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Revisão das 05h55min de 2 de janeiro de 2016

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I

De um varão em mil casos agitados,
Que as praias discorrendo do Ocidente,
Descobriu recôncavo afamado
Da capital brasílica potente;
Do Filho do Trovão denominado,
Que o peito domar soube à fera gente,
O valor cantarei na adversa sorte,
Pois só conheço herói quem nela é forte.

II

Santo Esplendor, que do Grão Padre manas
Ao seio intacto de uma Virgem bela,
Se da enchente de luzes soberanas
Tudo dispensas pela Mãe donzela;
Rompendo as sombras de ilusões humanas,
Tudo do grão caso a pura luz revela;
Faze que em ti comece e em ti conclua
Esta grande obra, que por fim foi tua.

III

E vós, Príncipe excelso, do Céu dado
Para base imortal do luso trono;
Vós, que do áureo Brasil no principado
Da real sucessão sois alto abono;
Enquanto o império tendes descansado
Sobre o seio da paz com doce sono,
Não queirais designar-vos no meu metro
De pôr os olhos e admiti-lo ao cetro.

IV

Nele vereis nações desconhecidas,
Que em meio dos sertões a fé não doma
E que puderam ser-vos convertidas
Maior império que houve em Grécia ou Roma!
Gentes vereis e terras escondidas,
Onde, se um raio da verdade assoma,
Amansando-as, tereis na turba imensa,
Outro reino maior que a Europa extensa.

V

Devora-se a infeliz, mísera gente;
E, sempre reduzida a menos terra,
Virá toda a extinguir-se, infelizmente,
Sendo, em campo menor, maior a guerra;
Olhai, senhor, com reflexão clemente
Para tantos mortais, que a brenha encerra,
E que, livrando desse abismo fundo,
Vireis a ser monarca de outro mundo.

VI

Príncipe, do Brasil futuro dono,
À mãe da Pátria, que administra o mando,
Ponde, excelso senhor, aos pés do trono
As desgraças do povo miserando;
Para tanta esperança é o justo abono
Vosso título e nome, que invocando,
Chamará, como a outro o egípcio povo,
D. José salvador de um mundo novo.

VII

Nem podereis temer que ao santo intento
Não se nutram heróis no luso povo,
Que o antigo Portugal vos apresento
No Brasil renascido, como em novo.
Vereis do domador do Índico assento
Nas guerras do Brasil alto renovo,
E que os seguem nas bélicas idéias
Os Vieiras, Barretos e os Correias.

VIII

Daí, portanto, Senhor, potente impulso,
Com que possa entoar sonoro o metro
Da brasílica gente o invicto pulso,
Que aumenta tanto império ao vosso cetro;
E, enquanto o povo do Brasil convulso
Em nova lira canto, em novo pletro,
Fazei que fidelíssimo se veja
O vosso trono em propagar-se a Igreja.

IX

Da nova Lusitânia o vasto espaço
Ia a povoar Diogo, a quem bisonho,
Chama o Brasil, temendo o forte braço,
Horrível filho do trovão medonho;
Quando do abismo por cortar-lhe o passo
Essa fúria saiu como suponho,
A quem do inferno o paganismo aluno,
Dando o Império das águas, fez Netuno.

X

O grão tridente, com que o mar comove,
Cravou dos Órgãos na montanha horrenda
E na escura caverna, adonde Jove
(Outro espírito) espalha a luz tremenda,
Relâmpagos mil faz, coriscos chove;
Bate-se o vento em hórrida contenda,
Arde o céu, zune o ar, treme a montanha,
E ergue-lhe o mar em frente outra tamanha.

XI

O filho do trovão, que em baixel ia,
Por passadas tormentas ruinoso,
Vê que do grosso mar na travessia
Se serve o lenho pelo pego undoso.
Bem que, constante, a morte não temia;
Invoca no perigo o Céu piedoso,
Ao ver que a fúria horrível da procela
Rompe a nau, quebra o leme e arranca a vela.

XII

Lança-se ao fundo o ignívomo instrumento,
Todo o peso se alija; o passageiro,
Para nadar no túmido elemento,
A tábua abraça que encontrou primeiro;
Quem se arroja no mar temendo o vento,
Qual se fia a um batel, quem a um madeiro,
Até que sobre a penha, que a embaraça,
A quilha bate e a nau de despedaça.

XIII

Sete somente do batel perdido
Vem à praia cruel, lutando a nado;
Oferece-lhes socorro fementido
Bárbara multidão, que acode ao brado;
E, ao ver na praia o benfeitor fingido,
Rende-lhe as mãos o náufrago enganado.
Tristes! que a ver algum qual fim o espera
Com quanta sede a morte não bebera!

XIV

Já estava em terra o infausto naufragante,
Rodeado da turba americana;
Vem-se com pasmo ao porem-se diante,
E uns aos outros não crêem da espécie humana;
Os cabelos, a cor, barba e semblante
Faziam crer aquela gente insana
Que alguma espécie de animal seria,
Desses que no seu seio o mar trazia.

XV

Algum, chegando aos míseros, que à areia
O mar arroja extintos, nota o vulto;
Ora o tenta despir e ora receia,
Não seja astúcia com que o assalte, oculto.
Outros, do jacaré, tornando a idéia,
Temem que acorde com violento insulto
Ou, que o sono fingindo, os arrebate
E entre presas cruéis no fundo os mate.

XVI

Mas, vendo a Sancho, um náufrago que expira,
Rota a cabeça numa penha aguda,
Que ia trêmulo a erguer-se e que caíra,
Que com voz lastimosa implora ajuda;
E vendo os olhos, que ele em branco vira,
Cadavérica a face, a boca muda,
Pela experiência da comua sorte,
Reconhecem também que aquilo é morte.

XVII

Correm, depois de crê-lo, ao pasto horrendo,
E, retalhando o corpo em mil pedaços,
Vai cada um famélico trazendo,
Qual um pé, qual a mão, qual outros os braços:
Outro na crua carne iam comendo,
Tanto na infame gula eram devassos.
Tais há que as assam nos ardentes fossos;
Alguns torrando estão na chama os ossos.

XVIII

Que horror da humanidade! ver tragada
Da própria espécie a carne já corrupta!
Quando não deve a Europa abençoada
A fé do Redentor, que humilde escuta?
Não era aquela infâmia praticada
Só dessa gente miseranda e bruta:
Roma e Cartago o sabe no noturno,
Horrível sacrifício de Saturno.

XIX

Os sete, entanto, que do mar com vida
Chegaram a tocar na infame areia,
Pasmam de ver na turba recrescida,
A brutal catadura, hórrida e feia;
A cor vermelha em si mostram tingida
De outra cor diferente, que os afeia;
Pedras e paus de embirras enfiados,
Que na face e nariz trazem furados.

XX

Na boca, em carne humana ensangüentada,
Anda o beiço inferior todo caído,
Porque a têm toda em roda esburacada,
E o labro de vis pedras embutido;
Os dentes (que é beleza que lhe agrada)
Um sobre outro desponta recrescido;
Nem se lhe vê nascer na barba o pêlo,
Chata a cara e nariz, rijo o cabelo.

XXI

Vê-se no sexo recatado o pejo,
Sem mais que antiga gala que Eva usava,
Quando por pena de um voraz desejo,
Da feia desnudez se envergonhava;
Vão sem pudor com bárbaro despejo,
Os homens, como Adão sem culpa andava;
Mas vê-se, alma Natura, o que lhe ordenas,
porque no sacrifício usam de penas.

XXII

Qual das belas araras traz vistosas,
Louras, brancas, purpúreas, verdes plumas;
Outros põem, como túnicas lustrosas,
Um verniz de balsâmicas escumas.
Nem temem nele as chuvas procelosas,
Nem o frio rigor de ásperas brumas;
Nem se receiam do mordaz besouro,
Qual anta ou qual tatu dentro em seu couro.

XXIII

Por armas frechas, arcos pedras, bestas,
A espada do pau ferro; e por escudo,
As redes de algodão, nada molestas,
Onde a ponta se embace ao dardo agudo;
Por capacete nas guerreiras testas,
Cintos de penas com galhardo estudo;
Mas o vulgo no bélico ameaço,
Não tem mais que unha ou dente, ou punho ou braço.

XXIV

Desta arte armada, a multidão confusa
Investe o naufragante enfraquecido,
Que, ao ver-se despojar, nada recusa,
Porque se enxugue o mádido vestido;
Tanto mais pelo mimo, que se lhe usa,
Quando a bárbara gente o vê rendido
Trouxeram-lhe a batata, o coco, o inhame;
Mas o que crêem piedade é gula infame.

XXV

Cevavam desta forma os desditosos,
Das fadigas marítimas desfeitos,
Por pingues ter os pastos horrorosos,
Sendo nas carnes míseras refeitos.
Feras! mas feras não, que mais monstruosos
São da nossa alma os bárbaros efeitos,
E em corruta razão mais furor cabe,
Que tanto um bruto imaginar não sabe.

XXVI

Não mui longe do mar, na penha dura,
A boca está de um antro mal aberta,
Que, horrível dentro pela sombra escura,
Toda é fora de rama encoberta.
Ali com guarda à vista se clausura
A infeliz companhia, estando alerta;
E, por cevá-los mais, dão-lhe o recreio
De ir pela praia em plácido passeio.

XXVII

Diogo então, que à gente miseranda,
Por ser de nobre sangue precedia,
Vendo que nada entende a turba infanda,
Nem do férreo mosquete usar sabia;
Da rota nau, que se descobre à banda,
Pólvora e bala em copia recolhia;
E, como enfermo que no passo tarda,
Serviu-se por bastão de uma espingarda.

XXVIII

Forte sim, mas de têmpera delicada,
Aguda febre traz desde a tormenta;
Pálido o rosto, e a cor toda mudada,
A carne sobre os ossos macilenta.
Mas foi-lhe aquela doença afortunada,
Porque a gente cruel guardá-lo intenta,
Até que, sendo a si restituído,
Como os mais vão comer, seja comido.

XXIX

Barbária foi (se crê) da antiga idade
A própria prole devorar nascida,
Desde que essa cruel voracidade
Fora ao velho Saturno atribuída;
Fingimento por fim, mas é em verdade,
Invenção do diabólico homicida,
Que uns cá se matam, e outros lá se comem:
Tanto aborrece aquela fúria ao homem.

XXX

Mas já três vezes tinha a lua enchido
Do vasto globo o luminoso aspecto,
Quando o chefe dos bárbaros temido
Fulmina contra os seis o atroz decreto.
Ordena que no altar seja oferecido
O brutal sacrifício em sangue infecto,
Sendo a cabeça às vítimas quebrada
E a gula infanda de os comer saciada.

XXXI

Entanto que se ordena a brutal festa,
Nada sabiam na marinha gruta
Os habitantes da prisão funesta,
Que ardilosa lho esconde a gente bruta;
E, enquanto a feral pompa já se apresta,
Toda a pena em favor se lhe comuta.
Nem parecem ter dado a menor ordem,
Senão que comam e comendo engordem.

XXXII

Mimosas carnes mandam, doces frutas,
O araçá, o caju, coco e mangaba;
Do bom maracujá lhe enchem as grutas,
Sobre rimas e rimas de goiaba;
Vasilhas põem de vinho nunca enxutas,
E a imunda catimpoeira, que da baba
Fazer costuma a bárbara patrulha,
Que só de ouvi-lo o estômago se embrulha.

XXXIII

Um dia, pois, que à sombra desejada
Se repousam, passando a calma ardente,
Por dar alívio à dor reconcentrada
De ver-se escravos de tão fera gente,
Fernando, um deles, diz, que aos mais agrada
Por cantigas que entoa docemente,
Que em cítara, que o mar na terra lança,
Se divirtam da fúnebre lembrança.

XXXIV

Mancebo era Fernando mui polido,
Douto em letras e em prendas celebrado,
Que, nas ilhas do Atlântico nascido,
Tinha muito coas musas conversado;
Tinha ele os rumos do Brasil seguido
Por ver o monumento celebrado
De uma estátua famosa que num pico
Aponta do Brasil ao país rico.

XXXV

Pedira-lhe Luís, que isto escutara,
De profética estátua o conto inteiro,
Se foi verdade, se invenção foi clara
De gente rude ou povo noveleiro.
Fernando então, que em metro já cantara
O sucesso, que atesta verdadeiro,
Toma nas mãos a cítara suave
E, entoando, começa em canto grave.

XXXVI

Oculto o tempo foi, incerta a era,
Em que o grão-caso contam sucedido;
Mas em parte é sem dúvida sincera
A bela história, que a escutar convido.
Feliz foi o ditoso, e feliz era
Quem tanto foi do céu favorecido,
Pois em meio ao corruto gentilismo
Merecer soube a Deus o seu batismo.

XXXVII

Incerto pelas brenhas caminhava
Um varão santo, que perdera a via,
Quando pelos cabelos o elevava
O anjo a onde o sol já se escondia;
E um selvagem lhe mostra, que se achava
Quase lutando em última agonia:
Ouve (lhe diz) o justo agonizante,
E uma estrada de luz tomou brilhante.

XXXVIII

Auréo (que assim se chama o sacro enviado),
Encostando-se ao velho titubeante,
Por ignorar-lhe o idioma não falado,
No seu diz, de que o enfermo era ignorante;
E ouve-se responder (caso admirado!)
Numa língua de todo extravagante,
Que, sendo em tudo extraordinária e bruta,
Faz-se entender, e entende-o no que escuta.

XXXIX

Do grande Criador por mensageiro
A bênção (diz) te ofereço, homem ditoso;
Neste mundo ignorado em o primeiro
Quer que o seu nome escutes glorioso;
Do Eterno pai, de um filho Verdadeiro,
Do Espírito também, laço amoroso,
Quer que o mistério saibas da verdade
São três pessoas numa só Unidade.

XL

Um só Senhor, que todo o ser governa,
Que só com dizer seja o fez de nada,
Que à natureza desde a idade eterna
Certa época fixou de ser criada;
Que, abrindo liberal a mão paterna,
Toda a coisa abençoa que é animada;
Que sua imagem nos fez, e, sem segundo,
Quer que o homem reine sobre o vasto mundo;

XLI

Que, havendo em mil delícias colocado
Nossos primeiros pais num paraíso,
Por homenagem desse império dado,
Privou de um pomo com severo aviso;
Que, vendo o seu respeito profanado
E igual satisfação sendo preciso,
No duro lenho a pôs, no férreo cravo,
E deu o filho por salvar o escravo:

XLII

Este no seio, pois, de Virgem pura,
Invocada no nome de Maria,
Redentor, mestre, e luz da criatura,
Nasceu, pregou, morreu na cruz ímpia;
Rompeu do abismo a imóvel fechadura;
Depois ressurge no terceiro dia;
E, ao céu subindo enfim, donde comanda,
Aos fins da terra os mensageiros manda.

XLIII

Um destes vendo a ti: lavar-te intento,
Se queres aceitar meu catecismo;
E, servindo de porta o sacramento,
Incorporar-te ao cristianismo.
Purga o teu coração, teu pensamento,
Por chegar puro às águas do batismo,
Onde, se entras com dor do mal primeiro,
De Jesus Cristo morrerás co-herdeiro.

XLIV

Aos primeiros acentos que escutara,
Guaçu (que este é seu nome) a frente empena;
Atenda ao que ouve a orelha e fixa a cara,
Senão que coa cabeça a tudo acena;
Dos olhos mal se serve, que cegara,
Bem que a vista pareça ter serena;
As mãos de quando em quando estende, e toca,
E pende atento da sagrada boca.

XLV

"Bom ministro (responde) do Piedoso,
Excelso grão-Tupá, que o céu modera,
ao me vens novo, não, que tive o gosto
De ouvir-te em sonho já, quem ver pudera!
Se a imagem tens, que o sono fabuloso
Há muito que de ti na mente gera!
Serás, disse (e na barba o vai tocando),
Homens com barbas, branco e venerando.

XLVI

Louvores a Tupá, que enfim chegaste;
Que o caminho me ensinas, donde elejo
Buscar logo o grão-Deus, que me anunciaste,
Que desde a infância com ardor desejo.
Nunca soube, assim é, quanto contaste;
Mas, não sei como, o que ouço e quase vejo
Sentia, como em sombra mal formada;
Não que o cresse ainda assim, mas por toada.

XLVII

Vendo desse universo a mole imensa,
Sem ser de ainda maior entendimento,
Fabricada a não cri; que ele o dispensa,
Tem, rege e guarda, infere o pensamento.
Que repugna à criatura estar suspensa,
Sem ultimo fim ter, notava atento.
E este ente, que me fez um Deus segundo,
O grão-Tupá, fabricador do mundo.

XLVIII

Vi as chagas da própria natureza,
A ignorância, a malícia, a variedade,
E bem reconheci que esta torpeza
Nascer não pode da eternal bondade,
Onde, sem o saber, cri que era acesa
Neste incêndio comum da humanidade
Antiga chama, donde o mal nos veio:
Crer que tais nos fez Deus... eu tal não creio.

XLIX

Também vi que o grão-Deus, que o mundo cria,
Deixar nunca quisera em tanto estrago
A humana natureza; e que a mão pia
De tais misérias ao profundo lago
Havia de estender: como o faria?
Suspenso fiquei sempre incerto e vago;
Mas nunca duvidei que alguém se visse
Que de tantas misérias nos remisse.

L

E como era a maior que experimentava
O ver que livremente o mal seguia;
Que a suprema Bondade se agravava
Donde um homem de bem se agravaria;
Vendo que a afronta, que esta ação causava,
Só se houvera outro Deus, se pagaria;
E impossível mais de um reconhecendo...
Daqui não passo, e cego me suspendo.

LI

Agora sim, que entendo a grã-verdade,
Que um só Deus se fez homem sem defeito;
E, sendo três pessoas na Unidade,
Do Filho ao Pai podia haver respeito.
A pessoa segunda da Trindade,
Novo homem, como nós, de terra feito,
A paz do homem com Deus fundar procura,
Redentor pio da mortal criatura.

LII

Este creio, este adoro, este confesso;
E esta santa mensagem venerando
Por meu Deus e Senhor firme o conheço,
A quem da terra e céu pertence o mando.
Deste o batismo santo hoje te peço,
Onde, na porta celestial entrando,
Suba o espírito à glória que deseja
E com estes meus olhos ainda o veja."

LIII

Disse o ditoso velho; e, acompanhando
Com devoto suspiro a voz que exprime,
Bem mostra que no peito o está tocando
A oculta unção do Espírito sublime,
As mãos ao céu levanta lagrimando;
E tanto ardor na face se lhe imprime,
Que acompanhar parece o humilde rogo
Um dilúvio de água, outro de fogo.

LIV

Então o bom ministro: "É justo, amigo,
Que chores (lhe dizia) o teu pecado,
Por não amar a Deus; ser-lhe inimigo,
Se o blasfemaste: de o não ter honrado;
De não servir teus pais; de um ódio antigo;
E se não foste honesto, ou tens roubado;
Se em mulher, bens ou fama em caso feio
Fizeste dano, ou cobiçaste o alheio.

LV

Esta a lei santa é, que em nós impressa
Ninguém ofende que mereça escusa,
Onde no que faltaste a Deus confessa,
Que tanto deve quem pecando abusa.
Quer se a satisfação com a promessa
De melhor vida, no que a lei te acusa;
Pois quem quer que pecou, que assim não faça,
Recebe o sacramento, mas não graça."

LVI

"Eu, disse o americano, antes de tudo,
Amei do coração quem ser me dera:
Seu nome ignoro, mas honrá-lo estudo,
E com fé o adorei sempre sincera;
Em certos dias, recolhido e mudo,
Cuidava em venerar quem tudo impera;
Matar não quis, nem morto algum comia,
Pois que a mim mo fizessem não queria.

LVII

Mulher tive, mas uma, persuadido
Que com uma se pode; ação impura
Meteu-me sempre horror, tendo entendido
Que só no matrimônio era segura;
Qualquer outro prazer fora proibido,
Porque, se entanto abuso se conjura,
Quem, seguindo esse instinto do demônio,
Se pudera lembrar do matrimônio?

LVIII

Nunca roubei, temendo ser roubado;
Por conservar a fama, honrei a alheia;
Não me lembra de ter caluniado,
Nem de outrem disse mal, que é coisa feia:
E quem houvesse de outro murmurado
Que outro tanto lhe façam certo creia;
Não tive inveja do que alguém consiga,
Por ver que quem a tem seu mal castiga.

LIX

Enfim, corri meus anos desde a infância
Sem ofender (que eu saiba) esta lei justa,
Sem ter à coisa boa repugnância,
Tudo mercê da mão de Deus augusta.
Nos meus males somente a tolerância
Mos fazia passar a menor custa:
Esta a minha ânsia foi, este o meu zelo,
Saber quem era Deus, tratá-lo e vê-lo."

LX

Dizendo o velho assim, tanto se acende,
Como se n'alma se lhe ateara um fogo.
Reclina a humilde fronte e a voz suspende,
E, caindo em delíquio neste afogo,
Corre o ministro, que ao sucesso atende,
E buscando água que o batize logo;
Apenas "Félix, diz, eu te batizo,"
Partiu feliz dum vôo ao paraíso.

LXI

Cuidava em sepultá-lo Auréo saudoso;
Porém de espessa névoa, que o ar condensa,
Ouve um coro entoando harmonioso
Louvor eterno majestade imensa;
E na atmosfera ali do ar nebuloso
Luz arraiando, que a alumia intensa
Viu Félix, que na glória que o vestia
A graça batismal lhe agradecia.

LXII

"Que te conceda Deus, ministro justo,
(Diz-lhe a alma venturosa) o prêmio eterno;
Pois vens do antigo mundo a tanto custo
A libertar-me do poder do inferno.
Dos céus entanto o Dominante augusto
Que tornes manda ao ninho teu paterno,
E sobre a névoa em nuvem levantada
Vás navegando pela aérea estrada.

LXIII

E quer na nuvem própria, que te indico
Que esse cadáver meu vá transportado,
E na ilha do Corvo, de alto pico
O vejam numa ponta colocado.
Onde acene ao país do metal rico,
Que o ambicioso europeu vendo indicado
Dará lugar que ouvida nele seja
A doutrina do céu e a voz da igreja."

LXIV

Disse, e, cessando a voz e a visão bela,
Viu da nuvem Auréo, que o rodeava,
Transformar-se a bela alma em clara estrela,
E viu, que a nuvem sobre o mar voava;
O cadáver também sublime nela
Ao cume do grão-pico já chegava,
Onde a névoa, que no alto se sublima,
Depõe como uma estátua o corpo em cima.

LXV

Ali batido do nevado vento,
De sol, de gelo e chuva penetrado,
Efeito natural, e não portento,
É vê-lo, qual se vê, petrificado.
Um arco tem por bélico instrumento,
De pluma um cinto sobre a frente ornado,
Outro onde era decente, em cor vermelho,
Sem pêlo a barba tem, no aspecto é velho.

LXVI

Voltado estava às partes do ocidente,
Donde o áureo Brasil mostrava a dedo,
Como ensinando à lusitana gente
Que ali devia navegar bem cedo.
Destino foi do Céu onipotente,
A fim que sem receio, ou torpe medo,
A piedosa empresa o povo corra,
E que quem morrer nela alegre morra."

LXVII

Calou então Fernando, mas não cala
Na cítara dourada outra harmonia,
Onde parece a mão que também fala,
E que quanto a voz disse repetia.
Saíra entanto um bárbaro a escutá-la,
Que, encantado da doce melodia,
Toma nas mãos o músico instrumento,
Toca-o sem arte e salta de contento.

LXVIII

Não pode ver dos nossos o congresso
Tanta rudeza sem tentar-se a riso,
Que, por mais que um pesar se tenha impresso,
Não da lugar a prevenção ao siso;
E, sendo inopinado algum sucesso,
Onde é nos homens quase o rir preciso,
Tal pessoa há que chora apaixonada
E passa do gemido a uma risada.

LXIX

Diogo então, que dentro em si media
Da cruel gente a condição danosa,
Não sossega de noite nem de dia,
Antevendo a desgraça lastimosa;
E, vendo rir os mais com alegria,
Pela ação do selvagem graciosa,
Estranhou-lhe o prazer mal concebido,
Arrancando do peito este gemido:

LXX

"Oh triste condição da humana vida,
Que tanto em breve do seu mal se esquece!
Pois vendo a liberdade enfim perdida,
Sentimos menos quando a dor mais cresce!
Vemos desde a água às praias despedida
A Infeliz gente que no mar perece,
E que o brutal gentio na mesm’hora,
Ainda bem os não vê, logo os devora.

LXXI

Quem sabe se o cuidado que destina
Pôr-nos assim mimosos de sustento
Não é por ter de nós grata chacina
Nesse horrível, barbárico alimento?
Tanta atenção que têm mal se combina,
Sem mostrar-se o maligno pensamento;
Que quem os próprios mortos brutal come
Como é crível que aos vivos mate à fome?

LXXII

Tempo fora, afligidos companheiros,
De levantar dos céus ao Rei supremo
Humildes vozes, votos verdadeiros,
Como quem luta no perigo extremo.
Mas vós que agora rides prazenteiros,
Oh quanto, amigos meus, oh quanto temo
Que essa gente cruel só nos namore,
Por cevar mais a presa que devore!

LXXIII

Voltemos antes com fervor piedoso
Os tristes olhos ao etéreo espaço,
Esperando de Deus um fim ditoso,
Onde a morte se avista a cada passo.
Contrito o peito, o coração choroso,
Implore a proteção do excelso braço;
Que o coração me diz que, por desdita,
O cruel sacrifício se medita."

LXXIV

Enquanto assim dizia, o herói prudente,
Comovido qualquer do temor justo,
Levanta humilde as mãos ao céu clemente,
Vendo o futuro com pressago susto:
Já cuida a cruel morte ver presente;
Já vê sobre a cabeça o golpe injusto;
Batem no peito e, levantando as palmas,
Fazem vítima a Deus das próprias almas.

LXXV

Já numerosa turba às praias vinha
E os seis levam ao corro miserando,
Onde a plebe cruel formada tinha
A pompa do espetáculo execrando;
E mal a gente bruta se continha,
Que, enquanto as tristes mãos lhe vão ligando,
No humano corpo pelo susto exangue,
Não vão vivo sorvendo o infeliz sangue.

LXXVI

Qual se da Líbia pelo campo estende
O mouro caçador um leão vasto,
Em longa nuvem devorá-lo emprende
O sagaz corvo, sempre atento ao pasto;
Negro parece o chão, negro, onde pende
A planta, em que do sangue explora o rasto;
Até que avista a presa e em chusma voa,
Nem deixa parte que voraz não roa:

LXXVII

Tal do caboclo foi a fúria infanda;
E o fanatismo, que na mente o cega,
Faz que, tendo esta ação por veneranda,
Invoque o grão-Tupá que o raio emprega.
No meio vê-se que em mil voltas anda
O eleito matador, como quem prega
A brados, exortando o povo insano
A ensopar toda a mão no sangue humano.

LXXVIII

A roda, à roda! a multidão fremente
Com gritos corresponde à infame idéia;
Enquanto o fero em gesto de valente
Bate o pé, fere o ar e um pau maneia,
Ergue-se um e outro lenho, onde o paciente
Entre prisões de embira se encadeia;
Fogo se acende nos profundos fossos,
Em que se torrem com a carne os ossos.

LXXIX

Dentro de uma estacada extensa e vasta,
Que a numerosa plebe em torno borda,
Entram os principais de cada casta
Com belas plumas, onde a cor discorda;
Outros, que a grenha têm com feral pasta
Do sangue humano, que ao matar transborda.
Os nigromantes são, que em. vão conjuro,
Chamam as sombras desde o Averno escuro.

LXXX

Companheiras de ofício tão nefando,
Seguem de um cabo a turma e de outro cabo,
Seis torpíssimas velhas, aparando
O sangue sem um leve menoscabo.
Tão feias são, que a face está pintando
A imagem propriíssima do diabo;
Tinto o corpo em verniz todo amarelo,
Rosto tal, que a Medusa o faz ter belo.

LXXXI

Têm no colo as cruéis sacerdotisas,
Por conta dos funestos sacrifícios,
Fios de dentes, que lhes são divisas
De mais ou menos tempo em tais ofícios.
Gratas ao céu se crêem de que indivisas
Se inculcam por tartáreos malefícios
E um testemunho do mister nefando,
Nos seus cocos com facas vêm tocando.

LXXXII

Quem pode reputar que dor trespassa
A miseranda infausta companhia,
Vendo tais feras rodear a praça,
Que o sangue com os olhos lhe bebia?
Ver que os dentes lhe range por negaça,
Senão é que os agita a fome ímpia,
E dizer la consigo. "Em poucas horas
Sou pasto destas feras tragadoras".

LXXXIII

Mas põe-lhe a vista o Padre Onipotente,
Da desgraça cruel compadecido,
E envia um anjo desde o Céu clemente,
Que deixe tanto horror desvanecido
E faça que o espetáculo presente
Venha por fim a ser sonho fingido;
Que quem recorre ao céu no mal que geme,
Logo que teme a Deus, nada mais teme.

LXXXIV

Seis então dos infames Nigromantes
Lançaram mão das vítimas pacientes,
E a seis lenhos fatais, que ergueram d’antes,
Atam cruéis as mãos dos inocentes:
Postos no céu os olhos lacrimantes,
Com lembrar-se das penas veementes
Que sofreu Deus na cruz, nele fiados
Pediam-lhe o perdão dos seus pecados.

LXXXV

Fernando ali, que em discrição precede,
Com voz sonora a companhia anima,
Cheio de viva fé, socorro pede;
E, quando a dor permite que se exprima:
"Grão-Senhor (diz) de quem tudo procede,
A glória, a pena, a confusão e a estima,
Que justo dás as graças e os castigos,
Na dor alívio, amparo nos perigos;

LXXXVI

Vida não peço aqui, morte não temo,
Nem menos choro o caso desgraçado.
O que me dói, que sinto, o que só gemo
É, piedoso Deus, o meu pecado!
Feliz serei, Grão-Padre, se no extremo
For da tua bondade perdoado,
Pelo cálix amargo que aqui bebo,
Pela morte cruel que hoje recebo.

LXXXVII

Mas, grande Deus, que vês nossa fraqueza
No duro transe desta cruel hora,
Não sofras que essas feras com crueza
Hajam de devorar a quem te adora;
Porque estremece a frágil natureza
Vendo a gula brutal, que emprende agora
Sacrifício fazer ao torpe abismo
Destas carnes tingidas no batismo!"

LXXXVIII

Ouviu o céu piedoso a infeliz gente;
E, quando o fero a maça já levanta,
Que esmaga a fronte ao mísero paciente,
Trovão se ouve fatal, que tudo espanta.
Treme a montanha e cai a roca ingente
E na ruína as árvores quebranta;
Mas o que mais os brutos confundia,
Era o rumor marcial que se então ouvia.

LXXXIX

Pedras, frechas e dardos de arremesso
Cobriam tudo o ar; porque o inimigo,
Que atrás se pôs de am próximo cabeço,
Aguarda expressamente aquele artigo.
De um lado e outro deste um mato espesso
Ameaça o furor, cerca o perigo;
E a gente crua, transformada a sorte,
Quanto cuidou matar, padece a morte.

XC

Era Sergipe, o príncipe valente,
Na esquadra valorosa, que atacava;
Verão entre os seus bom, manso e prudente,
Que com justiça os povos comandava.
Armava o forte chefe de presente
Contra Gupeva, que cruel reinava
Sobre as aldeias, que em tal tempo havia
No recôncavo ameno, da Bahia.

XCI

Por toda a parte o baiense é preso;
É trucidado o bruto nigromante;
Muitos lançados são no fogo aceso,
Rendem-se os mais ao vencedor possante.
Ficara em vida, todavia ileso
O mísero europeu, que ali em flagrante
Fez desatar o bom Sergipe e manda
À escravidão no seu país mais branda.

XCII

Mas a gente infeliz, no sertão vasto,
Por matos e montanhas dividida,
É fama que uns de tigres foram pasto,
Outra parte dos bárbaros comida.
Nem mais houve notícia ou leve rasto
Como houvessem perdido a amada vida;
Mas há boa suspeita e firme indício
Que evadiram o infame sacrifício.