Os Trabalhadores do Mar/Parte I/Livro V: diferenças entre revisões
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<center> Primeira Parte- Livro Quinto- O REVÓLVER<br> |
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<[[Os Trabalhadores do Mar]]<br> |
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<[[Autor:Victor Hugo]]<br> |
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Tradução: Machado de Assis<br> |
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</center> |
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===A PALESTRA NA POUSADA JOÃO=== |
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O Sr. Clubin era o homem que espera a ocasião.<br> |
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Era baixo e amarelo, com a força de um touro. O mar não podia |
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com ele. Tinha uma carne que parecia cera. Era da cor de uma |
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tocha e tinha nos olhos uma luz discreta. A sua memória tinha um |
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que de imperturbável e especial. Ver um homem uma vez era |
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conservá-lo como se fosse uma nota em um registro o olhar laconico |
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apunhalava. A pálpebra tirava a prova de um rosto, e conservavao; |
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não importava que o rosto envelhecesse depois, o Sr. Clubin |
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não deixava de reconhece-lo. Era impossível fugir àquela memória |
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tenaz. O Sr. Clubin era breve, sóbrio e frio; não fazia gesto algum.<br> |
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Tinha uns ares de candura que prendiam logo. Muitas pessoas |
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acreditavam-no simplório; trazia no rosto uma certa ruga que indicava |
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uma espantosa estupidez. Não havia melhor marinheiro do |
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que ele. Não havia reputação de religiosidade e integridade maior |
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que a sua. Quem o suspeitasse é que era suspeito. Travara amizade |
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com o Sr. Rebuchet, cambista em Saint-Malo, Rua de São Vicente, |
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ao lado do armeiro, e o Sr. Rebuchet costumava dizer que confiaria |
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a sua fábrica a Clubin. O Sr. Clubin era viúvo. A mulher foi tão |
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honesta como ele. Morreu com a fama de uma virtude invencível.<br> |
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Se o bailio lhe fizesse uma declaração ela iria contá-lo ao rei, e se |
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Nosso Senhor se apaixonasse por ela iria contá-lo ao padre vigário. O casal Clubin realizou em Torteval o ideal do epíteto inglês |
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respectable. A Sra. Clubin era o cisne; o Sr.<br> |
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Clubin era o arminho. Morreria se lhe pusessem uma nódoa. Nunca |
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achou um alfinete que não fosse logo à cata do proprietário. Era |
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capaz de por em almoeda uma caixa de fósforos, se acaso a tivesse |
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achado na rua. Entrou uma vez em uma taberna em Saint-Servan e disse ao taberneiro: Almocei aqui há três anos e voce |
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enganou-se na conta. E, dizendo isto, restituiu ao taberneiro 75 |
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cêntimos. Era uma grande probidade, mordendo atentamente os |
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beiços.<br> |
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Parecia estar sempre à espera. De quem? Provalvelmente dos velhacos.<br> |
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Todas as terças-feiras levava a Durande de Guernesey a Saint-Malo. Chegava a Saint-Malo na terça-feira à noite, demorava-se |
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dois dias para fazer o carregamento e voltava a Guernesey na |
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sexta-feira de manhã. Havia então em Saint-Malo uma pequena |
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hospedaria, situada no porto, que se chamava a Pousada João.<br> |
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A construção do cais atual fez demolir a pousada. Naquela época |
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vinha o mar até a porta de Saint-Vincent e a porta de Dinan; |
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Saint-Malo e Saint-Servan comunicavam-se nas marés baixas por |
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meio de carrinhos que rolavam e circulavam entre os navios em |
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seco, evitando as bóias, as âncoras e os maçames, e arriscandose |
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às vezes a rasgar a coberta de couro em alguma verga baixa.<br> |
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No intervalo de duas marés, os cocheiros fustigavam os cavalos |
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naquela mesma areia, onde, seis horas depois, vinha o vento chicotear |
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as vagas. Na mesma praia andavam outrora os 24 cães, |
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porteiros de Saint-Malo, que devoraram um oficial de marinha em |
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1770. Tamanho zelo fez suprimir os cães. Já não se ouvem agora |
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os latidos noturnos entre o pequeno e o grande Tallard.<br> |
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O Sr.Clubin ia à Pousada João. Era ali o escritório francês da Durande.<br> |
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Os guardas da alfândega e os guardas da costa iam comer e beber |
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na Pousada João. Faziam rancho à parte. Os guardas da alfândega |
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de Binic encontravam-se, vantajosamente para o serviço, com os |
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guardas da alfândega de Saint-Malo.<br> |
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Também lá iam os mestres de navio, mas comiam em outra mesa.<br> |
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O Sr. Clubin assentava-se ora numa, ora noutra, mas preferia a |
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dos guardas à dos mestres. Era bem recebido em ambas.<br> |
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As mesas eram bem servidas. Havia as mais apuradas bebidas |
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estrangeiras para os marítimos expatriados. Um marinheiro de Bilbau |
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acharia ali um copo. Bebia-se stout como em Greenwich, e como |
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em Antuérpia.<br> |
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Capitães de longo curso e armadores tomavam às vezes lugar na |
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mesa dos mestres de navio. Trocavam-se aí notícias: |
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- Como vai o açúcar?<br> |
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- Pequenos lotes. Vende-se bem o açúcar bruto; 3 000 sacas de |
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Bombaim e quinhentas barricas de Sagua.<br> |
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- Há de ver, o partido da direita ainda derruba o ministério Villele.<br> |
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- E o anil?<br> |
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- Venderam-se apenas uns sete surrões da Guatemala.<br> |
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- A Nanine Julie ancorou. Lindo navio da Bretanha.<br> |
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- As duas cidades do rio da Prata estão outra vez desavindas.<br> |
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- Quando Montevidéu engorda, Buenos Aires emagrece.<br> |
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- Foi preciso deitar ao mar a carga do Regina Coeli, condenado em |
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Cião.<br> |
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- O cacau vai andando; os sacos Caracas são cotados a 234, e os |
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sacos Trindade a 73.<br> |
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- Parece que na revista do Campo de Marte ouviu-se gritar: abaixo |
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os ministros.<br> |
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- Os couros salgados, Saladeros, vendem-se o dos bois a 60 francos |
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e o das vacas a |
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- Já passaram o Balkan? O que faz Diebitsch?<br> |
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- O azeite Plagniol está calmo. O queijo de Gruyère está a 32 |
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francos o quintal.<br> |
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- Com que então, Leão XII morreu?<br> |
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- Etc.., etc...,etc.<br> |
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Todas estas coisas eram ditas e comentadas no meio de grande |
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barulho. À mesa dos guardas da alfândega e dos guardas da costa |
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falava-se menos.<br> |
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A polícia das costas e dos portos quer menos sonoridade e menos |
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clareza no diálogo.<br> |
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A mesa dos mestres de navio era presidida por um velho capitão |
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de longo curso, o Sr. Gertrais-Gaboureau. Não era homem, era um |
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baremetro. Os hábitos do mar deram-lhe uma espantosa infalibilidade |
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de prognóstico. Ele decretava o |
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tempo que devia haver no dia seguinte; auscultava o vento; tomava |
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o pulso à maré. Dizia à nuvem: mostra-me a tua língua. A |
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língua era o relâmpago. Era o doutor da vaga, da brisa e da lufada.<br> |
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O oceano era o seu doente; fez uma viagem à roda do mundo |
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como quem faz uma clínica, examinando todos os climas na sua |
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boa e má saúde; sabia a fundo a patologia das estações. Enunciava |
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fatos como este: o barômetro desceu uma vez em 1796 a três |
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linhas abaixo da tempestade. Era marinheiro por amor. Odiava a |
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Inglaterra tanto quanto estimava o mar. Estudou cuidadosamente |
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a marinha inglesa para conhecer os seus lados fracos. Explicava |
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em que ponto o Sovereign de 1637 diferia do Royal William de 1670 |
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e do Victory de 1755. Comparava os castelos de popa. Lamentava |
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as torres no tombadilho e os cestos de gávea afunilados do Great |
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Harry de 1514, provàvelmente no ponto de vista da bala francesa |
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que se aninhava perfeitamente naquelas superficies. Para ele as |
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nações só existiam por suas instituições marítimas; fazia sinônimos |
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extravagantes. Chamava a Inglaterra Trinity House, a Escócia |
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Northern Commissioners, e a Irlanda Ballast Board. Abundava de |
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informações; era alfabeto. e almanaque. Sabia de cor a portagem |
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dos faróis, principalmente inglêses; penny por tonelada ao passar |
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diante deste, farthing ao passar diante daquele. Dizia: o Farol de |
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Smalt Rock, que consumia apenas 200 galões de azeite, consome |
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agora 500. Achando-se muito doente um dia, a bordo, a tripulação, que já o tinha por defunto, estava à roda de sua maca, |
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quando ele interrompeu os soluços da agonia para dar ao mestre |
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carpinteiro uma ordem relativa a um conserto do navio.<br> |
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Era raro que o assunto de conversa fosse sempre o mesmo na |
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mesa dos capitães e na mesa dos guardag. Apresentou-se, por |
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ém, o seguinte caso nos primeiros dias do mês de fevereit ro, em |
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que se passam os fatos que estamos contando. A galera Tamaulipas, |
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Capitão Zuela, vinda do Chile, e prestes a voltar, chamava a atenção das duas mesas. Na mesa dos mestres falou-se do carregamento, |
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e na mesa dos guardas falou-se dos ares suspeitos do |
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navio.<br> |
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O Capitão Zuela, de Copiapo, era chileno, um pouco colombiano; |
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tinha feito com independência as guerras da independência, acompanhando |
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ora Bolívar, ora Morillo, com enorme os lucros, enriquecido |
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obsequiando a toda a gente. Não havia homem mais bourbônico, |
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mais bonapartista, mais absolutista, mais liberal, mais ateu e mais |
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católico. Ele pertencia a este grande partido que se pode chamar |
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o Partido Lucrativo. De tempos a tempos fazia aparições comerciais |
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na França; e, a acreditar-se nos boatos, dava passagem a |
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bordo aos fugitivos, bancarroteiros ou proscritos políticos, fossem |
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quem fossem, contanto que pagassem. O meio de embarcá-los era |
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simples. O fugitivo esperava num ponto deserto da costa, e, no |
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momento de aparelhar, Zuela destacava um escaler, que ia buscá-lo. Foi deste modo que na sua precedente viagem fez evadir um |
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homem implicado no processo Berthon, e desta vez contava levar |
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pessoas comprometidas na questão da Bidassoa. A polícia, já avisada, |
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estava com o olho nele.<br> |
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Era um tempo de fugas aquele. A restauração era uma reação; |
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ora, as revoluções trazem emigrações, e as restaurações arrastam |
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proscrições. Durante os sete ou oito primeiros anos, depois da |
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entrada dos Bourbons, espalhou-se o terror em tudo, nas finanças, na indústria, no comércio, que sentiam tremer a terra e viam |
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multiplicar-se as falências. Havia um salve-se quem puder na política. Lavalette fugira. Lefebvre Desnouettes fugira; Delon fugira.<br> |
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Os tribunais de exceção trabalhavam; depois veio Trestaillon. Fugia-se à ponte de Saumur, à esplanada de Reole, ao muro do |
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observatório de Paris, à torre de Taurias d'Avignon, tudo isso que |
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se conserva de pé na história, vestígios da reação, aonde se |
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distingue ainda a sua mão sanguinolenta.<br> |
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Em Londres, o processo Thistlewood, ramificado na França, em |
|||
Paris o processo Trogoff, ramificado na Bélgica, na Suíça e na |
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Itália, multiplicaram os motivos da inquietação e desaparecimento, |
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e aumentaram essa profunda derrota subterrânea, que deixava |
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vazios os mais altos lugares da ordem social de então. Por-se em |
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segurança era a preocupação universal. O espírito dos tribunais |
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prebostais sobrevivera à instituição. As condenações eram feitas |
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por complacência. Fugiam para o Texas, para o Peru, para o México.<br> |
|||
Os homens da Loire, salteadores então, paladinos hoje, tinham |
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fundado o campo de Asilo. Dizia uma canção de Beranger: |
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Sauvages, nous sommes français;<br> |
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Prenez pítié de notre gloire.<br> |
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Expatriar-se era o recurso; porém nada menos simples que fugir; |
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Este monossílabo encerra abismos. Tudo é obstáculo para quem se |
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esquiva. Fugir é disfarçar-se. Pessoas importantes, e até ilustres, |
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viram-se reduzidas aos expedientes dos malfeitores. E ainda assim |
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saíam-se mal. Eram inverossímeis. Os seus hábitos de franqueza |
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tornavam-lhes difícil resvalar pelas malhas da evasão. Um gatuno |
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fugitivo mostrava-se mais correto aos olhos da polícia do que um |
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general. Imaginem a inocência constrangida a disfarçar-se, a virtude |
|||
contrafazendo a voz, a glória mascarando o rosto. Algum |
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indivíduo que passasse com ar suspeito, era uma reputação à cata |
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de um passaporte falso. O ar embaraçado de um fugitivo não provava |
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que ele deixasse de ser um herói. Traços fugazes e caracter |
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ísticos dos tempos, que a história regular esquece, mas que o |
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verdadeiro pintor de um século deve rememorar. Atrás dos homens |
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honestos, fugiam os tratantes, menos vigiados, menos suspeitos.<br> |
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Um tratante obrigado a eclipsar-se aproveitava-se da confusão, |
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fazia parte dos proscritos, e muitas vezes, graças a unia arte |
|||
apurada, parecia naquele crepúsculo mais honesto que o honesto.<br> |
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Que há aí mais acanhado que a probidade diante da justiça? Nada |
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entende, nada finge. Um falsário escapa-se mais facilmente que |
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um convencional.<br> |
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Coisa estranha! Especialmente em relação aos tratantes, quase |
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se pode dizer que a evasão fazia subir o indivíduo. A quantidade |
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de civilização que um velhaco levava de Paris ou de Londres valia-lhe |
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por dote nos países primitivos ou bárbaros, recomendava-o e |
|||
fazia dele um iniciador. Era fácil que um aventureiro, escapando ao |
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código, chegasse depois ao sacerdócio. Havia fantasmagoria na |
|||
desaparição, e mais de uma evasão tinha os resultados de um |
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sonho. Uma fuga deste gênero levava ao desconhecido e ao quimérico. Tal bancarroteiro saía da Europa e aparecia mais tarde |
|||
grão-vizir em Mogol ou rei na Tasmânia.<br> |
|||
Ajudar as evasões era uma indústria, e visto a freqüência do fato, |
|||
uma indústria lucrativa. Esta especulação completava certos gêneros de comércio. Quem queria fugir para a Inglaterra dirigia-se |
|||
aos contrabandistas; quem queria fugir para a América dirigia-se |
|||
aos trapaceiros de longo curso, tais como Zuela.<br> |
|||
===CLUBIN DESCOBRE ALGUÉM=== |
|||
Zucla ia comer, algumas vezes, à Pousada João. O Sr. Clubin conhecia-o de vista.<br> |
|||
E o Sr. Clubin não era soberbo; não se desprezava de conhecer de |
|||
vista um tratante. Às vezes chegava mesmo a conhece-los de |
|||
fato, dando-lhes a mão em plena rua. Falava inglês com o smogler |
|||
e engrolava o espanhol corri o contrabandista.<br> |
|||
A este respeito tinha ele as seguintes máximas: |
|||
- Pode-se adquirir o bem pelo conhecimento do mal.<br> |
|||
O monteiro conversa proveitosamente com o ladrão de caça. - O |
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piloto deve sondar o pirata; o pirata é um escolho. - Trata de |
|||
provar um velhaco como o médico prova o veneno.<br> |
|||
Não tinha réplica. Todos davam razão ao Capitão Clubin. Era aprovado |
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por não ter escrúpulos tolos. Quem ousaria dizer mal dele?<br> |
|||
Tudo quanto fazia era para bem do serviço. Nele tudo era simples.<br> |
|||
Nada podia compromete-lo. O cristal querendo manchar-se não |
|||
pode. Esta confiança era a justa recompensa de uma longa honestidade |
|||
e é essa a excelência das reputações firmes. Fizesse o |
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que fizesse o Sr. Clubin, todos lhe viam malícia no sentido da |
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virtude; tinha adquirido a impecabilidade; e de mais a mais dizia-se |
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que era muito esperto; deste ou daquele encontro que com outra |
|||
pessoa seria suspeito, a sua probidade saía sempre com um relevo |
|||
de habilidade. A fama de habilidade combinava-se harmoniosamente |
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com a fama de ingenuidade, sem contradição alguma.<br> |
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Ingenuo hábil é coisa que existe. É uma das variedades do homem |
|||
honesto e das mais apreciadas. O Sr. Clubin era desses homens |
|||
que, encontrados em conversa íntima com um larápio ou um bandido, |
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são recebidos, compreendidos, e mais respeitados, e tem |
|||
ainda por si o piscar de olhos satisfeitos da estima pública.<br> |
|||
O Tamaufipas tinha completado o carregamento. Estava próximo a |
|||
partir e ia aparelhar.<br> |
|||
Em uma terça-feira à tarde, ainda com sol, chegou a Durande a |
|||
Saint-Malo. O Sr. Clubin, de pé no passadiço e dirigindo a manobra |
|||
da entrada, descobriu perto de Petit Bey, na praia, entre dois |
|||
rochedos, em um lugar muito solitário, dois homens conversando.<br> |
|||
Deitou-lhes o óculo e reconheceu. um dos homens. Era o Capitão |
|||
Zuela. Parece que reconheceu também o outro.<br> |
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O outro era alto, um pouco grisalho. Trazia o chapéu largo e o |
|||
vestuário grave dos Amigos. Era provavelmente um quaker. Baixava |
|||
os olhos com modéstia.<br> |
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Chegando à Pousada João, o Sr-Clubin soube que o Tamaufipas ia |
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aparelhar dentro de dez dias.<br> |
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Soube-se depois que ele tomara outras informações.<br> |
|||
À noite, entrou em casa do armeiro da Rua de São Vicente, e |
|||
disse-lhe: |
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- Sabe o que é um revólver?<br> |
|||
- Sei - respondeu ele - , é americano. É uma pistola que renova |
|||
sempre a conversação. Na verdade, ela tem pergunta e resposta.<br> |
|||
E replica. É justo, Sr.<br>Clubin. O cano é girante. E cinco ou seis |
|||
balas.<br> |
|||
O armeiro levantou o cantinho do beiço e Rez ouvir aquele estalo |
|||
de língua, que, acompanhado de um movimento de cabeça, exprime |
|||
a admiração.<br> |
|||
- A arma é boa, Sr. Clubin. Creia que há de vir a ser universal.<br> |
|||
- Eu queria um revólver de seis tiros.<br> |
|||
- Não tenho desses.<br> |
|||
- Pois que, o senhor não é armeiro? |
|||
- Mas ainda não tenho desse. Bem vê que é coisa nova. Na França |
|||
só se fazem pistolas.<br> |
|||
- Diabo!<br> |
|||
- É coisa que ainda não está no comércio.<br> |
|||
- Diabo!<br> |
|||
- Tenho pistolas excelentes.<br> |
|||
- Quero um revólver.<br> |
|||
Convenho que é melhor. Mas espere, Sr.<br>Clubin |
|||
- O que é?<br> |
|||
- Creio que há um em Saint-Malo.<br> |
|||
- Revólver?<br> |
|||
- Sim.<br> |
|||
- Para vender?<br> |
|||
- Sim.<br> |
|||
- Onde?<br> |
|||
- Creio que sei. Hei de informar-me.<br> |
|||
- Quando me dá a resposta?<br> |
|||
- O revólver é bom.<br> |
|||
- Quando devo voltar?<br> |
|||
- Se eu lhe arranjo um revólver, é porque é bom.<br> |
|||
- Quando me dá a resposta?<br> |
|||
- Na sua primeira viagem.<br> |
|||
- Não diga que é para mim.<br> |
|||
===CLUBIN LEVA UNS OBJETOS E NÃO OS TRAZ=== |
|||
O Sr. Clubin fez o carregamento da Durande, embarcou o e alguns |
|||
passageiros, e, como de costume, saiu de Saint-Malo para |
|||
Guernesey na sexta-feira de manhã. Nesse mesmo dia, quando o |
|||
navio já estava ao largo, o que permite ao capitão ausentar-se do |
|||
tombadilho alguns momentos, Clubin entrou no seu camarote, fechou-se, pegou um saco de viagem que tinha, meteu alguma roupa |
|||
no compartimento elástico, biscoitos, latas de conserva, algumas |
|||
de cacau, um cronometro e um óculo no compartimento sólido, |
|||
e passou pelas argolas uma maroma preparada para içá-lo se |
|||
fosse preciso. Depois desceu ao porão, entrou no depósito dos |
|||
cabos e viram-no subir com uma dessas cordas armadas de um |
|||
gancho que servem aos calafates no mar ladrões em terra. Essas |
|||
cordas facilitam a escalada.<br> |
|||
Chegando a Guernesey, Clubin foi a Torteval. Passou aí 36 horas.<br> |
|||
Levou o saco e a corda, mas não voltou com eles.<br> |
|||
Uma vez por todas, o Guernesey de que se trata neste livro é o |
|||
antigo Guernesey que já não existe e seria impossível achá-lo |
|||
hoje, a não ser no campo. É aí que ele existe vivo, mas nas |
|||
cidades morreu. A observação que fazemos a respeito de Guernesey |
|||
deve ser feita a respeito de Jersey. Saint-Hélier vale Dieppe; Saint-Pierre-Port vale Lorient. Graças ao progresso, graças ao admirável |
|||
espírito de iniciativa daquele valente povo insular, transformou-se |
|||
tudo em quarenta anos no arquipélago da Mancha. Onde havia |
|||
sombra há luz. Dito isto, continuemos. Naqueles tempos que, pelo |
|||
afastado, já são históricos, o contrabando ativava-se no mar da |
|||
Mancha. Abundavam os navios trapaceiros, principalmente na costa |
|||
de oeste de Guernesey. As pessoas demasiado informadas e que |
|||
sabem em todas as minúcias o que se passava há quase meio |
|||
século chegam a citar os nomes de muitos desses navios quase |
|||
todos asturianos. O que é fora de dúvida é que não se passava |
|||
semana, sem que aparecesse um ou dois, ora na baía dos Santos, |
|||
ora em Plainmont. Parecia um serviço regular. Havia uma cava de |
|||
mar em Serk que se chamava e ainda se chama a loja, porque era |
|||
nessa gruta que a gente da terra ia comprar aos contrabandistas |
|||
as suas mercadorias de importação. Para as necessidades desse |
|||
comércio falava-se na Mancha uma espécie de língua contrabandista, |
|||
esquecida hoje, e que estava para o espanhol como o levantino |
|||
para o italiano.<br> |
|||
Em muitos pontos do litoral inglês e francês o contrabando estava |
|||
em boa harmonia com o negócio lícito. Entrava na casa de mais de |
|||
um financeiro de alta classe, às escondidas, e verdade; e dilatava-se subterrâneamente na circulação comercial e por todas as |
|||
vias de indústria. Negociante em público, contrabandista às escondidas, |
|||
eis a história de muitas fortunas. Seguindo, dizia isto de |
|||
Bourguin. Bourguin dizia isto de Seguin. Não garantimos o dito de |
|||
ambos. Talvez se caluniassem um ao outro. Fosse como fosse, o |
|||
contrabando perseguido pela lei estava, sem contestação, muito |
|||
aparentado no comércio. Carteava-se com a germa da sociedade.<br> |
|||
A caverna onde Maudrin acotovelava outrora o Conde de Charolais |
|||
era honesta exteriormente e tinha uma fachada irrepreensível para |
|||
o lado da sociedade.<br> |
|||
Daqui resultaram muitas conveniencias necessàriamente mascaradas.<br> |
|||
Tais mistérios exigiam sombra impenetrável.<br> |
|||
Um contrabandista sabia de muitas coisas e devia guardar segredo; |
|||
a sua lei era uma fé inviolável e rígida. A primeira qualidade de |
|||
um trapaceiro era a lealdade. Sem discrição não há contrabando.<br> |
|||
Havia o segredo da fraude como há o segredo da confissão.<br> |
|||
Esse segredo era imperturbavelmene guardado. O contrabandista |
|||
jurava não dizer nada e mantinha a sua palavra. Ninguém inspirava |
|||
mais confiança do que um contrabandista. O juiz alcaide de Oyarzun |
|||
apanhou um dia um contrabandista e pos-lhe a questão para obrigá-lo a declarar quem era o seu caixa de fundos. O contrabandista |
|||
não confessou quem era o caixa de fundos. O caixa de fundos era |
|||
o juiz alcaide. Dos dois cúmplices, juiz e contrabandista, o primeiro |
|||
devia, para cumprir a lei aos olhos de todos, ordenar a tortura, à |
|||
qual o segundo resistia para cumprir o juramento.<br> |
|||
Os dois mais famosos contrabandistas que andavam em Plainmont |
|||
naquela época, eram Blasco e Blasquito. Eram tocaios. Parentesco |
|||
espanhol e católico que consiste em ter o mesmo patrão no paraíso, coisa não menos digna de consideração que ter o mesmo pai |
|||
na terra.<br> |
|||
Quem estava pouco mais ou menos ao fato do furtivo itinerário do |
|||
contrabando e queria falar a esses homens, era isso a coisa mais |
|||
fácil e mais difícil. Bastava não ter preconceitos noturnos, ir a |
|||
Plainmont e afrontar o misterioso ponto de interrogação que ali se |
|||
levanta.<br> |
|||
===PLAINMONT=== |
|||
Plainmont, perto de Torteval, é um dos três ângulos de Guernesey.<br> |
|||
Há, na extremidade do cabo, uma coroa de relva que domina o |
|||
mar. O cume é deserto. Tanto mais deserto quanto há ali uma |
|||
casa. Aquela casa aumenta o horror da solidão. Dizem que é malassombrada.<br> |
|||
Assombrada ou não, o aspecto é medonho. É feita de |
|||
granito, tem um só andar e está no meio da relva. Não tem aspecto |
|||
de ruína. É perfeitamente habitável. As paredes são grossas e o |
|||
teto sólido. Não falta uma só pedra às paredes, nem uma só telha |
|||
ao telhado. Tem uma chaminé de tijolo. A casa está de costas |
|||
para o mar. A fachada do lado do mar é apenas uma parede.<br> |
|||
Examinando bem essa parede vê-se uma janela murada. Há três |
|||
trapeiras, uma a leste, duas a oeste, muradas todas. A frente da |
|||
casa tem uma só porta e janelas. A porta é murada e as duas |
|||
janelas de baixo também. No primeiro andar, e é isso que espanta |
|||
logo ao princípio, há duas janelas abertas; mas as janelas tapadas |
|||
são menos assustadoras que as janelas abertas. Por estarem abertas, |
|||
aparecem negras em pleno dia. Não tem vidros nem caixilhos.<br> |
|||
Abrem para as trevas do interior. Dir-se-ia umas órbitas vazias de |
|||
olhos arrancados. Nada há naquela casa. Vê-se pelas janelas abertas |
|||
o descalabro de dentro. Nem retábulos, nem entalhos de madeira, |
|||
pedra nua. Parece um sepulcro com janelas para deixar que |
|||
os espectros olhem para fora. As chuvas aluem os alicerces do |
|||
lado do mar. Algumas urtigas agitadas pelo vento beijam a barra |
|||
das paredes. No horizonte, nenhuma habitação humana. Aquela |
|||
casa é uma coisa vazia e silenciosa. Mas quem pára e põe o |
|||
ouvido à parede ouve confusamente um bater de asas assustadas.<br> |
|||
Por cima da porta tapada, na pedra que faz a arquitrave, estão |
|||
gravadas estas letras: ELM - PBILG, e esta-data: 1780.<br> |
|||
De noite o luar lúgubre penetra na casa.<br> |
|||
Todo o mar está em roda da casa. A situação é magnífica, e, por |
|||
conseqüência, sinistra. A beleza do lugar torna-se um enigma. Por |
|||
que motivo aquela casa não é habitada por nenhuma família humana?<br> |
|||
O lugar é bonito, a casa é boa. Donde procede esse abandono?<br> |
|||
As perguntas da razão ajuntam-se as perguntas da superstição. O campo é cultivável, por que motivo está inculto? Não há |
|||
dono. A porta, murada. Que tem, pois, esse lugar? Por que foge o |
|||
homem? Que se faz aqui? Se não há nada por que é que não há |
|||
ninguém? Quando todos dormem há alguém acordado? A lufada |
|||
tenebrosa, o vento, as aves de rapina, os animais escondidos, os |
|||
entes ignorados, aparecem ao pensamento e misturam-se àquela |
|||
casa. A que passageiros serve ela de hospedaria? A gente imagina |
|||
trevas de granizo e de chuva metendo-se pela janela dentro. Há |
|||
na parte interior uns vagos sinais de chuva. Os quartos fechados |
|||
e abertos são visitados. Conter-se-ia algum crime ali? Parece que |
|||
aquela casa, à noite, entregue às trevas, deve chamar por socorro.<br> |
|||
Será muda? Saem vozes de dentro? Que faz ela na solidão? O |
|||
mistério das horas negras existe ali facilmente. A casa assusta ao |
|||
meio-dia; que será ela à meia-noite? Contemplando-a, contempla-se |
|||
um segredo. Pergunta-se - porque a superstição tem a sua |
|||
lógica e o possível a sua inclinação - o que será aquela casa entre |
|||
o crepúsculo da noite e o crepúsculo da manhã. A imensa dispersão da vida extra-humana tem acaso naquele cume deserto um |
|||
vínculo em que ela pára, e que a obriga a fazer-se visível e a |
|||
descer? O espaço vai redemoinhar ali? O impalpável vai ali condensar-se? |
|||
Enigmas. Sai daquelas pedras o horror sagrado. A treva que |
|||
está nesses quartos defesos é mais do que treva; é o desconhecido.<br> |
|||
Depois do sol posto voltam barcos de pescadores para terra, |
|||
calam-se os pássaros, o cabreiro que está atrás do rochedo vai-se |
|||
com as suas cabras, as fendas das pedras darão passagem aos |
|||
répteis mais animados, as estrelas começarão a olhar, soprará o |
|||
vento, far-se-á plena escuridão, as duas janelas estarão ali escancaradas.<br> |
|||
Abrem-se para o sonho; e é por aparições, larvas, |
|||
fantasmas mal distintos, sombras cobrindo luzes, misteriosos tumultos |
|||
de almas e espectros, que a crença popular estúpida e |
|||
profunda, traduz as sombrias intimidades daquela casa com a noite.<br> |
|||
A casa é mal-assombrada, esta palavra explica tudo.<br> |
|||
Os espíritos crédulos dão a sua explicação; mas os espíritos positivos |
|||
dão outra. Nada mais simples do que essa casa, dizem eles.<br> |
|||
É um antigo posto de observação, do tempo das guerras da revolução e do império e dos contrabandos. Foi construída para isso.<br> |
|||
Acabada a guerra, foi abandonado o Posto. Não se demoliu a casa |
|||
porque pode tornar-se útil. Taparam-se a porta e as janelas do |
|||
rés-do-chão contra os Catercorários humanos, e para que ninguém pudesse entrar; taparam-se as janelas do lado do mar, por |
|||
causa do vento do sul e do vento do oeste. Eis tudo.<br> |
|||
Os ignorantes e os crédulos insistem. Em primeiro lugar a casa não |
|||
foi construída no tempo das guerras da revolução. Traz a data de |
|||
1780, anterior à revolução. Depois, não foi construída para ser |
|||
posto; tem as letras ELM - PBILG, que são o duplo monograma de |
|||
duas famílias, e que indicam, segundo o uso, que a casa foi |
|||
construída para algum jovem casal. Portanto foi habitada. Por que |
|||
não o é agora? Se tapou a porta e as janelas para que ninguém |
|||
entrasse, por que motivo deixaram-se abertas duas janelas? Deviam |
|||
tapar tudo ou nada. Por que não há vidros, nem caixilhos, nem |
|||
postigos? Por que fechá-las de um lado, sem fechá-las de outro? |
|||
A chuva não entra pelo sul, mas entra pelo norte.<br> |
|||
Os crédulos não tem razão, é certo; mas os positivos tambem não |
|||
a tem. O problema persiste. O que é certo é que dizem ter sido a |
|||
casa mais útil que nociva aos contrabandistas. Quando o medo |
|||
cresce, os fatos perdem a verdadeira proporção. Não há dúvida |
|||
que muitos fenômenos noturnos, entre aqueles de que a pouco e |
|||
pouco se compôs o assombramento da casa, poderia explicar-se |
|||
por presenças fugitivas e obscuras, curtas estações de homens |
|||
logo embarcados, já pelas precauções, já pela ousadia de certos |
|||
comerciantes suspeitos, escondendo-se para fazer mal, e deixando-se entrever para causar medo.<br> |
|||
Naquela época já remota, muitas audácias eram possíveis. A polícia, sobretudo, nos lugares pequenos, não era o que é hoje.<br> |
|||
Ajunte-se a isto que se a casa era comoda aos contrabandistas, |
|||
as suas entrevistas ali deviam ser francas, exatamente porque a |
|||
casa era mal vista. O ser mal vista impedia que fósse denunciada.<br> |
|||
Ninguém pede à polícia socorro contra os espectros. Os supersticiosos |
|||
persignam-se,, mas não fazem processo. Veem ou acreditam |
|||
ver, fogem e calam. Existe uma covivência tácita involuntária, |
|||
mas real, entre os que fazem medo e os que tem medo. Os assustados |
|||
sentem que fizeram mal em se assustarem, imaginam ter |
|||
surpreendido um segredo, receiam agravar a posição misteriosa |
|||
para eles, e enfadar as aparições. Isto fá-los discretos. E ainda, |
|||
fora deste cálculo, o instinto dos crédulos é o silêncio; o medo é |
|||
mudo; os aterrorizados falam pouco; parece que o horror diz: |
|||
silêncio.<br> |
|||
Devem recordar-se que isto remonta à época em que os camponeses |
|||
guernesianos acreditavam que o mistério do presépio era |
|||
repetido todos os anos pelos bois e pelos asnos; época em que |
|||
ninguém, na noite de Natal, ousaria penetrar em uma estrebaria |
|||
com receio de encontrar os animais ajoelhados.<br> |
|||
Se se deve acreditar nas legendas locais e narrativas dos camponeses, |
|||
a superstição chegou a suspender nas paredes da casa de |
|||
Plainmont, em pregos de que ainda existem vestígios, ratos sem |
|||
pés, morcegos sem asas, arcabouços de animais mortos, sapos |
|||
esmagados entre as páginas de uma Bíblia, febras de tremoços |
|||
amarelos, estranhos ex-votos pendurados por viandantes imprudentes |
|||
que acreditavam ver alguma coisa, e por meio desses presentes |
|||
contavam obter perdão e conjurar o mau humor das estriges, |
|||
das larvas e dos duendes. Houve sempre quem acreditasse em |
|||
congressos de feitiçaria, e alguns desses crédulos altamente colocados.<br> |
|||
César consultava Sagana, e Napoleão Mademoiselle |
|||
Lenormand. Há consciências tão inquietas que chegam a procurar |
|||
indulgências do diabo. Faça-o Deus, mas não o desfaça Satan |
|||
ás, era uma das orações de Carlos V.<br> |
|||
Há espiritos mais timoratos ainda. Esses chegam a persuadir-se de |
|||
que o mal pode ter razão contra eles. Ser irrepreensível para com |
|||
o demônio é uma das suas preocupações. Daí vem as práticas |
|||
religiosas voltadas para a imensa malícia obscura. E uma carolice |
|||
como qualquer outra. Os crimes contra o demônio existem em |
|||
certas imaginações doentias; violar a lei do inimigo é uma coisa |
|||
que faz sofrer os estranhos casuístas da ignorância; há escrúpulos |
|||
para com as regiões das trevas. Crer na eficácia da devoção |
|||
aos mistérios do Brocken e de Armuyr, imaginar que se peca contra |
|||
o inferno recorrendo a penitências quiméricas por infrações quiméricas, confessar a verdade ao espírito da mentira; fazer o mea |
|||
culpa diante do pai da Culpa, confessar-se em sentido inverso, |
|||
tudo isto existe ou existiu. Os processos de magia provam-no em |
|||
cada uma de suas páginas. Vai até esse ponto o sonho humano.<br> |
|||
Quando o homem começa a assustar-se, não pára mais. Sonha |
|||
culpas imaginárias, sonha purificações imaginárias, e faz limpar a |
|||
sua consciência com a vassoura das feiticeiras.<br> |
|||
Fosse como fosse, se aquela casa teve aventuras, é coisa que lá |
|||
ficou; pondo de parte alguns acasos e algumas exceções, ninguém subiu a ver o que era; a casa ficou só; ninguém gosta de |
|||
arriscar-se aos encontros infernais.<br> |
|||
Graças ao terror que a cerca e afasta dali todo aquele que pudesse observar e testemunhar, fácil foi em todos os tempos entrar de |
|||
noite naquela casa por meio de uma escada de corda ou simplesmente |
|||
por meio da primeira tranqueira que se achasse nas hortas |
|||
vizinhas. Levava-se um rancho de víveres, o que dava lugar a |
|||
esperar ali com toda segurança a eventualidade de um embarque |
|||
furtivo. Conta a tradição que há quarenta anos um fugitivo, dizem |
|||
uns que da política outros que do comércio, lá esteve algum tempo |
|||
escondido, e dali embarcou num barco de pesca para a Inglaterra.<br> |
|||
Da Inglaterra é fácil passar à América.<br> |
|||
A mesma tradição afirma que as provisões depositadas naquele |
|||
albergue lá se conservam sem que ninguém as toque, visto como |
|||
Lúcifer e os contrabandistas tem interesse em que a pessoa que lá |
|||
as põe vá buscá-las.<br> |
|||
Do lugar em que existe aquela casa, vê-se ao sudoeste, a 1 milha |
|||
da costa, o escolho de Hanois.<br> |
|||
É célebre aquele escolho. Fez todas as más ações que um rochedo |
|||
pode fazer. Era um dos mais temíveis assassinos do mar. Esperava |
|||
perfidamente os navios à noite. Entulhou os cemitérios de Torteval |
|||
e de Rocquaine.<br> |
|||
Em 1862 pos-se ali um farol.<br> |
|||
Hoje o escolho de Hanois alumia a navegação que ele próprio |
|||
extraviava outrora; a emboscada traz agora um archoté na mão.<br> |
|||
Procura-se hoje como profetor e guia o rochedo do qual fugia-se |
|||
outrora como de um malfeitor. O escolho tranqüiliza aqueles vastos |
|||
espaços noturnos onde outrora inspirava o medo. Assemelha-se a |
|||
um salteador feito soldado de polícia.<br> |
|||
Há três Hanois: o grande Hanois, o pequeno Hanois e a Mative. No |
|||
pequeno Hanois é que existe hoje o Red Light. Faz parte de um |
|||
grupo de picos, uns submarinos, outros acima da água. Domina-os.<br> |
|||
Como se fora uma fortaleza, tem baterias avançadas; do lado |
|||
do mar alto, um cordão de treze rochas; ao norte, dois cachopos, |
|||
Hautes-Fourquies e Aiguillons e um banco de areia, Heronée; ao sul três rochedos, Cat-Rock, Persée e Roque-Herpin; depois a South Boue e a Boue |
|||
Mouet, e além disso em frente de Plainmont, à flor da água o Tasde-Pois-d'Aval.<br> |
|||
Atravessar a nado o estreito de Hanois a Plainmont é coisa |
|||
incômoda, mas não impossível. O leitor lembra-se de que era essa |
|||
uma das proezas do Sr. Clubin. O nadador que conhece os baixios |
|||
tem duas estações em que pode descansar, a Roque redonda, e, |
|||
mais longe, obliquando um pouco à esquerda, a Roque vermelha.<br> |
|||
===OS FURTA-NINHOS=== |
|||
Pouco mais ou menos naquele dia de sábado em que o Sr. Clubin |
|||
esteve em Torteval, deu-se um fato singular, pouco assoalhado |
|||
em principio e que só transpirou muito depois. Como dissemos, há |
|||
muitas coisas que ficam desconhecidas, mesmo por causa do medo |
|||
que inspiram às suas próprias testemunhas.<br> |
|||
Na noite de sábado ao domingo (precisamos o dia e cremo-lo |
|||
exato), três meninos escalaram o rochedo de Plainmont. Voltavam |
|||
à vila. Vinham do mar. Eram o que, na língua local, chamam |
|||
deniquoiseaux: leia-se deniche-oiseaux (furta-ninhos). Onde quer |
|||
que haja penhascos na praia e fendas de rochedos acima do mar |
|||
há furta-ninhos em abundância. Já falamos deles. O leitor lembra-se |
|||
de que Gilliatt preocupava-se com isto, por causa dos pássaros |
|||
e por causa das crianças.<br> |
|||
Os furta-ninhos são espécies de gaiatos do oceano, pouco tímidos.<br> |
|||
A noite era escura. Espessas superposições de nuvens escondiam |
|||
o zenite. três horas da manhã soavam no sino de Torteval, que é |
|||
redondo e pontudo, semelhante a um chapéu de mágico.<br> |
|||
Por que voltavam tão tarde aqueles pequenos? Nada mais simples.<br> |
|||
Tinham ido à caça dos ninhos de cotovias no Tasde-Pois-d'Aval.<br> |
|||
Como a estação tinha sido amena, começaram cedo os amores |
|||
dos pássaros. Os pequenos espreitando os machos e as fêmeas à |
|||
roda dos ninhos, e distraídos pela tenacidade da empresa tinham |
|||
esquecido as horas. Foram cercados pela maré. Não puderam voltar |
|||
a tempo para a canoa e tiveram que esperar que o mar se |
|||
retirasse, assentados em uma das pontas de Tasde-Pois. Tal foi o |
|||
motivo da volta noturna. Estas voltas são esperadas sempre pela |
|||
febril inquietação das mães que, uma vez tranqüilas, manifestam a |
|||
alegria por meio da cólera, e lacrimosas dissipam o terror a |
|||
cachações. Por isso os pequenos apressavam-se, mas iam assustados.<br> |
|||
Apressavam-se, mas de boa vontade se demorariam, era |
|||
um certo desejo de não chegar nunca. Tinham em perspectiva um |
|||
beijo complicado de sopapo.<br> |
|||
Só um dos meninos nada receava; era um órfão. Era francês e ia |
|||
bem contente de não ter naquele dia nem pai nem mãe. Não tendo |
|||
ninguém que se interessasse por ele, escapava à bordoada. Os |
|||
outros dois eram guernesianos e da paróquia de Torteval.<br> |
|||
Escaladas as rochas, os três furta-ninhos chegaram à planura |
|||
onde estava a casa mal-assombrada.<br> |
|||
Começaram por ter medo, dever de todo o viandante, sobretudo |
|||
crianças, àquela hora e naquele lugar.<br> |
|||
Quiseram fugir e quiseram parar a fim de contemplar a casa.<br> |
|||
Pararam.<br> |
|||
Contemplaram a casa.<br> |
|||
Era negra e formidável.<br> |
|||
Era, naquele deserto, um montão escuro, uma excrescência |
|||
simétrica e hedionda, uma alta massa quadrada de ângulos retilíneos, |
|||
uma coisa semelhante a um enorme altar de trevas.<br> |
|||
O primeiro pensamento dos meninos tinha sido fugir; o segundo foi |
|||
aproximar-se. Nunca tinham visto aquela casa àquela hora. A curiosidade |
|||
de ter medo existe. Havia entre eles um francês, donde |
|||
resultou que os pequenos aproximaram-se da casa.<br> |
|||
É sabido que os franceses não acreditam em coisa alguma.<br> |
|||
Demais, quando são muitos, todos se tranqüilizam; o medo dividido |
|||
por três dá animação.<br> |
|||
E depois, eram curiosos; eram crianças, somada a idade dos três |
|||
não dava trinta anos; era a idade de perscrutar, de escavar, esquadrinhar |
|||
as coisas ocultas; deve-se acaso parar no meio? Mete-se |
|||
a cabeça neste buraco, porque não mete-la no outro? A caça |
|||
arrasta; andar em uma descoberta é o mesmo que meter-se em |
|||
um moinho. Ter olhado para o ninho dos pássaros dá vontade de |
|||
olhar um pouco para o ninho dos espectros. Investigar o inferno, |
|||
por que não?<br> |
|||
De caça em caça, chega-se ao demônio. Depois dos pardais os |
|||
diabretes. Há vontade de saber o que é esse medo inspirado pelos |
|||
pais. Andar na pista dos contos da carocha é o que há mais |
|||
resvaladiço. Saber tanto como as contadeiras de histórias é coisa |
|||
que tenta.<br> |
|||
Todo este amálgama de idéias no estado de confusão e instinto, |
|||
na cabeça dos rapazes, deu em resultado a temeridade deles.<br> |
|||
Caminharam para a casa.<br> |
|||
Demais, o pequeno que lhes servia depois nesta bravura, era digno |
|||
disso. Era um rapaz resoluto, aprendiz de calafate, uma dessas |
|||
crianças que já são homens, dormindo no estaleiro em cama de |
|||
palha, ganhando a vida, tendo uma voz grossa, trepando às árvores |
|||
e às paredes sem escrúpulos a respeito das frutas que encontrava, |
|||
tendo trabalhado em consertos de navios de guerra, filho |
|||
do acaso e do bambúrrio, órfão alegre, nascido na França, sem |
|||
saber em que ponto, duas razões para ser atrevido, dando sem |
|||
reparar aos pobres, muito mau, muito bom, loiro rastejando a ruivo, |
|||
tendo já falado aos parisienses. Agora ganhava 1 xelim por dia |
|||
calafetando os barcos dos pescadores. Dando-lhe a veneta punha- |
|||
se em férias e ia tirar os ninhos dos pássaros. Tal era o franc |
|||
ês.<br> |
|||
A solidão do lugar tinha um não sei que de fúnebre. Sentia-se a |
|||
inviolabilidade ameaçadora. Era medonho. Aquela planura silenciosa |
|||
e nua escondia no precipício a sua curva em declive. Embaixo |
|||
calava-se o mar. Não havia vento. As ervas não se mexiam.<br> |
|||
Os furta-ninhos avançavam devagar, com o francês à frente, contemplando |
|||
a casa.<br> |
|||
Um deles, contando depois o fato, ou o pouco que lhe restava na |
|||
memória, acrescentava: A casa não dizia nada.<br> |
|||
Aproximavam-se retendo a respiração, como quem se aproxima de |
|||
um animal feroz.<br> |
|||
Tinham subido o cômoro que fica atrás da casa, e que vai ter a um |
|||
pequeno istmo de rochedos pouco praticável; estavam perto da |
|||
casa; mas viam apenas a fachada do sul, que é toda murada; não |
|||
tinham ousado voltar à esquerda, o que os teria exposto a ver a |
|||
outra fachada em que há apenas duas janelas, o que é terrível.<br> |
|||
Entretanto atreveram-se, porque o aprendiz de calafate disse-lhes |
|||
baixinho, Viremos de bombordo; daquele lado é que é bonito; |
|||
é preciso ver as duas janelas negras.<br> |
|||
Viraram de bombordo e chegaram ao outro lado da casa.<br> |
|||
As duas janelas estavam iluminadas.<br> |
|||
Os meninos fugiram.<br> |
|||
Quando estavam longe, voltou-se o francês.<br> |
|||
- Olhem - disse ele - já não há luz.<br> |
|||
Com efeito, não havia luz nas janelas. A casa desenhava-se na |
|||
lividez difusa do céu.<br> |
|||
O medo não se foi, mas a curiosidade voltou. Os furta-ninhos |
|||
aproximaram-se.<br> |
|||
De repente apareceram as luzes outra vez.<br> |
|||
Os dois rapazes de Torteval tornaram a por sebo às canelas. O |
|||
pequeno Satanás francês, não avançou, mas não recuou. Ficou |
|||
imóvel em frente da casa olhando para ela.<br> |
|||
Extinguiu-se a luz, depois brilhou de novo. Nada mais horrível. O |
|||
reflexo fazia um vago rastilho de fogo na relva úmida pelo orvalho.<br> |
|||
Em certo momento o clarão desenhou na parede interior da casa |
|||
grandes perfis negros que se mexiam e sombras de cabeças enormes.<br> |
|||
Demais a casa não tinha teto nem tabiques, e, tendo apenas as |
|||
quatro paredes e o telhado, uma janela não pode ser iluminada |
|||
sem que a outra o seja.<br> |
|||
Vendo que o aprendiz de calafate ficava, os outros dois voltaram |
|||
trêmulos, curiosos. O aprendiz de calafate disse-lhes baixinho: Há |
|||
almas do outro mundo na casa. Vi o nariz de uma delas. Os dois |
|||
pequenos agruparam-se atrás do francês, e levantando-se sobre |
|||
a ponta dos pés, por cima do ombro, abrigados por ele, fazendo |
|||
dele um escudo, opondo-o à casa, tranqüilizados por te-lo entre si |
|||
e a visão, olharam também.<br> |
|||
A casa a seu turno parecia olhar para eles. Tinha, naquela vasta |
|||
obscuridade muda, duas órbitas vermelhas. Eram as janelas. A luz |
|||
eclipsava-se, reaparecia, eclipsava-se ainda, como essas luzes |
|||
costumam fazer. Estas intermitências sinistras representavam provavelmente |
|||
as alternativas do inferno. - Abre-se, fecha-se. O |
|||
respiradouro do sepulcro tem efeitos de lanterna surda.<br> |
|||
De repente uma escuridão opaca com forma humana levantou-se |
|||
em uma das janelas, como se viesse de fora, depois mergulhou no |
|||
interior da casa. Parece que alguém chegava.<br> |
|||
Entrar pela janela era o hábito dos visitantes.<br> |
|||
O clarão apareceu um momento mais vivo, depois apagou-se e não |
|||
reapareceu mais. A casa tornou-se escura. Então ouviram-se rumores.<br> |
|||
Esses rumores pareciam vozes. É sempre assim. Quando se |
|||
vê, não se ouve; quando não se vê, ouve-se.<br> |
|||
O mar tem à noite, uma taciturnidade particular. O silêncio da sombra |
|||
é aí mais profundo que em qualquer outra parte. Quando não |
|||
há nem vento nem marulho, naquela agitada extensão de águas, |
|||
onde de ordinário não se ouvem as águias voar, ouvir-se-ia voar |
|||
uma niásca. Aquela paz sepulcral dava um relevo lúgubre aos rumores |
|||
que saíam da casa.<br> |
|||
- Vejamos - disse o francês.<br> |
|||
E deu um passo para a casa.<br> |
|||
Os outros dois tinham tal medo que decidiram-se a acompanhá-lo.<br> |
|||
Não ousavam fugir sós. Acabavam de passar um grande montão |
|||
de lenha que, sem que o saibamos, os animava naquela solidão, |
|||
quando de uma moita voou uma coruja. As corujas tem uns vãos |
|||
tortos, de assustadora obliqüidade. Aquela passou de través pelos |
|||
rapazes, fixando neles os olhos claros no meio da treva.<br> |
|||
Houve um certo estremecimento no grupo atrás do francês.<br> |
|||
O francês clamou contra a coruja.<br> |
|||
- Tarde vens, coruja. Já não é tempo. Quero ver.<br> |
|||
E avançou.<br> |
|||
O ranger dos seus sapatos grossés e ferrados não lhes impedia |
|||
ouvir os rumores da casa que se elevavam e baixavam, com a |
|||
acentuação calma e a continuidade de um diálogo.<br> |
|||
Momentos depois acrescentou o francês: |
|||
- Demais, só os tolos podem crer em almas do outro mundo.<br> |
|||
A insolência no perigo reúne os retardados e impele-os para a |
|||
frente.<br> |
|||
Os dois rapazes de Torteval puseram-se a caminho atrás do aprendiz |
|||
de calafate.<br> |
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A casa mal-assombrada fazia-lhes o efeito de crescer desmesuradamente.<br> |
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Nesta ilusão de óptica do medo, havia realidade. A casa |
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crescia realmente porque eles aproximavam-se dela.<br> |
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Entretanto, as vozes que estavam na casa tornavam-se mais distintas.<br> |
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Os rapazes paravam, ouviam. O ouvido tem os seus aumentos.<br> |
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Não era murmúrio, era mais que um cochichar, menos que um |
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alarido. De quando em quando destacava-se uma ou duas palavras |
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claramente articuladas. Essas palavras, impossíveis de compreender, |
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soavam estranhamente. Os rapazes, paravam, ouviam e |
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depois continuavam a andar.<br> |
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- É a conversa das almas do outro mundo, mas eu não creio em |
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almas do outro mundo - disse o aprendiz de calafate.<br> |
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Os pequenos de Torteval tinham vontade de esconder-se atrás da |
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lenha; mas já estavam longe, e o amigo francês continuava a |
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andar para a casa. Temiam ir com ele, e não ousavam deixá-lo.<br> |
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Acompanhavam-no, a passo e passo e perplexos.<br> |
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O aprendiz de calafate voltou-se para eles e disse-lhes:<br> |
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- Bem sabem que não é verdade. Não existe nenhuma.<br> |
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A casa tornava-se cada vez mais alta.<br> |
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Aproximavam-se.<br> |
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Aproximando-se, reconheciam que havia na casa uma luz abafada.<br> |
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Era um clarão vago, um desses efeitos de lanterna surda, indicados |
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há pouco, e que abundam na iluminação das feitiçarias.<br> |
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Quando se acharam ao pé da casa, pararam de todo.<br> |
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Um dos rapazes de Torteval arriscou esta observação: |
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- Não são almas do outro mundo, são fantasmas.<br> |
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- Que é aquilo que pende ali à janela? - perguntou o outro.<br> |
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- Parece uma corda.<br> |
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- É uma serpente.<br> |
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- É corda de enforcado - disse o francês com autoridade. - Serve-lhes. Mas eu não creio.<br> |
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E mais em três pulos que em três passos o francês estava ao pé |
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da parede da casa. Havia febre naquele atrevimento. <br> |
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Os outros, trêmulos, imitaram-no, e foram colocar-se ao pé dele, encostando- |
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se um à direita, outro à esquerda. Os rapazes aplicaram o |
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ouvido à parede. Continuava-se a falar dentro da casa. <br> |
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Eis o que diziam os fantasmas: <br> |
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-Assim pois, está entendido?<br> |
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-Entendido.<br> - |
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-Dito?<br> |
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-Dito.<br> |
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-Aqui esperará um homem e partirá depois para a América com Blasquito?<br> |
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-Pagando?<br> |
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-Pagando.<br> |
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Blasquito tomará o homem na barca.<br> |
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-Sem indagar de que terra ele é?<br> |
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-Não temos nada com isso.<br> |
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-Sem lhe perguntar o nome? <br> |
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-Não se pede o nome, pede-se a bolsa.<br> |
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-Bem. O homem esperará nesta casa.<br> |
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-Tendo o que comer.<br> |
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-Terá.<br> |
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-Onde?<br> |
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-Neste saco que trago.<br> |
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-Muito bem.<br> |
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- Posso deixar o saco aqui?<br> |
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- Os contrabandistas não são ladrões.<br> |
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- E os senhores quando vão?<br> |
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- Amanhã de manhã. Se o seu homem está pronto poderá vir |
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conosco.<br> |
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- Não está pronto.<br> |
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- É lá com ele.<br> |
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- Quantos dias esperará aqui?<br> |
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- Dois, três, quatro dias. Mais ou menos.<br> |
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- É certo que Blasquito virá?<br> |
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- Certo.<br> |
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- Aqui, a Plainmont?<br> |
|||
- A Plainmont.<br> |
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-E agora vou-me embora. <br> |
|||
-Pois sim. <br> |
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-Diga-me cá, homem. Se o passageiro quiser que Blasquito vá a outro lugar |
|||
que não Portland ou Tor Bay?<br> |
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- Em que semana?<br> |
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- Na próxima.<br> |
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- Em que dia?<br> |
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- Sexta, sábado ou domingo.<br> |
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- Não pode faltar?<br> |
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- É meu tocaio.<br> |
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- Virá com qualquer tempo?<br> |
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-Qualquer. Não tem medo. Eu sou Blasco, ele é Blasquito.<br> |
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- Assim não deixará de ir a Guernesey?<br> |
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- Eu venho num mês, ele virá noutro.<br> |
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- Entendo.<br> |
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- A contar de sábado próximo, de hoje a oito dias não se passarão cinco dias sem que venha Blasquito.<br> |
|||
- Mas se o mar estiver muito mau?<br> |
|||
- Mau tempo? |
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- Sim.<br> |
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- Não virá tão depressa, mas virá.<br> |
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- Donde virá? |
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- De Bilbao.<br> |
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- Para onde irá? |
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- Para Portland.<br> |
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- Bem.<br> |
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- Ou para Tor Bay.<br> |
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- Melhor.<br> |
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- O seu homem pode ficar tranqüilo.<br> |
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- Blasquito não será traidor?<br> |
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- Os covardes são traidores. Somos valentes. O mar é a |
|||
igreja do inverno. A traição é a igreja do inferno.<br> |
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-Ninguém nos ouve?<br> |
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-É impossível ouvir-nos ou ver-nos. O medo faz isto deserto.<br> |
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-Sei.<br> |
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Quem se atreveria a escutar? <br> |
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-E verdade. <br> |
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-Mesmo que escutassem não poderiam entender. Falamos uma língua que ninguém conhece. Desde que voce a sabe, é dos nossos.<br> |
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-Eu vim para arranjarmos os negócios. <br> |
|||
-Bem.<br> |
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-Traga onças.<br> |
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-Blasquito fará o que o homem quiser?<br> |
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-Blasquito fará o que as onças quiserem.<br> |
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-É preciso muito tempo para ir a Tor Bay?<br> |
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-Depende do vento.<br> |
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-Oito horas?<br> |
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-Mais ou menos.<br> |
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-Blasquito obedecerá ao passageiro? |
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-Se o mar obedecer a Blasquito.<br> |
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-Há de ser bem pago.<br> |
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-Ouro é ouro. Vento é vento.<br> |
|||
- É justo.<br> |
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-O homem faz o que pode com o ouro. Deus com o vento faz o |
|||
que quer.<br> |
|||
- O homem que quer ir com Blasquito aqui virá sexta-feira.<br> |
|||
- Bem.<br> |
|||
- A que horas chega Blasquito?<br> |
|||
- À noite. Chega-se à noite, sai-se à noite. Temos uma mulher que |
|||
se chama água salgada, e uma irmã que se. chama noite. A mulher |
|||
pode enganar, a irmã nunca.<br> |
|||
- Está dito tudo. Adeus, homens.<br> |
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- Boas tardes. Um gole de aguardente?<br> |
|||
- Obrigado.<br> |
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- É melhor que xarope.<br> |
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- Tenho a sua palavra.<br> |
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- O meu nome é Pundonor.<br> |
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- Deus seja convosco.<br> |
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- Se é fidalgo, eu sou cavalheiro.<br> |
|||
Era claro que só diabos podiam falar assim. Os rapazes não ouviram |
|||
mais, e desta vez fugiram deveras, até o francês, que convencido |
|||
então, corria mais depressa que os outros.<br> |
|||
Na seguinte terça-feira, o Sr. Clubin estava de volta a Saint-Malo |
|||
trazendo a Durande.<br> |
|||
O Tamaufipas continuava ancorado.<br> |
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O Sr. Clubin, entre duas baforadas de fumo, perguntou ao dono da |
|||
Pousada João:<br> |
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- Então, quando sai o Tarnaulipas?<br> |
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- Depois de amanhã, quinta-feira - respondeu o estalajadeiro.<br> |
|||
Nessa noite, Clubin ceou à mesa dos guardas das costas, e, contra |
|||
o costume, saiu logo depois de cear. Resultou desta saída que |
|||
não pode estar presente no escritório da Durande, e faltou ao |
|||
carregamento. Foi isto reparado por ser ele um homem tão exato.<br> |
|||
Parece que ele conversou alguns instantes com o seu amigo cambista.<br> |
|||
Voltou duas horas depois que Noguette tocou a recolher. O sino |
|||
brasileiro soa às 10 horas. Era, pois, meia-noite.<br> |
|||
===A JACRESSARDE=== |
|||
Há quarenta anos Saint-Malo possuía uma viela chamada viela |
|||
Coutanchez. Essa viela já não existe: foi compreendida nos melhoramentos |
|||
da cidade.<br> |
|||
Era uma dupla fileira de casas de pau inclinadas umas para as |
|||
outras, e deixando no centro lugar suficiente para correr um rego |
|||
que se chamava rua. Andava-se ali com as pernas abertas dos |
|||
dois lados da água lamacenta, abalroando com a cabeça e o cotovelo |
|||
as casas da direita e da esquerda. As velhas choupanas da |
|||
idade média normanda tem perfis quase humanos. De albergue a |
|||
feiticeiro a distância não é grande. Os andares entrantes, as paredes |
|||
inclinadas, os alpendres circunflexos e o embrenhado de |
|||
ferros velhos simulam lábios, queixos, nariz e sobrancelhas. A trapeira |
|||
é o Olho, zarolho. A face é a parede rugosa e herpética. Tocam-se |
|||
as paredes como se conspirassem uma ação iníqua. Todos estes |
|||
nomes da antiga civilização, quebra-cabeças e quebra-ventas, |
|||
prendemse àquela arquitetura.<br> |
|||
Uma das casas da viela Coutanchez, a maior, a mais famosa ou a |
|||
mais afamada, chamava-se a Jacressarde.<br> |
|||
A Jacressarde era a habitação daqueles que não tem habitação.<br> |
|||
Em todas as cidades, e especialmente nos portos de mar, há, |
|||
abaixo da população, um resíduo. Vagabundos, aventureiros, vivendo |
|||
de expedientes, químicos de espécie larápio, pondo sempre |
|||
a vida no alambique, todas as formas do andrajo e todas as maneiras |
|||
de vesti-lo, os jubilados da improbidade, as existências em |
|||
bancarrota, as consciências que já fizeram balanço, os que abortaram |
|||
no assalto e no arrombamento de portas (porque os ladrões |
|||
trabalham por baixo e por cima), os operários e as operárias do |
|||
mal, os velhaquetes e as velhaquinhas, os escrúpulos rasgados e |
|||
os cotovelos rotos, os tratantes chegados à indigência, os malévolos mal recompensados, os vencidos do duelo social, os famintos que foram devorados, os ganha-pouco do crime, os miseráveis, na dupla e lamentável acepção da palavra, tal é o pessoal.<br> |
|||
Ali é bestial a inteligência humana. E o montão de imundícies das |
|||
almas. Ajunta-se tudo aquilo a um canto, onde passa de quando |
|||
em quando a vassoura policial. Em Saint-Malo esse canto era a |
|||
Jacressarde.<br> |
|||
O que se encontra nessas espeluncas não são os grandes criminosos, |
|||
os bandidos, os grandes produtos da ignorância e da indigência.<br> |
|||
Se o assassino é representado ali, é por algum bebado brutal; ali o |
|||
roubo não vai além da ratonice. É antes o escarro que o vômito da |
|||
sociedade. O vagabundo sim, o salteador não. Todavia não há que |
|||
fiar. Aquele último degrau dos boêmios pode ter extremidades malvadas.<br> |
|||
Um dia, lançando a rede no Epi-Scié, que era em Paris o |
|||
que a Jacressarde é em Saint-Malo, a polícia apanhou Lacenaire.<br> |
|||
Tudo entra naqueles albergues. A queda é um nivelamento. Às |
|||
vezes a honestidade esfarrapada escoa-se por ali. A virtude e a |
|||
probidade tem aventuras. Não se deve, à primeira vista, estimar |
|||
os Louvres nem condenar as galés. O respeito público e a reprovação universal devem ser descascados. Quantas; surpresas não se |
|||
dão! Um anjo no lupanar, uma pérola no monturo - não é impossível |
|||
este sombrio e deslumbrante achado.<br> |
|||
A Jacressarde era mais pátio que casa, e mais poço que pátio. Não |
|||
tinha andares para a rua. A fachada era uma alta parede com uma |
|||
porta baixa. Levantava-se o ferrolho, empurrava-se a porta, entrava-se em um pátio.<br> |
|||
No meio desse pátio havia um buraco redondo, cercado de uma |
|||
orla de pedra, ao nível do chão. Era um poço. O pátio era pequeno, |
|||
e o poço era grande. Em roda do bocal do poço o chão era mal |
|||
calçado.<br> |
|||
O pátio, quadrado, tinha construções por três lados. Do lado da |
|||
rua, nada; mas diante da porta, à direita e à esquerda, havia |
|||
aposentos.<br> |
|||
Quem, à noite, entrasse ali, um pouco arriscadamente, ouviria |
|||
como que um rumor de respirações juntas, e se houvesse bastante |
|||
luar ou estrelas, para dar forma aos lineamentos obscuros, eis o |
|||
que veria: |
|||
O pátio. O poço. Em roda do pátio, em frente à porta, uma palhoça |
|||
figurando uma espécie de ferradura quadrada, galeria carunchosa, |
|||
toda aberta, com teto de vigas, sustentada por pilares de pedra |
|||
desigualmente espaçados; no centro, o poço; à roda do poço, em |
|||
uma liteira de palha, e fazendo como que um rosário circular, viam-se |
|||
solas de sapato umas direitas, outras acalcanhadas, dedos |
|||
aparecendo pelos buracos dos sapatos, e muitos tornozelos pus, |
|||
pés de homem, pés de mulher, pés de criança. Todos esses pés |
|||
dormiam.<br> |
|||
Depois desses pés, penetrando o olhar na penumbra da palhoça, |
|||
distinguiam-se corpos, formas, cabeças adormecidas, prolongamentos |
|||
inertes, farrapos de ambos os sexos, uma promiscuidade |
|||
no monturo, um sinistro jazido humano. Era um quarto de dormir |
|||
para todos. Pagavam-se 2 soldos por semana. Os pés tocavam no |
|||
poço. Nas noites de tempestade, chovia sobre os pés; nas noites |
|||
de inverno, caía neve sobre os corpos.<br> |
|||
Quem eram aquelas criaturas? Os desconhecidos. Iam ali de noite |
|||
e saíam de manhã. A ordem social anda misturada com aquelas |
|||
larvas. Alguns esgueiravam-se ali de noite e não pagavam. A maior |
|||
parte entrava em jejum. Todos os vícios, todas as abjeções, todas |
|||
as suposições, todas as misérias, o mesmo sono de prostração no |
|||
mesmo leito do lodo. Os sonhos de todas essas almas faziam boa |
|||
vizinhança. Fúnebre entrevista em que se remexiam e se amalgamavam |
|||
no mesmo miasma os cansaços, os desfalecimentos, as |
|||
borracheiras incubadas, as marchas e contramarchas de um dia |
|||
sem um pedaço de pão e sem um bom pensamento, as noites |
|||
lividas e sonolentas, remorsos, cobiças, cabelos imundos, rostos |
|||
com o olhar da morte, beijos, talvez, das bocas da treva. A podridão humana fermentava naquela tina. Eram atiradas àquele albergue |
|||
pela fatalidade, pela viagem, pelo navio chegado na véspera, |
|||
por uma saída de prisão, pelo acaso, pela noite. O destino vazava |
|||
ali, todos os dias, a sua alcofa. Entrava quem queria, dormia quem |
|||
podia, falava quem ousava. Era próprio para cochichar. Todos se |
|||
apressavam em misturar-se. Tratavam de esquecer-se no sono, |
|||
visto que não podiam perder-se na sombra. Tiravam à morte aquilo |
|||
que podiam. Fechavam os olhos naquela agonia confusa que todas |
|||
as noites começava. Donde saíam? Da sociedade, porque eram a |
|||
miséria; da vaga, porque eram a espuma.<br> |
|||
Nem todos tinham palha. Mais de uma nudez estava ali no chão; |
|||
deitavam-se estafados; erguiam-se anquilosados. O poço sem parapeito |
|||
e sem tampa, sempre aberto, tinha 30 pés de profundidade.<br> |
|||
Caía ali a chuva, escorriam as imundícies, filtravam todos os |
|||
escoamentos do pátio. A caçamba para tirar água ficava a um |
|||
lado. Quem tinha sede bebia. Quem estava aborrecido afogava-se.<br> |
|||
Do sono do monturo passava-se ao sono do poço. Em 1819 |
|||
tirou-se dali um menino de catorze anos.<br> |
|||
Para não correr risco naquela casa era preciso ser da laia. Os |
|||
estranhos eram mal vistos.<br> |
|||
Conheciam-se acaso entre si aquelas criaturas? Não; farejavam-se.<br> |
|||
A dona da casa era uma mulher moça, assaz bonita, trazendo um |
|||
barrete ornado de fitas, lavada às vezes com água do poço e |
|||
tendo uma perna de pau.<br> |
|||
Desde madrugada esvaziava-se o pátio; iam-se embora os fregueses.<br> |
|||
Havia no pátio um galo e algumas galinhas, que esgaravatavam no |
|||
esterco durante o dia. O pátio era atravessado por um barrote |
|||
horizontal, colocado sobre postes, figura de forca, que não estava |
|||
ali em terra estranha. Via-se às vezes estendido no barrote, no |
|||
dia seguinte às noites chuvosas, um vestido de seda molhado e |
|||
enlameado, pertencente à mulher da perna de pau.<br> |
|||
Acima da palhoça e circulando o pátio havia um andar superior e |
|||
acima do andar um celeiro. Subia-se até lá por uma escada de |
|||
madeira podre que furava o teto; escada vacilante por onde subia |
|||
com estrépito a mulher coxa.<br> |
|||
Os locatários de arribação, por semana ou por noite, moravam no |
|||
pátio; os locatários residentes moravam na casa.<br> |
|||
Janelas, nem um caixilho; portas, nem uma ombreira; lareiras, nem |
|||
um fogão; era a casa. Passava-se de um quarto a outro indiferentemente |
|||
por um buraco quadrado e comprido que fora porta, ou |
|||
por uma fresta triangular que ficava entre duas pilastras do tabique.<br> |
|||
A caliça caída cobria o assoalho. Não se sabia como aquela |
|||
casa estava em pé. O vento não a abalava. Mal se podia subir pela |
|||
escada gasta e escorregadia. Tudo estava aberto. O inverno entrava |
|||
na casa como água em esponja. A abundância das aranhas |
|||
tranqüilizava os moradores contra o desmoronamento imediato.<br> |
|||
Mobília nenhuma. Dois ou três enxergões nos cantos, rotos no |
|||
centro, deixando ver mais cinza que palha, aqui e ali uma bilha e |
|||
um alguidar, servindo para diversos usos. Cheiro insípido e hediondo.<br> |
|||
As janelas davam sobre o pátio. De cima o pátio assemelhava-se a |
|||
um carro de lama. As coisas, sem contar os homens que ali apodreciam |
|||
e enferrujavam-se, eram indescritíveis. Os destroços |
|||
fraternizavam: catam paredes, caíam criaturas. Os trapos semeavam |
|||
entulhos.<br> |
|||
Além da população flutuante alojada no pátio, a Jacressarde tinha |
|||
três inquilinos, um carvoeiro, um trapeiro e um fabricante de ouro.<br> |
|||
O carvoeiro e o trapeiro ocupavam dois enxergões no primeiro |
|||
andar; o fabricante de ouro, químico, morava nas águas-furtadas, |
|||
que também se chamavam sótão. Não se sabia em que lugar dormia |
|||
a mulher. O fabricante de ouro era um tanto poeta. Habitava |
|||
debaixo das telhas, num quarto em que havia uma trapeira estreita |
|||
e uma grande chaminé de pedra, golfão onde ia rugir o vento. A |
|||
trapeira não tinha caixilhos; o fabricante de ouro pregou em cima |
|||
um pedaço de ferro em folha, proveniente de um rasgão de navio.<br> |
|||
A folha deixava passar pouca luz e muito frio. O carvoeiro pagava |
|||
a casa com um saco de carvão de quando em quando; o trapeiro |
|||
pagava com um cestário de grãos para as galinhas, cada semana; |
|||
o fabricante de ouro não pagava nada. Entretanto, ia queimando a |
|||
casa. Já tinha arrancado a pouca madeira, e a cada instante |
|||
tirava da parede, ou do teto, uma ripa para aquecer a caldeira do |
|||
ouro. No tabique acima do grabato do trapeiro viam-se em duas |
|||
colunas algarismos feitos com greda, escritos pelo trapeiro todas |
|||
as semanas, uma coluna de três e uma coluna de cinco, conforme |
|||
o cestário de grão custasse 3 liardes ou 5 cêntimos. A caldeira do |
|||
químico era uma velha bomba quebrada promovida por ele ao cargo |
|||
de caldeira, e que lhe servia para combinar os ingredientes. A |
|||
transmutação absorvia-o. Algumas vezes falava nisso aos maltrapilhos |
|||
do pátio, que deitavam a rir. Dizia ele: Aquela gente está |
|||
cheia de preconceitos. Estava resolvido a não morrer sem atirar a |
|||
pedra filosofal às vidraças da ciência. O forno com que trabalhava |
|||
comia muita lenha. Já o patamar da escada tinha desaparecido.<br> |
|||
Ia-se toda a casa paulatinamente. Dizia a hoteleira: Neste andar |
|||
só me fica o casco. O químico abrandava-lhe a cólera fazendo-lhe |
|||
versos.<br> |
|||
Tal era a Jacressarde.<br> |
|||
O criado da casa era um menino, talvez anão, contando doze anos |
|||
ou sessenta de idade, cheio de borbulhas, e trazendo sempre uma |
|||
vassoura na mão.<br> |
|||
Os freqüentadores entravam pela porta do pátio; o público entrava |
|||
pela porta da loja. O que era a loja?<br> |
|||
A alta parede que dava para a rua tinha à direita da entrada do |
|||
pátio uma abertura feita em esquadria, que era a um tempo porta |
|||
e janela, tendo postigo e caixilhos; o postigo era o único da casa |
|||
que tinha eixos e fechaduras, o caixilho era o único que tinha |
|||
vidros. Por trás da janela que abria sobre a rua havia um pequeno |
|||
quarto que tomava uma parte do telheiro de dormir. Lia-se na |
|||
porta da rua este dístico feito com carvão: Aqui encontram-se as |
|||
curiosidades. A palavra já corria mundo. Sobre três tábuas que |
|||
fingiam prateleiras colocadas por trás de vidraças, viam-se alguns |
|||
potes de porcelana falsa, sem asa, um chapéu de sol chines feito |
|||
de pergaminho delgado, ornado de figuras, furado em diversos |
|||
pontos, impossível de abrir e fechar, cadinhos de ferro, louça informe, |
|||
chapéus de homem e mulher estragados, três ou quatro |
|||
conchas, alguns embrulhos de botões de osso e de cobre já velhos, |
|||
uma boceta com o retrato de Maria Antonieta, e um volume |
|||
truncado da álgebra de Boisbertrand.<br> |
|||
Tal era a loja. Aquele sortimento era a curiosidade. A loja comunicava |
|||
por uma porta do fundo com o pátio onde estava o poço.<br> |
|||
Tinha uma mesa e um escabelo. A mulher da perna de pau era a |
|||
moça do balcão.<br> |
|||
===COMPRADORES NOTURNOS E VENDEDOR TENEBROSO=== |
|||
Clubin não foi à Pousada João, nem na noite de terça-feira, nem |
|||
na noite de quarta-feira. Nesta noite, ao escurecer, dois homens |
|||
entraram Coutanchez; pararam diante da Jacressarde. Um deles |
|||
bateu na vidraça. Abriu-se a porta da loja. Entraram ambos. A |
|||
mulher da perna de pau deu-lhes o sorriso reservado aos burgueses.<br> |
|||
Havia urna vela sobre uma mesa.<br> |
|||
Os dois homens eram efetivamente burgueses. O homem que tinha |
|||
batido na vidraça disse: |
|||
- Boa noite, mulher. Venho por aquilo.<br> |
|||
A mulher da perna de pau sorriu segunda vez e saiu pela porta que |
|||
dava para o pátio. Minutos depois abriu-se de novo a porta, e |
|||
apareceu um homem pela fresta, trazendo boné e blusa, debaixo |
|||
da qual havia uni objeto volumoso. Tinha uns fios de palha nas |
|||
dobras da blusa e pelos olhos via-se que acabava de acordar.<br> |
|||
O homem avançou. Olharam-se todos. O homem da blusa tinha um |
|||
ar turvado e esperto.<br> |
|||
- O senhor é o armeiro? - disse ele.<br> |
|||
O homem que tinha batido respondeu: |
|||
- Sim. O senhor é o Parisiense?<br> |
|||
- Chamado Reaurouge. Sim.<br> |
|||
- Deixe ver.<br> |
|||
- Aqui está.<br> |
|||
O homem tirou debaixo da blusa um instrumento muito raro na |
|||
Europa naquela época, um revólver.<br> |
|||
O revólver era novo e brilhante. Os dois burgueses examinaram-no.<br> |
|||
O que pareceu conhecer a casa e a quem o homem da blusa |
|||
chamou armeiro fez mover o mecanismo. Entregou depois a arma |
|||
ao outro burgues, que parecia não ser morador na cidade, e que |
|||
se conservava com as costas voltadas para a luz.<br> |
|||
O armeiro perguntou: |
|||
- Quanto custa?<br> |
|||
O homem da blusa respondeu: |
|||
- Venho da América. Há pessoas que trazem macacos, papagaios, |
|||
animais, como se os franceses fossem selvagens. Eu. trouxe isto.<br> |
|||
É uma invenção útil.<br> |
|||
- Quanto custa? - perguntou de novo o armeiro.<br> |
|||
- É uma pistola que faz molinete.<br> |
|||
- Quanto custa?<br> |
|||
- Paf. Primeiro tiro. Paf. Segundo tiro. Paf... é uma saraivada! Isto faz obra.<br> |
|||
- Quanto custa?<br> |
|||
- Tem seis canos.<br> |
|||
- Mas quanto custa?<br> |
|||
- Seis canos são 6 luíses.<br> |
|||
- Quer 5 luíses?<br> |
|||
- Impossível. Um luís por cada bala. É o preço.<br> |
|||
- Quer fazer negócio, seja razoável.<br> |
|||
- Já disse o preço. Examine-me esta obra, senhor arcabuzeiro.<br> |
|||
- Já examinei.<br> |
|||
- O molinete anda de roda como o Sr. Talleyrand. Podiam por este |
|||
molinete no dicionário das ventoinhas. É uma jóia.<br> |
|||
- Já vi.<br> |
|||
- Os canos são de fábrica espanhola.<br> |
|||
- Já reparei.<br> |
|||
- São lavrados. A coisa arranja-se assim. Deita-se na forja uma |
|||
alcofá de ferros velhos, cravos, ferraduras quebradas ...<br> |
|||
- E velhas lâminas de foices.<br> |
|||
- Ia dize-lo, senhor armeiro. Depois deita-se em cima uma boa |
|||
porção de fogo, e sai disto tudo um magnífico instrumento de |
|||
ferro.<br> |
|||
- Sim, mas pode ter gretas e buraquinhos; pode sair.<br> |
|||
- Sim. Mas tudo se arranja.<br> |
|||
- O senhor é do oficio?<br> |
|||
- Tenho todos os oficios.<br> |
|||
- Os canos são brancos.<br> |
|||
- É beleza, senhor armeiro. Faz-se isto com borra de antimônio.<br> |
|||
- Dizíamos nós que isto custa 5 luíses.<br> |
|||
- Tomo a liberdade de observar que eu tive a honra de dizer 6 |
|||
luíses.<br> |
|||
O armeiro abaixou a voz.<br> |
|||
- Ouça, Parisiense. Aproveite a ocasião. Desfaça-se disto. isto |
|||
para vocês não vale nada. Chama a atenção.<br> |
|||
- Na verdade - disse Parisiense -, é um tanto vistoso. É melhor |
|||
para um burgues.<br> |
|||
- Quer 5 luíses?<br> |
|||
- Não, 6. Um por cada buraco.<br> |
|||
- Pois bem, 6 napoleões.<br> |
|||
- Quero 6 luíses.<br> |
|||
- Não é bonapartista. Prefere um luís a um napoleão?<br> |
|||
Parisiense sorriu.<br> |
|||
- Napoleão é melhor - disse ele -, mas luís vale mais.<br> |
|||
-Seis napoleões.<br> |
|||
- Seis luíses. É para mim uma diferença de 80 francos.<br> |
|||
- Então não fazemos nada.<br> |
|||
- Pois sim. Guardo o revólver.<br> |
|||
- Guarde.<br> |
|||
- Abater o preço! pois não! não se dirá que eu me desfiz sem mais |
|||
nem menos de uma invenção destas! Então, boa noite. É um progresso |
|||
sobre a pistola, que os indios chesapeakes chamam Nortayu- |
|||
Hoh.<br> |
|||
- Cinco luíses a vista, é ouro.<br> |
|||
- Nortay-u-Hoh quer dizer espingarda pequena Muitas pessoas |
|||
ignoram isto.<br> |
|||
- Quer 5 luíses e mais 1 escudo?<br> |
|||
- Eu já disse que custa 6.<br> |
|||
O homem que estava de costas para a luz e que ainda não tinha |
|||
falado, fazia mover o mecanismo. Aproximou-se do armeiro e disse- |
|||
lhe ao ouvido: |
|||
- A arma é boa?<br> |
|||
- Excelente.<br> |
|||
- Eu dou os 6 luíses.<br> |
|||
Cinco minutos depois, enquanto Parisiense apertava em um buraco |
|||
feito na manga da blusa os 6 luises de ouro que acabava de |
|||
receber, o armeiro e o comprador, levando no bolso da calça o |
|||
revólver, saíram da viela Coutanchez.<br> |
|||
===CARAMBOLA DA BOLA VERMELHA E DA BOLA PRETA=== |
|||
No dia seguinte, que era quinta-feira, a pouca distância de Saint-Malo, perto da ponta do Decollé, num lugar em que as rochas das |
|||
praias são altas, e o mar profundo, passou-se uma coisa trágica.<br> |
|||
Nada mais freqüente na arquitetura do mar que uma língua de |
|||
rochedos em forma de lança, que se prende à terra por um istmo |
|||
estreito, prolonga-se na água e acaba-se aí bruscamente em forma |
|||
de rochedo a pique. Para chegar ao alto desse rochedo, indo |
|||
da praia, segue-se um plano inclinado cuja subida é às vezes |
|||
assaz difícil<br> |
|||
No alto de um rochedo desse gênero, achava-se em pé; pelas 4 |
|||
horas da tarde, um homem embrulhado em uma larga capa de |
|||
uniforme, e provàvelmente armado, o que era fácil de reconhecer |
|||
por certas dobras retas e angulosas do manto. O sítio em que |
|||
estava esse homem era uma plataforma assaz vasta semeada de |
|||
cubos à semelhança de seixos imensos, deixando entre si estreita |
|||
passagem. Esta plataforma onde brotava uma ervazinha estreita e |
|||
curta terminava do lado do mar por um espaço livre, que ia dar a |
|||
um despenhadeiro, de uns 60 pés de altura, acima do mar, e parecia |
|||
talhado com um prumo. Entretanto, o ângulo da esquerda ia-se |
|||
arruinando e oferecia uma dessas escadas naturais próprias |
|||
aos granitos marinhos, cujos degraus pouco cômodos exigem às |
|||
vezes pernas de gigante ou pulos de clowns. Descia perpendicularmente |
|||
ao mar e mergulhava nas águas. Era um quebra-costas.<br> |
|||
Podia-se, contudo, a rigor, ir por ali embarcar na muralha da língua |
|||
de rochas.<br> |
|||
Soprava uma brisa. O homem, apertado na capa, firme nas pernas, |
|||
com o cotovelo direito na mão esquerda, piscava um olho e aplicava |
|||
ao outro um óculo. Parecia absorto em uma atenção séria.<br> |
|||
Aproximou-se da borda do rochedo, e ali estava imóvel com o |
|||
olhar imperturbavelmente fito no horizonte. A maré estava cheia.<br> |
|||
A vaga batia por baixo dele no sopé do rochedo.<br> |
|||
O que o homem observava era um navio ao largo que fazia manobras |
|||
singulares.<br> |
|||
Esse navio, que apenas uma hora antes saíra de Saint-Malo, tinha |
|||
parado por trás dos Banquetiers. Era uma galera. Não tinha deitado |
|||
âncora, talvez porque o fundo não lho permitisse, e porque o |
|||
navio teria prendido a âncora debaixo do gurupés. Limitou-se a |
|||
por-se à capa.<br> |
|||
O homem, que era guarda-costa, como o uniforme indicava, espiava |
|||
todas as manobras do navio e parecia tomar nota mentalmente.<br> |
|||
O navio tinha atravessado: era o que indicava a vela ré alada a |
|||
barlavento, e as de proa largas por mão; tinha braceado o pano de |
|||
ré o mais que lhe foi possível, de forma que neutralizava a força |
|||
dos de proa. Deste modo, caindo a sotavento, não perdia mais de |
|||
milha e meia por hora.<br> |
|||
O dia ainda estava claro, sobretudo em pleno mar e no alto das |
|||
rochas. Mas ao pé das costas começava a escurecer.<br> |
|||
O guarda-costa, entregue ao seu trabalho, e espionando conscienciosamente |
|||
ao largo, não tinha pensado em examinar o rochedo |
|||
ao lado e embaixo. Dava as costas para a escada pouco praticável |
|||
que punha em comunicação a plataforma com o mar. Não reparou |
|||
que alguma coisa andava ali em movimento. Havia nessa escada, |
|||
por trás da anfratuosidade, alguma pessoa, um homem escondido |
|||
ali, segundo parecia, antes da chegada do guarda-costa. De tempos |
|||
a tempos na sombra, aparecia uma cabeça por baixo da rocha, |
|||
olhava para cima e espiava o espião. Essa cabeça coberta |
|||
por um largo chapéu americano, era a cabeça do quaker, que, uns |
|||
dez dias antes falara nas pedras do Petit Bey ao Capitão ZueIa.<br> |
|||
De repente pareceu redobrar a atenção do guarda-costa.<br> |
|||
Limpou rápidamente com a manga o vidro do óculo e firmou-o com |
|||
energia sobre o navio.<br> |
|||
Destacara-se um ponto negro.<br> |
|||
O ponto negro, semelhante a uma formiga no mar, era uma barcaça.<br> |
|||
A barcaça parecia querer ganhar a terra. Era tripulada por alguns |
|||
marinheiros que remavam vigorosamente.<br> |
|||
Já obliquava a pouco e pouco e dirigia-se para a ponta do Decollé.<br> |
|||
A espreita do guarda-costa chegou ao seu maior grau de fixidez.<br> |
|||
Ele não perdia nenhum dos movimentos da barcaça. Aproximou-se |
|||
mais ainda da borda do rochedo.<br> |
|||
Neste momento um homem de alta estatura, o quaker, surgiu por |
|||
trás do guarda-costa, no alto da escada. O espião não viu o quaker.<br> |
|||
Parou este alguns instantes, com os braços caídos e os punhos |
|||
crispados, e, com o olhar do caçador que aponta, olhou para as |
|||
costas do espião.<br> |
|||
Quatro passos apenas o separavam do guarda-costa; adiantou |
|||
um pé, depois parou; deu outro passo e parou outra vez; o único |
|||
movimento que fazia era andar, o resto do corpo era estátua; o pé |
|||
firmava-se na relva sem rumor; deu terceiro passo e parou; estava |
|||
quase tocando o guarda-costa, sempre imóvel, com o óculo fixo. O homem ajuntou as duas mãos fechadas na altura das suas |
|||
clavículas, depois, bruscamente, abateram-se os antebraços, e |
|||
os dois punhos, como que soltos por uma mola, bateram nos ombros |
|||
do guarda-costa. O choque foi sinistro. O guarda-costa nem |
|||
teve tempo de soltar um ai. Caiu de cabeça no mar. Viram-se-lhe |
|||
os pés durante o tempo de um relâmpago. Foi uma pedra na água.<br> |
|||
A água cerrou-se depois, descrevendo dois ou três grandes círculos.<br> |
|||
Ficou apenas o óculo escapo às mãos do guarda-costa e caído no |
|||
chão.<br> |
|||
O quaker inclinou-se à borda das rochas, viu acalmar-se a água, |
|||
esperou alguns minutos, depois endireitou-se, cantando entre os |
|||
dentes:<br> |
|||
Monsieur de la police est mort<br> |
|||
En perdant la vie.<br> |
|||
Inclinou-se outra vez. Nada reapareceu. Sómente no lugar onde o |
|||
guarda-costa tinha caído, formou-se na superfície da água uma |
|||
espécie de espessura negra, que se alargava no movimento da |
|||
vaga. Era provável que o guarda-costa tivesse quebrado o crânio |
|||
em alguma rocha submarina. O sangue subira e fazia aquela mancha |
|||
na espuma.<br> |
|||
O quaker, contemplando aquela mancha, continuou:<br> |
|||
Un quart d'heure avant sa mort,<br> |
|||
Il était encore...<br><br> |
|||
Não acabou.<br> |
|||
Ouviu atrás de si uma voz doce que lhe dizia: |
|||
- Ora viva, Rantaine. Acaba o senhor de matar um homem. Ele |
|||
voltou-se, e viu a quinze passos, no intervalo de dois rochedos, |
|||
um homem baixo que tinha um revólver na mão.<br> |
|||
Respondeu: |
|||
- Como vê. Bom dia, Sr. Clubin.<br> |
|||
O homem baixo estremeceu.<br> |
|||
- Reconheceu-me?<br> |
|||
- Não me reconheceu o senhor? - disse Rantaine.<br> |
|||
Entretanto, ouviu-se um rumor de remos no mar. Era a barcaça |
|||
observada pelo guarda-costa que se aproximava.<br> |
|||
O Sr. Clubin disse a meia voz como se falasse consigo: |
|||
- A coisa foi rápida.<br> |
|||
- Em que precisa de mim? - perguntou Rantaine.<br> |
|||
- Pouca coisa. Há quase dez anos que nos não vemos.<br> |
|||
O senhor há de ter feito bons negócios. Como está de saúde?<br> |
|||
- Bem - disse Rantaine. - E o senhor?<br> |
|||
- Perfeitamente - respondeu Clubin.<br> |
|||
Rantaine deu um passo para o Sr. Clubin.<br> |
|||
Um pequeno som chegou aos seus ouvidos. Era o Sr. Clubin. que |
|||
armava o revólver.<br> |
|||
- Rantaine, estamos a quinze passos. É uma boa distância. Fique |
|||
onde está.<br> |
|||
- Ali! Mas o que quer o senhor de mim?<br> |
|||
- Venho conversar.<br> |
|||
Rantaine não se mexeu. O Sr. Clubin continuou: |
|||
- O senhor matou agora mesmo um guarda-costa.<br> |
|||
Rantaine levantou a aba do chapéu e respondeu: |
|||
- Já me fez a honra de dize-lo.<br> |
|||
- Em termos menos precisos. Disse há pouco: um homem; agora |
|||
digo: um guarda-costa. O guarda-costa tinha o número 619. Era |
|||
um pai de família. Deixa mulher e cinco filhos.<br> |
|||
- Deve ser assim - disse Rantaine.<br> |
|||
Houve um imperceptível tempo de silêncio.<br> |
|||
- São homens escolhidos esses guarda-costas - disse Clubin. Quase |
|||
todos antigos marítimos.<br> |
|||
- Notei que em geral deixam mulher e cinco filhos.<br> |
|||
Clubin continuou: |
|||
- Adivinhe quanto me custou este revólver.<br> |
|||
- É um lindo instrumento - respondeu Rantaine.<br> |
|||
- Quanto vale?<br> |
|||
- Vale muito.<br> |
|||
- Custou-me 144 francos.<br> |
|||
- Comprou naturalmente na loja de armas da Rua Coutanchez.<br> |
|||
Clubin continuou.<br> |
|||
- O guarda-costa nem gritou. A queda corta a voz.<br> |
|||
- Sr. Clubin, há de ventar esta noite.<br> |
|||
- Eu sou o único que sei do segredo.<br> |
|||
- Continua a morar na Pousada João?<br> |
|||
- Sim. Vive-se bem ali.<br> |
|||
Já lá comi muito boa couve fermentada.<br> |
|||
Rantaine, o senhor deve ser excessivamente forte. Tem cada espádua! Não seria eu quem lhe levariaum piparote. Era tão raquítico |
|||
quando vim ao mundo, que nem se sabia se me poderiam criar.<br> |
|||
- Felizmente criou-se.<br> |
|||
- Sim, e continuo a morar na Pousada João.<br> |
|||
- Sabe por que motivo eu o reconheci, Sr. Clubin? Porque o senhor |
|||
me tinha reconhecido. Disse comigo: só Clubin pode reconhecer-me.<br> |
|||
E adiantou um passo.<br> |
|||
- Fique onde estava, Rantaine.<br> |
|||
Rantaine recuou e disse à parte: |
|||
- A gente torna-se criança diante destes instrumentos.<br> |
|||
O Sr. Clubin continuou.<br> |
|||
-Situação. Temos aqui à direita, do lado de Saint-Enogat, a trezentos |
|||
passos, outro guarda-costa, número 618, que está vivo, e à esquerda, do lado de Saint-Lunaire, um posto de alfândega.<br> |
|||
Sete homens armados que podem estar aqui dentro de cinco minutos.<br> |
|||
O rochedo ficará cercado. O desfiladeiro ficará guardado.<br> |
|||
Impossível fugir. Há um cadáver ao pé da rocha.<br> |
|||
Rantaine deitou um olhar oblíquo ao revólver.<br> |
|||
- Como diz, Rantaine. É um lindo instrumento. Talvez esteja carregado |
|||
com pólvora seca. Mas que importa? Basta um tiro para fazer |
|||
correr a força armada. Tenho seis tiros.<br> |
|||
O choque alternativo dos remos tornava-se mais distinto. A barca- |
|||
ça não estava longe.<br> |
|||
O homem alto olhava estranhamente para o homem baixo. Sr. Clubin |
|||
falava com um ar cada vez mais tranqüilo e doce.<br> |
|||
- Rantaine, os homens da barcaça que vai chegar, sabendo o que |
|||
fez há pouco, ajudar-me-iam a prende-lo. O senhor paga 10 000 |
|||
francos de passagem ao Capitão Zuela. Entre parentesis, a passagem |
|||
ficaria mais barata se tratasse com os contrabandistas de |
|||
Plainmont, mas estes só o levariam para Inglaterra, e demais o |
|||
senhor não pode arriscar-se a ir a Guernesey, onde há quem tenha |
|||
a honra de conhece-lo. Volto à situação. Se eu disparar, prendem-no.<br> |
|||
Nesse caso pagará a Zuela 10 000 francos de fuga. Já lhe deu |
|||
5 000 francos; ZueIa guardará esses 5 000 francos e vai-se embora.<br> |
|||
É isto, Rantaine, acho-o bem rebuçado. Esse chapéu, esse |
|||
casaco e essas polainas disfarçam-no. Esqueceram-lhe os óculos.<br> |
|||
Fez bem em deixar crescer as suíças.<br> |
|||
Rantaine sorriu como quem range os dentes. Clubin continuou: |
|||
- Rantaine, o senhor tem uma calça americana com duas algibeiras.<br> |
|||
Numa delas tem o seu relógio. Guarde-o.<br> |
|||
- Obrigado, Sr. Clubin.<br> |
|||
- Na outra há uma caixinha de ferro batido, que abre e fecha por |
|||
molas. É uma velha boceta de marinheiro. Tire-a do bolso e atirea |
|||
para cá.<br> |
|||
- Mas isto é um roubo!<br> |
|||
- Pode chamar a guarda.<br> |
|||
E Clubin fixou os olhos em Rantaine.<br> |
|||
- Olhe, Mess Clubin. .<br>. - disse Rantaine dando um passo e estendendo |
|||
a mão aberta.<br> |
|||
Mess era uma lisonja.<br> |
|||
- Fique onde está, Rantaine.<br> |
|||
- Mess Clubin, arranjemos as coisas. Ofereço-lhe metade.<br> |
|||
Clubin executou um cruzar de braços, mostrando a boca do revólver.<br> |
|||
- Rantaine, que pensa que eu sou? Sou um homem honrado. E |
|||
acrescentou, depois de uma pausa: |
|||
- Quero tudo.<br> |
|||
Rantaine disse entre dentes: |
|||
- É temível este.<br> |
|||
Entretanto, acenderam-se os olhos de Clubin. A voz tornou-se |
|||
cortante como o aço. Disse ele: |
|||
- Creio que se engana. O seu nome é que é Roubo, o meu é |
|||
Restituição. Ouça, Rantaine. Há dez anos saiu o senhor de |
|||
Guernesey à noite, tomando da caixa de uma sociedade 50 000 |
|||
francos que lhe pertenciam e esquecendo de lá deixar 50 000 |
|||
francos que pertenciam a outro. Esses 50 000 francos roubados |
|||
ao seu sócio, o excelente e digno Mess Lethierry, fazem hoje, com |
|||
os juros acumulados de dez anos, 80 666 francos e 66 cêntimos. O |
|||
senhor entrou ontem na casa de um cambista. Reluchet chama-se |
|||
ele, Rua de São Vicente. Deu-lhe 76 000 francos em bilhetes de |
|||
banco francêses e em troca deu-lhe ele três bank-notes da Inglaterra |
|||
de 1000 libras esterlinas cada uma, e mais uns trocos. O |
|||
senhor pOs essas banknotes na boceta de ferro e a boceta de |
|||
ferro na algibeira direita. As 3 000 libras esterlinas fazem 75 000 |
|||
francos. Em nome de Mess Lethierry contento-me com isso. Parto |
|||
amanhã para Guernesey, e vou levar-lhos. Rantaine, a galera que |
|||
ali está à capa é o Tarnaulipas. O senhor embarcou ali esta noite |
|||
as malas misturadas com os sacos e canastras da equipagem.<br> |
|||
Quer sair da França. Tem suas razões para isso. Vai a Arequipa. A |
|||
barcaça vem buscá-lo. Está à espera dela. Ela aí vem. Já a estamos |
|||
ouvindo. Depende de mim deixá-lo partir ou obrigá-lo a ficar. Basta |
|||
de palavras. Atire cá a boceta de ferro.<br> |
|||
Rantaine abriu a bolsa, tirou uma caixinha de ferro e atirou-a a |
|||
Clubin. A caixinha foi rolar aos pés de Clubin.<br> |
|||
Clubin inclinou-se sem abaixar a cabeça, e apanhou a boceta, |
|||
tendo dirigidos contra Rantaine os dois olhos e os canos do revólver.<br> |
|||
Depois disse: |
|||
- Meu amigo, volte as costas.<br> |
|||
Rantaine voltou as costas.<br> |
|||
O Sr. Clubin pos o revólver debaixo do braço e apertou a mola da |
|||
caixinha. A caixinha abriu-se.<br> |
|||
Havia dentro quatro bank-notes, três de 1000 libras, e uma de 10 |
|||
libras.<br> |
|||
Clubin dobrou as três notas de 1000 libras, po-las outra vez na |
|||
caixinha, fechou-a e meteu-a no bolso.<br> |
|||
Depois apanhou no chão uma pedra. Embrulhou a pedra no bilhete |
|||
de 10 libras e disse: |
|||
- Volte para cá.<br> |
|||
Rantaine voltou-se.<br> |
|||
O Sr. Clubin continuou: |
|||
- Disse-lhe que me contentava com as 3 000 libras. Aqui vão as |
|||
10.<br>libras.<br> |
|||
E atirou a Rantaine o bilhete e mais o lastro de pedra.<br> |
|||
Rantaine, com um pontapé, deitou o bilhete e a pedra ao mar.<br> |
|||
- Como queira - disse Clubin. - Vamos lá, o senhor há de estar |
|||
rico. Estou tranqüilo.<br> |
|||
O rumor dos remos que se tinha aproximado durante o diálogo |
|||
cessou. Indicava isto que a barcaça estava ao pé das rochas.<br> |
|||
- Está embaixo o seu carro. Pode ir, Rantaine.<br> |
|||
Rantaine dirigia-se para a escada e desceu.<br> |
|||
Clubin foi com precaução até a borda do rochedo e adiantando a |
|||
cabeça, viu descer Rantaine.<br> |
|||
A barcaça tinha parado ao pé do último degrau do rochedo, no |
|||
mesmo lugar em que tinha caído o guarda-costa.<br> |
|||
Vendo descer Rantaine, Clubin murmurou: |
|||
- Bom número 619! Pensava que estava só. Rantaine pensava que |
|||
eram apenas dois. Só eu sabia que éramos três.<br> |
|||
Clubin viu no chão o óculo do guarda-costa; apanhou-o.<br> |
|||
Começou o ruído dos remos. Rantaine acabou de pular na barcaça |
|||
e esta tomava o largo.<br> |
|||
Quando Rantaine achou-se na barca, indo-se já afastando dos |
|||
rochedos, levantou-se bruscamente, a face tornou-se-lhe monstruosa; |
|||
mostrou o punho e gritou: |
|||
- Ah! o próprio diabo é um canalha!<br> |
|||
Instantes depois, Clubin do alto das rochas e fixando o óculo na |
|||
barcaça, ouviu distintamente estas palavras, articuladas por uma |
|||
voz grossa, no meio do rumor do mar: |
|||
- O Sr. Clubin é um homem honrado, mas consinta que eu escreva |
|||
a Lethierry para participar-lhe o fato, e aqui vai nesta barcaça um |
|||
marinheiro de Guernesey que é da equipagem do Tamaufipas, que |
|||
se chama Ahier Tortevin, e que há de voltar a Saint-Malo, na |
|||
próxima viagem de Zuela, e que será testemunha de que eu lhe |
|||
entreguei para Mess Lethierry a soma de 3 000 libras esterlinas.<br> |
|||
Era a voz de Rantaine.<br> |
|||
Clubin era o homem das coisas bem feitas. Imóvel como estivera o |
|||
guarda-costa, e no mesmo lugar, com o óculo no olho, não perdeu |
|||
de vista a barcaça. Viu diminuirem-se os remos, desaparecer, reaparecer, |
|||
aproximar-se a barcaça do navio; e pode reconhecer a |
|||
alta corpulência de Rantaine no tombadilho do Tamaulipas.<br> |
|||
Quando a barcaça foi içada, o Tamaulipas entrou a preparar-se. A |
|||
brisa soprava de terra, o navio abriu as velas todas, o óculo de |
|||
Clubin continuava fixo no lineamento cada vez mais simplificado e, |
|||
meia hora depois, o Tamaulipas era apenas um ponto negro que ia |
|||
a diminuir-se, a diminuir-se, a diminuir-se no céu amarelo do crepúsculo.<br> |
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===INFORMAÇÃO ÚTIL ÀS PESSOAS QUE ESPERAM OU RECEIAM CARTAS DE ALÉM-MAR=== |
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Nessa noite, o Sr. Clubin recolheu-se tarde.<br> |
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Uma das causas da sua demora é que antes de recolher-se foi ele |
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até a porta Dinan, onde havia tavernas. Tinha comprado em uma |
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dessas tavernas, onde não era conhecido, uma garrafa de aguardente |
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que pos em uma larga algibeira da japona como se quisesse |
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esconde-la; depois, devendo a Durande sair no dia seguinte de |
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manhã, foi a bordo para ver se tudo estava em ordem.<br> |
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Quando o Sr. Clubin entrou na Pousada João, já não havia na sala |
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baixa senão o velho capitão de longo curso, Gertrais Gaboureau, |
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bebendo e fumando cachimbo.<br> |
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O Capitão Gertrais-Gaboureau cumprimentou o Sr. Clubin entre um gole e uma baforada.<br> |
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- Good-bye, Capitão Clubin.<br> |
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- Boa noite, Capitão Gertrais.<br> |
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- Com que então, lá se foi o Tamaufipas.<br> |
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- Ah! - disse Clubin -, não reparei.<br> |
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O Capitão Gertrais-Gaboureau cuspiu e disse:<br> |
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- Raspou-se o Zuela.<br> |
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- Quando?<br> |
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- Esta noite.<br> |
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- Onde vai?<br> |
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- Vai ao diabo.<br> |
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- Sim, mas onde?<br> |
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- A Arequipa.<br> |
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- Não sabia - disse Clubin.<br> |
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Acrescentou: |
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- Vou dormir.<br> |
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Acendeu a vela, caminhou para a porta e voltou.<br> |
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- Já foi a Arequipa, Capitão Gertrais?<br> |
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- Sim. Há anos.<br> |
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- Onde se costuma a arribar?<br> |
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- Em diversos portos. Mas o Tamaulipas não arribará em parte alguma.<br> |
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O Sr. Gertrais-Gaboureau deitou na borda de um prato a cinza do cachimbo e continuou: |
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- Conhece o Cheval-de-Troie e o Trentemousin, que foram a Cardiff.<br> |
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Não opinei a favor da partida por causa do tempo. Voltaram em |
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belo estado. Chevai-de-Troie levava terebintina e abriu água, e |
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fazendo trabalhar as bombas perdeu no meio da água todo o carregamento.<br> |
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Quanto ao Trentemousin, ficou bem estragado; quebrou-se-lhe o cepo da âncora, o botalós, ovéns; não sofreu o |
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mastro de mesena, mas teve um forte abalo. Caiu o ferro dogurupés, que aliás não só ficou machucado, mas completamentenu. Veja o que resulta de não ouvir conselhos.<br> |
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Clubin tinha posto a vela na mesa, e pos-se a pregar de novo uma |
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porção de alf inetes que tinha na japona.<br> |
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Disse:<br> |
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- Não dizia, capitão, que o Tamaulipas não arriba em porto algum?<br> |
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- Não. Vai direito ao Chile.<br> |
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- Neste caso não pode mandar notícia alguma em caminho<br> |
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- Perdão, Capitão Clubin. Primeiramente pode entregar despachos<br> |
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a todos os navios que encontrar em caminho para a Europa.<br> |
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- É justo.<br> |
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- Depois, tem a caixa de cartas do mar.<br> |
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- A que chama o senhor caixa de cartas do mar?<br> |
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- Não sabe, Capitão Clubin?<br> |
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- Não.<br> |
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- É quando se passa pelo estreito de Magalhães.<br> |
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- Que há então?<br> |
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- Neva em toda a parte, temporal sempre, ruins ventos, mar de |
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trezentos diabos.<br> |
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- Depois?<br> |
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- Quando se dobra o cabo Monmouth.<br> |
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- Bem. Depois?<br> |
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- Depois, dobra-se o cabo Valentin.<br> |
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- E depois?<br> |
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- Depois dobra-se o cabo Isidoro.<br> |
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- E depois?<br> |
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- Dobra-se a ponta Ana.<br> |
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- Bem. Mas o que é que chama caixa das cartas do mar?<br> |
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- Chegamos à caixa. Montanhas à direita, montanhas à esquerda.<br> |
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De todos os lados aves marinhas. Terrível sítio! Ah! com um milhão |
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de diabos! que clitisma e que matinada! A borrasca ali não precisa |
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de auxílio. Toca a vigiar a cinta da popa! toca a diminuir as velas! |
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Da vela grande passava ao juanete! Lufada sobre lufada! Quatro, |
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cinco, seis dias de capa. Quantas vezes de um velame novinho em |
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rolha não nos fica senão o fio. Que dança! furacões capazes de |
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fazer saltar uma galera como fosse uma pulga. Já vi num brigue |
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inglês, o True Blue, um grumete ocupado com o pau da giba ser |
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levado por um milheiro de ventos, com pau e tudo. Anda-se no ar |
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como borboletas! Vi o contramestre da Revenue ser arrancado do |
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navio e morrer: A cinta do meu navio quebrou-se, e todas as |
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peças de madeira do convés ficaram despedaçadas. A gente sai |
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dali com as velas comidas, até fragatas de cinqüenta fazem água |
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como se rossem cestos. E a endiabrada costa! É o que há de mais |
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danado. Rochedos retalhados como por criancice. Aproxima-se a |
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gente de Porto Fome. Aí é pior que pior. São as lâminas mais |
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agudas que tenho visto. Paragens do inferno. De repente veem-se |
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estas duas palavras escritas com tinta vermelha: Post-Office.<br> |
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- Que quer dizer, Capitão Gertrais?<br> |
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- Quero dizer, Capitão Clubin, que logo depois de dobrar o cabo |
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Ana vê-se em uma pedra de 100 pés de altura um grande pau. É |
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um poste com uma barrica no alto. Essa barrica é a caixa das |
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cartas. Os inglêses escreveram em cima: Post-Office.<br> |
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Por que se meteram eles nisto? Aquilo é o correio do oceano; não pertence a |
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esse honrado gentieman, o rei da Inglaterra. A caixa das cartas é |
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comum. Pertence a todas as bandeiras. Post-Office, há nada mais |
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chines! Parece uma xícara de chá que o diabo oferece em pleno |
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oceano. Eis como se faz o serviço. Todos os navios que passam |
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expedem ao poste um escaler com os seus despachos. O navio |
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que vem do Atlântico envia cartas para a Europa, e o navio que |
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vem do Pacífico manda cartas para a América. O oficial que comanda |
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o escaler põe na barrica o maço de cartas e tira o maço |
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que lá encontra. Toma-se conta dessas à espera que o próximo |
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navio tome conta das cartas que se deixam. Como se navega em |
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sentido contrário, o continente donde o senhor vem é aquele para |
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onde eu vou. Levo as suas cartas, o senhor leva as minhas. A |
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barrica está presa ao poste por uma corrente de ferro. E chove! E |
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neva! Mar dos diabos! O Tamaulipas ficará aí. A barrica tem uma |
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tampa mas sem fechadura nem cadeado. Bem vê que se pode |
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escrever aos amigos. As cartas chegam ao seu destino.<br> |
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- É esquisito - murmurou Clubin, pensativo.<br> |
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O Capitão Gertrais-Gaboureau voltou-se para a bebida.<br> |
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- Suponhamos que o brejeiro do Zuela me escreva, meta as suas |
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garatujas na barrica de Magalhães, e dentro de quatro meses |
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tenho as cartas do patife. Diga-me lá, Capitão Clubin, sai amanhã? |
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Clubin, absorto em uma espécie de sonambulismo, não ouviu. O |
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Capitão Gertrais repetiu a pergunta.<br> |
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Clubin despertou.<br> |
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- Sem dúvida, Capitão Gertrais. É o dia marcado. Devo sair amanhã de manhã.<br> |
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- Pois olhe, eu não saía. Capitão Clubin, os cães tem o pelo molhado.<br> |
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As aves marinhas andam há duas noites à roda do farol. Mau sinal. Estamos no segundo quarto da lua; é o máximo da umidade.<br> |
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Vi há pouco pimpinelas que fechavam as rolhas e um campo de |
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trevo cujas hastes estavam retesadas. Os vermes saem do chão, |
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as moscas mordem, as abelhas não se afastam dos cortiços, os |
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pardais consultam-se. Ouve-se o som dos sinos de longe. Eu ouvi |
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hoje o sino de Saint-Lunaire dar ave-marias. E ao por do sol havia |
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muitas nuvens no horizonte. Amanhã há de haver grande nevoeiro. |
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Não lhe digo que parta. Receio mais o nevoeiro que o furacão.<br> |
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Grande sonso o nevoeiro.<br> |
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[[Categoria:Os Trabalhadores do Mar|Livro 5, Parte 1]] |