
E fez ouvir os mudos nadadores.
  E se por sustentar-se o moço cego
Nos trabalhos agrestes a alma inflama,
O que he mais proprio no ocio e no socêgo;
  Mais maravilhas dando á voz da fama,
No mesmo mar undoso e vento frio
Brazas roxas accende a roxa flama.
  Vós, ó ramo d'hum Tronco alto e sombrio,
Cuja frondente coma ja cobrio
De Luso todo o gado e senhorio;
  E cujo são madeiro ja sahio
A lançar a forçosa e larga rede
No mais remoto mar que o m

undo vio;{213}
  E vós, cujo valor tão alto excede,
Que, a cantá-lo com voz alta e divina,
A fonte do Parnaso move a sêde;
  Ouvi da minha humilde çanfonina
A harmonia, que vós ja levantais
Tanto, que de vós mesmo a fazeis dina.
  Mas se agora que affabil m'escutais,
Não ouvirdes cantar com alta tuba
O que vos deve o mundo, que dourais;
  E se os Reis avós vossos, que de Juba
Os Reinos debellárão, não ouvis
Que nas azas do excelso verso suba;
  Se não sabem as frautas pastoris
Pintar de Toro os campos semeados
D'armas e corpos fortes e gentis;
  Por hum Moço animoso sustentados,
Contra o indomito Rei de toda Hespanha,
Contra a fortuna vãa e injustos fados:
  Hum Moço, cujo esfôrço, brio e manha,
Do Olympo fez descer o duro Marte,
E dar-lhe a quinta esphera, que acompanha;
  Se não sabem cantar a menor parte
Do sapiente peito e grão conselho,
Que pôde, ó Reino illustre, descansar-te;
  Peito, que ao douto Apollo faz, vermelho,
Deixar o sacro Monte e as nove Irmãas,
Porque a elle se affeitem como a espelho;
  Saberão bem cantar, em nada vãas,
D'Alicuto as contendas e d'Agrario;
Hum d'escamas coberto, outro de lãas.
  Vereis, Duque sereno, o estylo vário,{214}

A nós novo, mas n'outro mar cantado
De hum, que só foi das Musas secretario:
  O pescador Sincero, que amansado
Tẽe o pégo de Prochyta co'o canto
Por as sonoras ondas compassado.
  Deste seguindo o som, que póde tanto,
E misturando o antigo Mantuano,
Façamos novo estylo, novo espanto.
  Partira-se do monte Agrario insano
Para onde a fôrça só do pensamento
Lh'encaminhava o lasso pêzo humano.
  Embebido em hum longo esquecimento
De si, e do seu gado e pobre fato,
Apos hum doce sonho e fingimento,
  Rompendo as sylvas horridas do mato,
Vai por cima d'outeiros e penedos,
Fugindo, emfim, de todo humano trato.
  Ante os seus olhos leva os olhos ledos
Da branca Dinamene, qu'enverdece
Só co'o meneo valles e rochedos.
  Ora se ri comsigo, quando tece
Na phantasia algum prazer fingido;
Ora falla; ora mudo s'entristece.
  Qual a tenra novilha, que corrido
Tẽe montanhas fragosas e espessuras,
Por buscar o cornigero marido;
  E cansada nas humidas verduras
Cahir se deixa ao longo d'hum ribeiro,
Ja quando as sombras vem cahindo escuras;
  E nem co'a noite ao valle seu primeiro
Se lembra de tornar, como sohia,{215}


Perdida por o bruto companheiro:
  Tal Agrario chegado, emfim, se via
Onde o grão pégo horrisono suspira
N'huma praia arenosa, humida e fria.
  Tanto que ao mar estranho os olhos vira,
Tornando em si, de longe ouvio tocar-se
De douta mão não vista e nova lira.
  Fez-lhe o som desusado desviar-se
Para onde mais soava, desejando
D'ouvir e conversar, e de provar-se.
  Muito não tinha proseguido, quando
Em a concavidade d'hum penedo,
Que pouco a pouco fôra o mar cavando,
  Topou hum pescador, que prompto e quedo,
N'huma pedra assentado, brandamente
Tangendo, faz o mar sereno e ledo.
  Mancebo era d'idade florecente,
Pescador grande do alto, conhecido
Por o nome de toda humida gente:
  Alicuto se chama: que perdido
Era por a formosa Lemnoria;
Nympha que tẽe o mar ennobrecido.
  Por ella as redes lança noite e dia;
Por ella as ondas tumidas despreza;
Por ella soffre o sol e a chuva fria.
  Co'o seu nome mil vezes a braveza
D'irados ventos amansou co'o verso,
Que remove das rochas a dureza.
  E agora em som de voz, suave e terso,
Está seu nome aos ecos ensinando
Por estylo do agreste som diverso.{216}

  Ouvindo Agrario, attonito, affroxando
Da phantasia hum pouco seu cuidado,
Suspenso esteve os numeros notando.
  Mas Alicuto, vendo-se estorvado
Por hum pastor da musica divina,
O rosto levantou bem socegado,
  E disse assi: Vaqueiro da campina,
Que vens buscar ás arenosas praias,
Onde a bella Amphitrite só domina?
  Que razão ha, pastor, para que saias
A este nosso escamoso e vil terreno
Dos teus floridos myrtos e altas faias?
  Pois s'agora o mar vês brando e sereno,
E estender-se estas ondas por a areia,
Amansadas das mágoas, com que peno,
  Logo verás o como desenfreia
Eolo o vento por o mar undoso,
De sorte que Neptuno se receia.
  Responde Agrario: Oh musico e amoroso
Pescador! eu não venho a ver o lago
Bravo e quieto, ou vento brando e iroso;
  Mas o meu pensamento, com que apago
As flammas ao desejo, me trazia
Sem ouvir e sem ver, suspenso e vago:
  Até que a tua angelica harmonia
M'acordou, vendo o som, com que aqui cantas
A tua perigosa Lemnoria.
  Mas se de ver-me cá no mar t'espantas,
Eu m'espanto tambem do estylo novo
Com que as ondas horrisonas quebrantas.
  Porém se com verdade o louvo e approvo,{217}

Desejo de o provar contra o sylvestre
Antigo pastoril, qu'eu mal renóvo.
  E tu, que no tocar pareces mestre,
Bem julgarás se ha clara differença
Entr'o canto maritimo e o campestre.
  Não ha (disse Alicuto) em mi detença:
Alvorôço antes ha, por mais que veja
Que a tua confiança só me vença.
  Mas, porque saibas que nenhuma inveja
Os pescadores temos aos pastores
Do som que pelo mundo se deseja,
  Toma a lyra na mão, que os moradores
Do vitreo fundo vendo estou juntar-se
Para ouvir nossos rusticos amores.
  Bem vês por essa praia presentar-se
Nas conchas vária côr á vista humana;
E o mar vir por entr'ellas e tornar-se.
  Socegada do vento a furia insana,
Encrespa brandamente o ameno rio,
Que seu licor aqui mistura e dana.
  Estepenedo concavo e sombrio,
Que de cangrejos ves estar coberto,
Nos dá abrigo do sol, quieto e frio.
  Tudo nos mostra, emfim, repouso certo,
E nos convida ao canto, com que os mudos
Peixes sahem ouvindo ao ar aberto.
  Assi se desafião estes rudos
Poetas, nos officios discrepantes;
Nos engenhos porém subtis e agudos.
  Eis ja mil companheiros circumstantes{218}

Estavão para ouvir, e apparelhavão
Ao vencedor os premios semelhantes.
  As bem sonantes lyras se tocavão;
Agrario começava, e da harmonia
Os pescadores todos s'admiravão;
E dest'arte Alicuto respondia.
            AGRARIO.
  Vós semicapros deoses do alto monte,
Faunos longevos, Satyros, Sylvanos;
E vós, deosas do bosque e clara fonte,
E dos troncos que vivem largos anos;
Se tendes prompta hum pouco a sacra fronte
A nossos versos rusticos e humanos,
Ou me dae ja a capella de loureiro,
Ou penda a minha lyra d'hum pinheiro.
            ALICUTO.
  Vós humidas deidades deste pégo,
Tritões ceruleos, Próteo, com Palemo;
Vós, Nereidas do sal em que navego,
Por quem do vento as furias pouco temo;
Se ás vossas sacras aras nunca nego
O congro nadador na pá do remo,
Não consintais, que a musica marinha
Vencida seja aqui na lyra minha.
            AGRARIO.
  Pastor se fez hum tempo o moço louro,
Que do sol as carretas move e guia;
Ouvio o rio Amphriso a lyra d'ouro,
Que o seu claro inventor alli tangia.
Io foi vacca; Jupiter foi touro:
Mansas ovelhas junto d'ágoa fria{219}


Guardou formoso Adonis; e tornado
Em bezerro Neptuno foi ja achado.
            ALICUTO.
  Pescador ja foi Glauco, e deos agora
He do mar; e Protêo Phocas guarda.
Nasceo no pégo a deosa, que he senhora
Do amoroso prazer, que sempre tarda.
Se foi bezerro o deos, que cá se adora,
Tambem ja foi delfim. Se se resguarda,
Vê-se que os moços pescadores erão,
Que o escuro enigma ao primo Vate derão.
            AGRARIO.
  Formosa Dinamene, se dos ninhos
Os implumes penhores ja furtei
Á doce Philomela; e dos murtinhos
Para ti (fera!) as flores apanhei;
E se os crespos madronhos nos raminhos
Com tanto gôsto ja te presentei,
Porque não dás a Agrario desditoso
Hum só revolver d'olhos piedoso?
            ALICUTO.
  Para quem trago d'ágoa em vaso cavo
Os curvos camarões vivos saltando?
Para quem as conchinhas ruivas cavo
Na praia, os brancos buzios apanhando?
Para quem de mergulho no mar bravo
Os ramos de coral vou arrancando,
Senão para a formosa Lemnoria,
Que co'hum só riso a vida me daria?
            AGRARIO.
  Quem vio o desgrenhado e crespo Inverno,{220}

D'atras nuvens vestido, horrido e feio,
Ennegrecendo á vista o ceo superno,
Quando os troncos arranca o rio cheio;
Raios, chuvas, trovões, hum triste inferno,
Que ao mundo mostra hum pallido receio:
Tal o amor he cioso, a quem suspeita
Que outrem de seus trabalhos se aproveita.
            ALICUTO.
  Se alguem vê, se alguem ouve o sibilante
Furor lançando flammas e bramidos,
Quando as pasmosas serras traz diante,
Horrido aos olhos, horrido aos ouvidos:
A braços derribando o ja nutante
Mundo, co'os elementos destruidos:
Assi me representa a phantasia
A desesperação de ver hum dia.
            AGRARIO.
  Minha alva Dinamene, a primavera,
Que os deleitosos campos pinta e veste,
E rindo-se huma côr aos olhos gera,
Qu'em terra lhes faz ver o Arco celeste;
As aves, as boninas, a verde hera,
E toda a formosura amena agreste
Não he para os meus olhos tão formosa,
Como a tua, que abate o lirio e rosa.
            ALICUTO.
  As conchinhas da praia, que presentão
A côr das nuvens, quando nasce o dia;
O canto das Sirenas, que adormentão;
A tinta, que no Murice se cria;
O navegar por ondas, que se assentão{221}

Co'o brando bafo, com que o sol s'enfria,
Não podem, Nympha minha, assi aprazer-me,
Como o ver-te, se em tanto chego a ver-me.
            AGRARIO.
  A deosa, que na Lybica lagôa
Em fórma virginal appareceo,
Cujo nome tomou, que tanto sôa,
Os olhos bellos tẽe da côr do ceo:
Garços os tẽe; mas huma, que a corôa
Das formosas do campo mereceo,
Da côr do campo os mostra graciosos.
Quem diz, que não são estes os formosos?
            ALICUTO.
  Perdoem-me as deidades; mas tu, diva,
Que no liquido marmore es gerada,
A luz dos olhos teus, celeste e viva,
Tẽes por vício amoroso atravessada:
Nós petos lhe chamâmos; mas quem priva
De luz o dia, baixa e socegada
Traz a dos seus nos meus, qu'eu o não nego;
E com toda esta luz sempre estou cego.
  Assi cantavão ambos os cultores
Do monte e praia, quando os atalhárão;
A hum pastores, a outro pescadores.
  E quaesquer a seu Vate coroárão
De capellas idoneas e formosas,
Que as Nymphas lhes tecêrão e ordenárão:
  A Agrario de murtinhos e de rosas;
A Alicuto d'hum fio de torcidos
Buzios, e conchas ruivas e lustrosas.
  Estavão n'ágoa os peixes embebidos{

222}
Com as cabeças fóra; e quasi em terra
Os musicos delfins estão perdidos.
  Julgavão os pastores que na serra
O cume e preço está do antigo canto;
Que quem o nega, contra as Musas erra.
  Dizem os pescadores que outro tanto
Tẽe na sonora frauta, quanto teve
O monte pastoril da antigua Manto.
  Mas ja o pastor d'Admeto o carro leve
Molhava n'ágoa amara, e compellia
A recolher a roxa tarde e breve:
  E foi fim da contenda o fim do dia.
ECLOGA VII.
INTERLOCUTORES.
SATYRO I. SATYRO II.
As doces cantilenas, que cantavão
Os semicapros deoses, amadores
Das Napêas, que os montes habitavão,
  Cantando escreverei: que se os amores
A sylvestres deidades maltratárão,
Ja ficão desculpados os pastores.
  Vós, Senhor Dom Antonio, aonde achárão
O claro Apollo e Marte hum ser perfeito,
Em quem suas altas mentes

assinárão;{223}
  Se o meu engenho he rudo, ou imperfeito,
Bem sabe onde se salva, pois pretende
Levantar com a causa o baixo effeito.
  Em vós minha fraqueza se defende;
Em vós instilla a fonte do Pegáso,
O que o meu canto por o mundo estende.
  Vêdes que as altas Musas do Parnaso
Cantando vos estão na doce lira,
Tomando-me das mãos tão alto caso.
  Vêdes o louro Apollo, que me tira
De louvar vossa estirpe, e escurece
O que a vosso louvor meu canto aspira.
  Ou por me haver inveja me fallece,
Ou por não ver soar na frauta ruda
O que a sonora cithara merece.
  Pois sei dizer, Senhor, que a lingua muda,
Em quanto Progne triste o sentimento
Da corrompida irmãa co'o pranto ajuda;
  E em quanto Galatea ao manso vento
Sólta os cabellos louros da cabeça,
E Tityro nas sombras faz assento;
  E em quanto flor aos campos não falleça,
(Se não recebeis isto por affronta)
Fará que o Douro e o Ganges vos conheça.
  E ja que a lingua nisto fica pronta,
Consenti que a minha Ecloga se conte,
Em quanto Apollo as vossas cousas conta.
  No cume do Parnaso, duro monte,
De sylvestre arvoredo rodeado,
Nasce huma crystallina e clara fonte,
  Donde hum manso ribeiro derivado,{224}

Por cima d'alvas pedras mansamente
Vai correndo suave e socegado.
  O murmurar das ondas excellente
Os passaros incita, que cantando
Fazem o verde monte mais contente.
  Tão claras vão as ágoas caminhando,
Que no fundo as pedrinhas delicadas
Se podem, huma e huma, estar contando.
  Não se verão em derredor pizadas
De fera ou de pastor, que alli chegasse,
Porque de espesso monte são vedadas.
  Herva se não verá, que alli criasse
O monte ameno, triste ou venenosa,
Senão que lá no centro as igualasse.
  O roxo lirio a par da branca rosa,
A cecem pura, a flor que dos amantes
A côr tẽe magoada e saudosa;
  Alli se vem os myrtos circumstantes
Que a crystallina Venus encobrírão,
Escondendo-a dos Faunos petulantes.
  Hortelãa, mangerona, alli respirão,
Onde nem frio inverno, ou quente estio,
As murchárão jamais, ou sêccas vírão.
  Dest'arte vai seguindo o curso o rio,
O monte inhabitado e o deserto
Sempre com verdes árvores sombrio.
  Aqui huma linda Nympha, por acêrto
Perdida da fragueira companhia,
A quem este lugar era encoberto;
  Cansada ja da caça vindo hum dia,
Quiz descansar á sombra da floresta,{225}

E tirar nas mãos alvas d'ágoa fria.
  A novidade vendo manifesta
Do sítio, e como as árvores co'o vento
As calmas defendião da alta sesta;
  Das aves o lascivo movimento,
Qu'em seus modulos versos occupadas
As azas dão ao doce pensamento;
  Tendo notado tudo, ja passadas
As horas da grã sesta, se tornou
A buscar as irmãas, no centro, amadas.
  Despois que largamente lhes contou
Do não visto lugar, que perto estava
E tanto por extremo a namorou,
  Que ao outro dia fossem, lhes rogava,
A lavar-se em aquella fonte amena,
Que tão formosas ágoas destillava.
  Ja tinha dado hum giro a luz serena
Do grão pastor d'Admeto, e já nascia
Aos ditosos amantes nova pena,
  Quando as formosas Nymphas em porfia
Para o lugar do monte caminhavão,
Rompendo a manhãa roxa, alegre e fria.
  D'huma os louros cabellos s'espalhavão
Por o formoso collo sem concêrto,
E com mil nós suaves s'enlaçavão;
  Outra, levando o collo descoberto,
Por mais despejo em tranças os atára,
Havendo por pezado o desconcêrto.
  Dinamene e Ephyre, a quem topára
Nuas Phebo em hum rio, e encobrirão
Seus delicados corpos n'ágoa clara;{226}

  Syrinx e Nyse, que das mãos fugírão
Do Tegêo Pan; Amanta e mais Elisa,
Destras nos arcos mais que quantas tirão;
  A linda Daliana, com Belisa,
Ambas vindas do Tejo, que como ellas
Nenhuma tão formosa as hervas pisa:
  Todas estas angelicas donzellas,
Por o viçoso monte alegres hião,
Quaes no ceo largo as nitidas estrellas.
  Mas dous sylvestres deoses, que trazião
O pensamento em duas occupado,
A quem de longe mais que a si querião,
  Não lhes ficava monte, valle ou prado,
Nem árvore, por onde quer que andavão,
Que não soubesse delles seu cuidado.
  Quantas vezes os rios, que passavão,
Detiverão seu curso ouvindo os danos,
Que aos proprios duros montes magoavão!
  Quantas vezes amor de tantos anos
Abrandára qualquer vontade isenta,
Se em Nymphas corações houvesse humanos!
  Mas quem de seu cuidado se contenta,
Offereça de longe a paciencia;
Que Amor d'alegres mágoas se sustenta.
  Que o moço Idalio quiz nesta sciencia
Que se compadecessem dous contrários.
Diga-o quem tiver delle experiencia.
  Indo os deoses, emfim, por montes varios
Exercitando os olhos saudosos,
Ao crystallino rio tributarios;
  Topárão dos pés alvos e mimosos{227}


As pizadas na terra conhecidas,
As quaes forão seguindo pressurosos.
  Mas, encontrando as Nymphas que despidas
Na clara fonte estavão, não cuidando
Que d'alguem fossem vistas ou sentidas,
  Deixárão-se estar quedos, contemplando
As feições nunca vistas, de maneira
Que vissem, sem ser vistos, espreitando.
  Porém a espessa mata, mensageira
Da cilada dos dous, com o rugido
Dos raminhos d'huma aspera aveleira,
  Manifestando claro o escondido,
Todas huma alta grita levantárão,
Que o monte pareceo ser destruido.
  Assi despidas logo se lançárão
Por a espessura tão ligeiramente,
Que mais que o proprio vento então voárão.
  Qual o bando das pombas quando sente
A rapida aguia, cuja vista pura
Não obedece ao sol resplandecente;
  Empresta-lhe o temor da mortedura
Nas azas novo alento; e, não parando,
Veloz rompendo o ar fugir procura:
  Dest'arte as deosas timidas, deixando
De seu despôjo os ramos carregados,
Nuas por entre as sylvas vão voando.
  Mas os amantes ja desesperados,
Que para as alcançar, emfim, se vião
Nada dos pés caprinos ajudados;
  Com amorosos brados as seguião.
Hum só (que o outro ainda não tomava{228}

Folego algum da pressa que trazião)
Desta sorte sentido se queixava:
            SATYRO PRIMEIRO.
  Ah Nymphas fugitivas,
Que só por não usar humanidade
Os perigos dos matos não temeis!
Para que sois esquivas?
Qu'inda de nós não peço piedade,
Mas dessas alvas carnes, que offendeis.
Ah Nymphas! não vereis
Que Eurydice, fugindo dessa sorte,
Fugio do amante, e não da fera morte?
Tambem assi Eperie foi mordida
Da vibora escondida.
Olhae a serpe occulta na herva verde.
Quem o rigor não perde, perde a vida.
  Que tigre, ou que leão,
Que peçonhenta fera venenosa,
Ou qu'inimigo, emfim, vos vai seguindo?
D'hum brando coração,
Que preso dessa vista rigorosa
De si para vós foge, andais fugindo?
Olhae que em gesto lindo
Não se consente peito tão disforme;
Se não quereis que tudo se conforme.
Posto que bellas n'ágoa vos vejais,
Á fonte não creais,
Que vos traz enganadas por vingança
Desta nossa esperança, que enganais.
  Mas ah! que não consinto
Que nem palavra minha vos offenda,{

229}
Postoque me desculpe a mágoa pura.
Digo, Nymphas, que minto:
Pois mal póde haver nunca quem pretenda
Negar-vos essa rara formosura.
Se amor de tanta dura
Por tanto mal tão pouco bem merece,
Não estranheis, minh'alma se endoudece:
Que se doudices falla d'improviso
Sem tento e sem aviso,
Queira Deos, que dureza tão crescida
Me não prive da vida além do siso.
  Cousas grandes e estranhas
Por o mundo tẽe feito e faz natura,
Que a quem vos não vio, Nymphas, muito espantão.
Nas Libycas montanhas
As Scitales são feras, de pintura
Tão singular, que só co'a vista encantão.
As hienas levantão
A voz tão natural á voz humana,
Que a quem as ouve, facilmente engana.
E vós (ó gentis feras) cujo aspeito
O mundo tẽe sujeito,
Tendes de natureza juntamente
A vista e voz de gente, e fero o peito.
  Das amorosas leis,
Com que liga natura os corações,
Andais fugindo (ó Nymphas) na espessura?
Como? E não vos correis
D'haver em vós tão duras condições,
Que possão mais que a próvida natura?
Se vossa formosura{230}

He sobrenatural, não he forçado
Que assi tenha tambem o peito irado:
Antes ao puro Amor, em cuja mão
Os corações estão,
Por vossa gentileza tão formosa
Lhe deveis amorosa condição.
  Amor he hum brando affeito,
Que Deos no mundo poz e a natureza,
Para augmentar as cousas que creou.
De Amor está sugeito
Tudo quanto possue a redondeza:
Nada sem este affecto se gerou.
Por elle conservou
A causa principal o mundo amado,
Donde o pae famulento foi deitado.
As cousas elle as ata e as confórma
Com o mundo, e reforma
A materia. Quem ha que não o veja?
Quanto meu mal deseja sempre fórma.
  Entre as plantas do prado
Não ha machos e femias conhecidas,
Que junto huma da outra permanece?
Não estão carregados
Os ulmeiros das vides retorcidas,
Onde o cacho enforcado amadurece?
Não vêdes que padece
Tanta tristeza a rôla por a morte
Da sua amada e unica consorte?
Pois lá no Olympo, a quantos captivou
Cupido e maltratou?{231}

Melhor qu'eu o dirá a subtil donzella,
Que ja na sua téla o debuxou.
  Ah caso grande e grave!
Ah peitos de diamante fabricados,
E das leis absolutos naturais!
Aquelle amor suave,
Aquelle poder alto, que forçados
Os deoses obedecem, desprezais?
Pois quero que saibais,
Que contra o fero Amor nunca houve escudo:
Costume he seu tomar vingança em tudo.
Eu vos verei lançar em hum momento
Suspiros mil ao vento,
Lagrimas, triste pranto e nova dor
Por quem tenha outro amor no pensamento.
  Mais quizera dizer
O desditoso amante, que ajudado
Se via então da mágoa e da tristeza;
Mas foi-lho defender
O outro companheiro, como irado
Com tão disforme e aspera dureza.
Aquillo que a rudeza
D'huma sciencia agreste lh'ensinára,
Disse, qual se em tal ponto despertára
D'horrendo sonho com pezado grito.
O mais que alli foi dito,
Vós, montes, o direis, e vós penedos;
Qu'em vossos arvoredos anda escrito.
            SATYRO SEGUNDO.
  Nem vós nascidas sois de gente humana,
Nem foi humano o leite que mamastes,{232}

Mas de alguma disforme fera Hyrcana:
Lá no Caucaso horrendo vos criastes:
Daqui trouxestes a aspereza insana;
Daqui os calidos peitos congelastes.
Sois Esphinges nos gestos naturais,
Que de humanas os rostos só mostrais.
  Se vós fostes criadas na espessura,
Onde não houve cousa que se achasse,
Agoa, pedra, arbor, flor, ave, alma, dura,
Qu'em seu passado tempo não amasse,
Nem a quem a affeição suave e pura
Nessa presente fórma não mudasse;
Porque não deixareis tambem memoria
De vós em namorada e longa historia?
  Olhae como, na Arcadia soterrando
O namorado Alpheo su'ágoa clara,
Lá na ardente Sicilia vai buscando
Por debaixo do mar a Nympha chara.
Assi tambem vereis passar nadando
Atys, que Galatêa tanto amára,
Por onde do Cyclopea grande mágoa
Converteo do mancebo o sangue em ágoa.
  Virae os olhos, Nymphas, á Erycina
Espessura; vereis alli mudar-se
Egeria, e em fonte clara e crystallina
Por a morte de Numa distillar-se.
Olhae que a triste Byblis vos ensina,
Com perder-se de todo e transformar-se
Em lagrimas, qu'emfim puderão tanto,
Que accrescentarão sempre o verde manto.
  E s'entre as claras ágoas houve amores,{233}

Os penedos tambem forão perdidos.
Olhae os dous conformes amadores
Lá no monte Ida em pedra convertidos:
Lethêa, por cahir em vãos errores
De sua formosura procedidos;
Oleno, porque a culpa em si tomava,
Por escusar a pena a quem amava.
  Tomae exemplo, e vêde em Cypro aquella,
Por quem Iphis no laço poz a vida.
Tambem vereis em pedra a Nympha bella,
Cuja voz foi por Juno consumida,
E, se queixar-se quer de sua estrella,
A voz extrema só lhe he concedida.
E tu tambem, ó Daphnis, que trouxeste
Primeiro ao monte o doce verso agreste!
  Tamanho amor lhe tinha a branda amiga,
Que em inimiga, emfim, se foi tornando:
Porque outra Nympha estranha ja o sogiga,
Suas magicas hervas vai buscando.
Olhae a quanto a crua dor obriga!
Por vingar-se, assi irada transformando
O foi em pedra. Oh dura confusão!
Despois lhe pezaria; mas em vão.
  Olhae, Nymphas, as árvores alçadas,
A cuja sombra andais colhendo flores,
Como em seu tempo forão namoradas;
Do qu'inda agora o tronco sente as dores.
Vereis, entre as de fructo matizadas,
Como a côr das amoras he de amores:
O sangue dos amantes na verdura
Testimunha de Tisbe a sepultura.{234}


  E lá por a odorifera Sabêa
Não vêdes que de lagrimas daquella,
Que com seu pae se junta e se recrêa,
Arabia s'enriquece, e vive della?
Lembrai-vos da verde árvore Penêa,
Que foi ja n'outro tempo Nympha bella,
E Cyparisso angelico mancebo;
Ambos verdes com lagrimas de Phebo.
  De Phrygia vêde o moço delicado
No mais alto arvoredo convertido,
Que tantas vezes fere o vento irado;
Galardão de seus erros merecido:
Pois, da alta Berecynthia sendo amado,
Por huma Nympha baixa foi perdido;
E a deosa, a quem perdeo do pensamento,
Quiz que tambem perdesse o entendimento.
  O subito furor lhe figurava
Que as árvores e os montes se cahião;
Ja dos pudicos membros se privava,
Que os horrores a tanto o constrangião;
Ja indignado no monte se lançava:
De sua morte as feras se doião.
Dest'arte perdeo Atys na espessura,
Despois de tantas perdas, a figura.
  Lembre-vos quando as gentes celebravão
Em Grecia as grandes festas de Liêo,
Onde as formosas Nymphas se juntavão,
E os sacros moradores do Licêo.
Todos em doce somno se occupavão
Por o monte, despois que anoiteceo;{235}

Mas o deos do Hellesponto não dormia;
Que hum novo amor o somno lh'impedia.
  Mas ella emfim, os braços estendendo,
Em ramos se lhe forão transformando;
Em raizes os pés se vão torcendo;
E o nome Loto só lhe vai ficando.
Vêde, Napêas, este caso horrendo,
Que vos está de longe ameaçando.
Assi tambem daquella, a quem seguia
O sacro Pan, a fórma se perdia.
  Que vos direi de Filis, pois perdida
Da saudosa dor com que vivia,
Á desesperação emfim trazida
Do comprido esperar de dia em dia,
Por desatar do corpo a triste vida
Atava ao collo a cinta que trazia.
Mas o tronco sem fôlha por o monte
Rhodope abraça o lento Demophonte.
  Nas boninas, tambem vereis Jacinto,
Porquem Phebo de si se queixa em vão;
Vereis o monte Idalio em sangue tinto
Do neto de seu pae, da mãe irmão.
Chora Venus a dor do moço extinto,
Maldiz o ceo e a terra, com razão;
A terra, porque logo não se abrio;
O ceo, porque tal morte permittio.
  E tu, constante Clycie, a quem fallece
A fé de teus amores enganosos,
No louro amante, que de ti s'esquece,
S'esquecem os teus olhos saudosos.
Nenhum alegre estado permanece;{236}


Que são do mundo os gostos mentirosos;
E á tua clara luz, por quem suspiras,
Ainda agora em herva os olhos víras.
  Trago-vos estas cousas á lembrança,
Porque s'estranhe mais vossa crueza
Com ver que a criação e longa usança
Vos não perverte e muda a natureza.
Dou as lagrimas minhas em fiança,
Qu'em tudo quanto está na redondeza,
Cousa d'Amor isenta, se attentais,
Em quanto vos não virdes, não vejais.
  Ja disse, que d'Amor sempre tiverão
As cousas insensiveis pena e gloria.
Vêde as sensiveis como se perdêrão.
E dir-vos-hei das aves larga historia:
As penas, qu'em su'alma se soffrêrão,
Nas azas lhes ficárão por memoria;
E aquelle altivo e leve movimento
Lhes ficou do voar do pensamento.
  O doce rouxinol e a andorinha,
Donde lhes veio o ir-se transformando,
Senão do puro amor que o Thracio tinha,
Qu'em poupa ainda a amada vai chamando?
Clama sem culpa a misera avezinha,
Que n'areia de Phasis habitando,
Do rio toma o nome; e quando clama,
Cruel á mãe, ao pae injusto chama.
  Vêde a que engeitou Pallas por fallar,
(Que dos amores he maior defeito)
E aquella, que succede em seu lugar,
Ambas aves; de amor usado effeito;{

237}
Huma, porque fugia ao deos do mar;
Outra, porque tentára o patrio leito:
E Scylla, que a seu pae poz em perigo,
Só por ser muito amiga do inimigo.
  E Pico, a quem ficárão inda as côres
Da purpura Real, que antes vestia;
Esaco, que o seguir de seus amores
O trouxe a ver tão cedo o extremo dia:
Ou vêde os dous tão firmes amadores,
Que amor aves tornou na praia fria.
Do Rei dos ventos era genro o triste;
Mas contra o fado, emfim, nada resiste.
  Estava a triste Halcyone, esperando
Com longos olhos o marido ausente;
Mas os ventos indomitos soprando,
Nas ágoas o affogárão tristemente.
Em sonhos se lh'está representando;
Que o coração preságo nunca mente:
Só do bem as suspeitas mentirão,
Mas as do mal futuro certas são.
  Ao pranto os olhos seus a triste ensaia;
Buscando o mar com elles hia e vinha:
Quando o corpo sem alma achou na praia.
Sem alma o corpo achou, que n'alma tinha!
Ó Nereidas do Egêo, consolai-a,
Pois este pio officio vos convinha.
Consolai-a; sahi das vossas ágoas;
Se consolação ha em grandes mágoas.
  Mas oh nescio de mi! qu'estou fallando
Das avezinhas mansas e amorosas?
Pois tambem teve Amor natural mando{238}
Entr'as

feras montezes venenosas.
O leão e a leoa, como, ou quando
Taes formas alcançárão temerosas?
Sabe-o da deosa Dindymene o templo,
E a que a Adonis o dava por exemplo.
  Quem fosse a mansa vacca di-lo-hia;
Mas o grão Nilo o diga, pois a adora.
Que fórma teve á Ursa, saber-se-hia
Do Pólo Boreal, onde ella mora.
O caso d'Acteon tambem diria
Em cervo transformado; e melhor fôra
Se dos olhos perdêra a vista pura,
Que em seus galgos achar a sepultura.
  Tudo isto Acteon vio na fonte clara,
Onde a si d'improviso em cervo vio:
Que quem assi dest'arte alli o topára,
Que se mudasse em cervo permittio.
Mas, como o triste Principe em si achára
A desusada fórma, se partio.
Os seus, desconhecendo-o, o vão chamando;
E, tendo-o alli presente, o vão buscando.
  Co'os olhos e co'o gesto lhes fallava;
Que a voz humana ja perdida tinha.
Qualquer delles por elle então chamava,
E a multidão dos cães contr'elle vinha.
Hum cervo acude a ver (qualquer gritava)
Acteon, donde estás? acude asinha,
Que tardar tanto he este? (repetia)
He este, he este, o eco respondia.
  Quantas cousas em vão estou fallando
(Oh Napêas esquivas!) sem que veja{

239}
O peito de diamante hum pouco brando
De quem meu damno tanto só deseja.
Pois, por mais que de mi me andais tirando,
E por mais longa emfim que a vida seja,
Nunca em mi se verá tamanha dor,
Que Amor a não converta em mais amor.
  Aqui (formosas Nymphas) vos pintei
Todo d'amores hum jardim suave;
D'ágoas, de pedras, d'árvores contei,
De flores, d'almas, feras, de huma, outra ave.
Se este amor, que no peito aposentei,
Que dos contentamentos tẽe a chave,
Por dita em tempo algum determinasse
Que de tão longos damnos vos pezasse,
  Quanto mais devagar vos contaria
De minha larga historia e não alheia?
E com quanta mais ágoa regaria,
Que o rio, de contente, a branca areia?
Novo contentamento me seria
Formar de meu cuidado a nova ideia:
E vós, gostando deste estado ufano,
Zombarieis então de vosso engano.
  Mas com quem fallo ja? que estou gritando,
Pois não ha nos penedos sentimento?
Ao vento estou palavras espalhando;
A quem as digo, corre mais que o vento.
A voz e a vida a dor m'está tirando,
E o tempo não me tira o pensamento.
Direi, emfim, ás duras esquivanças
Que só na morte tenho as esperanças.
  Aqui, sentido, o Satyro acabou,{240}


Com huns soluços que a alma lhe arrancavão.
Os montes insensiveis, que abalou,
Nas ultimas respostas o ajudavão.
Então Phebo nas ágoas se encerrou
Co'os animaes que o mundo allumiavão;
E co'o luzente gado appareceo
A candida pastora por o ceo.
ECLOGA VIII.
PISCATORIA.
Sereno.
Arde por Galatêa branca e loura
Sereno pescador pobre, forçado
D'huma estrella, que quer á míngoa moura.
  Os outros pescadores tẽe lançado
No Tejo as redes: elle só fazia
Este queixume ao vento descuidado:
  Quando virá (formosa Nympha) hum dia,
Em que te possa dar a conta estreita
Desta doudice triste e vãa porfia?
  Não vês, que me foge a alma e que m'engeita,
Buscando em hum só riso d'essa boca,
Nos teus olhos azues mansa colheita?
  Se ao teu esprito algũa mágoa toca,
Se d'amor fica nelle huma pégada,
Que te vai, Galatêa, nesta

troca?{241}
  Dar-te-hei minh'alma: lá ma tens roubada:
Não ta demandarei: dá-me por ella
Huma só volta d'olhos descuidada.
  Se muito te parece, e minha estrella
Não consentir ventura tão ditosa,
Dou-te as azas do Amor perdidas nella.
  Que mais te posso dar, Nympha formosa,
Inda que o mar d'aljofar me cubríra
Toda esta praia leda e graciosa?
  Amansão-se ondas, quebra o vento a ira:
Minha tormenta só nunca socega;
O meu peito arde em vão, em vão suspira.
  Anda no romper d'alva a nevoa cega
Sôbre os montes d'Arrabida viçosos,
Em quanto o solar raio lhes não chega.
  Eu, vendo apparecer outros formosos
Raios, que a graça e côr ao ceo roubárão,
Se os olhos cegos vi, vejo saudosos.
  Quantas vezes as ondas se encrespárão
Com meus suspiros! quantas com meu pranto
As fiz parar de mágoa e me escutárão!
  Se na fôrça da dor a voz levanto,
E ao som do remo, que ágoa vai ferindo,
Perante a lua meu cuidado canto;
  Os maviosos delfins m'estão ouvindo;
A noite socegada; o mar callado:
Tu só foges d'ouvir-me, e te vás rindo.
  Estranhas, por ventura, o mar cercado
Da fraca rede; a barca ao vento solta;
E hum pobre pescador aqui lançado?
  Antes que o sol no ceo cerre huma volta{242}

Se póde melhorar minha ventura,
Como a outros succede, n'ágoa envolta.
  Igual preço não he da formosura
D'ouro a areia, que o rico Tejo espraia,
Mas hum amor, que para sempre dura.
  Vejão teus olhos (bella Nympha) a praia;
Verás teu nome na mimosa areia.
Nunca sôbre elle o mar com furia saia!
  Vento algum atégora o não salteia:
Tres dias ha que escripto aqui o deixou
Amor, e o veda a toda fôrça alheia.
  Elle com suas mãos proprio ajudou
A escolher estas conchas, affirmando
Que o sol para ti só as matizou.
  Hum ramo te colhi de coral brando:
Antes que o ar lhe désse, parecia
O que de tua boca estou cuidando.
  Ditoso se o soubesse inda algum dia!
ECLOGA IX.
PISCATORIA.
Palemo.
Despois que o leve barco ao duro remo,
Onde menos das ondas se temia,
Atou o pescador pobre Palemo;
  Em quanto as negras redes estendia
Seu companheiro Alcão na branca arê

a,{243}
E Lico as longas cordas envolvia;
  De cima d'huma rocha, a qual rodêa
O mar, quebrando nella de contino,
Começou a chamar por Galatêa.
  Deixa o molle licor e crystallino,
(Dizia) ó Nympha, ja, que o sol deseja
Enxugar teu cabello d'ouro fino.
  Inda que tẽe de ti tão grande inveja,
Não temas que te queime o rosto brando:
Basta para abrandar-se que te veja.
  Não te detenhas mais, vem ja cortando
Com teu candido peito as brancas ondas,
Escumas menos brancas levantando.
  Dar-te-hei (com condição que não t'escondas
De mi lá nessas humidas moradas,
E que algum'hora, branda me respondas)
  Mil conchas n'hum cordão verde enfiadas,
Todas d'huma feição; não d'huma côr,
Pois dellas são azues, dellas rosadas.
  Indaque seja pobre pescador,
Não sei se em desprezar-me muito acertas,
Pois rico do amor teu me fez Amor.
  Para ti n'outras praias mais desertas
Irei pescar por entre pedras duras,
Que sempre verde musgo tẽe cobertas,
  As pardas ostras, onde gottas puras
De fresco orvalho, dentro endurecidas,
Não podem da cobiça estar seguras.
  Porque deixas de vir? porque duvídas?
Por ventura d'algum meu companheiro?
Inda as redes ao sol tẽe estendidas.{244}

  Toda a noite pescárão, e primeiro
Querem dormir a sesta nesta praia,
Que o barco polo mar levem ligeiro.
  Eu, vigiando aqui como atalaia,
Te chamarei, até que de cansado
Hum dia desta rocha abaixo caia,
  Deixando este lugar tão infamado
Com minha morte, que dos marinheiros
Com o dedo de lá será mostrado.
  Dirão os naturaes e os estrangeiros:
Alli morreo Palemo. Ai triste historia!
Guardae a nao de alli, ventos ligeiros.
  Antes que tal succeda, vê que gloria
Alcanças com deixar aos navegantes
Da tua ingratidão esta memoria.
  Da nossa differença não te espantes:
Tu Nympha, eu pescador: Glauco, deos vosso,
Qual eu agora sou, tal era d'antes.
  Tambem eu entre as hervas achar posso
Aquella, a quem o ceo deo tal virtude,
Que muda n'outro ser este ser nosso.
  Mas este amor, qu'eu cá mudar não pude,
Inda que vá a morar lá nessas ágoas,
Não temas que a mudança em mi o mude.
  Serão as vivas ondas vivas frágoas,
Em que estarei ardendo noite e dia,
Se não tiveres dó de tantas mágoas.
  As horas naturaes da pescaria
Não vês que vão passando? Como as passas?
Quem deste passatempo te desvia?
  Ah rigorosa Nympha! ah! não me faças{

245}
Dar em vão tantos gritos: vem; iremos
Ambos a levantar as verdes naças.
  Ambos os anzoes curvos cobriremos
De mentirosas iscas, com que os peixes
A todo prazer nosso prenderemos.
  Assi d'Amor cruel nunca te queixes,
E dessa formosura as mais formosas
Nymphas do mar azul vencidas deixes;
  Que venhas (pois por ti com saudosas
Lagrimas vou gastando a vida e alma)
A tirar-me esperanças duvidosas.
  A praia está callada, o mar em calma;
Por cima desta rocha brandamente
Zephyro respirando a desencalma.
  Aqui não sinto cousa certamente
Porque deixes de vir, como sohías,
Senão, que não es tu disso contente.
  Se desgostas das grossas pescarias,
Marisco appetitoso aqui não falta,
Ja sejão luas cheias, ja vazias.
  Polos pés desta rocha dura e alta
Irei eu despegando huns como pés
D'hum pequeno animal, que nella salta.
  E vivos te darei (se delles es
Amiga) mil cangrejos vagarosos,
Que verás ir andando de revés.
  Não te darei ouriços espinhosos,
Porque te quero tanto, que receio
Qu'esses teus dedos piquem tão mimosos.
  Faz d'aqui perto o mar hum largo seio,
Onde de ameijoas lisas, sem trabalho,{246}

Podemos apanhar hum cesto cheio.
  Mas além de tudo isto hum crespo galho
De vermelho coral te darei logo,
Que por dita arrastou o meu tresmalho.
  Mas ai! qu'em vão te chamo, em vão te rógo;
Que nem tu a meus rogos tens respeito,
Nem eu, por mais que grite, desaffógo.
  Hum coração em lagrimas desfeito
Como ja não te abranda? quem encerra
Crueza tal em tão formoso peito?
  Não reina Amor no mar, como na terra?
Bem sabes que mil vezes ja venceo
A Neptuno teu Rei em clara guerra.
  Sua formosa mãe onde nasceo,
Senão no proprio mar em que te banhas?
Onde Thetis por Péleo em fogo ardeo?
  Se das pedras nascesses nas montanhas,
Se com leite de tigres te criáras,
Mais duras não tiveras as entranhas.
  Apparecêras tu, e então tornáras
Logo a esconder-te, logo, se quizeras
Nas ondas, que de ti me são avaras.
  Com hũa mostra só que de ti deras,
A vida, que me foge em não te vendo,
Co'os teus formosos olhos detiveras.
  Então víras os meus, donde correndo
De lagrimas se vem dous largos rios,
Que o mar tambem em si vai recolhendo.
  Ah nescio pescador! que desvarios
Me deixo aqui dizer! a quem os digo!
A surdas ondas ja, ja a ventos frios.{247}
  Elles e

ellas ja crescem: ja em p'rigo
O barco vejo: ai! ei-lo combatido.
Ellas e elles o levão ja comsigo.
  Olhos, que lá me tendes o sentido,
A culpa he vossa só, que me não vêdes.
Mas, pois o pescador anda perdido,
  Perca-se o barco seu, percão-se as redes.
ECLOGA X.
PISCATORIA.
Meliso.
Encheo do mar azul a branca praia
Meliso pescador de mil querellas;
Meliso, que por Lilia arde e desmaia.
  Despois que á luz da lua e das estrellas,
Sôbre dura fatexa o barco pôsto,
As redes recolheo, remos e velas:
  Que gôsto, ó Lilia, (disse) ou que desgôsto
Te move a me negar, vendo qual ando,
Teus olhos côr do ceo, teu alvo rosto?
  Se tu queres que pene desejando,
Se queres que no mar em fogo viva;
Ardendo sempre estê, sempre penando.
  Mas ólha, ó branda Lilia, (antes esquiva)
Que não merece ser tão mal tratada
Hum'alma desses olhos tão captiva.
  Vives dos meus cuidados descuidad

a:{248}
Coitado de quem traz a duvidosa
Vida no mar e terra aventurada!
  Bem podes com razão ser piedosa
Com quem não quer mor bem, que bem quererte,
Não sendo tão cruel como es formosa.
  Ora deixa ja, ingrata, deixa ver-te
A meus cansados olhos, que de tantas
Lagrimas são movidos, sem mover-te.
  Se tu me vences, e se tu m'encantas
Com tua doce falla, doce riso,
Porque foges de mi? porque te espantas?
  Lembre-te a formosura de Narciso,
E qual pago lhe deo seu desamor:
Ólha que com amor disto te aviso.
  Mas quando essa crueza tanta for,
Que mereça do ceo novo castigo,
Qual herva será digna de tal flor?
  Amor que me persegue, Amor que sigo,
Me faz d'hum grave mal andar temendo;
D'hum mal, qu'eu sinto na alma e que não digo.
  Quanto mais ledo ja te estive vendo
Aqui as mansas ondas esperando,
Que por chegar a ti vinhão correndo,
  E da molhada areia despegando
Com a candida mão roxas conchinhas,
A fórma do teu pé nella deixando?
  Daquellas, de que tu mais gôsto tinhas,
Muitas te trago aqui, postoque temo
Que menos o terás por serem minhas.
  Hum temor tal me chega a tal extremo,
Que, vencido d'hum triste esquecimento,{

249}
No mar me cahe da mão o duro remo.
  E quando a branca vela sólto ao vento,
Tão descuidado vou do fiel leme,
Que me leva a perder meu pouco tento.
  Mas quem arde por ti, quem por ti treme,
Os seus maiores riscos não receia,
Os teus que sente mais, muito mais teme.
  Despois que te não vi, (não sei que creia
Desta tardança tua e morte minha)
Sendo a lua vazia, he quasi cheia.
  O tempo, que nos gostos passa asinha,
Detem-se neste mal da saudade,
Por me dobrar a dor que d'antes tinha.
  Não desprezes, ó Lilia, huma vontade,
Que por te contentar tudo despreza,
Tudo julga, sem ti, por pouquidade.
  Se pretendes amor, ja tens certeza
Que não podes ser nunca mais amada
Dos que vencidos traz tua belleza.
  Se por ventura estás affeiçoada
A gentil parecer, a bom engenho,
A ninguem nestas partes devo nada.
  Se fazes caso d'honra, ólha que venho
De geração d'honrados pescadores;
Se de riqueza, barco e redes tenho.
  Por erros julgarás estes louvores;
E oxalá não os julgues por doudice!
Mas quem siso quer ter não tenha amores.
  E mais tudo foi pouco quanto disse,
Pondo os olhos no muito que meu fado
Nos teus, que ver desejo, quiz que visse.{250}

  Aconteceo-me hum caso desusado,
(Inda que d'huma cousa n'outra salto)
Digno, por ser de amor, de ser contado.
  Pescando hontem á tarde no mar alto,
Suspenso nessa rara formosura,
A quem com mil lembranças nunca falto,
  Comecei a cantar: Lilia, mais dura
Que a mais inculta rocha rodeada
Do mar, de cujo encontro está segura;
  Mais alva que jasmins, e mais córada
Que purpureas serejas polo Maio;
Mais loura que manhãa desentrançada;
  Não vês... dizer queria que desmaio,
Quando (cousa que mal me será crida)
No mar, vencido d'hum, do barco caio?
  Alli tivera fim a triste vida,
Se d'hum brando delfim, que me escuitava,
Não fôra, por ser tua, soccorrida.
  Parece que tambem vencido estava
Do mal, de que me via andar vencido,
Quem em tamanho risco m'ajudava.
  Trouxe-me sôbre si adormecido,
Nadando ao som das ondas mansamente,
Até que me sentio em meu sentido.
  Livre deste mortal, bravo accidente,
Tal foi o espanto meu, tal meu temor,
Que d'outro me livrei escaçamente.
  Mas logo o amoroso nadador
Me poz junto do barco, que tão perto
Esteve de ficar sem pescador.
  O sol era de todo ja coberto,{

251}
Quando eu, entrando nelle, sahi fóra
Do perigo, onde tive o fim tão certo.
  Porém outro maior me cansa agora,
De que mal sahirei, se te não vir
Amanhecer aqui co'a nova aurora.
  Não póde ella tardar em descobrir
As suas louras tranças dasatadas,
Das quaes as tuas bem se podem rir.
  Pois por cima das ondas, acordadas,
As Halcyoneas ouço lamentar-se,
Do seu antigo damno inda lembradas.
  E sinto o fresco orvalho derramar-se
Mais congelado e frio; e Venus bella
Polo Oriente ja vejo levantar-se.
  Bem podes, Lilia, competir com ella,
E com Pallas e Juno em gentileza;
Em amor não, pois elle nasceo della:
  Desterrou-o de ti tua aspereza,
Que desterra de mi prazer e vida,
Deixando em seu lugar mágoa e tristeza.
  No silencio da noite, que convida
A descanso commum, tanto me cança,
Que não sei se remedio ou morte pida.
  Se tu quizesses dar-me huma esperança
De te servir de mi ou tarde, ou cedo,
Nunca me negaria o mar bonança.
  Polas inchadas ondas, que põe medo,
Eu só, sem mais ajuda, levaria
Sempre á fôrça de braço o barco quedo.
  Tão seguro por ellas andaria,
Como polo seu campo o lavrador{252}


No mais quieto, claro e bello dia.
  Ólha que não ha destro pescador,
Que mais manhoso as redes desencolha,
Nem os tortos anzoes isque melhor.
  Os peixes deixarei em tua escolha:
Aquelles de que fores mais amiga,
Nunca te faltarão de fôlha a fôlha.
  Não sei, Lilia formosa, que mais diga,
Que mova amor em ti, que mova mágoa;
Sei que mágoa, e que amor a mais obriga.
  Mas antes que o sol dê naquella frágoa,
Onde meus ais dilata a triste Ecco,
Vou-me segurar mais o barco na ágoa,
  Porque de baixa mar não fique em sêcco.
ECLOGA XI.
INTERLOCUTORES.
ANZINO e LIMIANO.
Parece-me, pastor, se mal não vejo,
Que ja te vi mais ledo andar outr'hora
Nos largos campos do famoso Tejo.
            LIMIANO.
  Podia ser; que muito tempo fóra
Andei desta ribeira, patria minha,
Onde triste me vez andar agora.
  Tinha lá para mi, que a vida tinha
Mais socegada cá e ma

is segura,{253}
Entre os meus, que com gôsto a buscar vinha.
  Foi d'outro parecer minha ventura:
Discordias sós achei, e achei dureza,
Em lugar de socêgo, e de brandura.
  Achei as boas leis da natureza
Vencidas do interesse; e a gente cega,
Tanto, que mais que o sangue, o gado préza.
  Dizem que quando o mar bonança nega,
Correndo vai aquella não mor prigo,
Que á desejada terra mais se chega.
  Assi m'aconteceo a mi comigo;
Seguro sempre ao longe, sempre ledo;
Triste ao perto, e tratado como imigo.
            ANZINO.
  Sempre (podes-me crer este segredo)
Desejei de te ver; mas com desgôsto,
Inda te não quizera ver tão cedo.
  Prestando para cousas de teu gôsto,
Como camaleão não mudo côres;
Qual he meu coração, tal he meu rosto.
            LIMIANO.
  Não são logo assi, não, outros pastores,
Que de promessas vãas te fazem rico,
E nunca fructo dão: tudo são flores.
  Mas desejo saber com quem pratíco,
Porque não caia em falta, e porque entenda
A quem tamanho amor devendo fico.
            ANZINO.
  Antes que tempo nisso se dispenda,
Busquemos hum lugar mais fresco e frio,
Que da calma, que cahe, bem nos defenda.{254}
            LIMIANO.

  Vamos alli, que alli bosque sombrio
Nos dara fresco abrigo, assento o prado,
Formosa vista o valle, o monte, o rio:
  O rio, que verás tão socegado,
Que te parecerá que se arrepende
De levar ágoa doce ao mar salgado.
  Nem cabra, nem ovelha alli offende
Herva, folha, nem flor, ou ferro duro:
A planta polo ar livre se estende.
  Verás cahindo em gottas crystal puro
No vão d'huma caverna carcomida,
Por entre o musgo molle, verde-escuro.
            ANZINO.
  Quem traz á saudade a alma rendida,
A saudade busca, onde descansa;
Maso descanso della encurta a vida.
  Com tudo, quem do ceo na terra alcansa
Poder gozar-se desta liberdade,
Que mais deseja ter? que mais o cansa?
  Affirmo-te de mi esta verdade,
Que muitos valles vi, muitas ribeiras;
Mas esta me dobrou a saudade.
  Oh que viçosas murtas! que oliveiras!
Que freixos! como estão d'hera cingidos!
Quantas voltas lhes dá de mil maneiras!
  Os lirios junto d'ágoa bem nascidos
Quanta graça que tẽe entre as boninas,
Sem ordem, com mais graça, entremetidos!
  Vem encrespando as ágoas crystallinas
A branda viração; a fôlha treme;{

255}
O movimento apenas determinas.
  A rôla seu amor suspira e geme;
Escondida se queixa Philomella:
Parece que do campo inda se teme.
  Espanta a quem se atreve, ver aquella
Rocha por cima d'ágoa pendurada
Como ja se não deixa cahir nella.
  Ó ribeira do Lima, celebrada
De mil brandos espritos sempre sejas,
Sempre de brandas Nymphas povoada.
  Fujão longe de ti duras invejas;
Peçonha de pastores, morte sua:
Tudo sintas amor, tudo amor vejas.
  De dia o claro sol, de noite a lua,
Em teu favor inspirem de maneira,
Que sempre fertil seja a praia tua.
  Tornando, emfim, á prática primeira,
Por dar-te, como queres, de mi conta,
Larga ta quero dar e verdadeira.
  Apartar-te do gado leva em conta;
Que, pois com elle fica o pegureiro,
Que te detenha hum pouco, pouco monta.
  O meu nome he Anzino: fui vaqueiro
Na grã serra da Estrella, que não tive;
Não sei se natural, ou se estrangeiro.
  Hum pastor me criou, que ja não vive;
De todos por seu filho era julgado;
E eu tambem neste engano hum tempo estive.
  Até que delle soube ser achado
Em huma anzina envolto em pobres panos;
E daqui veio, que Anzino fui chamado.{256}

  Neste meu desengano outros enganos
Fundou de novo a pouca dita minha,
Com que o vim a servir mais de sete annos.
  Tinha muito de seu, e mais não tinha
De filhos, que huma filha bem formosa,
Á qual por morte delle tudo vinha.
  Conversação doméstica e damnosa,
Na livre formosura e tenra idade,
Em ambos accendeu chamma amorosa.
  Como ella de mi soube esta verdade,
Com outro amor, com outros exercicios,
Nella ganhei de novo outra vontade.
  Amor mestre me fez de mil officios
Para meio do fim que desejava;
E delle sinal davão mil indicios.
  Tecia alvos cestinhos, quando andava
Com as vaccas no prado: á noite hum cheio
De fructa, outro de flores lhe levava.
  Nas mangas muitas vezes e no seio
As nozes lhe levei com as castanhas,
Quer do souto do pae, quer d'outro alheio.
  Nos intricados bosques, nas montanhas,
Por seu amor as feras perseguia,
Fôrças agora usando, agora manhas.
  Vivos os mansos cervos lhe trazia;
Vivas medrosas lebres fugitivas:
Ligeireza de pés não lhes valia.
  Mas, se lhe dava as mansas feras vivas,
Mortas lhe dava as que por natureza,
Sem domar-se, são bravas, ou esquivas.
  Certo dia achei eu n'huma aspereza,{

257}
Sem mãe, hum cervo branco e pequenino;
Trouxe-lho; ella o criou; inda hoje o préza.
  Ou ja criação seja, ou ja destino,
Tanto que não o vê, geme e suspira.
Como menos fara o triste Anzino?
  Tangia mal na frauta, mal na lira;
Despois tão bem tangia, qu'era espanto
A quem antes d'amor tanger m'ouvíra.
  Ouvia celebrar sempre em meu canto
Ulina a sua rara formosura:
(Tal nome tẽe aquella, a que amo tanto.)
  Contava-lhe meus males por figura:
Ficava eu, de medroso, frio e mudo;
Ficava ella suspensa; a historia escura.
  Assi com tal temor, com tal estudo,
Amor fui grangeando longamente,
Á conta deste amor perdendo tudo.
  Ella, dos meus desejos innocente,
O mesmo amor me tinha, tanto, digo;
Que no ser era todo differente.
  Praticava seus gostos só comigo;
Seus desgostos tambem, seus pensamentos,
Com rara graça e com saber antigo.
  Outras vezes, confusa nos intentos,
Os modos me notava, e me dizia:
Entre irmãos de que servem comprimentos?
  Eu quizera, Senhora, (respondia)
Que soubesses de mi, qu'irmão não sendo,
Não com menos amor te serviria.
  Tornou-me: Essa resposta não entendo:
O que não quiz o ceo, queres que seja?{258}
Que castellos

no vento andas fazendo?
  Se me queres ver leda, não te veja
Soltar essas palavras ociosas:
Materia mais honesta nos sobeja.
  Dizendo assi, nascião-lhe outras rosas
Naquellas proprias suas, sôbre a neve
Das suas faces mais que o sol formosas.
  Destas quebras comigo algumas teve;
Cujas fôrças amor quebrava logo
N'outra conversação mais branda e leve.
  Cresceo desta maneira o vivo fogo,
Que ardendo dentro na alma encurta a vida;
Cujo principio foi hum brinco, ou jôgo.
  Mas ella neste tempo era pedida
De muitos a seu pae em casamento;
Nova dor para mi, mortal ferida!
  Elle lhe nomeava mais de cento:
Delles paternamente lhe rogava
Hum escolhesse a seu contentamento.
  Com mil razões fingidas s'escusava,
Sendo só a razão, não ser contente;
Com que desgôsto ao pae, gôsto a mi dava.
  Estando nós por huma sesta ardente
Á sombra d'huns madronhos repousando,
Affastados da casa e mais da gente,
  Ja d'huma e d'outra cousa praticando;
Soltou com hum suspiro estas palabras:
Desde hontem para cá em mi não ando.
  Logo que nosso pae tornou das labras,
Me disse que assentára de casar-me
Com Tityro, pastor de muitas cabras.{259}

  Que não buscasse causas d'escusar-me,
Como por muitas vezes ja fizera,
Pois tinha muitas mais de contentar-me.
  Que afóra esta tenção, que a sua era,
O mesmo seus parentes lhe dizião,
A quem de seus intentos conta dera.
  As ágoas, que dos olhos me corrião,
Em quanto elle me disse o que te digo,
Por mi, que fiquei muda, respondião.
  Com seu chôro abrandou ao pae amigo;
Qu'emfim, deixando-a menos magoada,
Lhe disse que fallasse isto comigo.
  Assi me disse; e que determinada
Estava a qualquer mal que lhe viesse.
Antes que ser com Tityro casada.
  Que por mais de mil cabras que tivesse,
Jamais esta vontade mudaria;
Que buscava saber, não interesse.
  E que de melhor mente casaria
Com hum qualquer pastor, pobre de gado,
Se nelle as partes visse, que em mi via.
  Por extremo de mi lhe foi louvado
O pensamento seu; e sem detença
Tal resposta lhe dei acautelado:
  Se a dar meu parecer me dás licença,
Hum pastor te darei de qualidade,
Que em nada de mi tenha differença;
  Nem de menos saber, nem mais idade;
Nas manhas outro tal, e em corpo e gesto:
Da fazenda não sei a quantidade.
  Se esse me fazes bom, daqui protesto{260}

De não receber outro por marido:
Me respondia com sembrante honesto.
  Pois sabe (respondi) que ja admittido
Me tens com gôsto teu por teu esposo;
Que com dar-te-me dou o promettido.
  Não pude dizer mais, de vergonhoso,
Nem ella me deixou com ouvir tal,
Suspeitando de mi amor vicioso.
  Logo me respondeo: Ah desleal!
Ah deshonesto irmão! isso pretendes?
Mas não irmão, imigo capital.
  O ceo, que com injusto amor offendes,
Tome, cruel, de ti justa vingança,
Antes que de tamanho error t'emendes.
  Andavas-me enganando na esperança
Com esses falsos e indevidos meios
Ao sangue nosso e minha confiança?
  Fizeste verdadeiros os receios,
A que confusamente me levavas
De sombras enganosas com rodeios.
  Desejo no teu peito agasalhavas
Tão torpe, tão infame, tão alheio
Do puro amor, a que obrigado estavas?
  Não te desculpes, não; que ja não creio
Lagrimas, nem palavras, nem desculpas
De quem imaginou caso tão feio.
  Timido respondi: De que me culpas?
Se ouvido me não dás, não tens razão;
Acaba de me ouvir o fim das culpas.
  Tẽe-me, Ulina, por teu, não por irmão:
Se me não queres crer esta verdade,{

261}
De teu pae saberás se minto, ou não.
  Por filho me criou: a flor da idade
Gastei em o servir por teu respeito:
Ólha o que te merece esta vontade.
  Se com ser isto assi tenho êrro feito
Em grangear-te; que a ti só desejo;
Eis este ferro aqui, eis este peito.
  Isto ouvindo, mostrou hum ledo pejo,
Pondo os olhos no chão, formosa e branda;
E cuido qu'inda assi nos meus a vejo.
  Disse-me: Em que revoltas o amor anda!
No bem, como no mal, tambem me enleia:
Inda agora o senti, ja reina e manda.
  Como queres, Anzino, qu'eu te creia
Cousa que nem sonhada foi tégora?
Não sabes de quem ama, o que receia?
  Fallarei com meu pae: fica-t'embora:
No desengano seu teu bem consiste;
Da palavra que dei não estou fóra.
  Com isto me deixou alegre e triste.
O comêço ja ouviste de meu dano,
Amigo Limiano: o fim amargo,
Em que não serei largo, escuita agora.
Fulgencia, outra pastora, que vizinha
Era d'amada minha e grande amiga,
(Não sei como isto diga que não moura)
Pastora branca e loura, que na serra
Era a segunda guerra dos pastores,
Por mal dos meus amores me quiz bem.
Fundava-se porém em casamento;
E deste fundamento lhe nascia,{262}

Que, como me não via, o valle, o monte,
O bosque, o rio, a fonte rodeava.
Em busca minha andava aquella sesta;
Entrou pola floresta, onde nos vio;
E tudo nos ouvio quanto fallámos,
Entre huns espessos ramos escondida.
Cruelmente ferida dos ciumes,
Foi-se a fazer queixumes (descobrindo
Mais do qu'esteve ouvindo) ao pae d'Ulina.
Eis logo desatina o triste velho;
Eis que sem mais conselho a filha entrega,
Que com chôro se nega e com palabras,
Ao simple guarda cabras, por esposa.
Ah hora desditosa! ah sorte dura!
Daquella formosura desusada,
De tantos desejada, e de mi tanto
Servida com espanto e puro amor,
Quizeste, por mais dor, enriquecer
Quem não sabe entender o preço della?
Ó tu, serra d'Estrella, que tal viste,
Como te não abriste; e no teu centro
Me não cerraste dentro, estando vivo,
Porque mal tão esquivo não sentíra?
Oh cega, oh cruel ira! oh pae fingido!
Para me ver perdido me criaste?
Porque me não deixaste no deserto?
Menos crueza, certo, então usáras,
Inda que me deixáras (não te aggraves)
Ás cruas feras e aves da montanha.
Não vês que o ceo estranha isso que tratas?
Não vês que a ti te matas cobiçoso?{263}

Na porta o novo esposo tropeçou;
Na casa não entrou co'o pé direito:
Gritou sobolo teito a noite inteira
A ave, qu'he mensageira de fins tristes.
O mesmo vós sentistes, cães da aldeia,
Quando por má estreia, juntos todos,
Com differentes modos huiviastes.
Serranas, qu'esperastes nestas vodas
Cantar alegres todas Hymeneos,
Dos vossos alvos seios, alvas flores,
Em lugar dos licores mais custosos,
Por cima dos esposos derramando;
Ou vendo estar bailando, estando quedas,
Ao som das gaitas ledas no terreiro
O moço tão ligeiro á maravilha,
Que quasi o pé não trilha o junco mole;
Qual será que console a triste amiga,
A quem a fôrça obriga do pae duro,
A quem o Amor puro obriga tanto,
Que n'hum contino pranto se consume?
Assi do grande cume da esperança
Com subita mudança derribado,
Me poz em tal estado a triste nova,
Como sabe por prova quem bem ama.
Levou a leve fama a minha dor
A Sincero pastor, meu grande amigo,
Que com rogos comsigo me levou,
Do monte, onde me achou, ja noite escura,
Chorando a desventura em que me via.
As vaccas, vindo o dia, derramadas,
De mi desamparadas, vem bramando,{264}


Sinal n'aldeia dando em seu bramido
De qu'era ja perdido o pastor seu.
Tamanha pena deo á bella Ulina
(Bella, porém mofina) a pena minha,
Sôbre quantas ja tinha no seu peito,
Que mais do triste leito não s'ergueo.
Seu pae adoeceo tambem de nojo:
Da morte foi despojo ao dia quinto.
A dor que daqui sinto he sem medida.
Pois m'apartou da vida, a vida acabe,
Ou n'alma, onde não cabe, faça pausa.
Fulgencia, que foi causa destes males,
Des que montes e valles descobrio,
Despois que me não vio em toda a serra,
Deixou, deixando a terra, mágoa aos pais,
Que della nunca mais novas souberão.
Emfim, tal fim tiverão meus amores.
Chorárão os pastores juntamente
D'Ulina descontente a triste sorte,
Do pae a breve morte, e de Fulgencia
A vingadoura ausencia de seu êrro;
De mi este destêrro em que me pôs.
  Mas mais chorastes vós, meus olhos tristes,
Quando de vossa luz, sem a do dia,
Por terras tão estranhas vos partistes.
  Cuido que meia noite então seria;
Cantando os gallos ja na triste aldeia,
Chorava só quem della se partia.
  Casa de meus suspiros sempre cheia,
(Disse eu, quando passei pela de Ulina)
Tal fructo colhe quem amor semeia!{

265}
  Fortuna, a mi cruel, sempre benina
Em tudo seja áquella, que em ti mora,
Indaqu'em outros braços se reclina.
  Fica-te aqui, minha alma, fica embora,
Que, pois assi o quiz fado inimigo,
Jamais te não verei dia nem hora.
  Dalli nos ricos campos dei comigo,
Que das ágoas do Tejo são regados;
Onde te vi mais ledo, como digo.
  Por ver se posso agora a meus cuidados
Achar algum repouso, algum socêgo,
Atravessando vou montes e prados.
  Passei as claras ágoas do Mondego,
Das Lusitanas Musas charo ninho;
As do Douro despois em turvo pégo.
  Daqui continuando meu caminho,
Espero ver a casa aos ceos acceita,
Na terra que da nossa aparta o Minho.
  Onde vou visitar na urna estreita
Os santos ossos do Varão divino,
Que pretendeo do Mestre o mão direita.
  Assi, d'hum lugar n'outro de contino,
O bem que ja cantei, chorando venho;
Tornei-me de vaqueiro, peregrino:
  Tal hábito me vês, tal vida tenho.
            LIMIANO.
  Anzino, he breve o dia
Para poder contar
O que sinto de tua desventura.
E sei bem qu'erraria,
Se quizesse louvar{266}

O grave estylo teu, tua brandura.
Aquella formosura,
Por quem alegre fôras;
Que tu ledo cantaste,
E que despois choraste
Tão triste, qu'ind'agora triste choras;
Vivendo eterna nella,
Será mágoa commum, e louvor della.
  As mágoas deixo enfim;
Tambem louvores deixo,
Por grandes ellas, elles por pequenos.
Tu, por amor de mim,
(Dir-te-hei de que me queixo)
Repousa hoje comigo, quando menos:
Assi vejas serenos
Esses teus tristes lumes.
Abranda a dura mágoa,
Que tira fontes de ágoa
Do fogo em que chorando te consumes;
Dar-te-hei conta mais larga
Da vida que aqui passo tão amarga.
  E mais saber desejo
Se a fama nos engana,
Que diz, que o grão pastor dos Lusitanos,
Com todos os do Tejo,
E com fato e cabana,
Reside ja nos campos Africanos;
Onde mil soberanos
Triumphos, delle dinos,
Lh'ordena a fatal sorte,
Com grande estrago e morte{267}

Dos brutos mal nascidos Sarracinos,
Que de si despejados
Os curraes deixão ja cheios de gados.
  Que sendo assi, te digo
Que não espero mais
Nesta para mi sempre ingrata terra.
Quem traz guerra comsigo
Entre seus naturais,
Não deve d'estranhar estranha guerra.
Sem mi de serra a serra
(O ceo assi o queira)
Logrem meus inimigos
Os valles e pacigos
Desta, donde nasci, fresca ribeira;
Na qual (se não m'engano)
Inda será chorado Limiano.
            ANZINO.
  Limiano, ja bem tenho entendido
Quanto sentes meu mal; mas eu te digo
Que o teu mal he de mi menos sentido.
  Ácerca de ficar hoje comtigo,
Farei pois (ja qu'assi nos detivemos)
Tudo o que tu quizeres, como amigo.
  E, pois o dia ja passado temos,
Vamos-nos mais chegando para o gado;
E lá nas outras cousas fallaremos.
  Todavia de funda e de cajado
Te vai apercebendo a som de guerra;
Que não foi tal pastor cá do ceo dado,
  Para não dar ao ceo tão larga terra.{268}

ECLOGA XII.
INTERLOCUTORES.
DELIO, ALCIDO, GALASIO.
          DELIO.
  Agora, Alcido, em quanto o nosso gado
Pasce diante nós manso e seguro,
Sentemos-nos aqui neste abrigado.
  Logremos este sol sereno e puro,
Que livre se nos dá, antes que venha
A noite fria com seu manto escuro.
  O rico com seu ouro lá se avenha;
Não se farta a cobiça co'a riqueza:
Mais arde o fogo quando tẽe mais lenha.
  Com pouco se contenta a natureza.
Quem isto bem olhasse, certifico
Que não fugisse tanto da pobreza.
  O sol tambem m'aquenta, como ao rico;
A fonte ágoa me dá, fructos a terra:
Com pouco mantimento farto fico.
  Ah! que a má vaidade nos faz guerra!
(Para que gasto tempo em mais palabras?)
Os olhos da razão esta nos cerra.
  Alcido, tens ovelhas, e tens cabras,
De que tiras da lãa, tiras do leite;
E não te faltão campos em que labras.
  Inda tu queres mais? Amigo (eu hei-te
De fallar claro e sem lisongerias:
Não hajas medo tu, qu'

eu as affeite){269}
  Tu cantavas amor, amor tangias;
Faltava a tua frauta; agora he muda:
Que mal te mudou tanto em poucos dias?
            ALCIDO.
  Muda-se a idade, Delio; e se se muda
Com ella a condição, nada m'espanto;
O gôsto m'ajudou, ja não m'ajuda.
  Se ja cantei amor, se amor não canto,
Culpas do tempo são, que vai mudando
O meu cantar alegre em triste pranto.
  O tempo, que tão leve vai voando,
Delio, não torna mais; e assi fugindo,
Mil claros desenganos nos vai dando.
  Pouco a pouco se veio descobrindo
O mal d'huma esperança vãa e incerta,
Que me deixou chorando, e foi-se rindo.
  Quem nasce sem ventura, ou quem acerta
De fazer fundamento em peito alheio,
De mil contas que faz nenhuma he certa.
            DELIO.
  Pois se isso entendes tu, donde te veio
Sentir tão de verdade as sem-razões,
Não sendo d'outra cousa o mundo cheio?
            ALCIDO.
  Não queres tu que sintão corações
Obrigados com dor a sentimento,
Vendo a razão vencida d'affeições?
            DELIO.
  Emfim, todas as cousas querem tento:
Encobre a dor, e guarda-te d'extremos;
Que sempre trazem arrependimento.{270}


  Ao nosso doce canto nos tornemos:
Das nossas Nymphas, bellas inimigas,
Crueza e formosura celebremos.
            ALCIDO.
  Como cantarei eu novas cantigas
Em terra tão esteril, cheia d'ira,
Que nega flores, e que nega espigas?
  Pendurei n'hum salgeiro a minha lira:
Ouvi-la ao som do vento he hũa mágoa:
Em lugar de tanger, geme e suspira.
  A Amarilia pintei, pintada trago-a
Aqui neste meu seio, e tambem chora:
Seus olhos me dão fogo, os meus dão-lhe ágoa.
  Mas vejo vir Galasio.
            DELIO.
                        Venha embora.
Galasio, queres tu cantar comigo?
            GALASIO.
  Eu nunca me roguei: menos agora.
            DELIO.
  Cantaremos d'Amor cruel imigo,
Ou brando e amoroso, em razão pôsto,
Tyranno e cego, e cego até comsigo?
            GALASIO.
  Cada qual cante do que for seu gôsto;
Quer mimos, quer rigores d'Amor fero;
Ou d'olhos verdes cante, ou d'alvo rosto.
            ALCIDO.
  Em quanto vós cantais, recolher quero
O gado; que são horas de ordenhar:
Á noite na malhada vos espero.{

271}
            GALASIO.
  Isso não: has d'ouvir para julgar
Qual de nós melhor canta e melhor sente.
            DELIO.
  Eu ja não cantarei, sem apostar.
  Aposto o meu rafeiro, que Valente
Se chama, e com razão; que o lobo affasta,
Se não cantar mais branda e docemente.
            GALASIO.
  Hum cervo manso aposto.
            DELIO.
                          Isso não basta:
Põe mais hum par da cabras.
            GALASIO.
                             Deos me guarde;
Porque, Delio, este gado he da madrasta.
            ALCIDO.
  Fazeis-me vós juiz? Quereis que aguarde?
Ora cantae sem preço e sem inveja;
E seja logo, porque ja he tarde.
            DELIO.
  Learda minha, branca mais que a neve,
E muito mais corada que a grãa fina;
S'inda Amor a vencer-te não se atreve,
Que fara quem d'Amor por ti se fina?
Eu morro; e tu meu mal julgas por leve?
Não vês tu como ja me desatina?
Ai triste! que me vem valles e montes,
Regados de meus olhos feitos fontes.
            GALASIO.
  Marfida, branca mais que o branco leite;{272}

Vermelha muito mais que a rosa pura;
Assi descuido em ti nunca suspeite,
Assi me trates inda com brandura;
Que a cabana, que a vida e a alma engeite
Por ti, quando tu mais que marmor dura.
Testimunhas serão montes e valles,
A quem dou larga conta de meus males.
            DELIO.
  Quando a minha Learda desencolhe
Os seus cabellos d'ouro, longo, ondado,
O sol, de pura inveja, se recolhe,
Corrido de se ver menos dourado.
Livre pastor não ha, que bem os olhe,
Sem se achar logo nelles enlaçado.
Ai! não soltes, Learda, os teus cabellos,
Pois tanto prendem quantos ousão vellos.
            GALASIO.
  Os tristes corações se tornão ledos,
Ouvindo de Marfida o doce canto;
Os furiosos ventos estão quedos;
Não guia o claro sol seu carro em tanto.
Converte-se a dureza dos penedos
Em brando amor: Amor desfaz-se em pranto,
Vencido dessa voz, doce Marfida;
Mas tu nunca d'Amor foste vencida.
            DELIO.
  O campo de verdura vejo pobre;
O ceo chuivoso sempre, e turvo o rio;
Da sua leve folha a terra cobre
O bosque, que foi ja verde e sombrio.{

273}
Mas se Learda o rosto seu descobre,
Logo desapparece o tempo frio:
Comsigo a primavera traz Learda.
Ai quem a visse ja! Ai quanto tarda!
            GALASIO.
  A triste Progne ja despareceo;
A toda flor o frio foi imigo;
A doce Philomela emmudeceo,
Rouca de lamentar seu mal antigo.
Mas venha por aqui quem me venceo
Com hum só volver d'olhos; qu'eu m'obrigo,
Que as aves tornem logo a seus amores,
E os campos se matizem de mil flores.
            DELIO.
  A viva chamma, aquelle vivo ardor,
Que brando sinto ja pelo costume,
De noite dá de si tal resplandor,
Que os pastores vem delle a tomar lume.
Pasmados ficão, vendo em mi d'amor
O fogo, que me queima e não consume:
E tu, por quem eu ardo noite e dia,
Quando vês tal ardor ficas mais fria!
            GALASIO.
  Eu sempre chóro, e tanto ja chorei,
Vencido da grã dor que n'alma tinha,
Que mil vezes de lagrimas fartei
Meu gado, quando a fonte a buscar vinha.
Chorando as duras pedras abrandei;
Mas nunca a ti, cruel imiga minha,
Que, vendo que por ti m'estillo em ágoa,
Nenhũa mágoa tens de minha mágoa.{274}
            DELIO.

  Quando vires, Learda, o nosso Lima,
Que lá vai de meu chôro acompanhado,
Tornar com suas ágoas para cima,
De seu curso esquecido, costumado;
Então embora julga, então estima
Que tenho n'outra parte o meu cuidado.
Mas deixarão os rios de correr,
Primeiro que deixe eu de te querer.
            GALASIO.
  Estas serras, Marfida, por certeza
De minha firme fé só quero dar-te:
Quando com espantosa ligeireza
Daqui correr as vires a outra parte,
Então cuida que falta em mi firmeza,
Qu'então deixarei eu, meu bem, de amar-te.
Mas mudar-se daqui bem podem ellas,
E eu não mudar de mi graças tão bellas.
            ALCIDO.
  Se esta vontade minha não deseja
A vossos versos dar justos louvores,
Hora nunca na vida alegre veja.
  Acceitae meu desejo, meus pastores:
Mais vos não póde dar quem traz o esprito
De todo entregue a damnos, mágoas, dores.
  Mas porque dê de vós público grito
A leve fama, como vêdes, deixo
O vosso canto e o meu juizo escrito
  No liso tronco deste verde freixo.
Delio neste lugar doce cantou
Com Galasio, que doce respondia:{275}


Hum Learda, Marfida outro louvou,
Com inveja de qual melhor diria.
Alcido, que o seu canto bem notou
Por ver quem a victoria levaria,
Como livre juiz, deo por sentença,
Que não havia entr'elles differença.
ECLOGA XIII.
Phyllis.
Pascei, minhas ovelhas: eu, em quanto
Aquelle passarinho canta ou chora,
Chamarei Corydon com triste pranto.
  Se entre vós, bellas plantas, amor mora
(Plantas, ja vós amastes) tende mágoa
De mi, pois que m'ouvis queixar agora.
  Ai cruel Corydon! cruel a frágoa
Em que vivo por ti! Não tens piedade
Dever meu peito fogo, os olhos ágoa?
  Ja não amas a Phyllis? Ah crueldade!
Ai triste! E que farei? Em poucos dias
Mudaste tu de mi tua vontade.
  A Phyllis ja deixaste, a quem trazias
No formoso verão formosas fruitas,
Sinal do grande bem que me querias?
  Sabes, cruel, que tenho causas muitas
Para te convencer, de que queixar-me;
Por isso vás fugindo e não me escuit

as.{276}
  Puderão os teus rogos abrandar-me:
Os meus (triste de mi!) mais te endurecem.
Ja não acho em que possa confiar-me.
  Aquelles doces versos ja t'esquecem,
Que tu nos lisos álamos cortavas,
Onde com teus enganos inda crescem?
  Arder por meu amor nelles mostravas:
Eu, crendo que era assi, não entendia
Quanto fingiste amar, quão pouco amavas.
  Tristes meus fados forão, triste o dia
Em que nasci: coitada de mi triste,
Qu'em mágoa se tornou minha alegria!
  Logo que a tua Galatêa viste,
Vi eu deste meu mal grandes agouros;
E tu da parte esquerda hum corvo ouviste.
  E não tẽe Galatêa mais thesouros,
Nem tẽe mais formosura, inda que seja
Ou d'alvo rosto, ou de cabellos louros.
  Á negra violeta tẽe inveja
O branco lirio, porque tal não tem
O cheiro, que vencido não se veja.
  Tityro arde por mi; Tityro, a quem
Mil Nymphas dão capellas de mil flores;
Mas elle a mi só chama, a mi quer bem.
  Eu desprézo por ti muitos pastores,
E tu por Galatêa me desprezas!
Tal pago dás, cruel, a meus amores?
  Em que te mereci tantas cruezas,
Quantas usas comigo? Por ventura
Usei comtigo d'ira, ou d'asperezas?
  Prouvera a Deos que tão isenta e dura{277}

Me víras para ti, que nunca víras
Em mi sinal d'amor, ou de brandura!
  S'eu fugíra de ti, tu me seguiras;
Por mi ardêras, não por huma ingrata,
Por quem choras em vão, em vão suspiras.
  Bem me vinga de ti, pois te maltrata:
Mas eu te quero tanto, que desamo
(Por mais que tu me mates) quem te mata.
  Respondem-me estes montes, quando chamo
Por ti com triste voz; Ecco responde
Das lagrimas, movida, que derramo.
  E tu não me respondes, nem sei onde
Te leva esse desejo; mas bem sei
Que amor e desamor de mi t'esconde.
  Ai triste Phyllis! triste! Onde acharei
Remedio a tanto mal? O fogo puro
Em que m'abrazo, com que abrandarei?
  Ja fugíra daqui por mais que duro
Fosse o deixar o ninho em que nasci:
Mas não ha contra Amor lugar seguro.
  A morte só (mil vezes isto ouvi
Á nossa Celia) por remedio espere
Aquelle que a Amor fez senhor de si.
  Então, porque de todo desespere,
Este cego, a quem cegos nós seguimos,
A mi por ti, e a ti por outra fere.
  S'eu morrêra no ponto em que nos vimos,
Não víra tanto mal. Mas que da sua
Sorte fugisse alguem, nós nunca ouvimos.
  Eu me queixo de ti, e tu da tua
Galatêa te queixas; e não vês{278}

Que mais piedosa te he, quando mais crua.
  Sendo tu tão cruel, (tão cego es!)
Queres achar piedade? Como queres
Que te creião teu mal, se o meu não crês?
  Qu'eu viva com pezar, tu com prazeres,
Não quer o justo Ceo. Ou ambos tristes,
Ou ledos ambos, si: mais não esperes.
  Selvas, que n'outro tempo nos cobristes
Com frescas sombras lá do ardor de cima,
Dizei, se a Corydon dizer ouvistes:
  Primeiro ha de tornar o brando Lima
As ágoas de crystal á fonte clara,
Que no meu peito novo amor s'imprima.
  Primeiro qu'eu te deixe, Phyllis chara,
Me ha de deixar a mi a propria vida.
Mas quem, por não deixar-te, a não deixára!
  Pois tu, Phyllis, ma dás, eu offrecida
A tenho a teu querer; tu della ordena
Como, doce amor meu, fores servida.
  Por ti me será branda a dura pena;
Por ti suave a dor, leve o tormento,
A que m'inclina o fado, ou me condena.
  Ah falso Corydon! teu pensamento
Era enganar-me: dada a fé me tinhas;
E a fé co'as palavras leva o vento.
  Mas (ai triste de mi!) tambem as minhas
O vento vai levando. O sol he pôsto.
Porque, ligeira luz, te não detinhas,
  Em quanto em meu queixume achava gôsto?{

279}
ECLOGA XIV.
INTERLOCUTORES.
ERGASTO, DELIO, LAURENO.
            ERGASTO.
  Agora, ja que o Tejo nos redeia,
Neste penedo, donde mansamente
Murmurando se quebra a branda veia,
  Espera, Delio, até que do Occidente
D'azul deixe a ribeira matizada
O sol, levando o dia a outra gente.
  Entretanto daqui verás pintada
A praia de conchinhas d'ouro e prata,
E a ágoa dos mansos sopros encrespada.
  Verás como do monte se desata
A vagarosa fonte por penedos,
Que pouco a pouco cava e desbarata;
  E como move os frescos arvoredos
Favonio, que de flores pinta o prado;
E como s'estão rindo os campos ledos.
  Ditoso o que do Ceo foi tão amado,
Que no campo alcançou passar a vida,
Livre de pena, livre de cuidado.
  O rouxinol na vara, que vestida
De verdes folhas, sombra faz ao rio,
Lhe canta o doce verso sem medida.
  Agora ao pé d'hum alamo sombrio
Vê como dous carneiros s'

offerecem,{280}
Os cornos inclinando, a desafio.
  Como ao que vence todos obedecem
E folgão de o ver fóra de perigo;
E outros com face esquiva o aborrecem.
  Ditoso aquelle, que co'o ferro antigo
Lavra os campos do pae, e se contenta,
Nos seus mólhos atando o louro trigo!
  Este a furia do mar não exprimenta,
Nem corre, por achar a pedra rica,
A estranha praia, que outro sol aquenta.
  Onde, quando a esperança o fortifica
Em adquirir mais ouro e mais riqueza,
Ouro, esperança, e vida a muitos fica.
  Este vive quieto na pobreza;
E deste confiarei que a anteponha
A quanto o mundo mais procura e préza.
  Comendo em mesa vil, não s'envergonha:
Antes bebe nas mãos a fonte pura,
Qu'em precioso metal cruel peçonha.
  Oh feliz tempo d'ouro! Ind'aqui dura,
Inda conversa aqui com os humanos
A Justiça, fugindo á gente impura!
  Quem visse bem tão claros desenganos,
E quanto mal nos vicios se apparelha,
No campo gastaria bem os anos.
  Ao dia a nossa vida se assemelha,
Porque quando no mar o sol se banha
Se costuma tingir de côr vermelha.
  Assi, se olharmos bem, sempre se ganha
Lá no occaso da mal gastada vida
Rubicunda vergonha em mágoa estranha.{281}
            DELIO.

  A gloria, Ergasto meu, qu'he possuida,
Nunca sabe de nós ser tida em preço:
Só despois que se perde he conhecida.
  E desta vida os bens, qu'eu não mereço,
Quando os perco e o mal da outra ja m'espera,
Com grandes mágoas d'alma os reconheço.
  Oh se em ditosa sorte me coubera
Por favor ou destino das estrellas,
Qu'entre pastores, eu pastor vivêra!
  Muitas vezes t'ouvira as luzes bellas
Cantar da linda Nise, nas quaes arde
Teu peito, sempre ufano d'arder nellas.
  Buscae pastor, ovelhas, que vos guarde;
Que o Ceo não quer qu'eu mais vos guarde e conte,
E despois vos recolha, sôbre a tarde.
  Nãovos verei saltar junto da fonte,
Cabras minhas, ja meu querido gado,
Nem da rocha pender no verde monte.
            ERGASTO.
  Consente agora, ó Delio, que chorado
Em triste verso seja apartamento,
Que assi me deixa triste e magoado.
            DELIO.
  Não: que se dobrará meu sentimento.
Mas se queres, Ergasto, que m'esqueça
Partida, que lembrada he só tormento,
  Canta aquelle Soneto, que começa:
Quantas vezes do fuso s'esquecia.
Que digas hum dos teus, não sei se o peça.{282}
            ERGASTO.

  Se com m'ouvir, a dor se te allivia,
Eu o direi. Mas eis cá vem Laureno,
Que a cantar vezes mil me desafia.
  Cantando venceo ja Tityro e Almeno:
E eu, inda que sei certo ser vencido,
Apostar a cantar com elle ordeno.
            LAURENO.
  Ergasto, pois o tempo se ha offrecido,
Celebremos amor e formosura,
Emquanto o gado á sombra está acolhido.
            ERGASTO.
  Postoque ja a victoria tens segura,
Não cantarei sem preço, porque saia
Mais ledo quem cantar com mais brandura.
            LAURENO.
  Eu hum vaso porei de lisa faia,
Divina obra de Alceo, que celebrado
Será sempre por claro nesta praia.
  A vide, de que em roda está cercado,
Os roxos cachos cobre; e primor teve
Em pôr no meio a Dama e Pan cansado.
  Parece que a beija-la o deos se atreve,
E que ainda dos beijos mal soffridos
Inclinado lhe foge o tronco leve.
            ERGASTO.
  Outro vaso porei d'hera cingido,
No qual Orpheo das aves esquecidas
E dos suspensos bosques he seguido.
  Não cuido que de faia são sahidas
De tal arte, lavor de tal maneira:{283}


Tambem obra he d'Alceo, das mais polidas.
  Esta, das que me deo, foi a primeira;
Que a dar-ma o velho Alcido emfim s'abranda,
Ouvindo-me cantar nesta ribeira.
  Ouvio-m'então, estando desta banda;
E dando-ma, dizia-me: Este seja
O premio, Ergasto, dessa Musa branda.
            LAURENO.
  Delio o nosso cantar pondere, e veja
Qual dos dous a voz dá mais docemente;
Que huma tal causa tal juiz deseja.
            DELIO.
  Se o meu juizo cada qual consente,
Tu, Ergasto, ao doce canto dá comêço;
Tu responde, Laureno, juntamente:
  E eu fico que nenhum perca o seu preço.
            ERGASTO.
  Alcida, que na côr o leite puro,
E a rosa da manhãa deixas vencida,
Culpa he dos olhos teus, nelles o juro,
Est'amor de qu'estás tão offendida.
Castiga-os com me verem; qu'eu seguro
Que a vingança será delles sentida:
Nem temas tu d'os meus alegres serem,
Vendo tristes taes olhos por me verem.
            LAURENO.
  Violante minha, cuja côr iguala,
Mas antes vence os cravos, vence a neve;
Desta dor, que atéqui minha alma cala,
Teu amoroso riso a culpa teve.
Se só por viver della e por amá-la,{284}

Julgas que algum castigo se me deve,
A ver-te sempre rindo me condena,
Pois crescendo o amor mais, mais cresce a pena.
            ERGASTO.
  Com a mãe, que maçãas colhendo andava,
Inda pequena, a bella Alcida vinha:
Eu os ramos da terra ja tocava,
Ja facil para amar o tempo tinha.
Não sei que fogo ou neve se passava
Daquelles olhos seus a est'alma minha,
Que me deixárão pôsto em tal extremo,
Que até de cuidar nelles ardo e tremo.
            LAURENO.
  No bosque a Violante vi hum dia,
Doce princípio destas doces dores;
A flor cahia nella, e parecia
Dizer cahindo: Aqui reinão amores.
Humilde em tanta gloria ella se ria,
E errando hião sôbre ella as várias flores:
Eu, que vencido fui d'hum error cego,
Áquelle honesto riso est'alma entrego.
            ERGASTO.
  Pastores deste bosque, que buscais,
Anoitecendo, o lume por costume;
Chegae a mi; qu'eu fico, se chegais,
Que destes meus suspiros leveis lume.
Accesos sahem d'alma os doces ais
No ardor, que pouco a pouco me consume;
Mas nem as chammas, qu'em suspiros deito,
Accendérão jamais hum frio peito.{

285}
            LAURENO.
  Pastores, que buscais na sombra amada
A fonte, por fugir o ardor do estio,
Vinde a mi, porque d'ágoa destillada
Por meus olhos, se sólta hum largo rio;
Tal, que a sêde d'Amor nunca apagada,
Fartá-la ja de lagrimas confio.
Mas com chôro de tanta quantidade
Não movo aquelles olhos a piedade.
            ERGASTO.
  Se quando a minha Alcida est'alma visse
Nos meus olhos, d'Amor tão maltratada;
Se quando a grave dor fóra sahisse
Entre suspiros mil rôta e quebrada,
Sequer com brandos olhos m'admittisse,
Ficando de vergonha mais córada;
Ditoso fôra, vendo-a, juntamente
Com ser mais bella, deste amor contente.
            LAURENO.
  Se á vista de Violante derramadas
As lagrimas d'amor, que vive nellas,
Tal fôrça lhe fizessem, que orvalhadas
Lhe ficassem de dor ambas estrellas,
E as rosas entre a neve semeadas,
Co'o piedoso orvalho, inda mais bellas;
Ditoso me fizera. Hora ditosa,
Se a víra ser mais bella e ser piedosa!
            ERGASTO.
  Claros olhos, que ao sol fazeis inveja,
Que brandos vos mostreis ja vos não peço;
Mas que poder-vos ver paga me seja,{286}

Se por tamanho amor tanto mereço:
Armados d'esquivança então vos veja
Cheios d'hum não sei que, com que pereço;
Que doce me será tal esquivança.
Doce o morrer, qu'em olhos taes s'alcança!
            LAURENO.
  Olhos, que vos moveis tão docemente,
Que traz vós todo o mundo ides levando,
Eu não sei se tomais do ceo luzente
O movimento seu, se lho estais dando:
Sei certo (e não m'engano,) sei somente
Que a vós de mi minh'alma ides passando:
Mas não posso entender como deixais
Ao descuido o que vós em vós levais.
            ERGASTO.
  Por mais que a minha soberana Alcida
(Minha não, porque só sua belleza
Vem a ser minha em ser de mi querida)
Me trate vezes mil com aspereza;
Huma só vez que della acho admittida
Minha pequena vista na grandeza
Da luz do rosto seu, sinto tal gloria,
Que de todo o penar perco a memoria.
            LAURENO.
  Quando a minha mais que unica Violante
(Se minha póde ser a que he tão sua)
Aquella santa luz hum breve instante
Me deixa ver, por mais que a veja crua;
A vista tanto em mi vejo a diante,
Que não he muito, não, que m'attribua{

287}
A soberba de ser hum'aguia nova,
Que do ceo no ôlho claro a vista prova.
            DELIO.
  Pastores, que alcançar pudestes tanto
Com vossa branda Musa, que ja nesta
Idade renovais o antigo canto;
  Para vosso louvor, que verso presta?
Qu'hera digna será? que louro dino
Qu'em premio a cada qual adorne a testa?
  Em parte paga Amor, se de contino
Por dentro a cada hum gasta os espritos,
Pois co'o divino canto o faz divino.
  Nós veremos por annos infinitos
Nos altos troncos destas faias bellas
Os nomes vossos por memoria escritos.
  De unicas flores mereceis capellas:
Tẽe Alcida e Violante sós taes flores;
E, pois ellas as tẽe, dem-vo-las ellas.
  Os vossos premios recolhei, pastores:
Cada qual igualmente o seu merece;
E ambos d'Apollo os mereceis maiores.
  Recolhamos o gado; que anoitece.{288}

ECLOGA XV.
INTERLOCUTORES.
SOLISO e SYLVANO.
          SOLISO.
  De quanto alento e gôsto me causava
A vista da manhãa resplandecente,
Com que toda a tristeza s'alegrava;
  Que quando vinha o sol claro e luzente,
Bem claro então em mi se conhecia
Huma nova alegria differente;
  Tanto agora me offende o novo dia,
Vendo que me não mostra a formosura,
De que só me mantinha e só vivia.
  E não me quiz deixar triste ventura
Esperanças de mais tornar a vella!
Oh destino cruel! oh sorte dura!
  Oh querida Natercia! oh Nympha bella,
Em quem, emfim, mostrou a natureza
O mais que se podia esperar della!
  Se lá no assento da maior alteza
Te lembras de quem viste cá na terra,
Para te magoar sua tristeza;
  Lembre-te de contino a cruel guerra,
Que contínua me faz tua lembrança,
Esquecido do gado, valle e serra.
  Lembre-te que perdi a confiança
De ver os olhos teus

, e juntamente{289}
De todo o bem d'Amor toda a esperança.
  Lembre-te que por ti de mi ausente
A crystallina fonte me he nojosa,
Com que ja n'outro tempo fui contente.
  Que por ti a manhãa clara e formosa
Males cada momento me accrescenta;
Sendo-me em outros dias deleitosa.
  Por ti o puro sol me descontenta;
Com seu canto m'offende a Philomella:
Mas, porque nelle chora, me contenta.
  Por ti, Natercia pura, Nympha bella,
Na verdura suave deste prado
Os males multiplico só com vella.
  Por ti não curo ja do manso gado:
Com o mesmo qu'então meu bem crescia,
Agora vai crescendo o meu cuidado.
  Não sou ja, ja não sou quem ser sohia;
Mudou-se-me a vontade co'a ventura;
Mudou-se co'os tormentos a alegria;
  Trocou-se o claro dia em noite escura:
Nem he muito que tudo se mudasse,
Pois se mudou a tua formosura.
  Não via outro reparo, que cuidasse
Poder aproveitar ao meu tormento,
Nem outra gloria alguma em qu'esperasse,
  Senão em quanto o triste pensamento
Se punha a contemplar tua beldade,
Sem lhe lembrar tão longo apartamento.
  Agora que me falta a claridade,
Que de ver-te a minha alma recebia,
Ficando-me só della a saudade;{290}


  Qual ficará hum'alma, que sabía
Somente desta gloria contentar-se?
Gloria de que gozar não merecia!
  Qual poderá ficar quem com lembrar-se
Mortalmente do bem qu'he ja passado,
Só tẽe por melhor vida á morte dar-se?
  E qual se póde ver quem hum cuidado
Sostem, que he só da dor certa morada,
E nelle vive só desesperado?
  Qual ha de ver-se, ó Nympha delicada,
Hum'alma que te via; e em te vendo
O fio lhe cortou a Parca irada?
  A causa deste mal eu não a entendo:
Só entendo que, perdida essa luz pura,
Por perdida a não ver, vivo morrendo.
  Vejo que me roubou fortuna escura
Hum bem por quem meu mal me contentava:
Lembra-te tu de tanta desventura.
  Lembra-te tu, que só de ti'sperava
Remedio aos males meus; e então verás
Qual ficou quem em ti só confiava.
  Lembre-te adonde estou, adonde estás,
E que tudo sem ti cá m'aborrece:
Dest'arte o estado meu entenderás.
            SYLVANO.
  Não sei por que razão nos amanhece
Este dia dos outros differente,
Com que toda a alegria s'entristece.
  O manso gado vejo, que contente
Buscando hia nos campos a verdura,
E dos rios a limpida corrente:{291}


Agora triste errar pola espessura,
Alheio d'herva verde e d'ágoa fria;
Sinal d'alguma grande desventura.
  Suspensa está das aves a harmonia;
E em certo modo mostra que lá chora
A mesma sequidão da penedia.
  A candida, rosada, bella aurora,
Que sempre os altos montes vem dourando,
Com hum pallor mortal se mostra agora.
  Está-se nestas hervas enxergando
Tão triste côr, que della se conhece
Que algum mal se nos vai apparelhando.
  Emfim, vejo que tudo s'entristece;
A causa ignoro. O ceo piedoso queira
Que menos seja o mal, do que parece.
  Porque, desde que habíto esta ribeira,
Não m'acórdo de a ver tão carregada,
Nem de a ouvir murmurar desta maneira.
  Não m'acórdo que visse outra alvorada
Tão confusa sahir, como esta vejo,
De profunda tristeza acompanhada.
  Agora aqui tomára quem sem pejo
A causa, se a soubesse, m'ensinasse,
Para satisfazer a meu desejo.
  Porque não posso eu crer que resultasse
D'alguma baixa causa hum tal effeito,
Que até nos duros montes se enxergasse.
  O coração cá dentro no meu peito
M'assegura, que tanta novidade
Não traz a origem de commum respeito.
  Mas, por entre a confusa claridade,{292}

Lá vejo vir Soliso com seu gado:
Delle espero entender toda a verdade.
  Mas não posso cuidar neste cuidado,
Que nos olhos não mostre onde me chega
A dor de o ver de dores traspassado.
  Mas aquelle, que a Amor cruel s'entrega,
Não he muito que passe hum tal tormento;
Porque todo mal dá, todo bem nega.
  Em quanto este pastor o pensamento
Logrou, sem qu'em amores o empregasse,
Senão só em buscar contentamento;
  Festa não se fazia em que faltasse
A sua frauta, qu'elle assi tangia,
Que outra nunca se ouvio que lhe igualasse.
  Ja agora não he aquelle que sohia;
Vejo-o na condição todo mudado;
Mudada tambem delle está a alegria.
  Não cura ja do seu querido gado;
Aborrecem-lhe as plantas, hervas, flores;
Aborrece-lhe a gente e o povoado.
  Não lhe lembrão as festas dos pastores;
Apartando se vai pola espessura,
Enlevado somente em seus amores.
  Contenta-se da noite triste e escura;
Odio tẽe com o sol puro e luzente.
Quem vio nunca tamanha desventura?
  Com esta vai passando tão contente,
Que diz que, quando o mal mais o atormenta,
Se gôsto sentirp óde, então o sente.
  Neste bosque huma Nympha se aposenta,
Por quem elle na vida anda morrendo;{

293}
E he causa desta dor que lhe contenta.
  E segundo o que delle agora entendo,
Se a vista não m'engana o pensamento,
Ou de vãa phantasia estou pendendo;
  Quando fôra maior o grão tormento,
Que Soliso padece, não pudera
Igualar-se com seu merecimento.
  Quero chegar-me a elle, em quanto espera
Que vá descendo o vagaroso gado:
Saberei delle o que saber quizera.
  Venho, Soliso, a ti com hum cuidado,
Que todo m'entristece; e com grão medo
De grão mal sôbre nós inopinado.
  Vês tu como está agora este arvoredo
Triste e pezado, lugubre e sombrio?
Como o vento parece que está quedo?
  Vês a commum corrente deste rio
Que ora tanto se pára, ora anda tanto,
Deixando de seu curso o certo fio?
  Vês como a Philomella deixa o canto,
Com que incita os pastores namorados,
E multiplica Progne o triste pranto?
  E vês, emfim, por todos esses prados
Desmaiadas as hervas, que sohião
Viçoso pasto dar aos nossos gados?
  Todos estes sinaes, que não se vião
Nas Auroras a esta antecedentes,
Algum damno mortal nos annuncião.
  Eu não sinto o que seja: se o tu sentes,
Não te seja o dizer-mo mui penoso;
E entenderei por ti taes accidentes.{294}
            SOLISO.

  N'outro tempo me fôra deleitoso
Por extremo, Sylvano, gôsto dar-te;
Mas todo gôsto agora me he nojoso.
  Bem quizera poder communicar-te
A causa deste horror; mas antes quero
Anojar-me a mi proprio, que anojar-te.
  Porém ja sinto o fado tão severo,
Que quanto mais me ponho a declará-lo,
Mais então d'entendê-lo desespero.
  E se acaso o entender para contá-lo,
Se quero começar, quer a ventura
Á fôrça de soluços atalhá-lo.
  Que despois que me falta a formosura
Daquella illustre Nympha, que contente
Pudera bem fazer a noite escura,
  Foi-me faltando o esprito juntamente:
Em suspirar só gasto a noite e dia,
Sem me fartar de ver-me descontente.
            SYLVANO.
  Novidade maior em mi sería
O espantar-me de ver-te estar queixando,
Que o ver em ti desejos d'alegria.
  Responde-me ao que t'hia perguntando
Da causa desta singular tristeza:
Não gastes todo o tempo lamentando.
            SOLISO.
  Sempre em ti conheci huma dureza,
E austera inclinação, que bem declara
Quão conforme he teu nome á natureza.
  Porque se o meu tormento t'alcançára,{295}

O mor bem para ti o mor mal fôra;
E todo o mal maior te contentára.
  Deixa que chore quem com gôsto chora:
Deixa-me lamentar meu triste fado;
Que a hum triste a hora de chôro he melhor hora.
  Tu não trazes agora outro cuidado
Mais que buscar no valle a sombra fria,
Quando te offende o sol mais empinado.
  Coitado de quem passa a noite e dia
Porfiando em morrer, e a sorte dura
Em fugir-lhe co'a morte só porfia!
  Oh formosa Natercia! a excelsa altura
Do glorioso Olympo andas pizando;
E eu ausente da tua formosura!
            SYLVANO.
  Qu'he isso, que do ceo estás fallando?
Parece-me que ja não es Soliso,
Ou que de puro amar vás delirando.
            SOLISO.
  Quem ja perdeo aquelle doce riso,
Que siso produzia e dava vida,
Não he muito que perca a vida e siso.
            SYLVANO.
  Declara-me que cousa tens perdida,
De que tanto te queixas; que ao que sento,
Natercia destes valles he partida.
            SOLISO.
  Quão livre falla aquelle que o tormento
Alheio vê de fóra, mas não sente
Onde chega tamanho sentimento!
  A gloria qu'eu perdi não me consente{296}

Palavras naturaes, razões expertas,
Que possão declarar a dor presente.
  Mas nesse teu error vejo que acertas;
Porque com nenhum mal deve turbar-se
Quem só delle esperanças logra certas.
            SYLVANO.
  A quem, Soliso meu, de declarar-se
Com outro em casos taes falta vontade,
Nunca faltão razões para escusar-se.
  Não sei donde te vem tal novidade;
Pois negando-me agora o que te peço,
Suspeito que me negas a amizade.
  Se pola que te guardo te aborreço,
Sabe que só hum cego entendimento
Ás amizades faz perder o preço.
  Eu te deixarei só com teu tormento;
Mas não sem dor de ver que tanto a peito
Tomes hum tão damnoso pensamento.
            SOLISO.
  Outra he, certo, a razão, outro o respeito
Que negar-te me fez o que pedias:
Não creias que de ti tão mal suspeito.
  Bem sei que o meu descanso pretendias;
E a mesma confiança faz negar-te
O que destes sinaes saber querias.
            SYLVANO.
  Não queiras mais, Soliso, prolongar-te;
Pois pende o gôsto meu da tua vida:
Se corre risco, dá-me delle parte.
            SOLISO.
  De todo a sinto ja desfallecida{

297}
Nas lembranças daquella breve historia,
Que foi para meus males tão comprida.
  Ja me vence a tristissima memoria
Da gloria que presente me animava.
Quem pudera voar traz tanta gloria!
  Natercia qu'estes montes alegrava,
E que á casta Diana fez inveja,
E que com sua vista o sol cegava;
  Aquella a quem render-se só deseja
Aquelle que de bella mãe presume,
E a quem as armas dá com que peleja;
  Natercia, que no mundo foi hum lume,
Onde a belleza de maior estado
Incendios aprendia por costume;
  Natercia, por quem ando acompanhado
De mágoa tal, que só da morte dura
Espero o feliz fim de meu cuidado;
  Ao ceo se foi co'aquella formosura,
Qu'era mostra do ceo, gloria da terra;
Qu'era o sogeito mor da mor ventura.
  Ja não fara no prado ás almas guerra
Com a vista, senão com a lembrança;
Guerra em que o damno mais cruel s'encerra.
  Ja de vê-la não tenhas esperança;
Qu'esta vida trocou de mal cercada
Por outra, em que do bem não ha mudança.
  E a causa vês aqui de que a alvorada
Visses desta manhãa tão differente
De outra qualquer, de ti mais ponderada.
  Dizer-te o mais não posso, porque sente
Est'alma no que disse tal tormento,{298}

Qu'esta memoria apenas me consente.
  O espirito ja debil, sem alento,
No pouco que te tenho referido,
Nas azas se sostem do pensamento.
  Oh mundo! qual he aquelle tão perdido,
Qu'em ti crê, qual aquelle tão insano,
Vendo-te todo em damno instituido?
  Deixas passar hum gôsto d'anno em ano,
Porque, com nosso opprobrio e tua gloria,
Nos faças mais patente o teu engano.
  Sempre assi vai comtigo a mor victoria,
Deixando-nos somente por herança
D'hum possuido bem triste memoria.
  Quem faz de ti alguma confiança,
Sabendo ja que quem de ti confia,
D'hum engano penoso emfim se alcança?
  Aquelle da belleza novo dia
Cegaste, quando mais resplandecente
Triumphos mil d'Amor nos promettia.
  De qual tigre cruel peito inclemente
Não se rompe de mágoa, morta aquella,
Que a tristeza mil vezes fez contente?
  Quem, que vê eclipsada a vista bella,
Despois de visto haver sua beldade,
E não sabe morrer por hir traz ella?
  Como não te applacou tão tenra idade
Ao cortar do seu fio, ó Parca dura,
Que agora o mundo matas de saudade?
  Deixae, deixae, pastores, a verdura;
As frautas deixae ja, e os mansos gados;
E chorae todos vossa desventura.{

299}
  E vós, sylvestres Faunos namorados,
Tambem chorar podeis, pois ja perdêrão
O objecto mais gentil vossos cuidados.
  Nymphas, a quem os deoses concedêrão
Destes sagrados bosques a morada,
E em quem tamanhas graças escondêrão;
  Se aquella piedade costumada,
De que mais vos prezais, não esquecestes,
Que sempre foi de vós tão venerada;
  Se ja d'alheio damno vos doestes,
Do vosso proprio vos doei agora,
Pois com Natercia todo o bem perdestes.
  Oh Naiades! das ágoas sahi fóra;
E de vós ágoa saia em mal tão forte,
Pois de vê-lo tambem o monte chora.
  Oh Napêas! chorae a triste sorte
Dos miseros pastores, a quem nega
O fado por mais pena o mortal córte.
  Oh Dryas! vós, a quem Amor s'entrega,
Tomae todo o cuidado deste pranto,
Pois sabeis onde a causa delle chega.
  Deixae, ó Amadryas, entretanto
As plantas que guardais, por ajudar-me,
Pois deixa a Philomella o doce canto.
  E vós, ó vida minha, pois curar-me
Ja não podeis, deixae-me juntamente,
Porque lembranças taes possão deixar-me.
  Mas se dellas morreis, morro contente.{300}
CANÇÕES.
CANÇÃO

I.
Formosa e gentil Dama, quando vejo
A testa d'ouro e neve, o lindo aspeito,
A boca graciosa, o riso honesto,
O collo de crystal, o branco peito,
De meu não quero mais que meu desejo,
Nem mais de vós, que ver tão lindo gesto.
Alli me manifesto
Por vosso a Deos e ao mundo; alli m'inflamo
Nas lagrimas que chóro;
E de mi que vos amo,
Em ver que soube amar-vos me namóro;
E fico por mi só perdido de arte,
Qu'hei ciumes de mi por vossa parte.
  Se por ventura vivo descontente
Por fraqueza d'esprito, padecendo
A doce pena qu'entender não sei,
Fujo de mi, e acolho-me correndo
Á vossa vista; e fico tão contente,
Que zombo dos tormentos que passei.
De quem me queixarei,
Se vós me dais a vida deste geito{

301}
Nos males que padeço,
Senão de meu sogeito,
Que não cabe com bem de tanto preço?
Mas inda isto de mi cuidar não posso,
D'estar muito soberbo com ser vosso.
  Se por algum acêrto Amor vos erra
Por parte do desejo, commettendo
Algum nefando e torpe desatino;
E s'inda mais que ver, emfim, pretendo;
Fraquezas são do corpo, qu'he de terra,
Mas não do pensamento, qu'he divino.
Se tão alto imagino
Que de vista me perco, ou pecco nisto,
Desculpa-me o que vejo.
Porém como resisto
Contra hum tão atrevido e vão desejo,
Faço-me forte em vossa vista pura,
Armando-me da vossa formosura.
  Das delicadas sobrancelhas pretas
Os arcos com que fere Amor tomou,
E fez a linda corda dos cabellos:
E porque de vós tudo lhe quadrou,
Dos raios desses olhos fez as settas
Com que fere quem alça os seus a vellos.
Olhos que são tão bellos
Dão armas de vantajem ao Amor,
Com que as almas destrue.
Porém se he grande a dor
Com a alteza do mal a restitue;
E as armas com que mata são de sorte,
Que ainda lhe ficais devendo a morte.{302}

  Lagrimas, e suspiros, pensamentos,
Quem delles se queixar, formosa Dama,
Mimoso está do mal que por vós sente.
Qual bem maior deseja quem vos ama,
Qu'estar desabafando seus tormentos,
Chorando, imaginando docemente?
Quem vive descontente
Não ha de dar allívio a seu desgôsto,
Porque se lhe agradeça;
Mas com alegre rôsto
Soffra seus males, para que os mereça:
Que quem do mal se queixa, que padece,
O faz porqu'esta gloria não conhece.
  De modo que se cahe o pensamento
Em alguma fraqueza, de contente,
He porqu'este segredo não conheço.
Assi que com razões não tãosomente
Desculpo ao Amor de meu tormento,
Mas inda a culpa sua lh'agradeço.
Por esta fé mereço
A graça qu'esses olhos acompanha,
E o bem do doce riso.
Mas ah! que não se ganha
Co'hum paraiso, outro paraiso.
E d'enleada assi minha esperança
Se satisfaz co'o bem que não alcança.
  Se com razões escuso meu remedio,
Sabe, Canção, que só porque o não vejo,
Engano com palavras o desejo.{303}


CANÇÃO II.
A instabilidade da fortuna,
Os enganos suaves d'Amor cego,
(Suaves se durárão longamente)
Direi, por dar á vida algum socêgo;
Que pois a grave pena m'importuna,
Importune meu canto a toda gente.
E se o passado bem co'o mal presente
M'endurecer a voz no peito frio;
O grande desvario
Dara de minha pena sinal certo;
Que hum êrro em tantos erros he concêrto.
E pois nesta verdade me confio,
(Se verdade se achar no mal que digo)
Saiba o mundo d'Amor o desengano,
Que ja com a razão se fez amigo,
Só por não deixar culpa sem castigo.
  Ja Amor fez leis, sem ter comigo alguma;
Ja se tornou de cego razoado,
Só por usar comigo semrazões.
E se em alguma cousa o tenho errado,
Com siso grande dor não vi nenhuma:
Nem elle deo sem erros affeições.
Mas, por usar de suas isenções,
Buscou fingidas causas de matar-me:
Que para derribar-me
A este abysmo infernal de meu tormento,
Nunca soberbo foi meu pensamento,{304}


Nem pretendeo mais alto levantar-me
D'aquillo qu'elle quiz; e s'elle ordena
Qu'eu pague seu ousado atrevimento,
Saibão que o mesmo Amor, que me condena,
Me fez cahir na culpa e mais na pena.
  Os olhos, qu'eu adoro, aquelle dia
Que descêrão ao baixo pensamento,
N'alma os aposentei suavemente;
E pretendendo mais, como avarento,
O coração lhe dei por iguaria,
Que a meu mandado tinha obediente.
Mas, como lhes esteve alli presente,
E entendêrão o fim do meu desejo,
Ou por outro despejo,
Que a lingua descobrio por desvario,
Morto de sêde estou pôsto em hum rio,
Onde de meu servir o fructo vejo;
Mas logo se alça se a colhê-lo venho,
E foge-me a ágoa s'em beber porfio.
Assi qu'em fome e sêde me mantenho:
Não tẽe Tantalo a pena qu'eu sostenho.
  Despois que aquella, em quem minh'alma vive,
Quiz alcançar o baixo atrevimento,
Debaixo d'este engano a alcancei:
A nuvem do contino pensamento
Ma figurou nos braços, e assi tive
Sonhando, o que acordado desejei.
E porque a meu desejo me gabei
De conseguir hum bem de tanto preço;
Além do que padeço,
Atado em huma roda estou penando,{

305}
Qu'em mil mudanças me anda rodeando;
Onde, se a algum bem subo, logo deço.
E assi ganho, e assi perco a confiança;
E assi de mi fugindo traz mim ando;
E assi me tẽe atado huma vingança,
Como Ixião, tão firme na mudança.
  Quando a vista suave e inhumana
Meu humano desejo, de atrevido,
Commetteo, sem saber o que fazia,
(Que da sua belleza foi nascido
O cego moço, que com setta insana
O peccado vingou desta ousadia)
Afora este penar, qu'eu merecia,
Me deo outra maneira de tormento:
Que nunca o pensamento,
Voando sempre d'huma a outra parte,
Destas entranhas tristes bem se farte,
Imaginando como o famulento,
Que come mais e a fome vai crescendo,
Porque de atormentar-me não se aparte.
Assi que para a pena estou vivendo:
Sou outro novo Ticio, e não m'entendo.
  De vontades alheias, qu'eu roubava,
E que enganosamente recolhia
Em meu fingido peito, me mantinha.
O engano de maneira lhes fingia,
Que despois que a meu mando as sobjugava,
Com amor as matava, qu'eu não tinha.
Porém logo o castigo que convinha
O vingativo Amor me fez sentir,
Fazendo-me subir{306}

Ao monte da aspereza qu'em vós vejo,
Co'o pezado penedo do desejo,
Que do cume do bem me vai cahir:
Tórno a subi-lo ao desejado assento;
Torna a cahir-me: em vão, emfim pelejo.
Sisypho, não t'espantes deste alento,
Que ás costas o subi do soffrimento.
  Dest'arte o summo bem se m'offerece
Ao faminto desejo, porque sinta
A perda de perdê-lo mais penosa.
Bem como o avaro, a quem o sonho pinta
O achado d'hum thesouro, onde enriquece,
E farta a sua sêde cobiçosa;
E acordando, com furia pressurosa
Vai o sítio cavar com que sonhava;
Mas tudo o que buscava
Lhe converte em carvão a desventura;
Alli sua cobiça mais se apura,
Por lhe faltar aquillo qu'esperava:
O Amor assi me faz perder o siso.
Porque aquelles qu'estão na noite escura
Não sentirião tanto o triste abisso,
Se ignorassem o bem do Paraisso.
  Canção, não mais; que ja não sei que diga:
Mas, porque a dor me seja menos forte,
Diga o pregão a causa desta morte.{307}

C A N Ç Ã O III.


Ja a roxa manhãa clara
As portas do Oriente vinha abrindo;
Os montes descobrindo
A negra escuridão da luz avara.
O sol, que nunca pára,
Da sua alegre vista saudoso,
Traz ella pressuroso
Nos cavallos cansados do trabalho,
Que respirão nas hervas fresco orvalho,
S'estende claro, alegre e luminoso.
Os passaros voando,
De raminho em raminho vão saltando;
E com suave e doce melodia
O claro dia estão manifestando.

A manhãa bella, amena,
Seu rosto descobrindo, a espessura
Se cobre de verdura
Clara, suave, angelica, serena.
Oh deleitosa pena!
Oh effeito d'Amor alto e potente!
Pois permitte e consente
Qu'ou donde quer qu'eu ande, ou dond'esteja,
O seraphico gesto sempre veja,
Por quem de viver triste sou contente.
Mas tu, Aurora pura,
De tanto bem dá graças á ventura,
Pois as foi pôr em ti tão excellentes,
Que representes tanta formosura.

A luz suave e leda
A meus olhos me mostra por quem mouro,
Com os cabellos d'ouro,
Que nenhum ouro iguala, se os remeda.
Esta a luz he que arreda
A negra escuridão do sentimento
Ao doce pensamento;
Os orvalhos das flores delicadas
São nos meus olhos lagrimas cansadas,
Qu'eu chóro co'o prazer de meu tormento;
Os passaros que cantão,
Meus espiritos são, que a voz levantão,
Manifestando o gesto peregrino
Com tão divino som, que o mundo espantão.

Assi como acontece
A quem a chara vida está perdendo,
Qu'em quanto vai morrendo,
Alguma visão santa lh'apparece;
A mim em quem fallece
A vida, que sois vós, minha Senhora,
A est'alma, qu'em vós mora
(Em quanto da prisão s'está apartando)
Vos estais justamente apresentando
Em fórma de formosa e roxa Aurora.
Oh ditosa partida!
Oh gloria soberana, alta e subida!
Se me não impedir o meu desejo;
Porque o que vejo, emfim, me torna a vida.

Porém a natureza,
Que nesta pura vista se mantinha,
Me falta tão asinha,

Como o sol faltar soe á redondeza.
Se houverdes qu'he fraqueza
Morrer em tão penoso e triste estado,
Amor será culpado,
Ou vós, ond'elle vive tão isento,
Que causastes tão largo apartamento,
Porque perdesse a vida co'o cuidado.
Que se viver não posso,
Homem formado só de carne e osso,
Esta vida que perco, Amor ma deo;
Que não sou meu: se morro, o damno he vosso.

Canção de cysne, feita em hora extrema,
Na dura pedra fria
Da memoria te deixo em companhia
Do letreiro da minha sepultura;
Que a sombra escura ja m'impede o dia.




C A N Ç Ã O IV.


Vão as serenas ágoas
Do Mondego descendo,
E mansamente até o mar não parão;
Por onde as minhas mágoas
Pouco a pouco crescendo,
Para nunca acabar se começárão.
Alli se me mostrárão
Neste lugar ameno,
Em qu'inda agora mouro,

Testa de neve e d'ouro;
Riso brando e suave; olhar sereno;
Hum gesto delicado,
Que sempre n'alma m'estará pintado.

Nesta florída terra,
Leda, fresca e serena,
Ledo e contente para mi vivia;
Em paz com minha guerra,
Glorioso co'a pena
Que de tão bellos olhos procedia.
D'hum dia em outro dia,
O esperar m'enganava:
Tempo longo passei;
Com a vida folguei,
Só porqu'em bem tamanho s'empregava.
Mas que me presta ja,
Que tão formosos olhos não os ha?

Oh quem me alli dissera
Que d'Amor tão profundo
O fim pudesse ver eu algum'hora!
E quem cuidar pudera
Que houvesse ahi no mundo
Apartar-me eu de vós, minha Senhora!
Para que desde agora,
Ja perdida a esperança,
Visse o vão pensamento
Desfeito em hum momento,
Sem me poder ficar mais que a lembrança;
Que sempre estará firme
Até no derradeiro despedir-me.

Mas a mor alegria

Que daqui levar posso,
E com que defender-me triste espero,
He que nunca sentia
No tempo que fui vosso,
Quererdes-me vós quanto vos eu quero.
Porque o tormento fero
De vosso apartamento,
Não vos dará tal pena
Como a que me condena;
Que mais sentirei vosso sentimento,
Que o que a minh'alma sente.
Morra eu, Senhora; e vós ficae contente.

Tu, Canção, estarás
Agora acompanhando
Por estes campos estas claras ágoas;
E por mi ficarás
Com chôro suspirando;
Porque, ao mundo dizendo tantas mágoas,
Como huma larga historia
Minhas lagrimas fiquem por memoria.




C A N Ç Ã O IV.


S'este meu pensamento,
Como he doce e suave,
D'alma pudesse vir gritando fóra;
Mostrando seu tormento
Cruel, aspero e grave,

Diante de vós só, minha Senhora;
Pudera ser que agora
O vosso peito duro
Tornára manso e brando.
E então eu, que sempre ando
Passaro solitario, humilde e escuro,
Tornado hum cysne puro,
Brando e sonoro, por o ar voando,
Com canto manifesto
Pintára a minha pena, e o vosso gesto.
  Pintára os olhos bellos
Que trazem nas meninas
O menino que os seus nelles cegou;
Os dourados cabellos
Em tranças d'ouro finas,
A quem o sol os raios seus baixou;
A testa que ordenou
Natura tão formosa;
O bem proporcionado
Nariz, lindo, afilado,
Que cada parte tẽe da fresca rosa;
A boca graciosa,
Que o querê-la louvar he ja 'scusado.
Emfim, he hum thesouro;
Perolas dentes, e palavras ouro.
  Víra-se claramente,
(Oh Dama delicada!)
Qu'em vós s'esmerou mais a natureza.
Mas eu, de gente em gente,
Trouxera trasladada
Em meu tormento vossa gentileza;{

313}
E somente a aspereza
De vossa condição,
Senhora, não dissera,
Porque se não soubera
Qu'em vós podia haver algum senão.
E se alguem, com razão,
Porque morres? dissesse, respondêra:
Morro, porque he tão bella,
Qu'inda não sou para morrer por ella.
  E quando, por ventura,
Dama, vos offendesse,
Escrevendo de vós o que não sento,
E vossa formosura
Tanto á terra descesse,
Que a alcançasse humano entendimento;
Sería o fundamento
De tudo o qu'eu cantasse,
Todo de puro amor;
Porque o vosso louvor
Em figura de mágoas se mostrasse.
E aonde se julgasse
A causa por o effeito, a minha dor
Diria alli sem medo:
Quem me sentir verá de quem procedo.
  Logo então mostraria
Os olhos saudosos,
E o suspirar que traz a alma comsigo;
A fingida alegria;
Os passos vagarosos;
O fallar e esquecer-me do que digo;
Hum pelejar comigo,{314}

E logo desculpar-me;
Hum recear ousando;
Andar meu bem buscando,
E de o poder achar acovardar-me;
E, emfim, averiguar-me
Que o fim de tudo quanto estou fallando,
São lagrimas e amores;
São vossas isenções e minhas dores.
  Mas quem terá, Senhora,
Palavras com qu'iguale
Com vossa formosura a minha pena;
E em doce voz de fóra
Aquella gloria falle
Que dentro na minh'alma Amor ordena?
Não póde tão pequena
Fôrça d'engenho humano
Com carga tão pezada,
Se não for ajudada
D'hum piedoso olhar, d'hum doce engano,
Que fazendo-me o dano
Vão deleitoso e a dor tão moderada,
Emfim se convertesse
No gôsto dos louvores qu'escrevesse.
  Canção, não digas mais; e se teus versos
Á pena vem pequenos,
Não queirão de ti mais; que dirás menos.{

315}
CANÇÃO VI.
Com força desusada
Aquenta o fogo eterno
Huma Ilha nas partes do Oriente,
D'estranhos habitada,
Aonde o duro inverno
Os campos reverdece alegremente.
A Lusitana gente
Por armas sanguinosas
Tẽe della o senhorio.
Cercada está d'hum rio
De maritimas ágoas saudosas.
Das hervas qu'aqui nascem,
Os gados juntamente e os olhos pascem.
  Aqui minha ventura
Quiz que huma grande parte
Da vida, qu'eu não tinha, se passasse;
Para que a sepultura
Nas mãos do fero Marte
De sangue e de lembranças matizasse.
Se Amor determinasse
Que a trôco desta vida,
De mi qualquer memoria
Ficasse como historia,
Que d'huns formosos olhos fosse lida;
A vida e a alegria
Por tão doce memoria trocaria.
  Mas este fingimento,{316}

Por minha dura sórte,
Com falsas esperanças me convida.
Não cuide o pensamento
Que póde achar na morte
O que não pôde achar tão longa vida.
Está ja tão perdida
A minha confiança,
Que de desesperado,
Em ver meu triste estado,
Tambem da morte perco a esperança.
Mas oh! que s'algum dia
Desesperar pudesse, viveria.
  De quanto tenho visto
Ja agora não m'espanto,
Que até desesperar se me defende.
Outrem foi causa disto,
Pois eu nunca fui tanto
Que causasse este fogo que m'encende.
Se cuidão que m'offende
Temor d'esquecimento,
Oxalá meu perigo
Me fôra tão amigo,
Que algum temor deixára ao pensamento!
Quem vio tamanho enleio,
Que houvesse ahi'sperança sem receio?
  Quem tẽe que perder possa,
Só póde recear.
Mas triste quem não póde ja perder!
Senhora, a culpa he vossa,
Que para me matar
Bastára hum'hora só de vos não ver.{

317}
Puzestes-me em poder
De falsas esperanças:
E do que mais m'espanto,
Que nunca vali tanto,
Que visse tanto bem, como esquivanças.
Valia tão pequena
Não póde merecer tão doce pena.
  Houve-se Amor comigo
Tão brando, ou pouco irado,
Quanto agora em meus males se conhece.
Que não ha mor castigo
Para quem tẽe errado,
Que negar-lhe o castigo que merece.
Da sórte que acontece
Ao misero doente,
Da cura despedido,
Que o Medico advertido
Tudo quanto deseja lhe consente;
O Amor me consentia
Esperanças, desejos e ousadia.
  E agora venho a dar
Conta do bem passado
A esta triste vida e longa ausencia.
Quem póde imaginar
Qu'houvesse em mi peccado
Digno d'huma tão grave penitencia?
Olhae que he consciencia
Por tão pequeno êrro,
Senhora, tanta pena.
Não vêdes que he onzena?
Mas se tão longo e misero destêrro{318}

Vos dá contentamento,
Nunca m'acabe nelle o meu tormento.
  Rio formoso e claro,
E vós, ó arvoredos,
Que os justos vencedores coroais,
E ao cultor avaro,
Continuamente ledos,
D'hum tronco só diversos fructos dais;
Assi nunca sintais
Do tempo injúria algũa,
Qu'em vós achem abrigo
As mágoas que aqui digo,
Em quanto der o sol virtude á lũa;
Porque de gente em gente
Saibão que ja não mata a vida ausente.
  Canção, neste destêrro viverás,
Voz nua e descoberta,
Até que o tempo em ecco te converta.
CANÇÃO VII.
Manda-me Amor que cante docemente
O qu'elle ja em minh'alma tẽe impresso,
Com presupposto de desabafar-me;
E porque com meu mal seja contente,
Diz que o ser de tão lindos olhos preso,
Cantá-lo bastaria a contentar-me.
Este excellente modo d'enganar-me{

319}
Tomára eu só d'Amor por interêsse,
Se não s'arrependesse,
Com a pena o engenho escurecendo.
Porém a mais me atrevo,
Em virtude do gesto de qu'escrevo.
E s'he mais o que canto que o qu'entendo,
Invoco o lindo aspeito,
Que póde mais que Amor, em meu defeito.
  Sem conhecer a Amor viver sohia,
Seu arco e seus enganos desprezando,
Quando vivendo delles me mantinha.
Hum Amor enganoso, que fingia,
Mil vontades alheias enganando,
Me fazia zombar de quem o tinha.
No Touro entrava Phebo, e Progne vinha;
O corno de Acheloo Flora entornava;
Quando o Amor soltava
Os fios d'ouro, as tranças encrespadas,
Ao doce vento esquivas;
Os olhos rutilando chammas vivas;
E as rosas entre a neve semeadas;
Co'o riso tão galante,
Que hum peito desfizera de diamante.
  Hum não sei que suave respirando,
Causava hum admiravel, novo espanto,
Que as cousas insensiveis o sentião.
Alli as garrulas aves, levantando
Vozes não ordinarias em seu canto,
Como eu no meu desejo, s'encendião.
As fontes crystallinas não corrião,
D'inflammadas na vista linda e pura;{320}

Florecia a verdura,
Que andando co'os divinos pés tocava;
Os ramos se baixavão,
Ou d'inveja das hervas que pizavão,
Ou porque tudo ant'ella se baixava.
Não houve cousa, emfim,
Que não pasmasse della, e eu de mim.
  Porque, quando vi dar entendimento
Ás cousas que o não tinhão, o temor
Me fez cuidar qu'effeito em mi faria.
Conheci-me não ter conhecimento:
Porém só nisto o tive, porque Amor
Mo deixou para ver o que podia.
Tanta vingança Amor de mi queria,
Que mudava a humana natureza
Nos montes, e a dureza
Delles em mi por trôco traspassava.
Oh que gentil partido,
Trocar o ser do monte sem sentido,
Por o qu'em hum juizo humano estava!
Olhae que doce engano!
Tirar commum proveito de meu dano.
  Assi qu'indo perdendo o sentimento
A parte racional, m'entristecia
Vê-la a hum appetite submettida.
Mas dentro n'alma o fim do pensamento,
Por tão sublime causa, me dizia
Qu'era razão ser a razão vencida.
Assi que quando a via ser perdida,
A mesma perdição a restaurava:
E em mansa paz estava{321}

Cada hum com seu contrário em hum sogeito.
Oh grão concêrto este!
Quem será que não julgue por celeste
A causa donde vem tamanho effeito,
Que faz n'hum coração
Que venha o appetite a ser razão?
  Aqui senti d'Amor a mor fineza,
Como foi ver sentir o insensivel,
E o ver a mi de mi proprio perder-me:
E, emfim, senti negar-se a natureza;
Por onde cri que tudo era possivel
Aos lindos olhos seus, senão querer-me.
Despois que ja senti desfallecer-me,
Em lugar do sentido que perdia,
Não sei quem m'escrevia
Dentro n'alma co'as letras da memoria
O mais deste processo,
Co'o claro gesto juntamente impresso,
Que foi a causa de tão longa historia.
Se bem a declarei,
Eu não a escrevo, d'alma a trasladei.
  Canção, se quem te ler
Não crer dos olhos lindos o que dizes,
Por o que a si s'esconde;
Os sentidos humanos (lhe responde)
Não podem dos divinos ser juizes,
Senão hum pensamento
Que a falta suppra a fé do entendimento.{322}

CANÇÃO VIII.[3]
Manda-me Amor que cante o qu'a alma sente,
Caso que nunca em verso foi cantado,
Nem d'antes entre a gente acontecido.
Assi me paga em parte o meu cuidado;
Pois que quer que me louve e represente
Quão bem soube no mundo ser perdido.
Sou parte, e não serei da gente crido:
Mas he tamanho o gôsto de louvar-me,
E de manifestar-me
Por captivo de gesto tão formoso,{

323}
Que todo o impedimento
Rompe e desfaz a gloria do tormento
Peregrino, suave e deleitoso;
Que bem sei que o que canto
Ha d'achar menos credito qu'espanto.
  Em vivia do cego Amor isento,
Porém tão inclinado a viver preso,
Que me dava desgôsto a liberdade.
Hum natural desejo tinha acceso
D'algum ditoso e doce pensamento,
Que m'illustrasse a insana mocidade.
Tornava do anno ja a primeira idade;
A revestida terra s'alegrava,
Quando o Amor me mostrava
De fios d'ouro as tranças desatadas
Ao doce vento estivo;
Os olhos rutilando lume vivo,
As rosas entre a neve semeadas;
O gesto grave e ledo,
Que juntos move em mi desejo e medo.
  Hum não sei que suave respirando,
Causava hum desusado e novo espanto,
Que as cousas insensiveis o sentião.
Porque as garrulas aves, entretanto
Vozes desordenadas levantando,
Como eu em meu desejo, s'encendião.
As fontes crystallinas não corrião,
Inflammadas na vista clara e pura;
Florecia a verdura,
Que, andando, co'os ditosos pés tocava;
As ramas se baixavão,{324}

Ou d'inveja das hervas que pizavão,
Ou porque tudo ant'elles se baixava:
O ar, o vento, o dia,
D'espiritos continuos influia.
  E quando vi que dava entendimento
A cousas fóra delle, imaginei
Que milagres faria em mi que o tinha:
Vi que me desatou da minha lei,
Privando-me de todo sentimento,
E em outra transformando a vida minha.
Com tamanhos poderes d'Amor vinha,
Que o uso dos sentidos me tirava.
E não sei como o dava
Contra o poder e ordem da natura,
Ás arvores, aos montes,
Á rudeza das hervas e das fontes,
Que conhecêrão logo a vista pura.
Fiquei eu só tornado
Quasi em hum rudo tronco d'admirado.
  Despois de ter perdido o sentimento,
D'humano hum só desejo me ficava,
Em que toda a razão se convertia.
Mas não sei quem no peito m'affirmava
Que por tão alto e doce pensamento,
Com razão, a razão se me perdia.
Assi que quando mais perdida a via,
Na sua mesma perda se ganhava.
Em doce paz estava
Com seu contrário proprio em hum sogeito.
Oh caso estranho e novo!
Por alta e grande certamente approvo{325}

A causa, donde vem tamanho effeito,
Que faz n'hum coração
Que hum desejo, sem ser, seja razão.
  Despois d'entregue ja ao meu desejo,
Ou quasi nelle todo convertido,
Solitario, sylvestre e inhumano,
Tão contente fiquei de ser perdido,
Que me parece tudo quanto vejo
Escusado, senão meu proprio dano.
Bebendo este suave e doce engano,
A trôco dos sentidos que perdia,
Vi que Amor m'esculpia
Dentro n'alma a figura illustre e bella,
A gravidade, o siso,
A mansidão, a graça, o doce riso.
E porque não cabia dentro nella
De bens tamanhos tanto,
Sahe por a boca convertido em canto.
  Canção, se te não crerem
Daquelle claro gesto quanto dizes,
Por o que se lhe esconde;
Os sentidos humanos (lhe responde)
Não podem dos divinos ser juizes,
Senão hum pensamento,
Que a falta suppra a fé do entendimento.{326}

CANÇÃO IX.
Tomei a triste pena
Ja de desesperado
De vos lembrar as muitas que padeço;
Vendo que me condena
A ficar eu culpado
O mal que me tratais, e o que mereço.
Confesso que conheço
Qu'em parte a causa dei
Ao mal em que me vejo,
Pois sempre o meu desejo
A tão largas promessas entreguei;
Mas não tive suspeita
Que seguisseis tenção tão imperfeita.
  S'em vosso esquecimento
Tão condemnado estou,
Como os sinaes demostrão, que mostrais;
Neste vivo tormento,
Lembranças mais não dou
Que as que desta razão tomar queirais:
Olhae que me tratais
Assi de dia em dia
Com vossas esquivanças;
E as vossas esperanças,
De que vãamente ja m'enriquecia,
Renovão a memoria;
Pois com a ter de vós só tenho gloria.
  E s'isto conhecesseis{

327}
Ser verdade mais pura
Do que d'Arabia o ouro reluzente;
Inda que não quizesseis,
Essa condição dura
Em branda se mudára facilmente.
Eu, vendo-me innocente,
Senhora neste caso,
Bem no arbitrio o puzera
De quem sentença dera,
Com que o que he justo se mostrasse raso;
Se, emfim, não receára
Que a vós por mi, e a mi por vós matára.
  Em vós escrita vi
Vossa grande dureza,
E n'alma escrita está, que de vós vive:
Não que acabasse alli
Sua grande firmeza
O triste desengano qu'então tive;
Porque antes que me prive
A dor de meus sentidos,
Ao penoso tormento
Acode o entendimento
Com dous fortes soldados guarnecidos
De rica pedraria,
Que ficão sendo minha luz e guia.
  Destes acompanhado
Estou pôsto sem medo
A tudo o que o fatal destino ordene:
Póde ser que cansado,
Ou seja tarde, ou cedo,
Com pena de penar-me, me despene.{328}

E quando me condene
(Qu'he o que mais espero)
Inda a penas maiores;
Perdidos os temores,
Por mais que venhão, não direi, não quero.
Estou, emfim, tão forte,
Que não pode mudar-me a propria morte.
  Canção, se ja não queres
Crer tanta crueldade,
Lá vae onde verás minha verdade.
CANÇÃO X.
Junto d'hum sêcco, duro, esteril monte,
Inutil e despido, calvo e informe,
Da natureza em tudo aborrecido;
Onde nem ave vôa, ou fera dorme,
Nem corre claro rio, ou ferve fonte,
Nem verde ramo faz doce ruido;
Cujo nome, do vulgo introduzido,
He Feliz, por antiphrasi infelice;
O qual a natureza
Situou junto á parte,
Aonde hum braço d'alto mar reparte
A Abassia da Arabica aspereza,
Em que fundada ja foi Berenice,
Ficando á parte, donde
O sol, que nella ferve, se lh'esconde;{329}

  O cabo se descobre, com que a costa
Africana, que do Austro vem correndo,
Limite faz, Arómata chamado:
Arómata outro tempo; que volvendo
A roda, a ruda lingua mal composta
Dos proprios outro nome lhe tẽe dado.
Aqui, no mar, que quer apressurado
Entrar por a garganta deste braço,
Me trouxe hum tempo e teve
Minha fera ventura.
Aqui nesta remota, aspera e dura
Parte do mundo, quiz que a vida breve
Tambem de si deixasse hum breve espaço;
Porque ficasse a vida
Por o mundo em pedaços repartida.
  Aqui me achei gastando huns tristes dias,
Tristes, forçados, maos e solitarios,
De trabalho, de dor, e d'ira cheios:
Não tendo tãosomente por contrarios
A vida, o sol ardente, as ágoas frias,
Os ares grossos, férvidos e feios,
Mas os meus pensamentos, que são meios
Para enganar a propria natureza,
Tambem vi contra mi;
Trazendo-me á memoria
Alguma ja passada e breve gloria,
Qu'eu ja no mundo vi, quando vivi;
Por me dobrar dos males a aspereza;
Por mostrar-me que havia
No mundo muitas horas d'alegria.
  Aqui'stive eu com estes pensamentos{330}

Gastando tempo e vida; os quaes tão alto
Me subião nas asas, que cahia
(Oh vêde se seria leve o salto!)
De sonhados e vãos contentamentos
Em desesperação de ver hum dia.
O imaginar aqui se convertia
Em improvisos choros e em suspiros,
Que rompião os ares.
Aqui a alma captiva,
Chagada toda, estava em carne viva,
De dores rodeada e de pezares,
Desamparada e descoberta aos tiros
Da soberba Fortuna;
Soberba, inexoravel e importuna.
  Não tinha parte donde se deitasse,
Nem esperança alguma, onde a cabeça
Hum pouco reclinasse, por descanso:
Tudo dor lhe era e causa que padeça,
Mas que pereça não; porque passasse
O que quiz o destino nunca manso.
Oh qu'este irado mar gemendo amanso!
Estes ventos, da voz importunados,
Parece que se enfreião:
Somente o Ceo severo,
As estrellas e o fado sempre fero,
Com meu perpétuo damno se recreião;
Mostrando-se potentes e indignados
Contra hum corpo terreno,
Bicho da terra vil e tão pequeno.
  Se de tantos trabalhos só tirasse
Saber inda por certo que algum'hora{

331}
Lembrava a huns claros olhos que ja vi;
E s'esta triste voz, rompendo fóra,
As orelhas angelicas tocasse
Daquella em cuja vista ja vivi;
A qual, tornando hum pouco sôbre si,
Revolvendo na mente pressurosa
Os tempos ja passados
De meus doces errores,
De meus suaves males e furores,
Por ella padecidos e buscados,
E (pôsto que ja tarde) piedosa,
Hum pouco lhe pezasse,
E lá entre si por dura se julgasse:
  Isto só que soubesse me seria
Descanso para a vida que me fica;
Com isto affagaria o soffrimento.
Ah Senhora! Ah Senhora! E que tão rica
Estais, que cá tão longe d'alegria
Me sustentais com doce fingimento!
Logo que vos figura o pensamento,
Foge todo o trabalho e toda a pena.
Só com vossas lembranças
Me acho seguro e forte
Contra o rosto feroz da fera morte;
E logo se me juntão esperanças
Com que, a fronte tornada mais serena,
Torno os tormentos graves
Em saudades brandas e suaves.
  Aqui com ellas fico perguntando
Aos ventos amorosos, que respirão
Da parte donde estais, por vós Senhora;{332}

Ás aves qu'alli voão, se vos virão,
Que fazieis, qu'estaveis praticando;
Onde, como, com quem, que dia e que hora.
Alli a vida cansada se melhora,
Toma espiritos novos, com que vença
A fortuna e trabalho,
Só por tornar a ver-vos,
Só por ir a servir-vos e querer-vos.
Diz-me o tempo que a tudo dará talho:
Mas o desejo ardente, que detença
Nunca soffreo, sem tento
Me abre as chagas de novo ao soffrimento.
  Assi vivo; e s'alguem te perguntasse,
Canção, porque não mouro;
Podes-lhe responder; que porque mouro.
CANÇÃO XI.
Vinde cá meu tão certo Secretario
Dos queixumes que sempre ando fazendo,
Papel, com quem a pena desaffógo.
As semrazões digamos, que vivendo
Me faz o inexoravel e contrário
Destino, surdo a lagrimas e a rôgo.
Lancemos ágoa pouca em muito fogo,
Accenda-se com gritos hum tormento,
Que a todas as memorias seja estranho.
Digamos mal tamanho{

333}
A Deos, ao mundo, á gente e, emfim, ao vento,
A quem ja muitas vezes o contei,
Tanto debalde como o conto agora.
Mas ja que para errores fui nascido,
Vir este a ser hum delles não duvido.
E, pois ja d'acertar estou tão fóra,
Não me culpem tambem se nisto errei.
Se quer este refúgio só terei,
Fallar e errar, sem culpa, livremente.
Triste quem de tão pouco está contente!
  Ja me desenganei que de queixar-me
Não s'alcança remedio; mas quem pena,
Forçado lh'he gritar, se a dor he grande.
Gritarei; mas he debil e pequena
A voz para poder desabafar-me;
Porque nem com gritar a dor se abrande.
Quem me dará se quer que fóra mande
Lagrimas e suspiros infinitos,
Iguaes ao mal que dentro na alma mora?
Mas quem pôde algum'hora
Medir o mal com lagrimas, ou gritos?
Direi, emfim, aquillo que m'ensinão
A ira, e mágoa, e dellas a lembrança,
Que outra dor he por si mais dura e firme.
Chegae, desesperados, para ouvir-me;
E fujão os que vivem d'esperança,
Ou aquelles que nella se imaginão;
Porque Amor e Fortuna determinão
De lhes deixar poder para entenderem
Á medida dos males que tiverem.
  Quando vim da materna sepultura{334}


De novo ao mundo, logo me fizerão
Estrellas infelices obrigado:
Com ter livre alvedrio, mo não derão;
Qu'eu conheci mil vezes na ventura
O melhor, e o peor segui forçado.
E para que o tormento conformado
Me dessem com a idade, quando abrisse
Inda menino os olhos brandamente,
Mândão que diligente
Hum menino sem olhos me ferisse.
As lagrimas da infancia ja manavão
Com huma saudade namorada;
O som dos gritos, que no berço dava,
Ja como de suspiros me soava.
Co'a idade e fado estava concertado:
Porque quando por caso m'embalavão,
Se d'Amor tristes versos me cantavão,
Logo m'adormecia a natureza;
Que tão conforme estava co'a tristeza!
  Foi minh'ama huma fera; que o destino
Não quiz que mulher fosse a que tivesse
Tal nome para mi; nem a haveria.
Assi criado fui, porque bebesse
O veneno amoroso de menino,
Que na maior idade beberia,
E por costume não me mataria.
Logo então vi a image e semelhança
Daquella humana fera tão formosa,
Suave e venenosa,
Que me criou aos peitos da esperança;
De quem eu vi despois o original,{335}


Que de todos os grandes desatinos
Faz a culpa soberba e soberana.
Parece-me que tinha fórma humana,
Mas scintilava espiritos divinos.
Hum meneio, e presença tinha tal,
Que se vangloriava todo o mal
Na vista della: a sombra co'a viveza
Excedia o poder da natureza.
  Que genero tão novo de tormento
Teve Amor, sem que fosse não somente
Provado em mi, mas todo executado?
Implacaveis durezas, que ao fervente
Desejo, que dá fôrça ao pensamento,
Tinhão de seu proposito abalado,
E corrido de ver-se e injuriado:
Aqui sombras phantasticas, trazidas
D'algumas temerarias esperanças;
As bem-aventuranças
Tambem nellas pintadas e fingidas.
Mas a dor do desprêzo recebido,
Que todo o phantasiar desatinava,
Estes enganos punha em desconcêrto.
Aqui o adivinhar, e o ter por certo
Qu'era verdade quanto adivinhava,
E logo o desdizer-me de corrido;
Dar ás cousas que via outro sentido;
E para tudo, emfim, buscar razões:
Mas erão muitas mais as semrazões.
  Não sei como sabía estar roubando
Co'os raios as entranhas, que fugião
Par'ella por os olhos subtilmente!{336}

Pouco a pouco invisiveis me sahião;
Bem como do véo humido exhalando
Está o subtil humor o sol ardente.
O gesto puro, emfim, e transparente,
Para quem fica baixo e sem valia
Este nome de bello e de formoso;
O doce e piedoso
Mover d'olhos, que as almas suspendia,
Forão as hervas magicas, que o Ceo
Me fez beber: as quaes por longos anos
N'outro ser me tiverão transformado,
E tão contente de me ver trocado,
Que as mágoas enganava co'os enganos;
E diante dos olhos punha o véo,
Que m'encobrisse o mal que assi cresceo:
Como quem com affagos se criava
Daquella para quem crescido estava.
  Pois quem póde pintar a vida ausente,
Com hum descontentar-me quanto via,
E aquell'estar tão longe donde estava;
O fallar sem saber o que dizia;
Andar sem ver por onde, e juntamente
Suspirar sem saber que suspirava?
Pois quando aquelle mal m'atormentava,
E aquella dor, que das Tartareas ágoas
Sahio ao mundo, e mais que todas doe,
Que tantas vezes soe
Duras íras tornar em brandas mágoas?
Agora co'o furor da mágoa irado,
Querer, e não querer deixar de amar;
E mudar n'outra parte, por vingança,{

337}
O desejo privado d'esperança,
Que tão mal se podia ja mudar?
Agora a saudade do passado,
Tormento puro, doce e magoado,
Que converter fazia estes furores
Em magoadas lagrimas d'amores?
  Que desculpas comigo só buscava,
Quando o suave Amor me não soffria
Culpa na cousa amada, e tão amada!
Erão, emfim, remedios que fingia
O medo do tormento, qu'ensinava
A vida a sustentar-se d'enganada.
Nisto huma parte della foi passada;
Na qual se tive algum contentamento
Breve, imperfeito, timido, indecente,
Não foi senão semente
D'hum cumprido, amarissimo tormento.
Este curso contino de tristeza,
Estes passos vãamente derramados,
Me forão apagando o ardente gôsto,
Que tão de siso n'alma tinha pôsto,
Daquelles pensamentos namorados
Com que criei a tenra natureza,
Que do longo costume da aspereza,
Contra quem fôrça humana não resiste,
Se converteo no gôsto de ser triste.
  Dest'arte a vida em outra fui trocando;
Eu não, mas o destino fero, irado;
Qu'eu, inda assi, por outra a não trocára.
Fez-me deixar o patrio ninho amado,
Passando o longo mar, que ameaçando{338}

Tantas vezes m'esteve a vida chara.
Agora exprimentando a furia rara
De Marte, que nos olhos quiz que logo
Visse, e tocasse o acerbo fructo seu.
E neste escudo meu
A pintura verão do infesto fogo.
Agora peregrino, vago, errante,
Vendo nações, linguagens e costumes,
Ceos varios, qualidades differentes,
Só por seguir com passos diligentes
A ti, Fortuna injusta, que consumes
As idades, levando-lhes diante
Huma esperança em vista de diamante:
Mas quando das mãos cahe se conhece
Que he fragil vidro aquillo que apparece.
  A piedade humana me faltava,
A gente amiga ja contrária via,
No perigo primeiro; e no segundo,
Terra em que pôr os pés me fallecia,
Ar para respirar se me negava,
E faltava-me, emfim, o tempo e o mundo.
Que segredo tão arduo e tão profundo,
Nascer para viver e para a vida,
Faltar-me quanto o mundo tẽe para ella!
E não poder perdella,
Estando tantas vezes ja perdida!
Emfim, não houve trance de fortuna,
Nem perigos, nem casos duvidosos,
Injustiças daquelles que o confuso
Regimento do mundo, antigo abuso,
Faz sôbre os outros homens poderosos,{

339}
Qu'eu não passasse, atado á fiel coluna
Do soffrimento meu, que a importuna
Perseguição de males em pedaços
Mil vezes fez á fôrça de seus braços.
  Não conto tantos males, como aquelle
Que despois da tormenta procellosa,
Os casos della conta em porto ledo;
Qu'inda agora a fortuna fluctuosa
A tamanhas miserias me compelle,
Que de dar hum só passo tenho medo.
Ja de mal que me venha não m'arredo,
Nem bem que me falleça ja pretendo;
Que para mi não val astucia humana,
De fôrça soberana,
Da Providencia, emfim, Divina pendo.
Isto que cuido e vejo, ás vezes tomo
Para consolação de tantos danos.
Mas a fraqueza humana quando lança
Os olhos no que corre, e não alcança
Senão memoria dos passados anos;
As ágoas qu'então bebo, e o pão que como,
Lagrimas tristes são, qu'eu nunca domo,
Senão com fabricar na phantasia
Phantasticas pinturas d'alegria.
  Que se possivel fosse que tornasse
O tempo para traz, como a memoria,
Por os vestigios da primeira idade;
E de novo tecendo a antigua historia
De meus doces errores, me levasse
Por as flores que vi da mocidade;
E a lembrança da longa saudade{340}


Então fosse maior contentamento,
Vendo a conversação leda e suave,
Onde huma e outra chave
Esteve de meu novo pensamento,
Os campos, as passadas, os sinais,
A vista, a neve, a rosa, a formosura,
A graça, a mansidão, a cortezia,
A singela amizade, que desvia
Toda a baixa tenção, terrena, impura,
Como a qual outra alguma não vi mais...
Ah vãas memorias! onde me levais
O debil coração, qu'inda não posso
Domar bem este vão desejo vosso?
  Não mais, Canção, não mais; qu'irei fallando,
Sem o sentir, mil annos; e se acaso
Te culparem de larga e de pezada;
Não póde ser (lhe dize) limitada
A ágoa do mar em tão pequeno vaso.
Nem eu delicadezas vou cantando
Co'o gôsto do louvor, mas explicando
Puras verdades ja por mi passadas.
Oxalá forão fábulas sonhadas!
CANÇÃO XII.
Nem roxa flor de Abril,
Pintor do campo ameno e da verdura,
Colhida entre outras mil,{

341}
Foi nunca assi agradavel á donzella
Cortez, alegre e bella,
De sua mãe cuidado e glória pura,
Como a mi foi a inculta formosura
Natural, que pudera
A Saturno render na sua Esphera.
  Natural fonte agreste,
Não lavrada d'Artifice excellente,
Mas por arte celeste
Derivada de rustico penedo,
Não fez ja mais tão ledo
Cansado caçador por sesta ardente,
Quanto o cuidado a mi me fez contente
Do ver tão descuidado,
Que faz sereno a Jupiter irado.
  Fructa, que sem concêrto
Naturalmente em ramos se pendura,
Achada por acêrto;
A quem pintada a vê de sangue e leite,
Não lhe dara o deleite,
Qu'essa graça me dá sem compostura,
Ornamento da mesma formosura,
E o toucado sem arte,
Que tornára pastor ao bravo Marte.
  A manhãa graciosa,
Que derramando sahe d'entre os cabellos
A flor, o lirio, a rosa,
Sem ajuda d'ornato, ou d'artificio,
Não faz o beneficio,
Que faz a luz dos vossos olhos bellos
A quem os vê tão puros e singelos;{342}

E esse innocente riso,
Por quem Apollo o Tejo torna Amphriso.
  Outeiros coroados
Das árvores que fazem a espessura
Com os ramos copados
Alegre, que mão destra os não cultiva,
Graça tão excessiva
Não tẽe na sua natural verdura,
Quanta na d'esses olhos, clara e pura,
Deposita a esperança,
Com que Amor gôsto, a mãe tormento alcança.
  Dos simples passarinhos
A musica sem arte concertada,
D'entre os verdes raminhos,
Tão suave não he, tão deleitosa
A quem na selva umbrosa
Com mente ouvindo-a está toda enlevada,
Quanto a mi essa falla doce agrada,
E o natural aviso,
Que roubão a Mercurio sceptro e siso.
  De frescos rios ágoa,
Que clara entre arvoredos se deriva,
Cahindo d'alta fragoa,
Esmaltando de perolas no prado
O verde delicado,
Com brando som aos olhos fugitiva,
Não nos alegra quanto a graça esquiva
D'essa luz soberana,
Que faz cortez a rustica Diana.
  A tal luz (ó Canção, que ousaste vella!)
Vendo estás ja prostrado{343}

Saturno triste, Jupiter irado,
Bravo Marte, aureo Apollo, Venus bella,
E Mercurio, e Diana, e toda estrella.
CANÇÃO XIII.
Oh pomar venturoso,
Onde co'a natureza
A subtil arte tẽe demanda incerta;
Qu'em sítio tão formoso
A maior subtileza
D'engenho em ti nos mostras descoberta!
Nenhum juizo acerta,
De cego e d'enlevado,
Se tẽe em ti mais parte
A natureza, ou arte;
Se Terra ou Ceo de ti tẽe mais cuidado,
Pois em feliz terreno
Gozas d'hum ar mais puro e mais sereno.
  De teu formoso pêzo
Se mostra o monte ledo,
E o caudaloso Zezere t'estranha,
Porque ólhas com desprêzo
Seu crystal puro e quedo,
Que com Pera os teus pés rodeia e banha.
Em ti pintura estranha,
A que Apelles cedêra,
Enigmas intricados,
E myrtos animados{344}

Vemos, que o proprio Escopas não fizera;
Em ti, co'a paz interna,
Tẽe o santo prazer morada eterna.
  Os jardins da famosa
Babel, tão nomeados,
Por maravilha o mundo não levante,
Inda que com gloriosa
Voz, qu'estão pendurados
Do instavel ar, a fama antigua cante:
Nem haja quem s'espante
Dos famosos d'Alcino;
Nem as mais doutas pennas
Cantem os de Mecenas,
Cultor de todo engenho peregrino;
Mas onde quer que vôe,
De ti só falle a Fama, e te pregôe.
  Que s'era antiguamente
De pomos d'ouro bellos
O jardim das Hesperidas ornado;
E, a pezar da serpente
Que os guardou, só colhellos
Pôde o famoso Alcides, d'esforçado;
Tu, mais avantajado,
Mostras a hum'alma casta
Seguir o que deseja,
Fugir da torpe inveja
(Pomos d'ouro que o tempo não contrasta):
Emfim, co'a caridade
Vencer o Inferno, abrir a Eternidade.
  Por tanto da ventura,
Para ti reservada,{345}

Te deixe o Ceo gozar perpetuamente;
Porque sejas figura
Da gloria avantajada
Delle mesmo, e qu'em ti se represente;
Porqu'em quanto sustente
O ceo, o mar e a terra,
Seus feitos milagrosos,
Mysterios mais gloriosos,
Com que a morte das almas nos desterra,
Por onde em nossas almas
Com mais pompas triumpha e com mais palmas,
.......................
  Goza, pois, longamente
Teu venturoso fado,
Da mãe do teu autor bem possuido:
Qu'em ti, sempre contente
De seu sublime estado,
A alma dos seus alegra e o sentido.
Cada qual preferido
Nas grandes qualidades
Ao sabio Nestor seja,
Para que o mundo os veja
Exceder as longuissimas idades;
E com a longa vida
Seja sua memoria ennobrecida.
  Canção, pois mais famosas
Por ti não podem ser
Deste monte as estancias deleitosas;
Bem póde succeder
Que aquelle que os teus numeros governa,
Por querê-las cantar te faça eterna.{346}
CANÇÃO

XIV.
Quem com sólido intento
Os segredos buscar da natureza,
Quanto d'Athenas préza,
Entregue ao mar irado, ao leve vento:
Em forjar meu tormento,
Nova Philosophia,
D'experiencias feita, Amor m'ensina.
Das Leis do antigo tempo bem declina;
Que Amor a natureza em mi varía;
Donde escola de Sabios nunca vio
Em natural sogeito
Quanto Amor em meu peito descobrio.
  As aves no ar sereno,
O gado de Proteo nas ágoas pasce;
Vive o homem e nasce
Neste mundo, qual mundo mais pequeno:
Eu tudo desordeno,
Em todos dividido;
A boca no ar, na terra o entendimento:
Dá-me esse Amor, dá-me esta o pensamento;
O coração no fogo he consumido:
Mas a ágoa, que dos olhos sempre desce,
Tẽe effeito tão vário,
Qu'em hum humor contrário o fogo cresce.
  Da vista Amor sohia
Abrir ao coração segura entrada:
Lei he ja profanada;{

347}
Que quando a luz d'huns olhos me fería,
Amando o que não via,
Qual d'escopeta o lume,
Primeiro o querer vi, que a causa visse.
Quem o desejo co'a esperança unisse,
Cego iria apos cego e vil costume;
Qu'eu dest'alma, das leis do mundo isenta,
Morta a esperança vejo,
Onde sempre o desejo se sustenta.
  Em vão se considera
Que hum semelhante a outro busca e ama,
E que foge e desama
Todo mortal a morte esquiva e fera:
Sigo huma linda fera,
Qu'esconde em vista humana
Coração de diamante e peito d'aço,
De meu sangue faminta; e satisfaço
Com cruel morte a sêde deshumana.
Assi que, sendo em tudo differente,
Corro apos minha sorte,
E se m'entrego á morte, estou contente.
  Cahe em maior defeito
Quem cuida ser sciencia clara e certa,
Que a causa descoberta
Sempre produz a si conforme o effeito:
Rendeo-me hum lindo objeito,
Que, sendo neve pura,
Vivo me abraza, e o fogo interno aviva;
Qu'esta formosa fera fugitiva,
Com ser neve, do fogo s'assegura:
Donde infiro por certo (e cesse a fama{348}
Vãa,

mentirosa e leve)
Que não desfaz a neve ardente chama.
  Bem no effeito se sente
Cessar, cessando a causa donde pende;
Que o fogo mais se accende,
Estando á vista, donde mais ausente;
Mas n'alma vivamente
A trazem debuxada,
De noite Amor, de dia o pensamento:
E quando Apollo deixa o claro assento,
Por entre sombras vejo a Nympha amada.
Pois se sem luz Amor os olhos ceva,
Cego, se não concede
Qu'em nada a Amor impede a escura treva.
  Erra quem atrevido
Pregôa ser maior que a parte o todo:
Amor me tẽe de modo,
Qu'estou n'hum'alma minha convertido:
Desta gloria ha nascido
O temor de perdê-la:
E, postoque o receio a muitos finge
Lá na imaginação Chimera e Sfinge
De mal futuro, que urde imiga estrella,
Vejo em mi, por incognito segredo,
Quando estou mais contente,
Que só do bem presente nasce o medo.
  Tẽe-se por manifesto
Parecer-se ao sogeito o accidente;
Mas inda em mi se sente
O pensamento, a côr, o riso, o gesto;
E, tendo todo o resto{349}

Da vida ja perdido
Neste tormento meu tão duro e esquivo,
A gostos morto estou, a penas vivo.
E, sendo morto ja, vive o sentido,
Porque sinta que n'alma despedida
Póde em meu mal unir-se
O ficar e o partir-se, a morte e a vida.
  Destas razões, Canção, infiro e creio,
Que ou se mudou em tudo a fórma usada
Da natural firmeza,
Ou tenho a natureza em mi mudada.
CANÇÃO XV.
Qu'he isto? Sonho? Ou vejo a Nympha pura,
Que sempre na alma vejo?
Ou me pinta o desejo
O bem qu'em vão cad'hora m'assegura?
Mal póde a noite escura,
Amando a sombra fria,
Mandar-me em sonho a luz formosa e bella,
Que se não torne em dia,
De seus luzentes raios inflammada.
Oh vista desejada
De graciosa Nympha e viva estrella!
Que ha tanto que por este mar navego
(Sem ver meu claro Polo) escuro e cego.{350}

  Nesses formosos olhos, d'enlevada,
Minh'alma se escondeo,
Quando ordenava o Ceo
Que vivesse comigo desterrada.
Vós a mais certa estrada
De ver a summa alteza,
Do efeito a causa abris a est'alma minha.
Assi mortal belleza
Só della nasce, e nella se resume;
Assi celeste lume
Lá dos ceos se deriva, e lá caminha.
Pois, como a Deos unir-me a vista possa,
Porque a negais, meu sol, a est'alma vossa?
  Se me quereis prender a parte a parte,
Cabello ondado e louro,
Tecei-me a rede de ouro
Em que prendeo Vulcano a Cypria e Marte.
Des que com gentil arte
Vestis de flores bellas
A terra em que tocais co'a bella planta,
Quantas vezes com vellas
Quiz n'huma d'essas flores transformar-me?
Porque, vendo pizar-me
D'esse candido pé, que a neve espanta,
Póde ser que na flor mudado fôra
Que deo a Juno irada a linda Flora.
  Mas onde te acolheste (ó doce vida!)
Mais leve e pressurosa,
Do que na selva umbrosa
Cerva d'aguda setta vai ferida?
Se para tal partida,{

351}
Meus olhos, vos abristes,
Cerrára-vos o somno eternamente,
Antes que ver-vos tristes,
Perdendo tão suave e doce engano!
Agora, com meu dano,
Vêdes, para mor mágoa, claramente,
Neste bem fugitivo e somno leve,
Que mal não ha mais longo, que hum bem breve.
  Ditoso Endymião que a deosa chara,
Que a noite vai guiando,
Teve em braços sonhando!
Ah quem de sonho tal nunca acordára!
Tu só, Aurora avara,
Quando os olhos feriste,
Me mataste cruel d'inveja pura.
Mas se d'esta alma triste
A negra escuridão vencer quizeste,
Sabe qu'em vão nasceste;
Que para desfazer-se a nevoa escura
De meus olhos, importa estar presente
Outro sol, outra aurora, outro Oriente.
  Se a luz de meu Planeta,
Não m'aviva, Canção, branda e quieta,
Qual flor de chuva, em breve consumida,
Verás desfeita em lagrimas a vida.{352}
CANÇÃO

XVI.
Por meio d'humas serras mui fragosas,
Cercadas de sylvestres arvoredos,
Retumbando por asperos penedos,
Correm perennes ágoas deleitosas.
Na ribeira de Buina, assi chamada,
Celebrada,
Porqu'em prados
Esmaltados
Com frescura
De verdura,
Assi se mostra amena, assi graciosa,
Qu'excede a qualquer outra mais formosa;
  As correntes se vem, que acceleradas,
As hervas regalando e as boninas,
Se vão a entrar nas ágoas Neptuninas,
Por diversas ribeiras derivadas.
Com mil brancas conchinhas a aurea areia
Bem se arreia;
Voão aves;
Mil suaves
Passarinhos
Nos raminhos
Acordemente estão sempre cantando,
Com doce accento os ares abrandando.
  O doce rouxinol n'hum ramo canta,
E d'outro o pintasirgo lhe responde;
A perdiz d'entre a mata, em que s'esconde,{353}

O caçador sentindo, se levanta:
Voando vai ligeira mais que o vento;
Outro assento
Vai buscando;
Porém quando
Vai fugindo;
Retinindo,
Traz ella mais veloz a setta corre,
De que ferida logo cahe e morre.
  Aqui Progne d'hum ramo em outro ramo,
Co'o peito ensanguentado anda voando,
Cibato para o ninho indo buscando;
A leda codorniz vem ao reclamo
Do sagaz caçador, que a rede estende,
E pretende
Com engano
Fazer dano
Á coitada,
Qu'enganada
D'huns esparzidos grãos de louro trigo,
Nas mãos vai a cahir de seu imigo.
  Aqui sôa a calhandra na parreira;
A rôla geme; palra o estorninho;
Sahe a candida pomba do seu ninho;
O tordo pousa em cima da oliveira:
Vão as doces abelhas susurrando,
E apanhando
O rocio
Fresco e frio
Por o prado
D'herva or

nado,{354}
Com que o aureo licor fazem, que deo
Á humana gente a indústria d'Aristeo.
  Aqui as uvas luzidas, penduradas
Das pampinosas vides, resplandecem;
As frondiferas árvores se offrecem
Com differentes fructos carregadas:
Os peixes n'ágoa clara andão saltando,
Levantando
As pedrinhas,
E as conchinhas
Rubicundas,
Que as jucundas
Ondas comsigo trazem, crepitando
Por a praia alva com ruido brando.
  Aqui por entre as serras se levantão
Animaes Calidoneos, e os veados
Na fugida inda mal assegurados,
Porque do som dos proprios pés s'espantão.
Sahe o coelho, e lebre sahe manhosa
Da frondosa
Breve mata,
Donde a cata
Cão ligeiro.
Mas primeiro
Qu'ella ao contrário férvido s'entregue,
Ás vezes deixa em branco a quem a segue.
  Luzem as brancas e purpúreas flores,
Com que o brando Favonio a terra esmalta;
O formoso jacintho alli não falta,
Lembrado dos antiguos seus amores.
Inda na flor se mostrão

esculpidos{355}
Os gemidos:
Aqui Flora
Sempre mora;
E com rosas
Mais formosas,
Com lirios e boninas mil fragrantes,
Alegra os seus amores circumstantes.
  Aqui Narciso em líquido crystal
Se namora de sua formosura:
Nelle as pendentes ramas da'spessura
Debuxando-se estão ao natural.
Adonis, com que a linda Cytherêa
Se recrêa,
Bem florido,
Convertido
Na bonina,
Qu'Erycina
Por imagem deixou de qual sería
Aquelle por quem ella se perdia.
  Lugar alegre, fresco, accommodado
Para se deleitar qualquer amante,
A quem com sua ponta penetrante
O cego Amor tivesse derribado;
E para memorar ao som das ágoas
Suas mágoas
Amorosas,
As cheirosas
Flores vendo,
Escolhendo,
Para fazer preciosas mil capellas,
E dar por grão penhor a Nymphas b

ellas.{356}
  Eu dellas, por penhor de meus amores,
Huma capella á minha deosa dava:
Que lhe queria bem, bem lhe mostrava
O bem-mequeres entre tantas flores:
Porém, como se fôra mal-mequeres,
Os poderes
Da crueldade
Na beldade
Bem mostrou;
Desprezou
A dadiva de flores; não por minha,
Mas porque muitas mais ella em si tinha.
CANÇÃO XVII.
A vida ja passei assaz contente,
Livre tinha a vontade e o pensamento,
Sem receios d'Amor, nem da Ventura:
Mas isto foi hum bem d'hum só momento;
E á minha custa vejo claramente,
Que a vida não dá algum de muita dura.
No tempo em qu'eu vivia mais segura
D'Amor e seu cuidado,
Por me ver n'hum estado
Em qu'eu cuidei que Amor não tinha parte;
Não sinto por qual arte
Me vejo entregue a elle de tal sorte,
Qu'em quanto tarda

a morte,{357}
A esperança do bem tenho perdida.
Ai quão devagar passa a triste vida!
  Quantas vezes eu triste aqui ouvia
O meu Felicio, e outros mil pastores,
Queixar-se em vão de minha crueldade!
E mais surda então eu a seus clamores,
Que aspide surda, ou surda penedia,
Julgava os seus amores por vaidade.
Agora em pago disto a liberdade,
A vontade e o desejo
De todo entregue vejo
A quem, inda que brade, não responde;
Pois vejo que s'esconde
Ja debaixo da terra este qu'eu chamo,
Que he aquelle a quem amo,
Aquelle a quem agora estou rendida.
Ai quão devagar passa a triste vida!
  Que gloria, Amor cruel, com meu tormento,
Que louvor a teu nome accrescentaste?
Ou que te constrangeo a tal crueza,
Que com tal pressa esta alma sujeitaste
A hum mal, onde não basta o soffrimento?
Mas se, Amor, es cruel de natureza,
Bastava usar comigo da aspereza
Que usas com outra gente:
Mas tu como somente
De ver-me estar morrendo te contentas,
Quando mais me atormentas,
Então desejas mais d'atormentar-me;
E não queres matar-me{358}

Porque este mal de mi se não despida.
Ai quão devagar passa a triste vida!
  Onde cousa acharei que alegre veja?
A quem chamarei ja que me responda?
Quem me dará remedio á dor presente?
Não ha bem, que de mi ja não s'esconda;
Nem algum verei ja, que a mi o seja,
Porqu'está quem o foi da vida ausente.
Eu alguma não vi tão descontente,
Que Amor tão mal tratasse,
Qu'inda não esperasse
A seus males remedio achar vivendo:
Eu só vivo soffrendo
Hum mal tão grave e tão desesperado,
Que tanto he mais pezado,
Quanto a vida com elle he mais comprida.
Ai quão devagar passa a triste vida!
  Suaves ágoas, dura penedia,
Arvoredo sombrio, verde prado,
Donde eu ja tive livre o pensamento;
Frescas flores; e vós, meu manso gado,
Que ja m'acompanhastes na alegria,
Não me deixeis agora no tormento.
Se do mal meu vos toca sentimento,
Dae-me par'elle ajuda,
Qu'eu tenho a lingua muda,
O alento me vai ja desamparando.
Mas quando (ai triste!) quando
D'hum dia hum'hora me virá contente,
Qu'eu te veja presente,{

359}
Pastor meu, e comtigo est'alma unida?
Ai quão devagar passa a triste vida!
  Mas não sei se he sobrado atrevimento
Querer-se est'alma minha unir comtigo,
Pois della foste ja tão desprezado.
Amor me livrará deste perigo;
Que despois que lá vires meu tormento,
Creio que t'haverás por bem vingado.
E s'inda em ti durar o amor passado,
E aquella fé tão pura,
Eu estou bem segura
Que has lá de receber-me brandamente.
Aprenda em mi a gente
Quão cara huma isenção com Amor custa:
A pena dá bem justa
A hum'alma que lhe he pouco agradecida.
Ai quão devagar passa a triste vida!{360}

ODES.
ODE I.
Detem hum pouco, Musa, o largo pranto
Que Amor te abre do peito;
E vestida de rico e ledo manto,
Demos honra e respeito
Áquella, cujo objeito
Todo o mundo allumia,
Trocando a noite escura em claro dia.
  O Delia, que a pezar da nevoa grossa,
Co'os teus raios de prata
A noite escura fazes que não possa
Encontrar o que trata,
E o que n'alma retrata
Amor por teu divino
Raio, por qu'endoudeço e desatino:
  Tu, que de formosissimas estrellas
Corôas e rodeias
Tua candida fronte e faces bellas;
E os campos formoseias
Co'as rosas que semeias,
Co'as boninas que gera
O teu celeste humor na primavera:
  Para ti guarda o sítio fresco d'Ilio{361}

Suas sombras formosas;
Para ti o Erymantho e o lindo Pylio
As mais purpureas rosas;
E as drogas mais cheirosas
Desse nosso Oriente
Guarda a felice Arabia mais contente.
  De qual panthera, ou tigre, ou leopardo
As asperas entranhas
Não temêrão teu fero e agudo dardo,
Quando por as montanhas
Mais remotas e estranhas
Ligeira atravessavas,
Tão formosa que a Amor d'amor matavas?
  Pois, Delia, do teu ceo vendo estás quantos
Furtos de purídades,
Suspiros, mágoas, ais, musicas, prantos,
As conformes vontades,
Humas por saudades,
Outras por crus indicios
Fazem das proprias vidas sacrificios:
  Ja veio Endymião por estes montes
O ceo, suspenso, olhando,
E teu nome, co'os olhos feitos fontes,
Em vão sempre chamando,
Pedindo (suspirando)
Mercês á tua beldade,
Sem que ache em ti hum'hora piedade.
  Por ti feito pastor de branco gado
Nas selvas solitarias,
Só de seu pensamento acompanhado,
Conversa as alimarias,{362}

De todo Amor contrárias,
Mas não como ti duras,
Onde lamenta e chora desventuras.
  Das castas virgens sempre os altos gritos,
Clara Lucina, ouviste,
Renovando-lhe as fôrças e os espritos:
Mas os daquelle triste,
Ja nunca consentiste
Ouvi-los hum momento,
Para ser menos grave o seu tormento.
  Não fujas, não de mi! Ah não t'escondas
D'hum tão fiel amante!
Ólha como suspirão estas ondas,
E como o velho Atlante
O seu collo arrogante
Move piedosamente,
Ouvindo a minha voz fraca e doente.
  Triste de mi! Qu'alcanço por queixar-me,
Pois minhas queixas digo
A quem ja ergueo a mão para matar-me,
Como a cruel imigo?
Mas eu meu fado sigo,
Que a isto me destina,
E qu'isto só pretende e só m'ensina.
  Oh quanto ha ja que o Ceo me desengana!
Mas eu sempre porfio
Cada vez mais na minha teima insana.
Tendo livre alvedrio,
Não fujo o desvario;
Porque este em que me vejo
Engana co'a esperança o meu desejo.{

363}
  Oh quanto melhor fôra que dormissem
Hum somno perennal
Estes meus olhos tristes, e não vissem
A causa de seu mal
Fugir, a hum tempo tal,
Mais que d'antes proterva,
Mais cruel que ursa, mais fugaz que cerva!
  Ai de mi, que me abrazo em fogo vivo,
Com mil mortes ao lado;
E quando morro mais, então mais vivo!
Porque tẽe ordenado
Meu infelice fado,
Que quando me convida
A morte, para a morte tenha vida.
  Secreta noite amiga, a que obedeço,
Estas rosas (por quanto
Meus queixumes me ouviste) te offereço,
E este fresco amaranto,
Humido ja do pranto,
E lagrimas da esposa
Do cioso Titão, branca e formosa.
ODE II.
Tão suave, tão fresca e tão formosa,
Nunca no ceo sahio
A Aurora no princípio do verão,
Ás flores dando a graça costumada,{364}

Como a formosa mansa fera, quando
Hum pensamento vivo m'inspirou,
Por quem me desconheço.
  Bonina pudibunda, ou fresca rosa,
Nunca no campo abrio,
Quando os raios do sol no Touro estão,
De côres differentes esmaltada,
Como esta flor, que os olhos inclinando,
O soffrimento triste costumou
Á pena que padeço.
  Ligeira, bella Nympha, linda, irosa,
Não creio que seguio
Satyro, cujo brando coração
D'amores commovesse fera irada,
Qu'assi fosse fugindo e desprezando
Este tormento, donde Amor mostrou
Tão próspero comêço.
  Nunca, emfim, cousa bella e rigorosa
Natura produzio,
Qu'iguale aquella fórma e condição,
Que as dores em que vivo estima em nada.
Mas com tão doce gesto, irado e brando,
O sentimento, e a vida m'enlevou,
Que a pena lhe agradeço.
  Bem cuidei d'exaltar em verso, ou prosa,
Aquillo que a alma vio
Entre a doce dureza e mansidão,
Primores de belleza desusada;
Mas quando quiz voar ao ceo cantando,
Entendimento e engenho me cegou
Luz de tão alto preço.{365}
  Naquella

alta pureza deleitosa
Que ao mundo s'encobrio;
E nos olhos Angelicos, que são
Senhores desta vida destinada;
E naquelles cabellos, que soltando
Ao manso vento, a vida me enredou,
M'alegro e m'entristeço.
  Saudade e suspeita perigosa,
Que Amor constituio
Por castigo daquelles que se vão;
Temores, penas d'alma desprezada,
Fera esquivança, que me vai tirando
O mantimento que me sustentou,
A tudo me offereço.
  Amor isento a huns olhos m'entregou,
Nos quaes a Deos conheço.
ODE III.
Se de meu pensamento
Tanta razão tivera d'alegrar-me,
Quanto de meu tormento
A tenho de queixar-me,
Puderas, triste lyra, consolar-me.
  E minha voz cansada,
Qu'em outro tempo foi alegre e pura,
Não fôra assi tornada,
Com tanta desventura,
Tão rouca, tão pezada, nem tão dura.{366}

  A ser como sohia,
Pudera levantar vossos louvores;
Vós, minha Hierarchia,
Ouvíreis meus amores,
Qu'exemplo são ao mundo ja de dores.
  Alegres meus cuidados,
Contentes dias, horas e momentos,
Oh quanto bem lembrados
Sois de meus pensamentos,
Reinando agora em mi duros tormentos!
  Ai gostos fugitivos!
Ai gloria ja acabada e consumida!
Ai males tão esquivos!
Qual me deixais a vida!
Quão cheia de pezar! quão destruida!
  Mas como não he morta
Ja esta vida? como tanto dura?
Como não abre a porta
A tanta desventura,
Qu'em vão com seu poder o tempo cura?
  Mas para padecê-la
S'esforça o meu sogeito e convalece;
Que só para dizê-la,
A fôrça me fallece,
E de todo me cansa e m'enfraquece.
  Oh bem affortunado
Tu, que alcançaste com lyra toante,
Orphêo, ser escutado
Do fero Rhadamante,
E co'os teus olhos ver a doce amante!
  As infernaes figuras{

367}
Moveste com teu canto docemente;
As tres Furias escuras,
Implacaveis á gente,
Applacadas se vírão derepente.
  Ficou como pasmado
Todo o Estygio Reino co'o teu canto;
E quasi descansado
De seu eterno pranto,
Cessou de alçar Sisypho o grave canto.
  A ordem se mudava
Das penas que regendo está Plutão;
Em descanso se achava
A roda de Ixião,
E em glória quantas penas alli são.
  De todo ja admirada
A Rainha infernal e commovida,
Te deo a desejada
Esposa, que perdida
De tantos dias ja tivera a vida.
  Pois minha desventura,
Como ja não abranda hum'alma humana,
Qu'he contra mi mais dura,
E inda mais deshumana,
Que o furor de Callirrhoë profana?
  Oh crua, esquiva e fera,
Duro peito, cruel e empedernido,
D'alguma tigre fera
Lá na Hircania nascido,
Ou d'entre as duras rochas produzido!
  Mas que digo, coitado!
E de quem fio em vão minhas querellas?{368}

Só vós, ó do salgado,
Humido Reino bellas
E claras Nymphas, condoei-vos dellas.
  E d'ouro guarnecidas
Vossas louras cabeças levantando
Sôbre as ondas erguidas,
As tranças gottejando,
Sahindo todas, vinde a ver qual ando.
  Sahi em companhia,
E cantando e colhendo as lindas flores;
Vereis minha agonia,
Ouvireis meus amores,
E sentireis meus prantos, meus clamores.
  Vereis o mais perdido
E mais infeliz corpo qu'he gerado;
Qu'está ja convertido
Em chôro, e neste estado
Somente vive nelle o seu cuidado.
ODE IV.
Formosa fera humana,
Em cujo coração soberbo e rudo
A fôrça soberana
Do vingativo Amor, que vence tudo,
As pontas amoladas
De quantas settas tinha tẽe quebradas:
  Amada Circe minha,{

369}
Postoque minha não, com tudo amada;
A quem hum bem que tinha
Da doce liberdade desejada,
Pouco a pouco entreguei,
E se mais tenho, mais entregarei;
  Pois natureza irosa
Da razão te deo partes tão contrárias,
Que sendo tão formosa,
Folgues de te queimar em flammas várias,
Sem arder em nenhũa
Mais qu'em quanto allumia o mundo a lũa;
  Pois triumphando vás
Com diversos despojos de perdidos,
Que tu privando estás
De razão, de juizo e de sentidos,
E quasi a todos dando
Aquelle bem que a todos vás negando;
  Pois tanto te contenta
Ver o nocturno moço, em ferro envolto,
Debaixo da tormenta
De Jupiter em ágoa e vento sôlto,
Á porta, que impedido
Lhe tẽe seu bem, de mágoa adormecido;
  Porque não tens receio
Que tantas insolencias e esquivanças
A deosa, que põe freio
A soberbas e doudas esperanças,
Castigue com rigor,
E contra ti se accenda o fero Amor?
  Ólha a formosa Flora;
De despojos de mil suspiros rica,{370}


Por o Capitão chora,
Que lá em Thessalia, emfim, vencido fica,
E foi sublime tanto,
Que altares lhe deo Roma e nome santo.
  Ólha em Lesbos aquella
No seu salteiro insigne conhecida;
Dos muitos que por ella
Se perdêrão, perdeo a chara vida
Na rocha que se infama
Com ser remedio extremo de quem ama.
  Por o moço escolhido,
Onde mais se mostrárão as tres Graças;
Que Venus escondido
Para si teve hum tempo entre as alfaças,
Pagou co'a morte fria
A má vida que a muitos ja daria.
  E, vendo-se deixada
Daquelle por quem tantos ja deixára,
Se foi, desesperada,
Precipitar da infame rocha chara:
Que o mal de mal querida
Sabe que vida lhe he perder a vida.
  Tomae-me, bravos mares;
Vós me tomae, pois outrem me deixou.
Disse: e dos altos ares
Pendendo, com furor s'arremessou.
Acude tu, suave,
Acude, poderosa e divina ave.
  Toma-a nas azas tuas,
Menino pio, illesa e sem perigo,
Antes que nestas cruas{

371}
Ágoas cahindo apague o fogo antigo.
He digno amor tamanho
De viver, e ser tido por estranho.
  Não: qu'he razão que seja
Para as lobas isentas, que amor vendem,
Exemplo onde se veja
Que tambem ficão presas as que prendem.
Assi o deo por sentença
Nemesis, que Amor quiz que tudo vença.
ODE V.
Nunca manhãa suave
Estendendo seus raios por o mundo,
Despois de noite grave,
Tempestuosa, negra, em mar profundo
Alegrou tanto nao, que ja no fundo
Se vio em mares grossos,
Como a luz clara a mi dos olhos vossos.
  Aquella formosura,
Que só no virar delles resplandece;
E com que a sombra escura
Clara se faz, e o campo reverdece;
Quando o meu pensamento se entristece,
Ella e sua viveza
Me desfazem a nuvem da tristeza.
  O meu peito, onde estais,
He para tanto bem pequeno vaso;{372}


Quando acaso virais
Os olhos, que de mi não fazem caso,
Todo, gentil Senhora, então me abraso
Na luz que me consume,
Bem como a borboleta faz no lume.
  Se mil almas tivera
Que a tão formosos olhos entregára,
Todas quantas pudera
Por as pestanas delles pendurára;
E, enlevadas na vista pura e clara,
(Postoque disso indinas)
Se andárão sempre vendo nas meninas.
  E vós, que descuidada
Agora vivereis de taes querellas,
D'almas minhas cercada,
Não pudesseis tirar os olhos dellas;
Não póde ser que, vendo a vossa entr'ellas
A dor que lhe mostrassem,
Tantas huma alma só não abrandassem.
  Mas, pois o peito ardente
Huma só póde ter, formosa Dama,
Basta que esta somente,
Como se fossem mil e mil, vos ama,
Para que a dor de sua ardente flama
Comvosco tanto possa,
Que não queirais ver cinza hum'alma vossa.{

373}
ODE VI.
Póde hum desejo immenso
Arder no peito tanto,
Que á branda e á viva alma o fogo intenso
Lhe gaste as nodoas do terreno manto;
E purifique em tanta alteza o esprito
Com olhos immortais,
Que faz que leia mais do que vê'scrito.
  Que a flamma, que se accende
Alto, tanto allumia,
Que se o nobre desejo ao bem s'estende
Que nunca vio, o sente claro dia;
E lá vê do que busca o natural,
A graça, a viva côr,
N'outra especie melhor que a corporal.
  Pois vós, ó claro exemplo
De viva formosura,
Que de tão longe cá noto e contemplo
N'alma, que este desejo sobe e apura;
Não creais que não vejo aquella imagem
Que as gentes nunca vem,
Se de humanos não tem muita vantagem.
  Que se os olhos ausentes
Não vem a compassada
Proporção, que das côres excellentes
De pureza e vergonha he variada;
Da qual a Poesia, que cantou{374}

Atéqui só pinturas
Com mortaes formosuras igualou;
  Se não vem os cabellos
Que o vulgo chama de ouro;
E se não vem os claros olhos bellos,
De quem cantão que são de sol thesouro;
E se não vem do rosto as excellencias,
A quem dirão que deve
Rosa, e crystal, e neve as apparencias;
  Vem logo a graça pura,
A luz alta e severa,
Que he raio da divina formosura,
Que n'alma imprime e fóra reverbera;
Assi como crystal do sol ferido,
Que por fóra derrama
A recebida flamma esclarecido.
  E vem a gravidade,
Com a viva alegria
Que misturada tẽe de qualidade,
Que huma da outra nunca se desvia;
Nem deixa de ser huma receada
Por leda e por suave,
Nem outra, por ser grave, muito amada.
  E vem do honesto siso
Os altos resplandores
Temperados co'o doce e ledo riso,
A cujo abrir abrem no campo as flores;
As palavras discretas e suaves,
Das quaes o movimento
Fara deter o vento e as altas aves:
  Dos olhos o virar{

375}
Que torna tudo raso,
Do qual não sabe o engenho divisar
Se foi por artificio, ou feito acaso;
Da presença os meneios e a postura,
O andar e o mover-se,
Donde póde aprender-se formosura.
  Aquelle não sei que,
Que aspira não sei como,
Qu'invisivel sahindo, a vista o vê,
Mas para o comprender não lhe acha tomo;
E que toda a Toscana Poesia,
Que mais Phebo restaura,
Em Beatriz, nem Laura nunca via:
  Em vós a nossa idade,
Senhora, o póde ver,
S'engenho, se sciencia e habilidade,
Iguaes á vossa formosura der,
Qual a vi no meu longo apartamento,
Qual em ausencia a vejo.
Taes azas dá o desejo ao pensamento!
  Pois se o desejo afina
Hum'alma accesa tanto,
Que por vós use as partes de divina;
Por vós levantarei não visto canto,
Que o Betis me ouça, e o Tibre me levante:
Que o nosso claro Tejo,
Envolto hum pouco o vejo e dissonante.
  O campo não o esmaltão
Flores, mas só abrolhos
O fazem feio; e cuido que lhe faltão
Ouvidos para mi, para vós olhos.{376}


Mas faça o que quizer o vil costume;
Que o sol, qu'em vós está,
Na escuridão dara mais claro lume.
ODE VII.
A quem darão de Pindo as moradoras,
Tão doctas como bellas,
Florecentes capellas
De triumphante louro, ou myrto verde;
Da gloriosa palma, que não perde
A presumpção sublime,
Nem por fôrça de pêzo algum se opprime?
  A quem trarão nas faldas delicadas,
Rosas a roxa Cloris,
Conchas a branca Doris;
Estas, flores do mar; da terra aquellas,
Argenteas, ruivas; brancas e amarellas,
Com danças e corêas
De formosas Nereidas e Napêas?
  A quem farão os Hymnos, Odes, Cantos,
Em Thebas Amphion,
Em Lesbos Arion,
Senão a vós, por quem restituida
Se vê da Poesia ja perdida
A honra e gloria igual,
Senhor Dom Manoel de Portugal?
  Imitando os espritos ja passados,{

377}
Gentis, altos, Reais,
Honra benigna dais
A meu tão baixo, quão zeloso engenho.
Por Mecenas a vós celebro e tenho;
E sacro o nome vosso
Farei, se alguma cousa em verso posso.
  O rudo canto meu, que resuscita
As honras sepultadas,
As palmas ja passadas
Dos bellicosos nossos Lusitanos
Para thesouro dos futuros anos,
Comvosco se defende
Da lei Lethêa, á qual tudo se rende.
  Na vossa árvore ornada d'honra e glória
Achou tronco excellente
A hera florecente
Para a minha atéqui de baixa estima:
Nelle, para trepar, s'encosta e arrima;
E nella subireis
Tão alto, quanto os ramos estendeis.
  Sempre forão engenhos peregrinos
Da Fortuna invejados;
Que quanto levantados
Por hum braço nas azas são da Fama,
Tanto por outro aquella, que os desama,
Co'o pêzo e gravidade
Os opprime da vil necessidade.
  Mas altos corações dignos d'Imperio,
Que vencem a Fortuna,
Forão sempre coluna
Da sciencia gentil: Octaviano,{378}


Scipião, Alexandre e Graciano,
Que vemos immortais;
E vós, que o nosso seculo dourais.
  Pois, logo, em quanto a cithara sonora
S'estimar por o mundo,
Com som docto e jucundo;
E em quanto produzir o Tejo e o Douro
Peitos de Marte e Phebo crespo e louro,
Tereis glória immortal,
Senhor Dom Manoel de Portugal.
ODE VIII.
Aquelle unico exemplo
De fortaleza heroica e ousadia,
Que mereceo no templo
Da Fama eterna ter perpétuo dia;
O grão filho de Thetis, que dez anos
Flagello foi dos miseros Troianos;
  Não menos ensinado
Foi nas hervas e Medica polícia,
Que destro e costumado
No soberbo exercicio da Milicia:
Assi que as mãos que a tantos morte derão,
Tambem a muitos vida dar puderão.
  E não se desprezou
Aquelle fero e indomito mancebo
Das Artes qu'ensinou{

379}
Para o languido corpo o intonso Phebo;
Que se o temido Heitor matar podia,
Tambem chagas mortaes curar sabía.
  Taes Artes aprendeo
Do semiviro Mestre e docto velho,
Onde tanto cresceo
Em virtude, e em sciencia e em conselho,
Que Telepho, por elle vulnerado,
Só delle pôde ser despois curado.
  Pois vós, ó excellente
E illustrissimo Conde, do ceo dado
Para fazer presente
D'altos Heroes o seculo passado;
E em quem bem trasladada está a memoria
De vossos ascendentes, a honra e glória:
  Postoque o pensamento
Occupado tenhais na guerra infesta,
Ou co'o sanguinolento
Taprobano, ou Achem, que o mar molesta,
Ou co'o Cambaico, occulto imigo nosso,
Que qualquer delles teme o nome vosso;
  Favorecei a antiga
Sciencia que ja Achilles estimou;
Olhae que vos obriga
O ver qu'em vosso tempo rebentou
O fructo daquell'Orta onde florecem
Plantas novas, que os doctos não conhecem.
  Olhae qu'em vossos anos
Huma Orta produze várias hervas
Nos campos Indianos,
As quaes aquellas doctas e protervas,{380}
Medêa e Circe,

nunca conhecêrão,
Postoque a lei da Magica excedêrão.
  E vêde carregado
D'annos e traz a vária experiencia
Hum velho, qu'ensinado
Das Gangeticas Musas na sciencia
Podaliria subtil, e arte sylvestre,
Vence ao velho Chiron, d'Achilles mestre.
  O qual está pedindo
Vosso favor e amparo ao grão volume,
Qu'impresso á luz sahindo,
Dara da Medicina hum vivo lume;
E descobrir-nos-ha segredos certos,
A todos os Antiguos encobertos.
  Assi que não podeis
Negar a que vos pede benigna aura:
Que se muito valeis
Na sanguinosa guerra Turca e Maura,
Ajudae quem ajuda contra a morte;
E sereis semelhante ao Grego forte.
ODE IX.
Fogem as neves frias
Dos altos montes quando reverdecem
As árvores sombrias;
As verdes hervas crecem,
E o prado ameno de mil côres tecem.{

381}
  Zephyro brando espíra;
Suas settas Amor afia agora;
Progne triste suspira,
E Philomela chora:
O ceo da fresca terra se namora.
  Ja a linda Cytherêa
Vem, do côro das Nymphas rodeada;
A branca Pasitêa Despida e delicada,
Com as duas irmãas acompanhada.
  Em quanto as officinas
Dos Cyclopas Vulcano está queimando,
Vão colhendo boninas
As Nymphas, e cantando,
A terra co'o ligeiro pé tocando.
  Desce do aspero monte
Diana, ja cansada da espessura,
Buscando a clara fonte,
Onde por sorte dura
Perdeo Actêo a natural figura.
  Assi se vai passando
A verde Primavera e o sêcco Estio;
O Outono vem entrando;
E logo o Inverno frio,
Que tambem passará por certo fio.
  Ir-se-ha embranquecendo
Com a frigida neve o sêcco monte;
E Jupiter chovendo
Turbará a clara fonte:
Temerá o marinheiro a Orionte.
  Porque, emfim, tudo passa;{382}

Não sabe o Tempo ter firmeza em nada;
E a nossa vida escassa
Foge tão apressada,
Que quando se começa he acabada.
  Que se fez dos Troianos
Heitor temido, Enêas piedoso?
Consumírão-te os anos,
Ó Cresso tão famoso,
Sem te valer teu ouro precioso.
  Todo o contentamento
Crias qu'estava em ter thesouro ufano!
Oh falso pensamento!
Que á custa de teu dano
Do sabio Solon crêste o desengano.
  O bem que aqui se alcança,
Não dura por passante, nem por forte:
Que a bem-aventurança
Duravel, de outra sorte
Se ha de alcançar na vida para a morte.
  Porque, emfim, nada basta
Contra o terrivel fim da noite eterna;
Nem póde a deosa casta
Tornar á luz superna
Hippolyto da escura sombra averna.
  Nem Thesêo esforçado,
Ou com manha, ou com fôrça valerosa,
Livrar póde o ousado
Perithoo da espantosa
Prisão Lethêa escura e tenebrosa.{383}


ODE X.
Aquelle moço fero
Nas Pelethronias covas doctrinado
Do Centauro severo;
Cujo peito esforçado
Com tutanos de tigres foi criado.
  N'ágoa fatal menino
O lava a mãe, presaga do futuro,
Para que ferro fino
Não passe o peito duro
Que de si mesmo a si se tẽe por muro.
  A carne lh'endurece,
Porque não seja d'armas offendida.
Cega! pois não conhece
Que póde haver ferida
N'alma, e que menos doe perder a vida.
  Que donde o braço irado
Dos Troianos passava arnez e escudo,
Alli se vio passado
Daquelle ferro agudo
Do menino qu'em todos póde tudo.
  Alli se vio captivo
Da captiva gentil que serve e adora;
Alli se vio que vivo
Em vivo fogo mora,
Porque de seu senhor a vê senhora.
  Ja toma a branda lyra{384}

Na mão que a dura Pelias meneára;
Alli canta e suspira,
Não como lh'ensinára
O velho, mas o moço que o cegára.
  Pois, logo, quem culpado
Será, se de pequeno offerecido
Foi todo a seu cuidado;
No berço instituido
A não poder deixar de ser ferido?
  Quem logo fraco infante
D'outro mais poderoso foi sujeito,
E para cego amante
Desd'o princípio feito,
Com lagrimas banhando o tenro peito?
  Se agora foi ferido
Da penetrante ponta e fôrça d'herva;
E se Amor he servido
Que sirva á linda serva,
Para quem minha estrella me reserva?
  O gesto bem talhado;
O airoso meneio e a postura;
O rosto delicado,
Que na vista figura
Que s'ensina por arte a formosura,
  Como póde deixar
De render a quem tenha entendimento?
Que quem não penetrar
Hum doce gesto, attento,
Não lhe he nenhum louvor viver isento.
  Aquelles, cujos peitos
Ornou d'altas sciencias o destino.{385}

Se vírão mais sujeitos
Ao cego e vão menino,
Arrebatados do furor divino.
  O Rei famoso Hebreio,
Que mais que todos soube, mais amou;
Tanto, que a deos alheio
Falso sacrificou.
Se muito soube e teve, muito errou.
  E o grão Sabio qu'ensina,
Passeando, os segredos da Sophia,
Á baixa concubina
Do vil Eunuco Hermia
Aras ergueo, que aos deoses só devia.
  Aras ergue a quem ama
O Philosopho insigne namorado.
Doe-se a perpétua fama,
E grita qu'he culpado:
Da lesa divindade he accusado.
  Ja foge donde habita;
Ja paga a culpa enorme com destêrro.
Mas, oh grande desdita!
Bem mostra tamanho êrro
Que doctos corações não são de ferro.
  Antes na altiva mente,
No subtil sangue e engenho mais perfeito
Ha mais conveniente
E conforme sogeito,
Onde s'imprima o brando e doce affeito.{386}

ODE XI.
Naquelle tempo brando
Em que se vê do mundo a formosura,
Que Thetis descansando
De seu trabalho está, formosa e pura,
Cansava Amor o peito
Do mancebo Peleo d'hum duro affeito.
  Com impeto forçoso
Lhe havia ja fugido a bella Nympha,
Quando no tempo aquoso
Noto irado revolve a clara lympha,
Serras no mar erguendo,
Que os cumes das da terra vão lambendo.
  Esperava o mancebo,
Com a profunda dor que n'alma sente,
Hum dia em que ja Phebo
Começava a mostrar-se ao mundo ardente,
Soltando as tranças d'ouro,
Em que Clicie d'amor faz seu thesouro.
  Era no mez que Apolo
Entre os irmãos celestes passa o tempo:
O vento enfreia Eolo,
Para que o deleitoso passatempo
Seja quieto e mudo;
Que a tudo Amor obriga, e vence tudo.
  O luminoso dia
Os amorosos corpos despertava
Á cega idolatria,
Que ao peito mais contenta e mais aggrava;{

387}
Onde o cego menino
Faz que os humanos crêão que he divino:
  Quando a formosa Nympha,
Com todo o ajuntamento venerando,
Na crystallina lympha
O corpo crystallino está lavando;
O qual nas ágoas vendo,
Nelle, alegre de o ver, s'está revendo:
  O peito diamantino,
Em cuja branca teta Amor se cria;
O gesto peregrino,
Cuja presença torna a noite em dia;
A graciosa boca
Que a Amor com seus amores mais provoca;
  Os rubins graciosos;
As pérolas qu'escondem vivas rosas
Dos jardins deleitosos,
Que o ceo plantou em faces tão formosas;
O transparente collo,
Que ciumes a Daphne faz d'Apollo;
  O subtil mantimento
Dos olhos, cuja vista a Amor cegou;
A Amor que, com tormento
Glorioso, nunca delles se apartou,
Pois elles de contino
Nas meninas o trazem por menino;
  Os fios derramados
Daquelle ouro que o peito mais cobiça,
Donde Amor enredados
Os corações humanos traz e atiça,
E donde com desejo{388}

Mais ardente começa a ser sobejo.
  O mancebo Peleo,
Que de Neptuno estava aconselhado,
Vendo na terra o ceo
Em tão bella figura trasladado,
Mudo hum pouco ficou,
Porque Amor logo a falla lhe tirou.
  Emfim, querendo ver
Quem tanto mal de longe lhe fazia,
A vista foi perder,
Porque de puro amor, Amor não via:
Vio-se assi cego e mudo
Por a fôrça d'Amor que póde tudo.
  Agora s'apparelha
Para a batalha; agora remettendo;
Agora s'aconselha;
Agora vai; agora está tremendo;
Quando ja de Cupido
Com nova setta o peito vio ferido.
  Remette o moço logo
Para ond'estava a chamma sem socêgo;
E co'o sobejo fogo
Quanto mais perto estava, então mais cego:
E cego, e co'hum suspiro,
Na formosa donzella emprega o tiro.
  Vingado assi Peleo,
Nasceo deste amoroso ajuntamento
O forte Larisseo,
Destruição do Phrygio pensamento;
Que, por não ser ferido,
Foi nas ágoas Estygias submergido.{

389}
ODE XII.
Ja a calma nos deixou
Sem flores as ribeiras deleitosas;
Ja de todo seccou
Candidos lirios, rubicundas rosas:
Fogem do grave ardor os passarinhos
Para o sombrio amparo de seus ninhos.
  Meneia os altos freixos
A branda viração de quando em quando;
E d'entre vários seixos
O liquido crystal sahe murmurando:
As gottas, que das alvas pedras sáltão,
O prado, como pérolas, esmaltão.
  Da caça ja cansada
Busca a casta Titanica a espessura,
Onde á sombra inclinada
Logre o doce repouso da verdura,
E sôbre o seu cabello ondado e louro
Deixe cahir o bosque o seu thesouro.
  O ceo desimpedido
Mostrava o lume eterno das estrellas;
E de flores vestido
O campo, brancas, roxas e amarellas,
Alegre o bosque tinha, alegre o monte,
O prado, o arvoredo, o rio, a fonte.
  Porém como o menino,
Que a Jupiter por a aguia foi levado,
No cêrco crystallino{390}

For do amante de Clicie visitado;
O bosque chorará, chorará a fonte,
O rio, o arvoredo, o prado, o monte.
  O mar, que agora brando
He das Nereidas candidas cortado,
Logo se irá mostrando
Todo em crespas escumas empolado:
O soberbo furor de negro vento
Fara por toda parte movimento.
  Lei he da natureza
Mudar-se desta sorte o tempo leve:
Succeder á belleza
Da Primavera o fructo; a elle a neve;
E tornar outra vez por certo fio
Outono, Inverno, Primavera, Estio.
  Tudo, emfim, faz mudança
Quanto o claro sol vê, quanto allumia;
Não se acha segurança
Em tudo quanto alegra o bello dia:
Mudão-se as condições, muda-se a idade,
A bonança, os estados e a vontade.
  Somente a minha imiga
A dura condição nunca mudou;
Para que o mundo diga
Que nella lei tão certa se quebrou:
Em não ver-me ella só sempre está firme,
Ou por fugir d'Amor, ou por fugir-me.
  Mas ja soffrivel fôra
Qu'em matar-me ella só mostre firmeza,
Se não achára agora
Tambem em mi mudada a natureza;{391}


Pois sempre o coração tenho turbado,
Sempre d'escuras nuvens rodeado.
  Sempre exprimento os fios
Qu'em contino receio Amor me manda;
Sempre os dous caudaes rios,
Qu'em meus olhos abrio quem nos seus anda,
Correm, sem chegar nunca o Verão brando,
Que tamanha aspereza vá mudando.
  O sol sereno e puro,
Que no formoso rosto resplandece,
Envolto em manto escuro
Do triste esquecimento, não parece;
Deixando em triste noite a triste vida
Que nunca de luz nova he soccorrida.
  Porém seja o que for:
Mude-se por meu damno a natureza;
Perca a inconstancia Amor;
A Fortuna inconstante ache firmeza;
Tudo mudável seja contra mi,
Mas eu firme estarei no qu'emprendi.