O Coruja/III/XI: diferenças entre revisões

Wikisource, a biblioteca livre
Conteúdo apagado Conteúdo adicionado
Giro bot (discussão | contribs)
Importação automática de artigos
 
Giro bot (discussão | contribs)
m ajuste, Replaced: &mdash → — (13) (AWB)
Linha 1: Linha 1:

{{navegar
{{navegar
|obra=[[O Coruja]]
|obra=[[O Coruja]]
Linha 33: Linha 32:
Branca o ouvia sempre com a mesma calma, imperturbável e altiva, os olhos meio cerrados, os lábios contraídos numa dura expressão de asco.
Branca o ouvia sempre com a mesma calma, imperturbável e altiva, os olhos meio cerrados, os lábios contraídos numa dura expressão de asco.


&mdash Ah! Mas não devemos condená-lo por isso... dizia o traiçoeiro. - Nele, aquilo é uma questão de gênio!... Teobaldo nunca poderia dar um bom marido; nunca seria capaz de dedicar-se durante a vida inteira por qualquer pessoa, fosse esta, a mais adorável das criaturas. Todo ele é pouco para pensar em si mesmo; tudo que não for ele; tudo que não for a sua querida e respeitável individualidade, nenhum valor tem a seus olhos; tudo que não for ele, é público e faz parte do resto da humanidade, a quem, na sua louca pretensão, ele considera um simples complemento de sua pessoa. Então, na eterna febre de armar ao efeito e não desgostar seja lá a quem for, jamais tem franqueza para ninguém: se lhe pedem qualquer obséquio, ele nunca diz que não, promete sempre, ainda que um instante depois já nem se lembre de semelhante coisa; se uma mulher lhe lança um sorriso de provocação, ele responde com outro, ainda que a deteste; não tem amigos - tem auditório; não tem amor - tem amantes. É uma simples questão de vaidade, no sentido positivista da palavra. Ele, enquanto fala, não se dirige à pessoa com quem conversa, mas sim às que o observam de parte, só preocupando com o efeito que está produzindo sobre elas. E, como é na conversa, é em todos os atos de sua vida.
— Ah! Mas não devemos condená-lo por isso... dizia o traiçoeiro. - Nele, aquilo é uma questão de gênio!... Teobaldo nunca poderia dar um bom marido; nunca seria capaz de dedicar-se durante a vida inteira por qualquer pessoa, fosse esta, a mais adorável das criaturas. Todo ele é pouco para pensar em si mesmo; tudo que não for ele; tudo que não for a sua querida e respeitável individualidade, nenhum valor tem a seus olhos; tudo que não for ele, é público e faz parte do resto da humanidade, a quem, na sua louca pretensão, ele considera um simples complemento de sua pessoa. Então, na eterna febre de armar ao efeito e não desgostar seja lá a quem for, jamais tem franqueza para ninguém: se lhe pedem qualquer obséquio, ele nunca diz que não, promete sempre, ainda que um instante depois já nem se lembre de semelhante coisa; se uma mulher lhe lança um sorriso de provocação, ele responde com outro, ainda que a deteste; não tem amigos - tem auditório; não tem amor - tem amantes. É uma simples questão de vaidade, no sentido positivista da palavra. Ele, enquanto fala, não se dirige à pessoa com quem conversa, mas sim às que o observam de parte, só preocupando com o efeito que está produzindo sobre elas. E, como é na conversa, é em todos os atos de sua vida.


Branca ficou muito surpreendida e perdeu por instantes a sua calma habitual, uma vez em que o primo lhe declarou que Teobaldo, antes da mulher do conselheiro, já tivera tido muitas outras amantes de igual espécie.
Branca ficou muito surpreendida e perdeu por instantes a sua calma habitual, uma vez em que o primo lhe declarou que Teobaldo, antes da mulher do conselheiro, já tivera tido muitas outras amantes de igual espécie.


&mdash E depois dessa? perguntou ela.
— E depois dessa? perguntou ela.


&mdash Ora! respondeu Aguiar, com um sorriso de quem perdoa. Hoje, em certas rodas aristocráticas, ser amante de Teobaldo é um indispensável atestado de bom-gosto; as senhoras da moda o adoram e cuidam dele como de um objeto de sua propriedade. O desgraçado não se pertence; não pode dar um passo sem ter de voltar-se para a direita e para a esquerda, sempre a fingir que ama, sempre a enganar. Para o que, diga-me, quais são as noites que ele passa aqui? Depois que a prima se retraiu e desertou das festas, quase nunca o vê, não é verdade? Entretanto, no Rio de Janeiro não há função de certa ordem em que ele não seja ouvido e consultado previamente. Se há concerto na festa, foi ele quem organizou o programa; se há dança, é ele quem tem de dirigir o cotilhão; se é preciso um discurso qualquer, uma poesia, aí está o Teobaldo recitando! Em todas as salas, quer esteja ou não esteja presente, só se ouve o nome dele; velhos e rapazes procuram imitá-lo em tudo; ele é sempre quem dá a nota do tom, quem decreta a moda; qualquer modificação no seu penteado ou no feitio de sua barba levanta um formidável escândalo entre os seus imbecis admiradores, a sua presença é mais indispensável para o sucesso das festas do que mesmo a presença do Imperador, de quem ele aliás já conseguiu as simpatias, graças a habilidade com que o seduziu.
— Ora! respondeu Aguiar, com um sorriso de quem perdoa. Hoje, em certas rodas aristocráticas, ser amante de Teobaldo é um indispensável atestado de bom-gosto; as senhoras da moda o adoram e cuidam dele como de um objeto de sua propriedade. O desgraçado não se pertence; não pode dar um passo sem ter de voltar-se para a direita e para a esquerda, sempre a fingir que ama, sempre a enganar. Para o que, diga-me, quais são as noites que ele passa aqui? Depois que a prima se retraiu e desertou das festas, quase nunca o vê, não é verdade? Entretanto, no Rio de Janeiro não há função de certa ordem em que ele não seja ouvido e consultado previamente. Se há concerto na festa, foi ele quem organizou o programa; se há dança, é ele quem tem de dirigir o cotilhão; se é preciso um discurso qualquer, uma poesia, aí está o Teobaldo recitando! Em todas as salas, quer esteja ou não esteja presente, só se ouve o nome dele; velhos e rapazes procuram imitá-lo em tudo; ele é sempre quem dá a nota do tom, quem decreta a moda; qualquer modificação no seu penteado ou no feitio de sua barba levanta um formidável escândalo entre os seus imbecis admiradores, a sua presença é mais indispensável para o sucesso das festas do que mesmo a presença do Imperador, de quem ele aliás já conseguiu as simpatias, graças a habilidade com que o seduziu.


Quando aquele demônio chega a qualquer parte, ouve se logo de todos os lados: "Aí está o Teobaldo! O Teobaldo! O Teobaldo!" Os que ainda não o conhecem correm logo a vê-lo; os outros apressam-se a mostrar que tem a honra de se dar com ele, e todos se mexem e tudo se agita para lhe dar passagem. Chega e daí a pouco está cercado de gente, sem que ninguém saiba explicar lucidamente por que razão lhe fazem tamanha roda. Ele descerra os lábios? diz qualquer coisa? é um sucesso infalível, e a sua frase, ainda que seja mais banal, a mais piegas, corre logo de boca em boca, é repetida e logo aclamada como o verbo da sabedoria divina. Opinião boa, apareça por aí a respeito de qualquer fato, ou de qualquer produção artística, ou de qualquer homem notável, não se pergunta de quem é, atribui-se logo a ele!
Quando aquele demônio chega a qualquer parte, ouve se logo de todos os lados: "Aí está o Teobaldo! O Teobaldo! O Teobaldo!" Os que ainda não o conhecem correm logo a vê-lo; os outros apressam-se a mostrar que tem a honra de se dar com ele, e todos se mexem e tudo se agita para lhe dar passagem. Chega e daí a pouco está cercado de gente, sem que ninguém saiba explicar lucidamente por que razão lhe fazem tamanha roda. Ele descerra os lábios? diz qualquer coisa? é um sucesso infalível, e a sua frase, ainda que seja mais banal, a mais piegas, corre logo de boca em boca, é repetida e logo aclamada como o verbo da sabedoria divina. Opinião boa, apareça por aí a respeito de qualquer fato, ou de qualquer produção artística, ou de qualquer homem notável, não se pergunta de quem é, atribui-se logo a ele!
Linha 49: Linha 48:
Era isso o que ela com tanto empenho queria evitar era isso justamente o que ele queria que sucedesse, para a tomar de surpresa, e segurar-lhe as mãos, e dizer-lhe como se falasse delirando.
Era isso o que ela com tanto empenho queria evitar era isso justamente o que ele queria que sucedesse, para a tomar de surpresa, e segurar-lhe as mãos, e dizer-lhe como se falasse delirando.


&mdash Mas não se aflija, não se aflija por amor de Deus! Repare que os seus soluços me enlouquecem! Creio que aquele ingrato não lhe merece essas lágrimas tão puras e tão sentidas!
— Mas não se aflija, não se aflija por amor de Deus! Repare que os seus soluços me enlouquecem! Creio que aquele ingrato não lhe merece essas lágrimas tão puras e tão sentidas!


&mdash Não é por ele que eu choro, respondia Branca, sem descobrir o rosto, - choro por mim própria, pela minha desgraça, pelo muito que padeço!
— Não é por ele que eu choro, respondia Branca, sem descobrir o rosto, - choro por mim própria, pela minha desgraça, pelo muito que padeço!


Aguiar então, com extrema delicadeza, aproximava-se da prima e principiava a afagá-la que nem a uma criança.
Aguiar então, com extrema delicadeza, aproximava-se da prima e principiava a afagá-la que nem a uma criança.


&mdash Então! então... dizia-lha meio repreensivo. Vamos, não se aflija! Veja se consegue tranqüilizar-se!...
— Então! então... dizia-lha meio repreensivo. Vamos, não se aflija! Veja se consegue tranqüilizar-se!...


Ela, muito envergonhada por deixar a descoberto os seus desgostos, acabava queixando-se com franqueza.
Ela, muito envergonhada por deixar a descoberto os seus desgostos, acabava queixando-se com franqueza.


&mdash É que, dizia, já não tenho ânimo de sair de casa ao menos; de ir a qualquer divertimento, a qualquer parte; porque a presença de toda a gente me faz um mal horroroso! Quando saio com meu marido e me acho no meio das salas ao lado dele, sinto-me ainda mais só do que se fico entre as quatro paredes do meu quarto; sinto-me ridícula, desamparada, submissa a um homem que pertence a todo o mundo, menos a mim. Oh! Esta posição é degradante!
— É que, dizia, já não tenho ânimo de sair de casa ao menos; de ir a qualquer divertimento, a qualquer parte; porque a presença de toda a gente me faz um mal horroroso! Quando saio com meu marido e me acho no meio das salas ao lado dele, sinto-me ainda mais só do que se fico entre as quatro paredes do meu quarto; sinto-me ridícula, desamparada, submissa a um homem que pertence a todo o mundo, menos a mim. Oh! Esta posição é degradante!


&mdash Mas, porventura não estou eu ao seu lado? porventura não pode minha prima contar ainda com um irmão, um amigo delicado, que tudo daria para a ver tranqüila e venturosa?
— Mas, porventura não estou eu ao seu lado? porventura não pode minha prima contar ainda com um irmão, um amigo delicado, que tudo daria para a ver tranqüila e venturosa?


&mdash Obrigada; não me conformo, porém, com esta viuvez a que me condenou injustamente o homem a quem confiei a minha felicidade, o homem a quem entreguei todos os meus sonhos e todo o meu amor!
— Obrigada; não me conformo, porém, com esta viuvez a que me condenou injustamente o homem a quem confiei a minha felicidade, o homem a quem entreguei todos os meus sonhos e todo o meu amor!


&mdash E ainda o ama talvez!...
— E ainda o ama talvez!...


&mdash Não, já não o amo, e é isso justamente o que não lhe perdoarei nunca! é ter-me obrigado a desprezá-lo, é ter feito de mim uma esposa sem amor, uma mulher casada que não ama ao seu marido e que por conseguinte há de fatalmente ser mártir, quer submetendo-se à sua desgraça, quer tentando disfarçá-la com outra ainda pior!
— Não, já não o amo, e é isso justamente o que não lhe perdoarei nunca! é ter-me obrigado a desprezá-lo, é ter feito de mim uma esposa sem amor, uma mulher casada que não ama ao seu marido e que por conseguinte há de fatalmente ser mártir, quer submetendo-se à sua desgraça, quer tentando disfarçá-la com outra ainda pior!


&mdash Pior?! Pior do que o eterno suplício de aturar junto de si uma pessoa que abominamos?... Pior do que sacrificar tudo, a mocidade, o futuro de todos os gozos a que temos direito?.
— Pior?! Pior do que o eterno suplício de aturar junto de si uma pessoa que abominamos?... Pior do que sacrificar tudo, a mocidade, o futuro de todos os gozos a que temos direito?.


&mdash Sim, pior, porque no outro caso o sacrifício que se tem a fazer é o sacrifício da honra! Bem ou má sou mulher casada e como tal hei de proceder enquanto durar meu marido!
— Sim, pior, porque no outro caso o sacrifício que se tem a fazer é o sacrifício da honra! Bem ou má sou mulher casada e como tal hei de proceder enquanto durar meu marido!


Aguiar, que não esperava por estas palavras, estacou defronte delas, mas sem se dar ainda por vencido.
Aguiar, que não esperava por estas palavras, estacou defronte delas, mas sem se dar ainda por vencido.

Revisão das 03h35min de 20 de janeiro de 2007

Principiou então a formar-se entre Branca e o marido uma inalterável frieza. Viam-se todos os dias, falavam-se, às vezes chegavam mesmo a conversar algumas horas assentados um defronte do outro na sala de jantar mas despediam-se depois com um aperto de mão, e cada qual se recolhia ao competente quarto.

Teobaldo, longe de se incomodar com isto, parecia até rejubilar-se, pois que mais em liberdade se podia dar às suas preocupações exteriores.

A princípio, entretanto, quando via a esposa mais triste e mais indiferente, mostrava por ela certo interesse e chegava a indagar o motivo de tamanha transformação; Branca respondia-lhe em geral com um gesto de tédio, e, se lhe dava alguma palavra, era para pedir que não a estivesse importunando com a sua mal fingida solicitude.

E, quanto mais Teobaldo se preocupava com armar ao efeito lá fora para os estranhos, mais a pobre senhora se retraía em casa, amparando-se unicamente ao seu orgulho de mulher honesta.

E com as suas ilusões de amor foram também fenecendo as graças do seu espírito e as galhardias do seu corpo; a pouco e pouco ia-se fazendo estátua, ia perdendo a originalidade do querer; já não tinha caprichos, já não tinha desejos: aceitava a vida como a vida se apresentava, sem de leve opor a sombra de uma queixa.

No seu entristecido olhar de rola abandonada pelo esposo, não transparecia o mais leve indício da tremenda revolta que mantinha sua alma contra aquela sociedade de mentirosos em que ela vivia; homens como mulheres, todos se lhe afiguravam os mesmos; todos ruins; todos ordinários.

No entanto, afetava em público a mais completa harmonia com seu marido, a quem no íntimo ela execrava com asco, e, sempre por amor e respeito de si mesma, não arredava um ponto da linha dos seus deveres de mulher casada, se bem que o Aguiar lhe rondasse os passos com insistência digna de melhor intuito.

Ele a porfiar e Branca a fingir que não o compreendia, desviando-se das garras do sedutor com a imperturbável calma de quem tem toda a confiança em si. Mas o demônio não desanimava, e, com quanto mais força a prima o repelia, tanto mais prontamente ele voltava aos pés dela, como o trapézio que o acrobata arremessa e logo torna na proporção do impulso recebido.

E aquela constante repressão dos desejos o atormentava dia e noite; aquele amor enjaulado dentro dele, como uma fera, indo e vindo incessantemente, sem encontrar descanso, nem repousar um instante, deixava-o prostrado e cada vez mais sôfrego.

Contudo, não desanimava: Ah! ele tanto havia de lançar aos pés daquela estátua o fogo de sua paixão que o bronze acabaria derretendo-se.

E Aguiar, seguro de que não a venceria só com a força do seu amor, começou a fingir-se desinteressado e generoso; com tal ciência que Branca foi aos poucos abrindo para ele uma excepção no terrível juízo que fazia dos homens, chegando até a arrepender-se de o ter julgado tão mal e transformando-o insensivelmente em amigo íntimo, a quem por último já confiava os segredos das suas mágoas e as queixas que tinha contra o marido. E o velhaco aproveitava com muito jeito tais regalias para denunciar as culpas e as fraquezas de Teobaldo, que por este próprio lhe eram reveladas.

Branca o ouvia sempre com a mesma calma, imperturbável e altiva, os olhos meio cerrados, os lábios contraídos numa dura expressão de asco.

— Ah! Mas não devemos condená-lo por isso... dizia o traiçoeiro. - Nele, aquilo é uma questão de gênio!... Teobaldo nunca poderia dar um bom marido; nunca seria capaz de dedicar-se durante a vida inteira por qualquer pessoa, fosse esta, a mais adorável das criaturas. Todo ele é pouco para pensar em si mesmo; tudo que não for ele; tudo que não for a sua querida e respeitável individualidade, nenhum valor tem a seus olhos; tudo que não for ele, é público e faz parte do resto da humanidade, a quem, na sua louca pretensão, ele considera um simples complemento de sua pessoa. Então, na eterna febre de armar ao efeito e não desgostar seja lá a quem for, jamais tem franqueza para ninguém: se lhe pedem qualquer obséquio, ele nunca diz que não, promete sempre, ainda que um instante depois já nem se lembre de semelhante coisa; se uma mulher lhe lança um sorriso de provocação, ele responde com outro, ainda que a deteste; não tem amigos - tem auditório; não tem amor - tem amantes. É uma simples questão de vaidade, no sentido positivista da palavra. Ele, enquanto fala, não se dirige à pessoa com quem conversa, mas sim às que o observam de parte, só preocupando com o efeito que está produzindo sobre elas. E, como é na conversa, é em todos os atos de sua vida.

Branca ficou muito surpreendida e perdeu por instantes a sua calma habitual, uma vez em que o primo lhe declarou que Teobaldo, antes da mulher do conselheiro, já tivera tido muitas outras amantes de igual espécie.

— E depois dessa? perguntou ela.

— Ora! respondeu Aguiar, com um sorriso de quem perdoa. Hoje, em certas rodas aristocráticas, ser amante de Teobaldo é um indispensável atestado de bom-gosto; as senhoras da moda o adoram e cuidam dele como de um objeto de sua propriedade. O desgraçado não se pertence; não pode dar um passo sem ter de voltar-se para a direita e para a esquerda, sempre a fingir que ama, sempre a enganar. Para o que, diga-me, quais são as noites que ele passa aqui? Depois que a prima se retraiu e desertou das festas, quase nunca o vê, não é verdade? Entretanto, no Rio de Janeiro não há função de certa ordem em que ele não seja ouvido e consultado previamente. Se há concerto na festa, foi ele quem organizou o programa; se há dança, é ele quem tem de dirigir o cotilhão; se é preciso um discurso qualquer, uma poesia, aí está o Teobaldo recitando! Em todas as salas, quer esteja ou não esteja presente, só se ouve o nome dele; velhos e rapazes procuram imitá-lo em tudo; ele é sempre quem dá a nota do tom, quem decreta a moda; qualquer modificação no seu penteado ou no feitio de sua barba levanta um formidável escândalo entre os seus imbecis admiradores, a sua presença é mais indispensável para o sucesso das festas do que mesmo a presença do Imperador, de quem ele aliás já conseguiu as simpatias, graças a habilidade com que o seduziu.

Quando aquele demônio chega a qualquer parte, ouve se logo de todos os lados: "Aí está o Teobaldo! O Teobaldo! O Teobaldo!" Os que ainda não o conhecem correm logo a vê-lo; os outros apressam-se a mostrar que tem a honra de se dar com ele, e todos se mexem e tudo se agita para lhe dar passagem. Chega e daí a pouco está cercado de gente, sem que ninguém saiba explicar lucidamente por que razão lhe fazem tamanha roda. Ele descerra os lábios? diz qualquer coisa? é um sucesso infalível, e a sua frase, ainda que seja mais banal, a mais piegas, corre logo de boca em boca, é repetida e logo aclamada como o verbo da sabedoria divina. Opinião boa, apareça por aí a respeito de qualquer fato, ou de qualquer produção artística, ou de qualquer homem notável, não se pergunta de quem é, atribui-se logo a ele!

Branca, todas as vezes em que o primo lhe falava dessa maneira sentia, malgrado a energia do seu caráter, ir crescendo e subindo em torno de seu coração a irresistível torrente daquelas verdades, como se ela estivera em meio de um dilúvio. Não era que fizesse empenho em reconquistar o esposo, mas sim como que uma espécie de revolta contra o destino, que entendera não lhe dar a felicidade a que ela se julgava com direito, sendo tão amorosa, tão leal e tão digna.

E a onda implacável, que o primo lhe despejava intencionalmente contra a delicadeza de suas mágoas, depois de afogar-lhe o coração, transbordava-lhe pelos olhos e pela garganta desfeita em lágrimas e soluços.

Era isso o que ela com tanto empenho queria evitar era isso justamente o que ele queria que sucedesse, para a tomar de surpresa, e segurar-lhe as mãos, e dizer-lhe como se falasse delirando.

— Mas não se aflija, não se aflija por amor de Deus! Repare que os seus soluços me enlouquecem! Creio que aquele ingrato não lhe merece essas lágrimas tão puras e tão sentidas!

— Não é por ele que eu choro, respondia Branca, sem descobrir o rosto, - choro por mim própria, pela minha desgraça, pelo muito que padeço!

Aguiar então, com extrema delicadeza, aproximava-se da prima e principiava a afagá-la que nem a uma criança.

— Então! então... dizia-lha meio repreensivo. Vamos, não se aflija! Veja se consegue tranqüilizar-se!...

Ela, muito envergonhada por deixar a descoberto os seus desgostos, acabava queixando-se com franqueza.

— É que, dizia, já não tenho ânimo de sair de casa ao menos; de ir a qualquer divertimento, a qualquer parte; porque a presença de toda a gente me faz um mal horroroso! Quando saio com meu marido e me acho no meio das salas ao lado dele, sinto-me ainda mais só do que se fico entre as quatro paredes do meu quarto; sinto-me ridícula, desamparada, submissa a um homem que pertence a todo o mundo, menos a mim. Oh! Esta posição é degradante!

— Mas, porventura não estou eu ao seu lado? porventura não pode minha prima contar ainda com um irmão, um amigo delicado, que tudo daria para a ver tranqüila e venturosa?

— Obrigada; não me conformo, porém, com esta viuvez a que me condenou injustamente o homem a quem confiei a minha felicidade, o homem a quem entreguei todos os meus sonhos e todo o meu amor!

— E ainda o ama talvez!...

— Não, já não o amo, e é isso justamente o que não lhe perdoarei nunca! é ter-me obrigado a desprezá-lo, é ter feito de mim uma esposa sem amor, uma mulher casada que não ama ao seu marido e que por conseguinte há de fatalmente ser mártir, quer submetendo-se à sua desgraça, quer tentando disfarçá-la com outra ainda pior!

— Pior?! Pior do que o eterno suplício de aturar junto de si uma pessoa que abominamos?... Pior do que sacrificar tudo, a mocidade, o futuro de todos os gozos a que temos direito?.

— Sim, pior, porque no outro caso o sacrifício que se tem a fazer é o sacrifício da honra! Bem ou má sou mulher casada e como tal hei de proceder enquanto durar meu marido!

Aguiar, que não esperava por estas palavras, estacou defronte delas, mas sem se dar ainda por vencido.