Espumas Flutuantes (1913)/Prólogo: diferenças entre revisões

Wikisource, a biblioteca livre
Conteúdo apagado Conteúdo adicionado
desmebrando de Espumas Flutuantes
 
m ajustes (AWB)
Linha 7: Linha 7:
|notas=
|notas=
}}
}}

Era por uma dessas tardes em que o azul do céu oriental - é pálido e saudoso, em que o rumor do vento
Era por uma dessas tardes em que o azul do céu oriental — é pálido e saudoso, em que o rumor do vento
nas vergas - e monótono e cadente, e o quebro da vaga na amurada do navio- e queixoso e tétrico.
nas vergas — e monótono e cadente, e o quebro da vaga na amurada do navio— e queixoso e tétrico.


Das bandas do ocidente o sol se atufava nos mares ''como um brigue em chamas..." e daquele vasto
Das bandas do ocidente o sol se atufava nos mares ''como um brigue em chamas..." e daquele vasto
Linha 17: Linha 18:
Longe, inda mais longe... os cimos fantásticos da serra dos Órgãos embebiam-se na distância sumiam-se, abismavam-se numa espécie de naufrágio celeste.
Longe, inda mais longe... os cimos fantásticos da serra dos Órgãos embebiam-se na distância sumiam-se, abismavam-se numa espécie de naufrágio celeste.


Só e triste, encostado à borda do navio, eu seguia com os olhos aquele esvaecimento indefinido e minha alma apegava-se à forma vacilante das montanhas - derradeiras atalaias dos meus arraiais da mocidade.
Só e triste, encostado à borda do navio, eu seguia com os olhos aquele esvaecimento indefinido e minha alma apegava-se à forma vacilante das montanhas — derradeiras atalaias dos meus arraiais da mocidade.


E que lá, dessas terras do sul, para onde eu levara o fogo de todos os entusiasmos, o viço de todas
E que lá, dessas terras do sul, para onde eu levara o fogo de todos os entusiasmos, o viço de todas
as ilusões, os meus vinte anos de seiva e de mocidade, as minhas esperanças de glória e de futuro;... é que dessas terras do sul, onde eu penetrara "como o moço Rafael subindo as escadas do Vaticano";... volvia agora silencioso e alquebrado... trazendo por única ambição-a esperança de repouso em minha pátria.
as ilusões, os meus vinte anos de seiva e de mocidade, as minhas esperanças de glória e de futuro;... é que dessas terras do sul, onde eu penetrara "como o moço Rafael subindo as escadas do Vaticano";... volvia agora silencioso e alquebrado... trazendo por única ambição-a esperança de repouso em minha pátria.


Foi então que, em face destas duas tristezas - a noite que descia dos céus, a solidão que subia do
Foi então que, em face destas duas tristezas — a noite que descia dos céus, a solidão que subia do
oceano, recordei-me de vós, ó meus amigos!
oceano, recordei-me de vós, ó meus amigos!


Linha 28: Linha 29:
nem sequer a lembrança desta alma, que convosco e por vós vivera e sentira, gemera e cantara...
nem sequer a lembrança desta alma, que convosco e por vós vivera e sentira, gemera e cantara...


Ó espíritos errantes sobre a terra! Ó velas enfunadas sobre os mares!.. . Vós bem sabeis quanto
Ó espíritos errantes sobre a terra! Ó velas enfunadas sobre os mares!... Vós bem sabeis quanto
sais efêmeros... -passageiros que vos absorveis no espaço escuro, ou no escuro esquecimento.
sais efêmeros... — passageiros que vos absorveis no espaço escuro, ou no escuro esquecimento.


E quando-comediantes do infinito- vos obumbrais nos bastidores do abismo, o que resta de vós?
E quando-comediantes do infinito— vos obumbrais nos bastidores do abismo, o que resta de vós?


- Uma esteira de espumas... - flores perdidas na vasta indiferença do oceano.- Um punhado de versos... -espumas flutuantes no dorso fero da vida!...
— Uma esteira de espumas... — flores perdidas na vasta indiferença do oceano.— Um punhado de versos... — espumas flutuantes no dorso fero da vida!...


E o que são na verdade estes meus cantos?...
E o que são na verdade estes meus cantos?...


Como as espumas, que nascem do mar e do céu, da vaga e do vento, eles são filhos da musa-este sopro
Como as espumas, que nascem do mar e do céu, da vaga e do vento, eles são filhos da musa-este sopro
do alto: do coração - este pélago da alma.
do alto: do coração — este pélago da alma.


E como as espumas são, às vezes, a flora sombria da tempestade, eles por vezes rebentaram ao estalar
E como as espumas são, às vezes, a flora sombria da tempestade, eles por vezes rebentaram ao estalar
fatídico do látego da desgraça
fatídico do látego da desgraça


E como também o aljofre dourado das espumas reflete as opalas, rutilantes do arco-íris, eles por acaso refletiram o prisma fantástico da ventura ou do entusiasmo- estes signos brilhantes da aliança de Deus com a juventude!
E como também o aljofre dourado das espumas reflete as opalas, rutilantes do arco-íris, eles por acaso refletiram o prisma fantástico da ventura ou do entusiasmo— estes signos brilhantes da aliança de Deus com a juventude!


Mas, como as espumas flutuantes levam, boiando nas solidões marinhas, a lágrima saudosa do marujo...
Mas, como as espumas flutuantes levam, boiando nas solidões marinhas, a lágrima saudosa do marujo...
possam eles, ó meus amigos! -efêmeros filhos de minh'ahna-levar uma lembrança de mim às vossas plagas!
possam eles, ó meus amigos! — efêmeros filhos de minh'ahna-levar uma lembrança de mim às vossas plagas!


{{d|CASTRO ALVES
{{d|CASTRO ALVES

Revisão das 05h24min de 25 de março de 2007

Era por uma dessas tardes em que o azul do céu oriental — é pálido e saudoso, em que o rumor do vento nas vergas — e monótono e cadente, e o quebro da vaga na amurada do navio— e queixoso e tétrico.

Das bandas do ocidente o sol se atufava nos mares como um brigue em chamas..." e daquele vasto incêndio do crepúsculo alastrava-se a cabeça loura das ondas.

Além... os cerros de granito dessa formosa terra de Guanabara, vacilantes, a lutarem com a onda invasora de azul, que descia das alturas... recortavam-se indecisos na penumbra do horizonte.

Longe, inda mais longe... os cimos fantásticos da serra dos Órgãos embebiam-se na distância sumiam-se, abismavam-se numa espécie de naufrágio celeste.

Só e triste, encostado à borda do navio, eu seguia com os olhos aquele esvaecimento indefinido e minha alma apegava-se à forma vacilante das montanhas — derradeiras atalaias dos meus arraiais da mocidade.

E que lá, dessas terras do sul, para onde eu levara o fogo de todos os entusiasmos, o viço de todas as ilusões, os meus vinte anos de seiva e de mocidade, as minhas esperanças de glória e de futuro;... é que dessas terras do sul, onde eu penetrara "como o moço Rafael subindo as escadas do Vaticano";... volvia agora silencioso e alquebrado... trazendo por única ambição-a esperança de repouso em minha pátria.

Foi então que, em face destas duas tristezas — a noite que descia dos céus, a solidão que subia do oceano, recordei-me de vós, ó meus amigos!

E tive pena de lembrar que em breve nada restaria do peregrino na terra hospitaleira, onde vagara; nem sequer a lembrança desta alma, que convosco e por vós vivera e sentira, gemera e cantara...

Ó espíritos errantes sobre a terra! Ó velas enfunadas sobre os mares!... Vós bem sabeis quanto sais efêmeros... — passageiros que vos absorveis no espaço escuro, ou no escuro esquecimento.

E quando-comediantes do infinito— vos obumbrais nos bastidores do abismo, o que resta de vós?

— Uma esteira de espumas... — flores perdidas na vasta indiferença do oceano.— Um punhado de versos... — espumas flutuantes no dorso fero da vida!...

E o que são na verdade estes meus cantos?...

Como as espumas, que nascem do mar e do céu, da vaga e do vento, eles são filhos da musa-este sopro do alto: do coração — este pélago da alma.

E como as espumas são, às vezes, a flora sombria da tempestade, eles por vezes rebentaram ao estalar fatídico do látego da desgraça

E como também o aljofre dourado das espumas reflete as opalas, rutilantes do arco-íris, eles por acaso refletiram o prisma fantástico da ventura ou do entusiasmo— estes signos brilhantes da aliança de Deus com a juventude!

Mas, como as espumas flutuantes levam, boiando nas solidões marinhas, a lágrima saudosa do marujo... possam eles, ó meus amigos! — efêmeros filhos de minh'ahna-levar uma lembrança de mim às vossas plagas!

CASTRO ALVES

Curralinho,

1 de junho de 1870.