Os Trabalhadores do Mar/Parte I/Livro I/III: diferenças entre revisões

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Contava-se na terra que uma mulher, tendo consigo um menino, viera em fins da revolução habitar Guernesey. Era inglesa, ou talvez francesa, o nome dela, qualquer que fosse, a pronúncia guernesiana e a ortografia dos camponeses transformaram em Gilliatt. Vivia sozinha com o menino, que, diziam uns, era seu sobrinho, outros, filho, outros, neto, e outros, coisa nenhuma.

Possuía um dinheirinho, de que vivia pobremente. Comprara um pedaço de terra na Sergentée e outro em Roque-Crespel, perto de Rocquaine. A casa Tutu 24 da Rua estava nesse tempo mal-assombrada.

Havia mais de trinta anos que ninguém. morava nela.

Caía aos pedaços. O jardim, sempre inundado pelo mar, já nada produzia.
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Além dos ruídos noturnos e das luzes, a casa era particularmente aterradora por isto: se à noite se deixava sobre a lareira um novelo de lã, agulhas e um prato cheio de sopa, no dia seguinte de manhã encontrava-se a sopa comida, o prato vazio e um par de luvas feito. Pôs-se à venda aquele pardieiro com o diabo que estava dentro, por algumas libras esterlinas. Aquela mulher comprou-o, evidentemente tentada pelo diabo. Ou pela barateza.

Fez mais do que comprá-lo, foi morar lá com o filho, e desde então a casa sossegou. Esta casa achou o que queria, dizia a gente da terra. Cessaram as aparições. Já se não ouviam gritos ao romper do dia. Já não havia outra luz além do sebo acendido à noite pela boa mulher. Vela de feiticeira vale a tocha do diabo.

Esta explicação satisfez o público.

A mulher utilizava o quarto de jeira de terra que possuía. Tinha uma boa vaca, de cujo leite fazia manteiga. Colhia frutas e batatas Golden Drops. Vendia, como qualquer outra pessoa, ervas, cebolas e favas. Não costumava ir ao mercado vender a sua colheita; mandava-a por Guilbert Falliot. O registro de Falliot mostra que ele vendeu para ela, uma vez, 12 alqueires de batatas chamadas de três meses, das mais temporãs. Fizeram-se na casa apenas os reparos necessários para se poder habitar nela. Só chovia nos quartos quando fazia muito mau tempo. Compunha-se de dois pavimentos, um rés-de-chão e um celeiro. No térreo havia três salas; dormia-se em duas, comia-
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se na terceira. Subia-se ao celeiro Por uma escada. A mulher cozinhava e ensinava a ler ao filho. Nunca ia à igreja, e isto, depois de muito considerado, serviu para que a declarassem francesa. Não ir aparte alguma é coisa grave.

Em suma, era gente que nada inculcava.

É provável que fosse francesa. Os vulcões arrojam pedras, as revoluções homens. Espalham-se famílias a grandes distâncias, deslocam-se os destinos, separam-se os grupos dispersos às migalhas; cai gente das nuvens, uns na Alemanha, outros na Inglaterra, outros na América. Pasmam os naturais dos países. Donde vem estes desconhecidos? Foi aquele Vesúvio, que fumega além, que os expeliu de si. Dão-se nomes a esses aerolitos, a esses indivíduos expulsos e perdidos, a esses eliminados da sorte: chamam-nos emigrados, refugiados, aventureiros. Se ficam, toleram-nos: alegram-se quando eles vão embora. Algumas vezes são entes absolutamente inofensivos, estranhos, as mulheres ao menos, aos acontecimentos que os proscreveram, não tendo rancores nem cólera, projéteis contra a vontade, espantadíssimos de o serem.

Enraízam-se como podem. Não fazem mal a ninguém e não compreendem o que lhes acontece. Vi um dia uma pobre moita de ervas atirada aos ares pela explosão de uma mina. A Revolução Francesa, mais do que nenhuma explosão, fez desses jatos longínquos.

A mulher, que em Guernesey era conhecida por Gilliatt, foi talvez aquela moita de erva.

Envelheceu a mulher. Cresceu o menino. Viviam ambos sós; todos fugiam deles, mas eles bastavam-
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se a si próprios. Loba e filhote lambem-se mutuamente. Foi esta uma das fórmulas que lhes aplicou a benevolência da vizinhança.

O menino tornou-se adolescente, o adolescente homem, e então, devendo caírem sempre as velhas crostas da vida, a mãe veio a falecer. Constava a herança das terras de Sergentée e da Roque- Crespel, da casa mal-assombrada, e mais, diz o inventário oficial, de 100 guinéus de ouro, dentro de um pé de meia. A casa estava mobiliada com duas arcas de carvalho, duas camas, seis cadeiras, uma mesa e os utensílios necessários. Havia em cima de uma tábua uns poucos de livros e, a um canto, uma canastra, que nada tinha de misteriosa, e que devia ser aberta na ocasião do inventário. A canastra era de couro ruivo, cheia de arabescos de pregos de cobre e estrelas de estanho, e continha um enxoval de mulher, novo e completo, de excelente linho de Dunquerque, camisa e saia, cortes de vestidos de seda e em cima de tudo um papel escrito pela finada: Para tua mulher, quando te casares.

A morte da mãe acabrunhou o filho. Era rústico, tornou-se feroz.

Completou-se-lhe o deserto. Era isolamento, tornou-se vácuo.

Quando há duas criaturas, a vida é possível. Havendo uma só, parece que nem se pode arrastá-la. Renuncia-se a ela.

É a primeira forma de desespero. Mais tarde compreende-se que o dever é uma série de aceites. Contempla-se a morte, contempla-se a vida, consente-se na última. Mas é um consentimento que sangra.

Gilliatt era moço, a ferida cicatrizou. Naquela idade as carnes do coração tornam a unir-se. A tristeza,
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dissipando-se-lhe a pouco e pouco, misturou-se à natureza em redor dele, tornou-se uma espécie de encanto, atraiu-o para perto das coisas e longe dos homens, e amalgamou cada vez mais aquela alma e a solidão.


[[Categoria:Os Trabalhadores do Mar]]
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Revisão das 19h13min de 5 de junho de 2020

III


PARA TUA MULHER, QUANDO TE CASARES.


Voltemos a Gilliatt.

Contava-se na terra que uma mulher, tendo comsigo um menino, viera em fins da revolução habitar Guernesey. Era ingleza, ou talvez franceza. O nome della, qualquer que fosse, a pronuncia guernesiana e a orthographia dos camponezes transformaram em Gilliatt. Vivia sosinha com o menino, que, diziam uns, era seu sobrinho, outros, filho, outros, neto e, outros, cousa nenhuma. Possuia um dinheirinho, de que vivia pobremente. Comprára um pedaço de terra na Sergentée e outro em Roque-Crespel, perto de Rocquaine. A casa tutú da rua, estava nesse tempo mal assombrada. Havia mais de trinta annos que ninguem morava nella. Cahia aos pedaços. O jardim, sempre innundado pelo mar, já nada produzia.

Além dos ruidos nocturnos e das luzes, a casa era particularmente atterradora por isto: se á noite se deixava sobre a lareira um novello de lã, agulhas e um prato cheio de sopa, no dia seguinte de manhã encontrava-se a sopa comida, o prato vasio e um par de luvas feito. Poz-se á venda aquelle pardieiro com o diabo, que estava dentro, por algumas libras esterlinas. Aquella mulher comprou-o, evidentemente tentada pelo diabo. Ou pela barateza.

Fez mais do que compra-lo, foi morar lá com o filho, e desde então a casa socegou. Esta casa achou o que queria, dizia a gente da terra. Cessaram as apparições. Já se não ouvia gritos ao romper do dia. Já não havia outra luz além do sebo acendido á noite pela boa mulher. Vela de feiticeira vale a tocha do diabo.

Esta explicação satisfez o publico.

A mulher utilisava o quarto de geira de terra que possuia. Tinha uma boa vacca de cujo leite fazia manteiga. Colhia frutas e batatas Golden Drops. Vendia como qualquer outra pessoa, hervas, cebolas e favas. Não costumava ir ao mercado vender a sua colheita, mandava-a por Guilbert Falliot. O registro de Falliot mostra que elle vendeu para ella uma vez doze alqueires de batatas chamadas de tres mezes, das mais temporãs.

Fizeram-se na casa apenas os reparos necessarios para se poder habitar nella. Só chovia nos quartos quando fazia muito máo tempo. Compunha-se de dous pavimentos, um rez do chão, e um celleiro. No terreo havia tres salas; dormia-se em duas, comia-se comia-se na terceira. Subia-se ao celleiro por uma escada. A mulher cozinhava e ensinava a lêr ao filho. Nunca ia á igreja, e isto, depois de muito considerado, servio para que a declarassem franceza. Não ir a parte alguma, é cousa grave.

Em summa, era gente que nada inculcáva.

É provavel que fosse franceza. Os vulcões arrojam pedras, as revoluções homens. Espalham-se familias a grandes distancias, deslocam-se os destinos, separam-se os grupos dispersos ás migalhas; cahe gente das nuvens, uns na Allemanha, outros na Inglaterra, outros na America. Pasmam os naturaes dos paizes. Donde vem estes desconhecidos? Foi aquelle vesuvio, que fumega além, que os expellio de si. Dam-se nomes a esses aerolithos, a esses individuos expulsos e perdidos, a esses eliminados da sorte; chamam-nos emigrados, refugiados, aventureiros. Se ficam, toleram-nos: alegram-se quando elles vão embora. Algumas vezes são entes absolutamente inoffensivos, estranhos, as mulheres ao menos, aos acontecimentos, que os proscreveram, não tendo rancores nem colera, projectis contra a vontade, espantadissimos de o serem. Enraizam-se como podem. Não faziam mal a ninguem e não comprehendem o que lhes acontece. Vi um dia uma pobre mouta de hervas atirada aos ares pela explosão de uma mina. A revolução franceza, mais do que nenhuma explosão, fez desses jactos longinquos.

A mulher, que em Guernesey era conhecida pela Gilliatt, foi talvez aquella mouta de herva.

Envelheceu a mulher. Cresceu o menino. Viviam ambos sós; todos fugiam delles mas elles bastavam-se a si proprios. Loba e filhote lambem-se mutuamente. Foi esta uma das formulas que lhes applicou a benevolencia da visinhança.

O menino tornou-se adolescente, o adolescente homem, e então, devendo cahirem sempre as velhas crostas da vida, a mãe veio a fallecer. Constava a herança das terras da Sergentée e da Roque-Crespel, da casa mal assombrada, e mais, diz o inventario official, de cem guinéos de ouro, dentro de um pé de meia. A casa estava mobiliada com duas arcas de carvalho, duas camas, seis cadeiras, uma mesa e os utensilios necessarios. Havia em cima de uma taboa uns poucos de livros, e a um canto uma canastra, que nada tinha de mysteriosa, e que devia ser aberta na occasião do inventario. A canastra era de couro ruivo, cheia de arabescos de prégos de cobre e estrellas de estanho, e continha um enxoval de mulher, novo e completo, de excellente linho de Dunkerque, camisa e saia, córtes de vestidos de seda e em cima de tudo um papel escripto pela finada: — Para tua mulher quando te casares.

A morte da mãe acabrunhou o filho. Era rustico, tornou-se feroz. Completou-se-lhe o deserto. Era isolamento, tornou-se vacuo. Quando ha duas creaturas, a vida é possivel. Havendo uma só, parece que nem se póde arrasta-la. Renuncia-se a ella. É a primeira fórma do desespero. Mais tarde comprehende-se que o dever é uma serie de acceites. Contempla-se a morte, contempla-se a vida, consente-se na ultima. Mas é um consentimento que sangra.

Gilliatt era moço, a ferida cicatrizou. Naquella idade as carnes do coração tornam a unir-se.. A tristeza, dissipando-se-lhe a pouco e pouco, misturou-se á natureza em redor delle, tornou-se uma especie de encanto, attrahio-o para perto das cousas e longe dos homens, e amalgamou cada vez mais aquella alma e a solidão.