Uma Campanha Alegre/II/XVII: diferenças entre revisões

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XVII
XVI


Fevereiro 1872.
Fevereiro 1872.


Não nos parece justificável o despeito da Universidade.
É verdade que os jornais parisienses contaram que no banquete que o Sr. Adolfo


É verdade que um príncipe pode deixar de se comportar com a pompa de um rei — sem que por isso passe a comportar-se com a maltrapice de um varredor. Entre o manto de arminhos e a rabona — há gradações. Um rei por não ir ao passeio com o seu ceptro de oiro — não se segue que vá com as suas chinelas de ourelo: e por não receber as autoridades revestido do seu uniforme — não é honesto que as receba vestido apenas com a sua pele. Mas também não nos parece que uma quinzena e um chapéu desabado seja ''toilette'' que escandalize a douta Universidade!
Thiers, (presidente certo de uma república incerta) deu ao Imperador do Brasil — Sua


É necessário que os srs. doutores saibam que a ''toilette'' só é realmente exigida — quando a ''toilette é'' um fim. Num baile, numa ''soirée,'' numa gala, na Ópera — a gravata branca, a luva cor de pérola, a gardénia ou a grã-cruz são essenciais, porque estas festas constituem unicamente uma reunião de elementos elegantes, entre decorações elegantes, para um fim elegante. Tudo aí deve convergir para a harmonia geral — desde as ''toilettes a''té às flores. Trata-se de um fino prazer dos sentidos — e a ''toilette,'' com o seu brilho exterior, é requerida para o tornar completo e perfeito.
Majestade a cada momento cortava a conversação literária e céptica que faiscava em redor da mesa, para gritar com a sua imperial boca cheia: «que precioso peixe! que sublime galinhola!»


Mas quando se trata apenas de doutorar o Sr. Fulano, bacharel — não nos parece que tenham cabimento as exigências de elegância. Se a veneranda cerimónia do capelo é uma festa que reclama os requintes de ''toilette'' — onde estão as rosas, os gelados, as jóias nos colos nus, o rumor dos ''flirts,'' as caudas de seda ondeando na valsa? Se o capelo é um sarau galante, porque é que o Sr. Dr. Brito, de direito, nos priva do maravilhoso contorno do seu seio, trazendo batina — afogada?
No entanto, esta circunstância de estupefacta gula, narrada com ironia pelos jornais de Paris — não oferece autenticidade: é um reclamo, uma adulação política à cozinha do dito Adolfo! As gazetas republicanas como não encontram nada a exaltar nas ideias políticas de Adolfo — querem ao menos glorificar-lhe as iniciativas culinárias.


Porque não vemos os srs. lentes jubilados moverem os leques com a mão calçada em luva de 16 botões? E porque é que o Sr. Forjaz não dirige os arrebatamentos do c''otillo''n? Ah, quereis ''toilett''e? Valsai! — Quereis gravatas brancas? — Oferecei gelados! —
E já que não podem dizer: «que organização ele dá à França!» gritam: «que jantares ele dá aos Reis!» A verdade incontestável é que Sua Majestade o Imperador é um sóbrio.


Quereis luvas cor de palha? — Amai, venerandos doutores!
Há, porém, um só petisco, acerca do qual Sua Majestade revela uma gula excepcional. Sua Majestade desdenha demagogicamente, desde a trufa até ao


Mas para aturar uma enfiada de carões sorumbáticos e de batinas caturras, imóveis num estrado; para ouvir uma charanga torpe dilacerando a grandes golpes de figle um minuete da Srª D. Maria I; para admirar quatro archeiros sebáceos perfilados entre ramos de louro murcho — quereis vós que a gente ponha gravata branca e um jasmim do
Johannisberg, todos os delicados mimos da fornalha ou da adega. Uma só coisa neste planeta lhe aguça a língua. Para uma só coisa tem uma sofreguidão incansável e sorvedoura: — para o idioma hebraico!


Cabo na lapela? Pois não vemos aí os senhores de Teologia, antigos egressos espapados de gordura, com as suas velhas lobas enodoadas? Não vemos os senhores de Direito, antigos comentadores do Pegas, com os seus sapatos achinelados? — Quando foi que a
Sua Majestade é um guloso de hebraico. No hebraico — rapa os pratos e lambe os dedos. E, por uma inexplicável imprevidência, Sua Majestade não traz consigo nem um homem de raça hebreia, nem sequer um cristão hebraizante, nem mesmo um professor de hebraico! De tal sorte que nos longos dias preguiçosos de paquete, nas horas fastidiosas de vagão — Sua Majestade passa cruéis privações de hebraico. Por isso chega sempre esfaimado de hebraico: e mal entra as portas festivas dos hotéis, ainda com a mala na mão, rompe logo a pedir nos corredores, com ganidos de gula, quase com assomos de cólera — o seu hebraico!


Universidade teve jamais a curiosidade e o respeito da ''toilett''e? Ela que ainda há pouco levava ao cárcere os estudantes que usavam colarinho! Ela que reprovava os estudantes que entravam nas aulas com luvas! Ela que proibia em Coimbra os estabelecimentos de
Quando Sua Majestade Imperial chegou a Londres, o Príncipe de Gales enviou-lhe um dos seus ajudantes de campo — um daqueles belos capitães de ''Horse-gards,'' que põem à noite um jasmim do Cabo na jaqueta escarlate e oiro. Este dândi marcial perguntou a Sua Majestade o que desejava, naquele momento em que punha o seu pé de além-mar nas plagas verdes de Álbion. Esperavam todos que Sua Majestade pedisse chá


A Universidade e os seus doutores têm espalhado apreciações rancorosas, sobre a maneira como Sua Majestade o Imperador se apresentou na sala dos capelos, num dia de doutoramento e de cerimónia. Dizem que Sua Majestade, trajando jaquetão de viagem, com um chapéu desabado e um saco a tiracolo, se veio sentar nos bancos severos da antiga sala adamascada — com a mesma familiaridade com que se sentaria na almofada da diligência dos Arcos de Valdevez. E a Universidade quis ver no jaquetão de Sua Majestade e no seu chapéu braguês, a mesma significação desatenciosa que o
— ou um banho.


Parlamento de Paris viu, em outras eras, nas altas botas moles e no chicote de estalo do defunto Luís XIV. banhos! Ela que, destinada a bacharelar as novas gerações, conseguia sobretudo — sujá-las!
Sua Majestade respondeu avidamente: — «hebraico!»


E abespinha-se porque Ele foi ver um capelo, ele viajante, ele Pedro, ele espectador, ele turbamulta — de jaquetão e chapéu braguês! E onde então? Na sala dos capelos — que
Os oficiais olharam-se consternados. E o Imperador, com os lábios secos, as mãos nervosas, o apetite enristado, repetia famintamente: — «hebraico! só hebraico!» — Então, por um rasgo genial, os ajudantes do Príncipe de Gales levaram, a toda a brida fogosa de um landau, o Imperador do Brasil — à Sinagoga! Sua Majestade precipitou-se entre os hebreus. Os sábios rabis, que são doutores da lei, cercaram o homem augusto, e, vorazmente, a grandes bocados, com guinchos de gozo, o Imperador do Brasil consumiu incalculáveis porções de hebraico. Depois de se fartar, olhou em redor — e pediu mais!


é a Igreja onde se professa para doutor, onde se troca a graça mundana pela sensaboria catedrática, onde o sujeito deixa de ser um homem para ser um lente, onde faz o voto de melancolia e de carranca perpétua, e onde se substitui a alma por um compêndio.
Certos donos de hotéis, em cidades da Europa, ficavam apavorados e confusos quando Sua Majestade assomava aos limiares das portas, pedindo hebraico a fortes brados. Alguns arriscavam timidamente:


E é neste lugar funerário que os srs. Doutores emergem da sonolência sepulcral para murmurarem (talvez em latim!) — ''olha aquele de jaquetão!''
— Se Vossa Majestade quisesse antes um caldo...


A Universidade dando-se ares de saber que existe o alfaiate Poole! Irrisória vaidade conimbricense!
Sua Majestade imperial passa, com justiça, por um dos homens mais sóbrios do seu vasto império. Sopa, carne cozida, legumes, água e um palito, tal é o chorume dos jantares da corte nos paços da Tijuca.


É célebre! Vimos sempre a Universidade, quando se tratava de pôr gravata branca
— Hebraico!...


— desculpar-se com as suas preocupações científicas. E, agora que se tratava de uma consagração doutoral, a Universidade revolta-se porque um dos assistentes não está de gravata branca!
— Se Vossa Majestade quisesse antes um monumento...


Pois quê! Recebe a Universidade um sábio, e em lugar de se perder com ele nos retiros difíceis das mais sérias questões do saber — recua, e exclama com uma exigência mundana de ''cocotte para trás! que horror! vós não estais de casaca!'' E não compreendo o que havia de intencional, de amável, na ''toilette'' de Pedro! Ele quis-se apresentar entre sábios, na rabona de sábio! Ele não quis humilhar nenhum sr. doutor — pelo asseio da sua roupa branca! Vestiu-se com o rigor científico. Antes de sair para o capelo, em lugar de molhar os dedos num frasco de água-de-colónia (sabe-se isto! ) ensopou as mãos num tinteiro! Ele seguiu a velha tradição universitária — que o rasgão é uma glória e a tomba na bota uma respeitabilidade! E, se a Universidade tivesse lógica, devia escandalizar-se e corar — não por ele se ter abstido da gravata, mas por ousar entrar, naquele recinto clássico da porcaria, com tão poucas nódoas no fato!
— Hebraico!

Foi assim em Lisboa, no Lazareto. Sua Majestade, já ao descer as escadas do paquete, vinha resmungando: «salta o meu hebraicozinho!» E daí a minutos expedia gritos famintos. Que consternação! Tudo estava preparado: a ''canja,'' a ''orelheira,'' a ''broa, o'' ''capilé,'' o ''caldo de unto,'' todos os artifícios do génio português. Mas ninguém se lembrara do hebraico! E Sua Majestade estrebuchava!

Partiram então exploradores em todas as direcções — e por fim voltaram trazendo, estonteado e surpreendido, o Sr. Salomão Saragga, que lê e fala o hebraico.

Sua Majestade esperava ansiosamente, debruçado na janela. Não houve cumprimentos, nem se pôs toalha. Serviram-lhe o Sr. Saragga, assim mesmo — cru! Sua

Majestade deixou-lhe uns restos!

Revisão das 22h58min de 14 de dezembro de 2020

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XVII

Fevereiro 1872.

Não nos parece justificável o despeito da Universidade.

É verdade que um príncipe pode deixar de se comportar com a pompa de um rei — sem que por isso passe a comportar-se com a maltrapice de um varredor. Entre o manto de arminhos e a rabona — há gradações. Um rei por não ir ao passeio com o seu ceptro de oiro — não se segue que vá com as suas chinelas de ourelo: e por não receber as autoridades revestido do seu uniforme — não é honesto que as receba vestido apenas com a sua pele. Mas também não nos parece que uma quinzena e um chapéu desabado seja toilette que escandalize a douta Universidade!

É necessário que os srs. doutores saibam que a toilette só é realmente exigida — quando a toilette é um fim. Num baile, numa soirée, numa gala, na Ópera — a gravata branca, a luva cor de pérola, a gardénia ou a grã-cruz são essenciais, porque estas festas constituem unicamente uma reunião de elementos elegantes, entre decorações elegantes, para um fim elegante. Tudo aí deve convergir para a harmonia geral — desde as toilettes até às flores. Trata-se de um fino prazer dos sentidos — e a toilette, com o seu brilho exterior, é requerida para o tornar completo e perfeito.

Mas quando se trata apenas de doutorar o Sr. Fulano, bacharel — não nos parece que tenham cabimento as exigências de elegância. Se a veneranda cerimónia do capelo é uma festa que reclama os requintes de toilette — onde estão as rosas, os gelados, as jóias nos colos nus, o rumor dos flirts, as caudas de seda ondeando na valsa? Se o capelo é um sarau galante, porque é que o Sr. Dr. Brito, de direito, nos priva do maravilhoso contorno do seu seio, trazendo batina — afogada?

Porque não vemos os srs. lentes jubilados moverem os leques com a mão calçada em luva de 16 botões? E porque é que o Sr. Forjaz não dirige os arrebatamentos do cotillon? Ah, quereis toilette? Valsai! — Quereis gravatas brancas? — Oferecei gelados! —

Quereis luvas cor de palha? — Amai, venerandos doutores!

Mas para aturar uma enfiada de carões sorumbáticos e de batinas caturras, imóveis num estrado; para ouvir uma charanga torpe dilacerando a grandes golpes de figle um minuete da Srª D. Maria I; para admirar quatro archeiros sebáceos perfilados entre ramos de louro murcho — quereis vós que a gente ponha gravata branca e um jasmim do

Cabo na lapela? Pois não vemos aí os senhores de Teologia, antigos egressos espapados de gordura, com as suas velhas lobas enodoadas? Não vemos os senhores de Direito, antigos comentadores do Pegas, com os seus sapatos achinelados? — Quando foi que a

Universidade teve jamais a curiosidade e o respeito da toilette? Ela que ainda há pouco levava ao cárcere os estudantes que usavam colarinho! Ela que reprovava os estudantes que entravam nas aulas com luvas! Ela que proibia em Coimbra os estabelecimentos de

A Universidade e os seus doutores têm espalhado apreciações rancorosas, sobre a maneira como Sua Majestade o Imperador se apresentou na sala dos capelos, num dia de doutoramento e de cerimónia. Dizem que Sua Majestade, trajando jaquetão de viagem, com um chapéu desabado e um saco a tiracolo, se veio sentar nos bancos severos da antiga sala adamascada — com a mesma familiaridade com que se sentaria na almofada da diligência dos Arcos de Valdevez. E a Universidade quis ver no jaquetão de Sua Majestade e no seu chapéu braguês, a mesma significação desatenciosa que o

Parlamento de Paris viu, em outras eras, nas altas botas moles e no chicote de estalo do defunto Luís XIV. banhos! Ela que, destinada a bacharelar as novas gerações, conseguia sobretudo — sujá-las!

E abespinha-se porque Ele foi ver um capelo, ele viajante, ele Pedro, ele espectador, ele turbamulta — de jaquetão e chapéu braguês! E onde então? Na sala dos capelos — que

é a Igreja onde se professa para doutor, onde se troca a graça mundana pela sensaboria catedrática, onde o sujeito deixa de ser um homem para ser um lente, onde faz o voto de melancolia e de carranca perpétua, e onde se substitui a alma por um compêndio.

E é neste lugar funerário que os srs. Doutores emergem da sonolência sepulcral para murmurarem (talvez em latim!) — olha aquele de jaquetão!

A Universidade dando-se ares de saber que existe o alfaiate Poole! Irrisória vaidade conimbricense!

É célebre! Vimos sempre a Universidade, quando se tratava de pôr gravata branca

— desculpar-se com as suas preocupações científicas. E, agora que se tratava de uma consagração doutoral, a Universidade revolta-se porque um dos assistentes não está de gravata branca!

Pois quê! Recebe a Universidade um sábio, e em lugar de se perder com ele nos retiros difíceis das mais sérias questões do saber — recua, e exclama com uma exigência mundana de cocotte para trás! que horror! vós não estais de casaca! E não compreendo o que havia de intencional, de amável, na toilette de Pedro! Ele quis-se apresentar entre sábios, na rabona de sábio! Ele não quis humilhar nenhum sr. doutor — pelo asseio da sua roupa branca! Vestiu-se com o rigor científico. Antes de sair para o capelo, em lugar de molhar os dedos num frasco de água-de-colónia (sabe-se isto! ) ensopou as mãos num tinteiro! Ele seguiu a velha tradição universitária — que o rasgão é uma glória e a tomba na bota uma respeitabilidade! E, se a Universidade tivesse lógica, devia escandalizar-se e corar — não por ele se ter abstido da gravata, mas por ousar entrar, naquele recinto clássico da porcaria, com tão poucas nódoas no fato!