Os Trabalhadores do Mar/Parte III/Livro III: diferenças entre revisões
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<center> Terceira Parte- Livro Terceiro- A PARTIDA DO "CASHMERE"<br> |
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<[[Os Trabalhadores do Mar]]<br> |
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<[[Autor:Victor Hugo]]<br> |
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Tradução: Machado de Assis<br> |
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</center> |
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__TOC__ |
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===A ANGRAZINHA PRÓXIMA DA IGREJA=== |
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Saint-Sampson não pode estar apinhado de gente sem que Saint-Pierre-Port fique deserto. Uma coisa curiosa num ponto dado é uma bomba aspirante. As notícias correm depressa nas terras pequenas; |
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ir ver o cano da Durande debaixo da janela de Mess Lethierry |
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foi desde o romper do dia a grande ocupação de Guernesey. Qualquer |
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outro acontecimento desaparecia diante desse. Eclipse da |
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morte do decano de Saint-Asaph; já ninguém curava do Reverendo |
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Ebenezer Caudray, nem da sua repentina riqueza, nem da sua |
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partida no Cashmere. A máquina da Durande, trazida das Douvres, |
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estava na ordem do dia. Ninguém acreditava. O naufrágio parecera |
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extraordinário, mas o salvamento parecia impossível. Todos queriam |
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ver com os seus próprios olhos. Todas as ocupações ficaram |
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suspensas. Longas fileiras de burgueses em família, desde o vesin |
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até o mess, homens, mulheres, gentlemen, mães com filhos e filhos |
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com bonecas, dirigiam-se por todas as estradas para ver a |
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coisa, em Bravées, e davam-se as costas a Saint-Pierre-Port.<br> |
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Muitas lojas de Saint-Pierre-Port estavam fechadas; no Cominercial |
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Arcade, estagnação absoluta de venda e de negócio; toda a atenção estava voltada para a Durande, nenhum mercador estreou, exceto |
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um ourives que se maravilhava de ter vendido um anel de ouro para casamento - a uma espécie de homem que parecia muito |
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apressado e que lhe perguntou onde morava o sr. decano.<br> |
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As lojas que ficaram abertas eram os lugares de conversa onde se |
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comentava ruidosamente o milagroso salvamento da máquina. Ninguém passeava na Hyvreuse, que se chama hoje, não se sabe por que, Cambridge-Park; ninguém em High Street, que se chamava então a Rua Grande, nem em Smith Street, que se chamava a Rua das Forjas; ninguém em Hauteville; a própria Esplanada estava |
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deserta. Dissera-se um domingo. Uma alteza real, que ali fosse de visita, e passasse em revista a milícia de Ancresse, não despovoaria melhor a cidade. Todo aquele abalo a propósito de uma coisa à toa, como Gilliatt, fazia erguer os ombros aos homens graves e |
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às pessoas corretas.<br> |
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A igreja de Saint-Pierre-Port, tríplice carreta sobreposta com transepto e flecha, fica situada à beira da praia no fundo do porto quase sobre o desembarque. Dá a saudação aos que chegam e o |
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adeus aos que saem. Aquela igreja é a maiúscula de uma longa linha que faz a fachada da cidade sobre o oceano<br> |
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É ao mesmo tempo a paróquia de Saint-Pierre-Port e chefe de toda a ilha. Tem por pároco o sub-rogado do bispo, clergyman com plenos poderes.<br> |
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O ancoradouro de Saint-Pierre-Port, hoje largo e magnífico porto, |
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era naquela época, e ainda há dez anos, menos considerável que |
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o ancoradouro de Saint-Sampson. Eram duas grossas paredes |
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ciclópicas, curvas, partindo da praia a estibordo e bombordo e |
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ligando-se quase na extremidade, onde havia um farolzinho branco.<br> |
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Debaixo daquele farol uma garganta, que ainda tinha as duas |
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argolas da corrente que a fechava na Idade Média, dava passagem |
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aos navios. Imaginem uma unha de lagosta aberta, era o |
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ancoradouro de Saint-Pierre-Port. Aquela tenaz tomava ao mar |
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um pouco de água que obrigava a ficar tranqüila. Mas, com vento |
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de leste, havia marulho na entrada, o porto ficava agitado, e era |
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acertado não penetrar lá. Foi o que fez nesse dia o Cashemere, que |
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ficou fora.<br> |
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Os navios, quando soprava o leste, faziam isso que, no fim das |
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contas, economizava as despesas do porto. Nesses casos, os |
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bateleiros da cidade, tribo valente de marinheiros que o novo porto |
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destituíra, iam tomar em seus barcos os viajantes, ou no cais, ou nas estações da praia, e os transportavam.<br> |
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eles e às bagagens, muitas vezes com marés agitadas e sempre sem acidentes, aos navios que deviam sair. O vento de leste é um |
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vento de flanco muito bom para ir à Inglaterra; o mar é agitado sem que o navio estremeça.<br> |
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Quando o navio ficava no porto, todos embarcavam no porto; |
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quando estava fora, podia-se escolher uma das costas vizinhas do |
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ancoradouro do navio. Achavam-se em todas as angras bateleiros |
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à vontade.<br> |
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A Angrazinha era dessas. Aquele cais ficava próximo à cidade, mas |
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tão solitário, que parecia longe. Devia a solidão às duas grandes |
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penedias do forte de São Jorge que dominavam aquele sítio discreto.<br> |
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Chegava-se à Angrazinha por caminhos diversos. O mais |
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direto ia pela praia; tinha a vantagem de ir dar à cidade e à igreja |
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em cinco minutos, e o inconveniente de ser coberto pela maré |
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duas vezes por dia.<br> |
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Outros caminhos, mais ou menos abruptos, mergulhavam nas |
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anfractuosidade dos rochedos. A Angrazinha, mesmo em pleno |
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dia, ficava numa penumbra. Grandes pedras amontoadas pendiam |
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de todos os lados. Havia espessuras de espinhos, fazendo uma |
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espécie de noite suave naquela desordem de rochas e vagas; |
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nada mais aprazível do que aquela angra em tempo calmo, nada |
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mais tumultuoso nas grossas águas. Havia pontas de galhos perpetuamente |
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molhados pela escuma. Na primavera ficava cheia de |
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flores, ninhos, perfumes, aves, borboletas e abelhas. Graças aos |
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trabalhos recentes, essa selvajaria já não existe; foi substituída |
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por belas linhas retas; há obras de pedreiro, cais, jardins; tudo foi |
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derrubado; o gosto destruiu as extravagâncias da montanha e a |
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incorreção dos rochedos.<br> |
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===O DESESPERO DIANTE DO DESESPERO=== |
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Era pouco menos de 10 horas da manhã: o quarto de hora antes, |
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como se diz em Guernesey.<br> |
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O povo, segundo todas as aparências, ia engrossando em Saint-Sampson. A população, febricitante de curiosidade, ia toda para o |
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norte da ilha, de maneira que a Angrazinha, que fica ao sul, estava |
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mais deserta que nunca.<br> |
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Contudo, viam-se aí um bote e um remador. No bote havia um |
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saco de viagem. O bateleiro parecia esperar.<br> |
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Via-se ao largo o Cashemere ancorado, que, devendo partir lá para o |
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meio-dia, não fazia nenhum movimento de aparelho.<br> |
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O viandante que, de qualquer dos caminhos-escadas tivesse prestado |
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o ouvido, ouviria um murmúrio de palavras na Angrazinha, e |
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inclinando-se por cima, veria a alguma distância do bote, num |
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recanto de pedras e galhos onde não podia penetrar o olhar do |
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bateleiro, duas pessoas; um homem e uma mulher, Ebenezer e |
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Déruchette.<br> |
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Esses asilos obscuros das praias, que tentam as banhistas não |
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são tão solitários como se pensa. Às vezes espreita-se e ouve-se |
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de fora. Os que se refugiam podem ser facilmente acompanhados |
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através das espessuras das vegetações, e graças à multiplicidade |
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e entravamento dos atalhos. Os granitos e árvores que escondem |
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o refugiado podem esconder também uma testemunha.<br> |
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Déruchette e Ebenezer estavam de pé diante um do outro, com o |
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olhar no olhar; tinham as mãos presas. Ebenezer estava calado.<br> |
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Uma lágrima engrossada e presa entre os seus cílios hesitava em |
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cair, e não caía.<br> |
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A desolação e a paixão estavam impressas na fronte religiosa de |
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Ebenezer. Havia também uma resignação pungente, hostil à fé , |
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embora derivasse dela. Naquele rosto, simplesmente angélico até |
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então, havia um começo de expressão fatal. Aquele que até então |
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só meditara sobre o dogma, entrava a meditar sobre a sorte, |
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meditação nociva ao padre. Nessa meditação decompõe-se a fé.<br> |
|||
Nada perturba tanto o espírito como curvar-se ao peso do ignoto.<br> |
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O homem é o paciente dos acontecimentos. A vida é um perpétuo |
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sucesso, imposto ao homem. O homem não sabe de que lado virá a |
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brusca descida do acaso. As catástrofes e as felicidades entram e |
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saem como personagens inesperadas. Tem a sua fé, a sua órbita, |
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a sua gravitação fora do homem. A virtude não traz a felicidade, o |
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crime não traz a desgraça; a consciência tem uma lógica, a sorte |
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tem outra; nenhuma coincidência. Nada pode ser previsto. Vivemos |
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de atropelo. A consciência é a linha reta, a vida é o turbilhão.<br> |
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O turbilhão atira à cabeça do homem caos negros e céus azuis. A |
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sorte não tem a arte das transições. Às vezes a vida anda tão |
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depressa que o homem mal distingue o intervalo de uma peripécia |
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a outra e o laço de ontem e hoje. Ebenezer era um crente mesclado |
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de raciocínio e um padre mesclado de paixão. As religiões celibat |
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árias sabem o que fazem. Nada desfaz tanto o padre como |
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amar uma mulher. Todas as espécies de nuvens ensombravam |
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Ebenezer.<br> |
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Contemplava demasiado Déruchette.<br> |
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Aquelas duas criaturas idolatravam-se.<br> |
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Havia na pálpebra de Ebenezer a muda adoração do desespero.<br> |
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Déruchette dizia:<br> |
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- Não há de partir. Não tenho força para vê-lo ir-se embora. Eu |
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acreditava poder despedir-me, e não posso. Ninguém é obrigado a |
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poder. Por que foi ontem ao jardim? Não devia ir, se queria ir-se |
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embora. Nunca lhe falei. Amava-o, mas não o sabia. Somente, |
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quando o Sr. Herodes leu a história de Rebeca, e que os seus olhos |
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encontraram os meus, senti as faces em fogo, e disse comigo: Oh! Como Rebeca devia ter corado! Ontem se me dissessem que eu amaria o cura, ria-me. É o que há de terrível neste amor. Foi uma espécie de traição. Não me acautelei. Ia à igreja, via-o, acreditei que todos eram como eu. Não lhe faço censura alguma, nada fez para que eu o ame, não se deu a nenhum trabalho, olhava-me, não é culpa sua se olha para as outras pessoas, e o resultado é |
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que eu o adoro. Eu nem reparava. Quando as suas mãos pegavam |
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num livro, era uma luz; quando os outros pegavam nele, era apenas |
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um livro. Às vezes levantava os olhos para mim. Falava dos |
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arcanjos, e era o arcanjo. O que dizia, pensava-o eu logo. Antes |
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de vê-lo não sei se acreditava em Deus. Depois que o vi tornei-me |
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uma mulher qua faz as suas orações. Eu dizia a Doce: Veste-me |
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depressa, não quero faltar ao ofício. E corria à igreja. Estar apaixonada |
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por um homem é isto. Eu não o sabia. Dizia comigo: Como |
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estou devota! Depois de vê-lo é que soube que eu não ia à igreja |
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por causa de Deus. Ia vê-lo, é verdade. É formoso, fala bem, |
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quando levanta os braços para o céu parece que tem o meu coração entre as suas duas mãos brancas. Eu estava louca. Ignoravao.<br> |
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Quer que lhe diga a sua culpa? Foi entrar ontem no jardim e |
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falar-me. Se nada me dissesse, eu nada saberia. Partiria, eu ficava |
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triste, mas agora morrerei. Agora que eu sei que o amo não é |
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possível que se vá embora. Em que pensa? Parece que não me |
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ouve. Ebenezer respondeu:<br> |
|||
- A senhora ouviu o que se disse ontem.<br> |
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- Ai, sim!<br> |
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- Que posso fazer?<br> |
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Calaram-se um momento. Ebenezer continuou:<br> |
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- Só uma coisa devo fazer agora. Partir.<br> |
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- E eu morrer. Oh! Eu quisera que não houvesse mar e só houvesse |
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o céu! Parece-me que isto arranjaria tudo, e a nossa partida seria a mesma. Não devia falar-me. Por que me falou? Que será agora de mim? Digo-lhe que hei de morrer. Há de ter ganho muito quando |
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eu estiver no cemitério. OH! Tenho o coração despedaçado. Desventurada |
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que sou! E meu tio não é mau, contudo.<br> |
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Era a primeira vez na sua vida que Déruchette dizia, falando de |
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Mess Lethierry, meu tio. Até então sempre dizia meu pai.<br> |
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Ebenezer recuou um pouco e fez um sinal ao bateleíro. Ouviu-se o |
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ruído de um croque nas pedras e o passo de um homem no bote.<br> |
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- Não! Não! - gritou Déruchette.<br> |
|||
Ebenezer aproximou-se dela.<br> |
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- É preciso, Déruchette.<br> |
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- Não, nunca! Por uma máquina! Será possível? Viu ontem aquele |
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homem horrível? Não deve abandonar-me. Tem inteligência, há de |
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achar um meio. Não é possível que me dissesse para vir aqui hoje, |
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com a idéia de partir. Não lhe fiz nada. Não tem motivos de queixa |
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de mim. É naquele navio que quer ir? Não quero. Não me deixe.<br> |
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Não se abre o céu para torná-lo a fechar. Digo-lhe que há de ficar.<br> |
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Demais, ainda não bateu a hora. Oh! Eu te amo!<br> |
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E unindo-se a ele, cruzou-lhe os dez dedos por trás do pescoço, |
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como para fazer com os seus braços enlaçados em Ebenezer e |
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com as suas mãos juntas uma oração a Deus.<br> |
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Ele deslaçou aquela cadeia delicada, que resistiu enquanto pode.<br> |
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Déruchette caiu assentada numa ponta de rocha coberta de hera, |
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levantando com um gesto maquinal a manga do vestido até o |
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cotovelo, mostrando o seu delicioso braço nu, com uma luz afogada |
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e pálida nos olhos fixos. O bote aproximava-se.<br> |
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Ebenezer segurou-lhe a cabeça nas mãos; aquela virgem tinha o |
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ar de uma viúva e aquele mancebo tinha o ar de um avo. Tocou-lhe |
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os cabelos com uma espécie de precaução religiosa; fitou os |
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olhos nela durante alguns instantes, depositou-lhe na fronte um |
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desses beijos debaixo dos quais parece que deveria abrir uma |
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estrela e, com uma voz que tremia na suprema angústia e onde se |
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sentia a dilaceração da alma, disse-lhe esta palavra, a palavra das |
|||
profundezas: Adeus!<br> |
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Déruchette rompeu em soluços.<br> |
|||
Neste momento ouviram uma voz lenta e grave que dizia:<br> |
|||
- Por que motivo não se casam?<br> |
|||
Ebenezer voltou a cabeça. Déruchette levantou os olhos.<br> |
|||
Gilliatt estava diante deles.<br> |
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Acabava de entrar por um atalho lateral.<br> |
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Gilliatt já não era o mesmo homem da véspera. Tinha penteado os |
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cabelos, fez a barba, calçou os sapatos, vestiu camisa branca de |
|||
marinheiro com grandes colarinhos caídos, vestiu a roupa de marinheiro |
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mais nova. Via-se um anel de ouro no dedo mínimo. Parecia |
|||
profundamente calmo. Estava lívido.<br> |
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Bronze que sofre, tal era aquele rosto.<br> |
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Os dois olharam para ele estupefatos. Embora não se pudesse |
|||
reconhece-lo, Déruchette reconheceu-o. Quanto às palavras que |
|||
ele acabava de pronunciar, estavam tão longe do que eles pensavam |
|||
nesse momento, que resvalaram-lhe no espírito.<br> |
|||
Gilliatt continuou:<br> |
|||
- Que necessidade é essa de se dizerem adeus? Casem-se. Embarquem |
|||
depois.<br> |
|||
Déruchette estremeceu da cabeça aos pés.<br> |
|||
Gilliatt continuou:<br> |
|||
- Miss Déruchette tem 21 anos. É senhora de sua vontade. Seu tio |
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é apenas seu tio. Amam-se ...<br> |
|||
Déruchette interrompeu docemente:<br> |
|||
- Como é que o senhor está aqui?<br> |
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- Casem-se - continuou Gilliatt.<br> |
|||
Déruchette começava a perceber o que lhe dizia aquele homem.<br> |
|||
Murmurou:<br> |
|||
- O meu pobre tio ...<br> |
|||
- Recusaria se o casamento estivesse por fazer - disse Gilliatt -, e |
|||
consentirá quando o casamento estiver concluído. Demais, vão |
|||
embarcar ambos. Quando voltarem, ele os perdoará.<br> |
|||
Gilliatt acrescentou com um tom amargo:<br> |
|||
- E depois, ele já não pensa senão em construir o vapor. Isso o |
|||
distrairá durante a sua ausência. Tem Durande para consolá-lo.<br> |
|||
- Eu não quisera balbuciou Déruchette num espanto misturado de |
|||
alegria não quisera deixar pesares indo-me embora...<br> |
|||
- Não durarão muito tempo os pesares - disse Gilliatt.<br> |
|||
Ebenezer e Déruchette tiveram uma espécie de deslumbramento.<br> |
|||
Tranqüilizaram-se. Na sua decrescente perturbação, iam entendendo |
|||
as palavras de Gilliatt. Ainda havia alguma nuvem, mas a |
|||
obrigação deles dois não era resistir ao conselho. Quem salva |
|||
domina sempre. Fracas são as objeções, quando se trata de voltar |
|||
ao Éden. Havia na atitude de Déruchette, imperceptivelmente apoiada |
|||
em Ebenezer, alguma coisa que fazia causa comum com o que |
|||
dizia Gilliatt. Quanto ao enigma da presença daquele homem e das |
|||
suas palavras que, no espírito de Déruchette em particular, produziam |
|||
muitas espécies de assombro, eram questões à parte. Aquele |
|||
homem dizia-lhes: Casem-se. Era claro. Se houvesse uma responsabilidade, |
|||
era ele quem a tomava sobre si. Déruchette sentia |
|||
confusamente que, por diversas razões, ele tinha o direito de fazelo.<br> |
|||
O que ele dizia de Mess Lethierry era verdade. Ebenezer, pensativo, |
|||
murmurou:<br> |
|||
- Um tio não é um pai.<br> |
|||
Ebenezer sentia a corrupção de uma peripécia súbita e feliz. Os |
|||
escrúpulos prováveis do padre fundiam-se e dissolviam-se naquele |
|||
pobre coração apaixonado.<br> |
|||
A voz de Gilliatt tornou-se- breve e dura; sentia-se nela umas |
|||
pulsações de febre:<br> |
|||
- Imediatamente. O Cashemere parte daqui a duas horas. Tem tempo, |
|||
mas não de sobra; venham ambos.<br> |
|||
Ebenezer examinava-o atentamente.<br> |
|||
De súbito exclamou:<br> |
|||
- Conheço-o. Foi o senhor quem me salvou a vida.<br> |
|||
Gilliatt respondeu:<br> |
|||
- Não creio.<br> |
|||
- Lá adiante, na ponta dos Bancos.<br> |
|||
- Não conheço esse lugar.<br> |
|||
- No mesmo dia em que cheguei.<br> |
|||
- Não percamos tempo - disse Gilliatt.<br> |
|||
- E não me engano, o senhor é o homem de ontem à noite.<br> |
|||
- Talvez.<br> |
|||
- Como se chama?<br> |
|||
Gilliatt alçou a voz:<br> |
|||
- Ó do bote, espere-nos. Já voltamos. Miss, a senhora perguntoume |
|||
por que motivo estava eu aqui, é simples, eu acompanhei-os.<br> |
|||
A senhora tem 21 anos. Nesta terra quem chega à maioridade e |
|||
depende de si casa-se em um quarto de hora. Tomemos o caminho |
|||
da praia. Está praticável, a maré há de encher lá para o meio-dia.<br> |
|||
Mas vamos já. Venham comigo.<br> |
|||
Déruchette e Ebenezer pareciam consultar-se com o olhar.<br> |
|||
Estavam de pé, juntinhos, sem mexer-se; pareciam ébrios. Há |
|||
dessas tentações estranhas à beira desse abismo que se chama |
|||
felicidade. Compreendiam, sem compreender.<br> |
|||
- Ele se chama Gilliatt - disse Déruchette baixinho a Ebenezer.<br> |
|||
Gilliatt continuou com uma espécie de autoridade:<br> |
|||
- Que esperam? Já lhes disse que me acompanhassem.<br> |
|||
- Aonde? - perguntou Ebenezer.<br> |
|||
- Ali.<br> |
|||
E Gilliatt mostrou com o dedo a torre da igreja. Os dois acompanharam- |
|||
no.<br> |
|||
Gilliatt ia adiante. O seu passo era firme. Os dois vacilavam.<br> |
|||
À proporção que se aproximavam da torre, via-se despontar naqueles |
|||
puros e belos rostos de Ebenezer e Déruchette alguma |
|||
coisa que seria dentro de pouco tempo o sorriso. A proximidade da |
|||
igreja iluminava-os. Nos olhos fundos de Gilliatt havia trevas.<br> |
|||
Dissera-se um espectro levando duas almas ao paraíso.<br> |
|||
Ebenezer e Déruchette não compreendiam muito o que se estava |
|||
passando. A intervenção daquele homem era o ramo a que se |
|||
agarra o afogado. Eles acompanhavam Gilliatt com a docilidade |
|||
que o desespero tem para com a primeira pessoa que lhe aparece.<br> |
|||
Quem se sente morrer não é difícil em aceitar os incidentes.<br> |
|||
Déruchette, mais ignorante, era mais confiante. Ebenezer pensava.<br> |
|||
Déruchette era maior. As formalidades do casamento inglês |
|||
são simplíssima, sobretudo nos países autóctones onde os párocos |
|||
tem quase um poder discricionário; mas o decano celebraria o |
|||
casamento sem saber se o tio consentia? Havia uma questão nisto.<br> |
|||
Contudo, podia-se tentar. Em todo o caso era uma delonga.<br> |
|||
Mas quem era aquele homem? E se era ele quem, na véspera, foi |
|||
declarado genro de Mess Lethierry, como explicar o que estava |
|||
fazendo? Ele, que era o obstáculo, tornava-se a providência.<br> |
|||
Ebenezer prestava-se a tudo, mas dava ao que se estava passando o consentimento tácito e rápido do homem que se sente salvo.<br> |
|||
O caminho era desigual, às vezes molhado e difícil. Ebenezer, absorto, |
|||
não prestava atenção aos charcos de água e às pedras. De quando em quando, Gilliatt voltava-se e dizia a Ebenezer: Cuidado com essas pedras, dê-lhe a mão.<br> |
|||
===A PREVIDÊNCIA DA ABNEGAÇÃO=== |
|||
Soavam 10 horas e meia quando eles entravam na igreja. Por |
|||
causa da hora, e também por causa da solidão da cidade naquele |
|||
dia, a igreja estava vazia.<br> |
|||
No fundo, porém, perto da mesa que, nas igrejas reformadas, substitui |
|||
o altar, havia três pessoas: eram o decano, o seu evangelista, |
|||
e mais o lançador dos registros. O decano, que era o reverendo |
|||
Jaquemin Herodes, estava assentado; o evangelista e o lançador |
|||
estavam de pé.<br> |
|||
O Livro, aberto, estava sobre a mesa.<br> |
|||
Ao lado havia outro livro, era o registro da paróquia, igualmente |
|||
aberto, e no qual um olhar atento poderia notar uma pagina escrita |
|||
de fresco. Uma pena e um tinteiro ficavam ao lado do registro.<br> |
|||
Vendo entrar o Reverendo Ebenezer Caudray, o Reverendo Jaquemin |
|||
Herodes levantou-se.<br> |
|||
- Esperava-o - disse ele. - Tudo está pronto.<br> |
|||
O decano, com efeito, estava com o hábito de oficiante.<br> |
|||
Ebenezer olhou para Gilliatt.<br> |
|||
O Reverendo Herodes continuou:<br> |
|||
- Estou às suas ordens, meu colega.<br> |
|||
E fez-lhe uma cortesia.<br> |
|||
A cortesia não foi nem para a esquerda nem para a direita. Era |
|||
evidente, pela direção do raio visual do decano, que, para ele, só |
|||
Ebenezer existia. Ebenezer era clergyman e gentleman. O decano |
|||
não compreendia no seu cumprimento nem Déruchette, que estava |
|||
ao seu lado, nem Gilliatt, que estava atrás. Havia no seu olhar |
|||
um parêntese em que só Ebenezer era admitido. A manutenção |
|||
destas distinções faz parte da boa ordem e consolida as sociedades.<br> |
|||
O decano continuou com uma amenidade graciosamente altiva:<br> |
|||
- Meu colega, faço-lhe o meu duplo cumprimento. Morreu-lhe o |
|||
tio, e o senhor casa-se; fica rico por um lado e feliz por outro.<br> |
|||
Demais, agora, graças a este vapor que vai ser restabelecido, |
|||
Miss Lethierry também é rica, o que eu aprovo. Miss Lethierry |
|||
nasceu nesta paróquia, verifiquei a data do nascimento no livro |
|||
dos assentos. Miss Lethierry é maior e dispõe de si. Depois, seu |
|||
tio, que é toda a sua família, consente. Querem casar-se já por |
|||
causa da viagem, compreendo, mas sendo este casamento o do |
|||
cura da paróquia, eu quisera mais alguma solenidade. Abrevio para |
|||
fazer-lhes o gosto. O essencial pode fazer-se no sumário. O ato já |
|||
está escrito no livro do registro que está aqui, e falta só por os |
|||
nomes. Nos termos da lei e do costume, o casamento pode ser |
|||
celebrado logo depois da inscrição. A declaração necessária para |
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a licença já foi feita. Tomo a responsabilidade de uma pequena |
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irregularidade, porque o pedido de licença devia ser previamente |
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registrado sete dias antes; mas eu reconheço a necessidade e a |
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urgência da partida. Seja. Vou casá-los. O meu evangelista será a |
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testemunha do esposo; quanto à esposa. .<br> |
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O decano voltou-se para Gilliatt.<br> |
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Gilliatt fez um sinal de cabeça.<br> |
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- Basta - disse o decano.<br> |
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Ebenezer ficara imóvel. Déruchette era o êxtase petrificado.<br> |
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O decano continuou:<br> |
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- Há, porém, um obstáculo.<br> |
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Déruchette fez um movimento.<br> |
|||
O decano continuou:<br> |
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- O enviado de Mess Lethierry, que aqui está presente, e pediu a |
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licença e assinou a declaração no registro - e com o polegar da |
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mão esquerda o decano indicou Gilliatt, o que o isentava de articular |
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nenhum nome - o enviado de Mess Lethierry disse-me esta manhã que Mess Lethierry, por muito ocupado, não podia vir, e |
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desejava que o casamento se fizesse incontinenti. Esse desejo, verbalmente expresso, não é suficiente. Não posso, por causa das dispensas e da irregularidade que tomo sobre mim, ir além disto sem informar-me de Mess Lethierry, a menos que me mostrem a |
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assinatura dele. Qualquer que seja a minha boa vontade, não posso contentar-me com uma palavra que me repetem. Preciso de um escrito.<br> |
|||
- Não sirva isto de empecilho - disse Gilliatt.<br> |
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E apresentou ao decano um papel.<br> |
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O decano pegou no papel, percorreu com um olhar, pareceu passar |
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algumas linhas, sem dúvida, inúteis, e leu alto:<br> |
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"Vai ter à casa do decano para arranjar as dispensas. Desejo que o casamento se faça o mais cedo possível, e já, será melhor."<br> |
|||
Pôs o papel em cima da mesa e continuou:<br> |
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- Assinado: "Lethierry". A coisa seria mais respeitosa se fosse dirigida a mim. Mas, como se trata de um colega, não exijo mais.<br> |
|||
Ebenezer olhou de novo para Gilliatt. Há almas que se entendem.<br> |
|||
Ebenezer sentia naquilo uma fraude; e não teve força, não teve mesmo idéia de denunciá-lo. Ou fosse obediência a um heroísmo latente que ele antevia, ou fosse que se lhe aturdisse a consciência pela ventura súbita, Ebenezer não teve palavras.<br> |
|||
O decano tomou a pena e encheu, com o auxílio do lançador dos |
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assentos, os claros da página escrita no livro, depois levantou-se, |
|||
e com o gesto convidou Ebenezer e Déruchette a aproximar-se da |
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mesa.<br> |
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Começou a cerimônia.<br> |
|||
Ebenezer e Déruchette estavam ao pé um do outro diante do |
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ministro. Quem tiver sonhado que se está casando saberá o que |
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eles sentiam.<br> |
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Gilliatt estava a alguma distância na obscuridade dos pilares.<br> |
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Déruchette, ao levantar-se da cama, desesperada, pensando no |
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túmulo e no sudário, vestira-se de branco. Esta idéia de morte |
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veio a propósito para as núpcias. O vestido branco fez dela uma |
|||
noiva. Também os túmulos são esponsais.<br> |
|||
Déruchette irradiava. Nunca foi o que era naquele instante.<br> |
|||
Déruchette tinha o defeito de ser demasiado linda e não bastante |
|||
formosa. A sua beleza pecava, se é pecar, por excesso de graça.<br> |
|||
Déruchette em repouso, isto é, fora da paixão e da dor, já o |
|||
dissemos , era sobretudo gentil. A transfiguração da moça encantadora |
|||
é a virgem ideal. Déruchette, engrandecida pelo amor e pelo sofrimento, tinha tido esse progresso, deixem passar a palavra.<br> |
|||
Tinha a mesma candura, com mais dignidade, a mesma frescura, com mais perfume. Era uma espécie de bonina que se torna |
|||
lírio.<br> |
|||
Tinha no rosto sinais de lágrimas estanques. Havia ainda talvez |
|||
uma lágrima no canto do sorriso. As lágrimas estanques, vagamente |
|||
visíveis, são um sombrio e doce ornato da felicidade.<br> |
|||
O decano, de pé perto da mesa, pós um dedo na Bíblia aberta e |
|||
perguntou em voz alta:<br> |
|||
- Há oposição?<br> |
|||
Ninguém respondeu.<br> |
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- Amém - disse o decano.<br> |
|||
Ebenezer e Déruchette deram um passo para o Reverendo Jaquemin Herodes.<br> |
|||
O decano disse:<br> |
|||
- Joe Ebenezer Caudray, queres esta mulher por tua esposa? Ebenezer respondeu:<br> |
|||
- Quero.<br> |
|||
O decano continuou:<br> |
|||
-Durande Déruchette Lethierry, queres este homem por teu marido?<br> |
|||
Déruchette, na agonia da alma demasiado feliz, como a da lâmpada demasiado cheia de óleo, murmurou em vez de pronunciar:<br> |
|||
- Quero.<br> |
|||
Então, segundo o belo rito do casamento anglicano, o decano |
|||
olhou em roda de si, e fez na sombra da igreja esta solene pergunta:<br> |
|||
- Quem dá esta mulher a este homem?<br> |
|||
- Eu - disse Gilliatt.<br> |
|||
Houve um momento de silêncio. Ebenezer e Déruchette sentiram |
|||
uma vaga opressão através da sua felicidade.<br> |
|||
O decano pós a mão direita de Déruchette na mão direita de |
|||
Ebenezer, e Ebenezer disse a Déruchette:<br> |
|||
- Déruchette, tomo-te por minha mulher, quer sejas melhor ou pior, |
|||
mais rica ou mais pobre, doente ou com saúde, para amar-te até à |
|||
morte, e dou-te a minha fé.<br> |
|||
O decano pôs a mão direita de Ebenezer na mão direita de |
|||
Déruchette, e Déruchette disse a Ebenezer:<br> |
|||
- Ebenezer, tomo-te por meu marido, quer sejas melhor ou pior, |
|||
mais rico ou mais pobre, doente ou com saúde, para amar-te e |
|||
obedecer-te até à morte, e dou-te a minha fé.<br> |
|||
O decano continuou: Onde está o anel?<br> |
|||
Isto era o imprevisto. Ebenezer não tinha anel.<br> |
|||
Gilliatt tirou o anel de ouro que tinha no dedo mínimo e apresentou ao decano. Era provavelmente o anel de casamento comprado de manhã ao ourives de Comercial Arcade.<br> |
|||
O decano pós o anel no livro, depois entregou-o a Ebenezer.<br> |
|||
Ebenezer pegou na mãozinha esquerda, trêmula, de Déruchette,meteu o anel no quarto dedo e disse:<br> |
|||
- Desposo-te com este anel.<br> |
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- Em nome do Padre, do Filho e do Espírito Santo disse o decano.<br> |
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- Assim seja - disse o evangelista.<br> |
|||
O decano alçou a voz:<br> |
|||
- Estais casados.<br> |
|||
- Assim seja - disse o evangelista.<br> |
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O decano continuou:<br> |
|||
- Oremos.<br> |
|||
Ebenezer e Déruchette voltaram-se para a mesa e ajoelharam-se.<br> |
|||
Gilliatt, que estava de pé, inclinou a cabeça.<br> |
|||
Eles ajoelhavam-se diante de Deus, Gilliatt curvava-se ao destino.<br> |
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===PARA TUA MULHER QUANDO TE CASARES=== |
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Saindo da igreja viram o Cashemere que começava a aparelhar.<br> |
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- Chegam a tempo - disse Gilliatt.<br> |
|||
Seguiram pelo caminho da Angrazinha.<br> |
|||
Os dois iam adiante, Gilliatt agora caminhava atrás.<br> |
|||
Eram dois sonâmbulos. Mudara apenas o atordoamento. Não sabiam |
|||
nem onde estavam nem o que faziam; apressavam-se maquinalmente, não se lembravam da existência de coisa alguma, sentiam-se um outro, não podiam ligar duas idéias. Não pode pensar quem está em êxtase como não pode nadar quem está numa torrente.<br> |
|||
Pareciam ir penetrando num paraíso. Não se falavam, conversavam |
|||
com a alma. Déruchette apertava contra si o braço de |
|||
Ebenezer.<br> |
|||
O passo de Gilliatt atrás deles fazia-lhes ver que ele estava presente.<br> |
|||
Iam profundamente comovidos mas sem dizer palavra; o |
|||
excesso da comoção transforma-se em estupefação. A deles era |
|||
deliciosa, mas acabrunhava. Estavam casados. Adiavam o resto, |
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esperavam voltar, o que Gilliatt fez era bem feito, eis tudo. O fundo |
|||
desses dois corações agradecia-lhe ardente e vagamente.<br> |
|||
Déruchette dizia consigo que havia alguma coisa para deslindar, |
|||
mais tarde. Entretanto, aceitavam o fato. Sentiam-se à discrição daquele homem decisivo e súbito, que, por autoridade, fazia a felicidade deles dois.<br> |
|||
Fazer-lhe perguntas, conversar com ele, era impossível. Eram de |
|||
sobejo as impressões que se lhes precipitavam em cima ao mesmo |
|||
tempo. Estavam engolfados; era perdoável.<br> |
|||
Os fatos são às vezes uma saraiva. Crivam a criatura. Ensurdecem.<br> |
|||
A precipitação dos incidentes, caindo em existências habitualmente |
|||
calmas, tornam logo ininteligíveis os acontecimentos aos |
|||
que os sofrem ou deles se aproveitam. Não se pode conhecer a |
|||
sua própria ventura. Fica-se esmagado sem adivinhar, venturoso |
|||
sem compreender. Déruchette, em particular, desde algumas horas |
|||
recebera todas as comoções; primeiramente a fascinação, Ebenezer |
|||
no jardim; depois o pesadelo, aquele monstro declarado seu marido; |
|||
depois a desolação, o anjo abrindo as asas e prestes a partir; |
|||
agora era a alegria, uma alegria inaudita, com um fundo indecifrável; |
|||
o monstro dava-lhe o anjo; o casamento saía da agonia; o Gilliatt, |
|||
catástrofe de ontem, salvação de hoje. Déruchette não compreendia |
|||
nada. Era evidente que, desde manhã, Gilliatt não teve outra |
|||
ocupação senão a de casá-los; fez tudo; respondeu por Mess |
|||
Lethierry, falou ao decano, pediu licença, assinou a declaração |
|||
necessária; eis aí como se realizou o casamento. Mas Déruchette |
|||
não compreendia nada; demais, mesmo quando ela compreendesse |
|||
o como, não compreenderia o porque.<br> |
|||
Fechar os olhos, agradecer, mentalmente, esquecer aterra, e a |
|||
vida, deixar-se levar para o céu por àquele bom demônio, eis o que |
|||
lhe cumpria fazer. Esclarecer seria longo, agradecer não seria bastante.<br> |
|||
Déruchette calava-se naquele doce embrutecimento da |
|||
ventura.<br> |
|||
Restava-lhe ainda algum pensamento, suficiente para guiá-la. Debaixo da água há pedaços de esponja que ficam brancos. Eles tinham a soma de lucidez necessária para distinguir o mar da terra e o Cashemere de qualquer outro navio.<br> |
|||
Dentro de poucos minutos estavam eles na Angrazinha.<br> |
|||
Ebenezer foi o primeiro a entrar no bote. No momento em que |
|||
Déruchette ia acompanhá-lo, sentiu a sua manga docemente puxada.<br> |
|||
Era Gilliatt que tinha posto um dedo numa dobra do vestido.<br> |
|||
- Senhora - disse ele -, não esperava partir. Eu cuido que naturalmente |
|||
há de precisar de vestidos e roupa. Achará a bordo do |
|||
Cashemere um caixotinho com objetos de mulher.<br> |
|||
Foi minha mãe quem mo deu. Era destinado à mulher com quem eu |
|||
casasse. Consinta que lho ofereça.<br> |
|||
Déruchette acordou a meio do sonho em que estava. Voltou-se |
|||
para Gilliatt, em voz baixa e que mal se ouvia, continuou:<br> |
|||
- Agora, não é para demorá-la, mas, olhe, eu creio que devo |
|||
explicar-lhe uma coisa. No dia em que houve aquela desgraça, a |
|||
senhora estava assentada na sala baixa, e disse umas palavras.<br> |
|||
Não se lembra disso, é natural. Ninguém é obrigado a lembrar-se |
|||
das palavras que diz. Mess Lethierry sofria muito. A verdade é que |
|||
era um belo navio e prestimoso. O desastre aconteceu; a terra |
|||
estava alvoroçada e compungida, são coisas que naturalmente se |
|||
esquecem. Só havia aquele navio perdido na costa. Não se pode |
|||
pensar sempre em um acidente. Somente o que eu queria dizer é |
|||
que, como se dizia que ninguém era capaz de lá ir, eu fui. Diziam |
|||
eles que era impossível; não era impossível aquilo. Agradeço-lhe o |
|||
prestar-me atenção por alguns instantes. Compreende a senhora |
|||
que se eu lá fui ao escolho, não foi para ofende-la. Demais, a |
|||
coisa data de longe. Eu sei que está com pressa. Se houvesse |
|||
tempo, falaríamos, recordaríamos, mas isso de nada serve. A coisa |
|||
data de um dia em que caiu neve. E depois eu passei uma vez, e |
|||
cuido te-la visto sorrir. É assim que tudo se explica. Quanto ao que |
|||
se passou ontem, eu não tive tempo de ir a casa, acabava do |
|||
trabalho, estava todo rasgado, mete-lhe medo, a senhora desmaiou, |
|||
fiz mal, não se entra assim na casa dos outros, peço-lhe |
|||
que me perdoe. É isto mais ou menos o que eu queria dizer-lhe. Vai |
|||
partir. Tem um belo tempo. Acha justo que eu lhe fale, não? É o |
|||
último minuto.<br> |
|||
- Penso na caixinha - respondeu Déruchette - Por que não há de |
|||
guardá-la para a sua mulher, quando se casar?<br> |
|||
- Senhora - disse Gilliatt -, provavelmente eu não me casarei |
|||
nunca.<br> |
|||
- Pois é pena, porque é uma boa alma. Obrigada.<br> |
|||
E Déruchette sorriu. Gilliatt retribuiu-lhe com outro sorriso.<br> |
|||
Depois ajudou Déruchette a entrar no escaler.<br> |
|||
Menos de um quarto de hora depois, o escaler onde iam Ebenezer e |
|||
Déruchette atracava ao Cashemere.<br> |
|||
===A GRANDE TUMBA=== |
|||
Gilliatt seguiu pela praia, parou rapidamente em Saint-Pierre-Port, |
|||
depois caminhou para Saint-Sampson ao longo do mar, fugindo aos |
|||
encontros, evitando as estradas cheias de caminhantes, por culpa |
|||
dele.<br> |
|||
Desde muito tempo, como se sabe, Gilliatt tinha um modo de atravessar |
|||
a terra em todos os sentidos sem ser visto por ninguém.<br> |
|||
Conhecia os atalhos, fez para si itinerários isolados e em ziguezagues: |
|||
tinha o hábito feroz do ente que não se julga estimado; |
|||
andava de longe. Ainda criança, vendo pouco agasalho no rosto |
|||
dos homens, tomou o costume, que depois tornou-se-lhe instinto, |
|||
de andar sempre afastado.<br> |
|||
Passou a Esplanada, depois a Salerie. De tempos a tempos, voltava- |
|||
se e olhava para o Cashemere na barra, que lhe ficava por trás; e o |
|||
Cashemere abria as velas. Havia pouco vento, Gilliatt ia mais depressa |
|||
que o Cashemere. Gilliatt caminhava nas rochas extremas da praia, |
|||
com a cabeça baixa. A maré começava a subir.<br> |
|||
Em certo momento parou e, voltando as costas para o mar, contemplou |
|||
durante alguns minutos, além dos rochedos que escondiam |
|||
a estrada do Vale, uma moita de carvalhos. Eram os carvalhos |
|||
do lugar chamado Basses Maisons. Foi ali, debaixo daquelas árvores, |
|||
que outrora o dedo de Déruchette escreveu o nome Gilliatt na |
|||
neve. Havia muito tempo que essa neve estava desfeita.<br> |
|||
Prosseguiu o caminho.<br> |
|||
O dia estava mais belo que nenhum outro naquele ano. A manhã |
|||
tinha um que de nupcial. Era um desses dias vernais em que maio |
|||
ostenta-se todo inteiro; a criação parecia não ter outro fim que |
|||
dar uma festa e fazer a própria felicidade. Sob todos aqueles |
|||
rumores, da floresta como da aldeia, da vaga como da atmosfera, |
|||
sentiam-se uns sons de arrulho. As primeiras borboletas pousavam |
|||
nas primeiras rosas. Tudo era novo na natureza, as ervas, os |
|||
musgos, as rolhas, os perfumes, os raios. Parecia que o sol nunca |
|||
tinha servido. Os seixos estavam lavados de fresco. A profunda |
|||
canção das árvores era cantada por aves nascidas na véspera.<br> |
|||
Era provável que a casquinha do Ovo quebrada pelo biquinho dessas |
|||
aves ainda estivesse no ninho. Ensaios de asas rumorejavam |
|||
nas folhas trêmulas. Cantavam o primeiro canto, davam o primeiro |
|||
vôo. Era uma doce conversa de todos a um tempo, poupas, |
|||
melharucos, pintassilgos, barbirruivos, pardais. Os lilases, os lírios, |
|||
as dafries, as glicínias compunham nas moitas uma deliciosa variedade |
|||
de cores. Uma linda lentilha aquática que há em Guernesey |
|||
cobria as lagoas de uma toalha de esmeralda. Banhavam-se as |
|||
alvéloas nas lagoas, onde costumam fazer tão graciosos ninhos.<br> |
|||
Via-se o céu através de todas as falhas da vegetação. Algumas |
|||
nuvens lascivas perseguiam-se no ar ondeando como ninfas. Como |
|||
que se sentia a passagem de beijos mandados por bocas invisíveis. Nenhum velho muro deixava de ter, como um noivo, o seu |
|||
ramalhete de girófleas. Os abrunheiros silvestres e os codessos |
|||
estavam em flor; viam-se aqueles montinhos brancos luzindo e |
|||
aqueles montinhos amarelos fulgurando através do cruzamento |
|||
dos ramos.<br> |
|||
A primavera atirava toda a sua prata e ouro no imenso cesto |
|||
rasgado dos bosques. Os pimpolhos novos eram verdes de fresco.<br> |
|||
Ouvia-se no ar um grito de saudação. Estio hospitaleiro abria a |
|||
porta aos pássaros longínquos. Era a hora da chegada das andorinhas.<br> |
|||
Os tirsos dos juncos orlavam os caminhos cavados, esperando |
|||
os tirsos dos púriteiros. O belo e o lindo faziam boa vizinhan- |
|||
ça: o soberbo contemplava-se pelo gracioso; o grande não tolhia |
|||
o pequeno; não se perdia nenhuma nota do concerto; as |
|||
magnificência microscópicas estavam em plano próprio naquela |
|||
vasta beleza universal; distinguia-se tudo como numa água límpida.<br> |
|||
Por toda a parte uma divina plenitude e um inturmescimento misterioso |
|||
faziam adivinhar o esforço pânico e sagrado da seiva em ação. O que brilhava, brilhava mais; o que amava, amava melhor.<br> |
|||
Havia um hino na flor e uma irradiação no ruído. Escutava-se a grande harmonia difusa. O que começava a despontar procurava o |
|||
que começava a surdir. Uma turvação, que surgia de baixo, e vertia também de cima, agitava vagamente os corações, corruptíveis à influência espessa e subterrânea dos germes. A flor prometia obscuramente o fruto, todas as virgens cismavam, a reprodução dos seres, premeditada pela imensa alma da sombra, esboçava-se na irradiação das coisas. Era o universal noivado. A vida, |
|||
que é a esposa, abraçava o infinito, que é o esposo. O dia estava |
|||
claro, formoso e ardente; através das sebes, nas cercas, viam-se |
|||
rir as crianças. Algumas jogavam a palheta. As macieiras, os pessegueiros, |
|||
as cerejeiras, as pereiras cobriam os vergéis com os |
|||
seus grossos tufos pálidos ou vermelhos. Na relva, as primaveras, |
|||
as pervincas, as mil-rolhas, as margaridas, os amarílis, os jacintos, |
|||
as violetas e as verônicas. As borragens azuis, os íris amarelos |
|||
pululavam, com as belas estrelinhas cor-de-rosa que florescem |
|||
sempre aos bandos e que por esse motivo chamam-se as companheiras.<br> |
|||
Animálculos dourados corriam por entre as pedras. O saião |
|||
florescente purpureava os tetos das cabanas. As operárias das |
|||
colmeias andavam por fora. A abelha trabalhava. A extensão estava |
|||
cheia do murmúrio dos mares e do zumbido das moscas. A |
|||
natureza, permeável na primavera, estava úmida de voluptuosidade.<br> |
|||
Quando Gilliatt chegou a Saint-Sampson, ainda a maré não enchera e ele pode atravessar a praia a pé seco, despercebido por trás |
|||
dos cascos de navios no estaleiro. Um. cordão de pedras chatas, |
|||
postas de espaço a espaço, auxiliava a passagem.<br> |
|||
Gilliatt não foi observado. O povo estava do outro lado do porto, |
|||
perto da saída, junto à casa de Lethierry. Aí andava o nome dele |
|||
de boca em boca. Falava-se tanto dele que o não chegavam a ver.<br> |
|||
Gilliatt passou escondido de algum modo pelo próprio rumor que |
|||
causava.<br> |
|||
Viu de longe a pança no lugar onde a amarrara, com o cano da máquina entre as quatro correntes, com um movimento de carpinteiros trabalhando, lineamentos confusos de pessoas que iam e |
|||
vinham de um para outro lado, e ouviu a voz tonante e alegre de |
|||
Mess Lethierry dando ordens.<br> |
|||
Meteu-se pelas ruelas dentro.<br> |
|||
Não havia ninguém por trás de Bravées, toda a curiosidade convergia |
|||
para a frente. Gilliatt tomou o atalho que costeava o muro |
|||
baixinho do jardim. Parou no ângulo onde estava a malva silvestre; |
|||
tornou a ver a pedra onde costumava sentar-se; tornou a ver o |
|||
banco de Déruchette. Olhava para o chão da alameda onde viu |
|||
abraçarem-se as duas sombras, que tinham desaparecido.<br> |
|||
Foi a caminho. Galgou a colina do castelo do Vale, desceu-a, e |
|||
dirigiu-se para a casa mal-assombrada, onde morava.<br> |
|||
O Houmet Paradis estava solitário.<br> |
|||
A casa estava tal qual ele a deixara de manhã depois de vestir-se para ir a Saint-Pierre-Port.<br> |
|||
Havia uma janela aberta. Via-se por ela o bagpipe pendurado em um prego da parede.<br> |
|||
Via-se na mesa a pequena Bíblia, dada em agradecimento a Gilliatt por um desconhecido, que era Ebenezer.<br> |
|||
A chave estava na porta. Gilliatt aproximou-se, pós a mão na chave, fechou a porta com duas voltas, pós a chave no bolso, e afastou-se.<br> |
|||
Afastou-se, não para o lado de terra, mas para o lado do mar.<br> |
|||
Atravessou diagonalmente o jardim, pelo lado mais curto, pisando os canteiros, mas tendo cuidado de poupar os sea kales que plantara |
|||
por serem do gesto de Déruchette.<br> |
|||
Galgou o parapeito e desceu aos arrecifes.<br> |
|||
Continuou a andar, indo sempre para a frente, pela longa e estreita |
|||
linha de cachopos que ligava a casa dele àquele grande obelisco de granito de pé, no meio do mar, que se chamava Corne de La Bete. Era ali que ficava a Cadeira Gild-HolmUr.<br> |
|||
Passava de um recife a outro como um gigante caminha nos cabeços. Andar em uma crosta de recifes assemelha-se a andar |
|||
na borda de um telhado.<br> |
|||
Uma pescadora de rede que andava com os pés descalços, nos |
|||
charcos que ficavam próximos, e voltava para a praia, gritou-lhe: |
|||
Cuidado. A maré está enchendo.<br> |
|||
Gilliatt continuou a andar. Chegando ao grande rochedo da ponta, |
|||
que formava um pináculo no mar, parou. Acabava a terra. Era a |
|||
extremidade do pequeno promontório.<br> |
|||
Olhou.<br> |
|||
Ao largo pescavam alguns barcos, com âncoras fora. Via-se de quando em quando naqueles barcos um gotejar de prata: eram as |
|||
redes que saíam da água. O Cashemere ainda não estava na altura de Saint-Sampson; desenrolara a mesena. Estava entre Herm e Jethou.<br> |
|||
Gilliatt torneou o rochedo. Chegou à beira da Cadeira Gild-Holm-Ur, ao pé dessa espécie de escada tosca que, menos de três |
|||
meses antes, Ebenezer descera ajudado por ele.<br> |
|||
Gilliatt subiu.<br> |
|||
A maior parte dos degraus já estava debaixo da água. Apenas dois |
|||
ou três estavam a seco. Gilliatt escalou-os.<br> |
|||
Os degraus iam ter à Cadeira Gild-Holm-Ur. Chegou à cadeira, |
|||
contemplou-a por um momento, apoiou a mão nos olhos e fe-la |
|||
passar de uma a outra sobrancelha, gesto com que parece que se |
|||
apaga o passado, depois assentou-se na cava da rocha, com o |
|||
grande declive por trás de si, e o oceano aos pés.<br> |
|||
O Cashemere, nesse momento, passava pela grande torre arredondada |
|||
e imersa, defendida por um sargento e um canhão, e que marca na |
|||
baía a metade do caminho entre Herm e Saint-Pierre-Port.<br> |
|||
Nas fendas do rochedo tremiam algumas flores, por sobre a cabeça de Gilliatt. A água estava toda azul. O vento era de leste, havia |
|||
pouca ressaca à roda de Serk, da qual em Guernesey só se vê a costa ocidental. Via-se ao longe a França corno uma bruma e a longa faixa amarela de areias de Carteret. De quando em quando passava uma borboleta branca. As borboletas gostam de passear sobre o mar.<br> |
|||
Fraca era a brisa. Todo aquele azul, embaixo, e em cima estava imóvel. Nenhuma tremura agitava aquelas serpentes de um azul mais claro ou mais carregado, que marcavam na superfície do mar as torções latentes dos baixios.<br> |
|||
O Cashemere, pouco impelido pelo vento, içou os cutelos para apanhar |
|||
alguma brisa. Cobriu-se todo de panos. Mas o vento era de través, o efeito dos cutelos obrigava-o a costear de perto Guernesey.<br> |
|||
Já tinha passado a baliza de Saint-Sampson. Atingia a colina do |
|||
castelo do Vale. Estava quase próximo ao promontório da casa de |
|||
Gilliatt.<br> |
|||
Gilliatt via-o aproximar-se.<br> |
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O ar e o mar estavam como que adormecidos. A maré enchia, não por meio de ondas, mas por inturnescimento. O nível da água ia se levantando sem palpitação. O vento do largo mar, extinto, assemelhava-se a um hálito de infante.<br> |
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Ouviam-se na direção da porta de Saint-Sampson pequenos golpes surdos, que eram marteladas. Provavelmente eram os carpinteiros que levantavam guindastes e pranchas para tirar a máquina da pança. Esse rumor mal chegava a Gilliatt, por causa da massa de granito a que ele estava encostado.<br> |
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O Cashemere aproximava-se com uma lentidão de fantasma.<br> |
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Gilliatt esperava.<br> |
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De súbito uma agitação da água e uma sensação de frio obrigaram-no a olhar para baixo. A água tocava-lhe os pés.<br> |
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Gilliatt abaixou os olhos e levantou-os.<br> |
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Cashemere estava perto.<br> |
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O rochedo onde as chuvas tinham cavado a Cadeira Gild-Holm-Ur, era tão vertical, e havia tanta água naquele sítio, que os navios, podiam, em tempo de calma, passar ali a distância de algumas braças.<br> |
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O Cashemere chegou. Surgiu, alçou-se. Parecia crescer sobre a água.<br> |
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Foi como que um crescimento de sombra. Todo o aparelho destacou-se como massa negra, no céu azul, e no magnífico balanço do mar. As longas velas, por um instante sobrepostas ao sol, tornavam-se quase cor-de-rosa e tiveram uma transparência inefável.<br> |
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As ondas tinham um murmúrio indistinto. Nenhum rumor perturbava o resvalar majestoso daquela massa. De terra via-se o que se passava a bordo como se lá se estivesse.<br> |
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Cashemere roçou quase pela rocha.<br> |
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O timoneiro estava no leme, um grumete trepava aos ovéns, alguns passageiros, encostados à amurada, contemplavam a serenidade do tempo, o capitão fumava. Mas não era nada disso o que Gilliatt contemplava.<br> |
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Havia no tombadilho um lugar cheio de sol. Era para ali que ele |
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olhava. Ali estavam Ebenezer e Déruchette. Estavam assentados |
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debaixo daquela luz, ele juntinho dela. Contraíam-se graciosamente |
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ao lado um do outro, como dois pássaros que se aquecem a um |
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raio do meio dia, num desses bancos cobertos de um assento |
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alcatroado que os navios bem preparados oferecem aos viajantes, |
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e nos quais costuma ler-se, quando o navio é inglês: For ladies |
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only . A cabeça de Déruchette caía sobre o ombro de Ebenezer, |
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o braço de Ebenezer estava por trás da cintura de Déruchette, |
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tinham as mãos agarradas uma à outra e os dedos entrelaçados |
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nos dedos. As diferenças de um anjo a outro mostravam-se claramente |
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naqueles dois delicados rostos feitos de inocência. Um era |
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mais virginal, o outro mais sideral. Era expressivo aquele casto |
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abraço, que encerrava o himeneu e o pudor. Aquele banco era já |
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uma alcova e quase um ninho. Ao mesmo tempo, era uma glória; a |
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doce glória do amor fugindo numa nuvem.<br> |
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O silêncio era celeste.<br> |
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O olhar de Ebenezer agradecia e contemplava; moviam-se os lábios |
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de Déruchette; e nesse silêncio delicioso, como o vento vinha |
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do lado oposto, no instante rápido em que o sloop resvalou a |
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algumas toesas da Cadeira Cwild-Holm-Ur, Gilliatt ouvia a voz tema |
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e delicada de Déruchette que dizia:<br> |
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- Olha! Parece que há um homem no rochedo.<br> |
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Cashemere deixou a ponta do promontório atrás de si, e mergulhou-se |
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no franzido profundo das vagas. Em menos de um quarto de hora, |
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mastros e velas assemelhavam-se a uma espécie de obelisco branco |
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diminuindo no horizonte. Gilliatt tinha água até os joelhos.<br> |
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Via o sloop afastar-se.<br> |
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A brisa refrescava ao longe. Gilliatt pode ver o Cashemere içar os cutelos |
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baixos para aproveitar o aumento do vento. O Cashmere já |
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estava fora das águas de Gueresey. Gilliatt não tirava os olhos do |
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navio.<br> |
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A água chegava-lhe à cintura.<br> |
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A maré levantava-se. O tempo corria.<br> |
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As cotovias e os corvos marinhos esvoaçavam inquietos em roda |
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dele. Dissera-se que procuravam adverti-lo. Talvez houvesse naqueles |
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bandos alguma gaivota ainda das Douvres que o reconhecia.<br> |
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Decorreu uma hora.<br> |
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O vento do largo não soprava no porto, mas a diminuição do Cashemere |
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era rápida. O sloop, segundo as aparências, ia a toda a força. Já |
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estava quase na altura de Casquets.<br> |
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Não havia espuma à roda do rochedo Gild-Holm-Ur, nenhuma vaga |
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batia no granito. A água inchava vagarosamente. Já estava quase |
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na altura dos ombros de Gilliatt.<br> |
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Decorreu outra hora.<br> |
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O Cashemere estava já além das águas de Aurigny. O rochedo |
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Ortach escondeu-o por um momento. Ocultou-se atrás desse rochedo, |
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e saiu depois, como de um eclipse. O sloop fugia para o norte. Já entrava no mar alto. Era apenas um ponto, tendo, por causa do sol, a cintilação de uma luz.<br> |
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Os pássaros soltavam pios a Gilliatt.<br> |
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Já não se via mais que a cabeça dele.<br> |
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O mar subia com uma brandura sinistra.<br> |
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Gilliatt, imóvel, olhava para o Cashemere que se desvanecia. A maré |
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estava quase cheia. Caía a tarde. Por trás de Gilliatt, no porto, |
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alguns barcos de pesca voltavam para terra.<br> |
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Os olhos de Gilliatt, presos ao longe no sloop, estavam fixos.<br> |
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Aqueles olhos fixos não se pareciam com coisa alguma que se |
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possa ver na terra. Havia o inexprimível naquela pálpebra trágica e |
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calma. O olhar continha toda a soma de tranqüilidade que deixa o |
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sonho abortado; era a aceitação lúgubre de outro complemento.<br> |
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Uma fuga de estrela deve ser acompanhada por olhares semelhantes.<br> |
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De quando em quando a obscuridade celeste aparecia naquela |
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pálpebra cujo raio visual estava fixo num ponto do espaço. Ao mesmo tempo em que a água infinita subia à roda do rochedo Gild-Holm-Ur, ia subindo a imensa tranqüilidade da sombra nos olhos profundos de Gilliatt.<br> |
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O Cashemere, tornando-se imperceptível, era já uma mancha misturada à bruma. Para distingui-lo era preciso saber onde ele estava.<br> |
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A pouco e pouco, aquela mancha, que já não era uma forma foi empalidecendo.<br> |
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Depois diminuiu.<br> |
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Depois dissipou-se.<br> |
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No momento em que o navio dissipava-se no horizonte, a cabeça desaparecia debaixo da água. Tudo acabou; só restava o mar.<br> |
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FIM''' |
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