Correspondência ativa de Euclides da Cunha em 1903: diferenças entre revisões

Wikisource, a biblioteca livre
Conteúdo apagado Conteúdo adicionado
Sem resumo de edição
mSem resumo de edição
Linha 17: Linha 17:
<p>Vi no seu artigo um significado superior, sugerindo uma medida prática; subordinados à fatalidade dos acontecimentos, agravados pela nossa fraqueza atual, devemos antes, agindo inteligentemente, acompanhar a nacionalidade triunfante, preferindo o papel voluntário de aliados à situação inevitável de vencidos.</p>
<p>Vi no seu artigo um significado superior, sugerindo uma medida prática; subordinados à fatalidade dos acontecimentos, agravados pela nossa fraqueza atual, devemos antes, agindo inteligentemente, acompanhar a nacionalidade triunfante, preferindo o papel voluntário de aliados à situação inevitável de vencidos.</p>
<p>É o pensar dos que não desejam ser amigos ursos da Pátria, embora atraindo a pedrada patriótica dos que por aí, liricamente, a requestam numa adorável inconsciência de perigos que a rodeiam.</p>
<p>É o pensar dos que não desejam ser amigos ursos da Pátria, embora atraindo a pedrada patriótica dos que por aí, liricamente, a requestam numa adorável inconsciência de perigos que a rodeiam.</p>
<p>E julga-se feliz com esta perfeita uniformidade de vistas, o seu patrício admor.</p>
<p>E julga-se feliz com esta perfeita uniformidade de vistas, o seu patrício adm<sup>or</sup>.</p>


<p>Euclides da Cunha</p>
<p>Euclides da Cunha</p>
Linha 33: Linha 33:
<p>A significação histórica do grande agitador sertanejo que delineei apenas, ajustando-se à escola antropológica, aparece mais nítida, explicada pelas circunstâncias especiais do meio que não tive tempo de conhecer e pelo caráter essencial do indivíduo que não apreendi com segurança, dadas as causas perturbadoras que radicavam a minha observação.</p>
<p>A significação histórica do grande agitador sertanejo que delineei apenas, ajustando-se à escola antropológica, aparece mais nítida, explicada pelas circunstâncias especiais do meio que não tive tempo de conhecer e pelo caráter essencial do indivíduo que não apreendi com segurança, dadas as causas perturbadoras que radicavam a minha observação.</p>
<p>Ao chegar encontrei reclamações de empreiteiros que me obrigam a seguir já, em viagem. ― Até muito breve, porém.</p>
<p>Ao chegar encontrei reclamações de empreiteiros que me obrigam a seguir já, em viagem. ― Até muito breve, porém.</p>
<p>Creia sempre no patrício e admor.</p>
<p>Creia sempre no patrício e adm<sup>or</sup>.</p>


<p>Euclides da Cunha<p>
<p>Euclides da Cunha<p>

==Lorena, 12 de março de 1903==
==Lorena, 12 de março de 1903==
Linha 64: Linha 63:
<p>Não me demorarei neste assunto, para não me delongar. Basta-me assegurar-lhe que nenhum de nós, rapazes daquele tempo, traiu aquela admiração antiga para que o sr. aquilate bem a verdadeira ufania com que recebi as suas letras.</p>
<p>Não me demorarei neste assunto, para não me delongar. Basta-me assegurar-lhe que nenhum de nós, rapazes daquele tempo, traiu aquela admiração antiga para que o sr. aquilate bem a verdadeira ufania com que recebi as suas letras.</p>
<p>Quanto aos ''Sertões'' ― aguardo tranquilo o resultado de sua leitura. Os deslizes na forma que o inquinam (o José Veríssimo inflexivelmente os denunciou) empalidecerão na escala de sinceridade com que esboço as suas páginas. Aí está o seu único valor, mas este é desmesura. Releve-me esta verdade, o Dante, para zurzir os desmandos de Florença idealizou o inferno; eu, não, para bater de frente alguns vícios do no singular momento histórico, copiei, copiei apenas, incorruptivelmente um dos seus aspectos… e não tive um Virgílio a amparar-me ante o furor dos condenados!
<p>Quanto aos ''Sertões'' ― aguardo tranquilo o resultado de sua leitura. Os deslizes na forma que o inquinam (o José Veríssimo inflexivelmente os denunciou) empalidecerão na escala de sinceridade com que esboço as suas páginas. Aí está o seu único valor, mas este é desmesura. Releve-me esta verdade, o Dante, para zurzir os desmandos de Florença idealizou o inferno; eu, não, para bater de frente alguns vícios do no singular momento histórico, copiei, copiei apenas, incorruptivelmente um dos seus aspectos… e não tive um Virgílio a amparar-me ante o furor dos condenados!
Não lhe devo tomar mais seu tempo que nesta ocasião pertence todo à nossa terra. Termino assegurando-lhe o meu maior apreço, a certeza e crescente admiração como comp. at. e amo</p>
Não lhe devo tomar mais seu tempo que nesta ocasião pertence todo à nossa terra. Termino assegurando-lhe o meu maior apreço, a certeza e crescente admiração como comp. atº e amº.</p>


<p>Euclides da Cunha</p>
<p>Euclides da Cunha</p>

Revisão das 14h36min de 15 de agosto de 2016

Lorena, 27 de fevereiro de 1903

Amigo dr. Araripe Júnior,

Recebi o seu cartão e aguardo ― nem imagina com que ansiedade! ― o seu juízo sobre os meus Sertões.

Na véspera havia lido o seu último artigo sobre os “Comentários” da nossa Constituição Federal, do dr. João Barbalho, e, francamente, ali notei, sob um aspecto inteiramente novo, ajustado ao destino dos povos americanos, a doutrina, sem número de vezes discutida e falseada, de Monroe.

Mas o que sobretudo me impressionou foi o desassombro, a magnífica rebeldia de um espírito em plena insurreição contra o nosso sentimentalismo mal educado e estéril. Considero o paralelo, ou melhor, o contraste lucidamente exposto, entre as duas expansões, a teutônica e a ianque, como raio de uma visão que nos últimos tempos mais se tem dilatado no perquirir o destino superior da civilização.

Sou um discípulo de Gumplowicz, aparadas todas as arestas duras daquele ferocíssimo gênio saxônico. E admitindo com ele a expansão irresistível do circulo singenético dos povos, é bastante consoladora a ideia de que a absorção final se realize menos à custa da brutalidade guerreira do “Centauro que com as patas hípicas escarvou o chão medieval” do que à custa da energia acumulada e do excesso de vida do povo destinado à conquista democrática da terra.

Não calculo até que ponto se possa aceitar o seu otimismo sobre a hegemonia norte-americana. Mas, dado mesmo que ele falhe por completo, e que o malsinado imperialismo ianque se exagere até a posse dos países estranhos, ― de que nos valeriam lamúrias de superstições patrióticas?

Vi no seu artigo um significado superior, sugerindo uma medida prática; subordinados à fatalidade dos acontecimentos, agravados pela nossa fraqueza atual, devemos antes, agindo inteligentemente, acompanhar a nacionalidade triunfante, preferindo o papel voluntário de aliados à situação inevitável de vencidos.

É o pensar dos que não desejam ser amigos ursos da Pátria, embora atraindo a pedrada patriótica dos que por aí, liricamente, a requestam numa adorável inconsciência de perigos que a rodeiam.

E julga-se feliz com esta perfeita uniformidade de vistas, o seu patrício admor.

Euclides da Cunha

Lorena, 9 de março de 1903

Dr. Araripe Júnior

Cheguei de S. Paulo onde li o magistral artigo sobre Os Sertões e posso escrever-lhe desafogadamente porque não transmito a minha impressão, mas a de todos que sabem ler naquela cidade.

O seu artigo fora anunciado por um telegrama vindo para o jornal da tarde A Plateia. O Jornal era esperado. Às dez horas da noite tinha-o lido quase toda a roda literária paulista e às dez e meia eu saí da redação do Estado de S. Paulo com o enorme estonteamento de um recruta transmudado repentinamente num triunfador.

Compreendi então quanto é inerte (na significação que damos em mecânica à palavra) a opinião, mesmo entre espíritos cultos; absolutamente passiva, como a cera, um molde admirável para corporizar o pensamento dos eleitos.

Porque, no dia seguinte, eu ― que até então era um engenheiro-letrado, com o defeito insanável de emparceirar às parcelas dos orçamentos as idealizações da Arte era um escritor, apenas transitoriamente desgarrado na engenharia. A sua grande generosidade, a sua honrosíssima simpatia, garantidas ambas por um espírito robusto, impuseram-me ― libertando-me do aspecto dúbio, meio profissional, meio artista, que me tornava um intruso em todas as carreiras.

Nem sabe quanto lhe devo…

Além disto aquela análise recorda a crítica reconstrutora de Macaulay.

A significação histórica do grande agitador sertanejo que delineei apenas, ajustando-se à escola antropológica, aparece mais nítida, explicada pelas circunstâncias especiais do meio que não tive tempo de conhecer e pelo caráter essencial do indivíduo que não apreendi com segurança, dadas as causas perturbadoras que radicavam a minha observação.

Ao chegar encontrei reclamações de empreiteiros que me obrigam a seguir já, em viagem. ― Até muito breve, porém.

Creia sempre no patrício e admor.

Euclides da Cunha

Lorena, 12 de março de 1903

Dr. Araripe Júnior

Chego de viagem; fantástica viagem em que, rompendo pelos caminhos deste velho recanto de S. Paulo, eu fui bater na Bahia e no século XVII… É que o trole me conduzia a Silveiras e a Areias, enquanto o meu companheiro de viagem, o infernal Gregório de Matos, “um diabo passado por crivo de fios aristofanescos trançados com luxúria por mãos de feiticeiras”, suplantando o gordo empreiteiro que gaguejava ao lado não sei mais que estafantes conceitos sobre um orçamento ― o estupendo Homero dos lundus, arrebatava-me num prodigioso salto mortal do espírito sobre dois séculos, para a grande matriz das nossas tradições. E lá segui com ele, embetesgado nas vielas da velha capital… Belo sonho! Um dia estranho de vilegiatura ideal… Por uma evocação, exagerada talvez, eu vi a vida tumultuária da Arcada original dos Capadócios, nos velhos tempos e em plena vernação dos seus atributos característicos. E foi num verdadeiro estonteamento ― entre risos, rasgados de violas, dolências de modinhas, saracoteios de sambas, e, aqui, passando entre serpentinas e cadeirinhas adamascadas, ali acotovelando reinóis recém-chegados ou esbarrando num volver de esquina com o frívolo Rocha Pita, contemplando de relance o padre Damaso, evitando, adiante, o feroz “Braço de Prata”, saudando mais longe o previdente Lancastre ― que eu vi pela primeira vez o terrível trombeteiro de má morte, o vilanaz Aristófanes das mulatas. Que ressurreição e que figura!

E quando o pobre velho me desapareceu, afinal, obscuramente, num engenho de Pernambuco, toda a sua ironia de fogo e as suas rimas cauterizantes e as suas risadas vingadoras extinguiram-se também, de chofre.

É uma vida a que se assiste entre risos e comenta-se com austeridade. Porque o que ressalta, sobrepujando toda a sua desenvoltura pagodista ― é o eterno martírio dos predestinados. Mais do que o homem, biologicamente falando, Gregório de Matos foi um admirável órgão social quase passivo, feito uma alavanca, cuja força eram as próprias forças coletivas: uma máquina simples em que se corporizaram muitas tendências da raça nova que surgia. Foi “herói” na alta significação dada à palavra pelo dramático Carlyle: prefigurou, fundindo-se na sua individualidade isolada, muitos aspectos de um povo.

E passou pela vida obedecendo à fatalidade mecânica de uma resultante intorcível: incorrigível, rebelde sempre à visão estreita dos que pensavam morigerá-la, como se houvesse preconceitos ou regras para estes avant-coureurs das nacionalidades, títeres privilegiados, arrebatados pelas leis desconhecidas da história. Foi um grande sacrificado o desenvolto folgazão! E maior que os seus êmulos, de Juvenal a Bocage, a sua sátira, em que pese ao tom ferocíssimo e maligno, pertence-lhe menos do que às rebeldias nascentes e relaxamentos inevitáveis de uma sociedade em que se chocavam os vícios de um povo velho, agravados pela “bebedeira tropical” e os instintos inferiores de duas raças bárbaras.

Desta alquimia horrorosa, tendo como reagentes o deslumbramento solar, a canícula mordente e a terra fecunda, só podia surgir naquela retorta da Bahia desmedida aquele precipitado. Foi tão natural e espontâneo que ainda não se extinguiu. Difundiu-se em dois séculos, e aí está, impressionante, nesta adorável capadoçagem nacional que atenua em boa hora a nossa melancolia de semibárbaros…

Mas noto a tempo o desgarrão que me desorienta, escrevendo, rápidas, estas linhas, tomando-lhe o tempo e expondo aí, desalinhadas e em tiagrante, a impressão ou antes uma das impressões que me deixou seu belo livro. Vou relê-lo e talvez melhor o compreenda.

Recebi o seu cartão. Não devia surpreendê-lo o efeito do artigo. A sua ação intelectual, afirmo-o, e confirmam-me algumas cartas que a respeito recebi, ― é muito maior do que julga. Pretendia falar sobre o notável mimetismo psíquico da obnubilação exposto no livro com tanta clareza. Mas onde iriam parar os meus orçamentos e os meus projetos e os meus empreiteiros, se eu firmasse a pena nesta discussão?

Até breve, e creia sempre na alta consideração e estima do patrício e admirador

Euclides da Cunha

Lorena, 18 de outubro de 1903

Meu venerando compatriota J. Nabuco, dando a preferência de seu sufrágio ao almirante Jaceguay, e implicando-a com tanta superioridade, o sr. deu à carta, com que me distinguiu, um raro traço de nobreza, sobredoirando o valiosíssimo autógrafo que guardarei carinhosamente entre as melhores relíquias, que possuo. De pleníssimo acordo com o seu pensar, e agradecendo-lhe muito, o tê-lo exposto sem rodeios, (porque me fez justiça de acreditar que de modo algum eu me poderia sentir abatido, no plano secundário que naturalmente ocupo ante aquele notável compatriota) posso afirmar-lhe que não aventurara a minha candidatura se a tivesse de opor à do autor do Dever do Momento, livro a que devemos em parte a felicidade de vermos restituído à atividade política aquele cuja Formação reflete incisivamente, sintetizado numa existência individual, a própria formação do que há de mais brilhante, de mais sério e de mais robusto na nossa consciência coletiva atual.

Não vai a mínima lisonja nestas linhas. Todos os de minha geração devemos muito à sua palavra, porque a ouvimos precisamente na quadra em que sua tonalidade prodigiosa se harmonizou admiravelmente a todos os grandes arrojos e desinteresses da mocidade.

Ela ― que por uma circunstância notável tantas vezes se alevantou em frente a Escola Politécnica ― dominava, não raro a dos nossos mestres e ampliou o nosso destino subalterno de engenheiros, dando-lhe um significado superior tão bem expresso naquele “triangulador do futuro”, a que se refere imaginativamente, golpeando de súbitos lances de gênio a secura matemática da aula de Construção, o bom e genial André Rebouças.

Não me demorarei neste assunto, para não me delongar. Basta-me assegurar-lhe que nenhum de nós, rapazes daquele tempo, traiu aquela admiração antiga para que o sr. aquilate bem a verdadeira ufania com que recebi as suas letras.

Quanto aos Sertões ― aguardo tranquilo o resultado de sua leitura. Os deslizes na forma que o inquinam (o José Veríssimo inflexivelmente os denunciou) empalidecerão na escala de sinceridade com que esboço as suas páginas. Aí está o seu único valor, mas este é desmesura. Releve-me esta verdade, o Dante, para zurzir os desmandos de Florença idealizou o inferno; eu, não, para bater de frente alguns vícios do no singular momento histórico, copiei, copiei apenas, incorruptivelmente um dos seus aspectos… e não tive um Virgílio a amparar-me ante o furor dos condenados! Não lhe devo tomar mais seu tempo que nesta ocasião pertence todo à nossa terra. Termino assegurando-lhe o meu maior apreço, a certeza e crescente admiração como comp. atº e amº.

Euclides da Cunha

Lorena, 22 de novembro de 1903

Coelho Neto

Cheguei hoje do Rio onde tomei revolucionariamente posse de meu lugar no Instituto Histórico. Os jornais limitaram-se a transcrever a resposta do conselheiro Corrêa que pronunciou o seu 10008º discurso. Não transcreveram o meu; não podiam arquivá-lo tão a fundo, tão de frente, embora sob um aspecto geral, eu feri o presente abominável em que estamos. Sem vaidade ― tive, por alguns momentos, em tomo de mim, a simpatia tocante de alguns trêmulos velhinhos, e aqueles minutos irão consolar a minha vida inteira…

Depois conversaremos: em dezembro (em princípio) irei visitar meu velho, e passarei aí para te abraçar.

Então. eu não creio em Deus?! Quem te disse isto? Puseste-me na mesma roda dos singulares infelizes, que usam do ateísmo como usam de gravatas ― por chic, e para se darem ares de sábios… Não. Rezo, sem palavras, no meu grande panteísmo, na perpétua adoração das coisas; e na biha miserabilíssima e falha ciência sei, positivamente, que há alguma que eu não sei… Aí está neste bastardinho (e é a primeira vez, depois da aula primária, que o escrevo) a minha profissão de fé. Há de adivinhá-lo teu valente coração. Se existir o teu céu, meu brilhante amigo, ― para lá irei direitinho, num voo, um largo voo retilíneo desta alma aquilina e Unta ― com assombro de não sei quantos rezadores, cujas asinhas de bacurau servem para os voejos, na penumbra do Purgatório. E serás o meu companheiro de jornada, porque é na nossa superenervação, e é no nosso idealismo sem fadigas, e é na nossa perpétua ânsia do belo, que eu adivinho e sinto o que não sei. Singularíssimo ateu…

Mas não quero tomar-te mais tempo. Até breve. Recomendações e abraços do

Euclides