Eu (Augusto dos Anjos, 1912)/Barcarola: diferenças entre revisões

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Cantam nautas, choram flautas

Pelo mar e pelo mar

Uma sereia a cantar

Vela o Destino dos nautas.

Espelham-se os esplendores

Do céu, em reflexos, nas

Águas, fingindo cristais

Das mais deslumbrantes cores.

Em fulvos filões doirados

Cai a luz dos astros por

Sobre o marítimo horror

Como globos estrelados.

Lá onde as rochas se assentam

Fulguram como outros sóis

Os flamívomos faróis

Que os navegantes orientam.

Vai uma onda, vem outra onda

E nesse eterno vaivém

Coitadas! não acham quem,

Quem as esconda, as esconda...

Alegoria tristonha

Do que pelo Mundo vai!

Se um sonha e se ergue, outro cai;

Se um cai, outro se ergue e sonha.

Mas desgraçado do pobre

Que em meio da Vida cai!

Esse não volta, esse vai

Para o túmulo que o cobre.

Vagueia um poeta num barco.

O Céu, de cima, a luzir

Como um diamante de Ofir

Imita a curva de um arco.

A Lua - globo de louça -

Surgiu, em lúcido véu.

Cantam! Os astros do Céu

Ouçam e a Lua Cheia ouça!

Ouça do alto a Lua Cheia

Que a sereia vai falar...

Haja silêncio no mar

Para se ouvir a sereia.

Que é que ela diz?! Será uma

História de amor feliz?

Não! O que a sereia diz

Não é história nenhuma.

E como um requiem profundo

De tristíssimos bemóis...

Sua voz é igual à voz

Das dores todas do mundo.

"Fecha-te nesse medonho

"Reduto de Maldição,

"Viajeiro da Extrema-Unção,

"Sonhador do último sonho!

"Numa redoma ilusória

"Cercou-te a glória falaz,

"Mas nunca mais, nunca mais

"Há de cercar-te essa glória!

"Nunca mais! Sê, porém, forte.

"O poeta é como Jesus!

"Abraça-te á tua Cruz

"E morre, poeta da Morte!"

- E disse e porque isto disse

O luar no Céu se apagou...

Súbito o barco tombou

Sem que o poeta o pressentisse!

Vista de luto o Universo

E Deus se enlute no Céu!

Mais um poeta que morreu,

Mais um coveiro do Verso!

Cantam flautas, choram flautas

Pelo mar e pelo mar

Uma sereia a cantar

Vela o Destino dos nautas!

(Eu, 54)