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Revisão das 03h16min de 21 de janeiro de 2007

Decidi compor, nos vagares deste verão, na minha quinta do Mosteiro (antigo solar dos condes de Lindoso), as memórias da minha vida - que neste século, tão consumindo pelas incertezas da inteligência e tão angustiado pelos tormentos do dinheiro, encerra, penso eu e pensa meu cunhado Crispim, uma lição lúcida e forte.

Em 1875, nas vésperas de Santo Antonio, uma desilusão de incomparável amargura abalou o meu ser; por esse tempo minha tia, D. Patrocínio das Neves, mandou-me do Campo de Santana onde morávamos, em romagem a Jerusalém; dentro dessas santas muralhas, num dia abrasado do mês de Nizam, sendo Poncio Pilatos procurador da Judéia, Élio Lama, Legado Imperial da Síria, e J. Cairás, Sumo Pontífice, testemunhei, miraculosamente, escandalosos sucessos; depois voltei, e uma grande mudança se fez nos meus bens e na minha moral.

São estes casos, espaçados e altos numa existência de bacharel como, em campo de erva ceifada, fortes e ramalhosos sobreiros cheios de sol e murmúrio, que quero traçar, com sobriedade e com sinceridade, enquanto no meu telhado voam as andorinhas, e as moutas de cravos vermelhos perfumam o meu pomar.

Esta jornada à terra do Egito e à Palestina permanecerá sempre como a glória superior da minha carreira; e bem desejaria que dela ficasse nas letras, para a posteridade, um monumento airoso e maciço. Mas hoje, escrevendo por motivos peculiarmente espirituais, pretendi que as páginas íntimas, em que a relembro, se não assemelhassem a um Guia Pitoresco do Oriente. Por isso (apesar das solicitações da vaidade), suprimi neste manuscrito suculentas, resplandecentes narrativas de ruínas e de costumes...

De resto esse país do Evangelho, que tanto fascina a humanidade sensível, e bem menos interessante que o meu seco e paterno Alentejo; nem me parece que as terras, favorecidas por uma presença messiânica, ganhem jamais em graça ou esplendor. Nunca me foi dado percorrer os lugares santos da Índia em que o Buda viveu, arvoredos de Migadaia, outeiros de Veluvana, ou esse doce vale de Rajágria, por onde se alongavam os olhos adoráveis do Mestre perfeito, quando um fogo rebentou nos juncais, e Ele ensinou, em singela parábola, como a ignorância é uma fogueira que devora o homem, alimentada pelas enganosas sensações de vida, que os sentidos recebem das enganosas aparências do mundo. Também não visitei a caverna de Hira, nem os devotos arcais entre Meca e Medina, que tantas vezes trilhou Maomé, o profeta excelente, lento e pensativo sobre o seu dromedário. Mas, desde as figueiras de Betânia até as águas coladas de Galiléia, conheço bem os sítios onde habitou esse outro intermediário divino, cheio de enternecimento e de sonhos, a quem chamamos Jesus Nosso Senhor; e só neles achei bruteza, secura, sordidez, soledade e entulho.

Jerusalém é uma vila turca, com vielas andrajosas, acaçapada entre muralhas cor de lodo, e fedendo ao sol sob o badalar de sinos tristes.

O Jordão, fio de água barrento e peco que se arrasta entre arcais, nem pode ser comparado a esse claro e suave Lima que lá baixo, ao fundo do Mosteiro, banha as raízes dos meus amieiros; e todavia vede! Estas meigas águas portuguesas não correram jamais entre os joelhos de um Messias, nem jamais as roçaram as asas dos anjos, armados e rutilantes, trazendo do céu a terra as ameaças do Altíssimo!

Entretanto, como há espíritos insaciáveis que, lendo de uma jornada pelas terras da Escritura, anelam conhecer desde o tamanho das pedras até ao preço da cerveja, eu recomendo a obra copiosa e luminosa do meu companheiro de romagem, o alemão Topsius, doutor pela Universidade de Bonn e membro do Instituto Imperial de Escavações Históricas. São sete volumes in quarto, atochados, impressos em Leipzig, com este titulo fino e profundo - JERUSALÉM PASSEADA E COMENTADA.

Em cada página, desse sólido itinerário, o douto Topsius fala de mim, com admiração e com saudade. Denomina-me sempre o ilustre fidalgo lusitano; e a fidalguia do seu camarada, que ele faz remontar aos Barcas, enche manifestamente o erudito plebeu de delicioso orgulho. Alem disso o esclarecido Topsius aproveita-me, através desses repletos volumes, para pendurar, ficticiamente, nos meus lábios e no meu crânio, dizeres e juízos ensopados de beata e babosa credulidade - que ele logo rebate e derroca com sagacidade e facúndia! Diz, por exemplo: - "Diante de tal ruína, do tempo da Cruzada de Godofredo, o ilustre fidalgo lusitano pretendia que Nosso Senhor, indo um dia com a Santa Verônica..." - E logo alastra a tremenda, túrgida argumentação com que me deliu. Como, porém, as arengas que me atribui não são inferiores, em sábio chorume e arrogância teológica, as de Bossuet, eu não denunciei numa nota à Gazeta de Colônia - por que tortuoso artifício a afiada razão da Germânia se enfeita, assim, de triunfos, sobre a romba fé do Meio-Dia.

Há, porém, um ponto de JERUSALÉM PASSEADA que não posso deixar sem enérgica contestação. E quando o doutíssimo Topsius alude a dous embrulhos de papel, que me acompanharam e me ocuparam, na minha peregrinação, desde as vielas de Alexandria até as quebradas do Carmelo. Naquela forma rotunda que caracteriza a sua eloquência universitária, o Doutor Topsius diz: "o ilustre fidalgo lusitano transportava ali restos dos seus antepassados, recolhidos por ele, antes de deixar o solo sacro da pátria, no seu velho solar torreado!..." Maneira de dizer singularmente falaz e censurável! Porque faz supor, a Alemanha erudita, que eu viajava pelas terras do Evangelho - trazendo embrulhados num papel pardo os ossos dos meus avós!

Nenhuma outra imputação me poderia tanto desaprazer e desconvir. Não por me denunciar à Igreja, como um profanador leviano de sepulturas domésticas; menos me pesam a mim, comendador e proprietário, as fulminações da Igreja, que as folhas secas que às vezes caem sobre o meu guarda-sol de cima de um ramo morto; nem realmente a Igreja, depois de ter embolsado os seus emolumentos por enterrar um molho de ossos, se importa que eles para sempre jazam resguardados sob a rígida paz de um mármore eterno, ou que andem chocalhados nas dobras moles de um papel pardo. Mas a afirmação de Topsius desacredita-me perante a burguesia liberal; e só da burguesia liberal, onipresente e onipotente, se alcançam, nestes tempos de semitismo e de capitalismo, as cousas boas da vida, desde Os empregos nos bancos até as comendas da Conceição. Eu tenho filhos, tenho ambições. Ora, a burguesia liberal aprecia, recolhe, assimila com alacridade um cavalheiro ornado de avoengos e solares; é o vinho precioso e velho que vai apurar o vinho novo e cru; mas com razão detesta o bacharel, filho de algo, que passeie por diante dela, enfunado e teso, com as mãos carregadas de ossos de antepassados - como um sarcasmo mudo aos antepassados e aos ossos que a ela lhe faltam.

Por isso, intimo o meu douto Topsius (que, com os seus penetrantes óculos, viu formar os meus embrulhos, já na terra do Egito, já na terra de Canaã), a que na edição segunda de JERUSALÉM PASSEADA, sacudindo pudicos escrúpulos de acadêmico e estreitos desdéns de filósofo, divulgue à Alemanha científica e à Alemanha sentimental qual era o recheio que continham esses papéis pardos – tão francamente como eu o revelo aos meus concidadãos nestas páginas de repouso e de férias, onde a realidade sempre vive, ora embaraçada e tropeçando nas pesadas roupagens da História, ora mais livre e saltando sob a caraça vistosa da Farsa.

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