Os Lusíadas/X: diferenças entre revisões
Conteúdo apagado Conteúdo adicionado
Sem resumo de edição |
m Bot: Removendo Categoria:Português |
||
Linha 1 567: | Linha 1 567: | ||
*[[Os Lusíadas-Canto Nono |Anterior: Canto Nono]] |
*[[Os Lusíadas-Canto Nono |Anterior: Canto Nono]] |
||
*[[Os Lusiadas | Índice ]] |
*[[Os Lusiadas | Índice ]] |
||
[[category:Português]] |
Revisão das 01h55min de 2 de maio de 2006
Canto Décimo
- 1
- Mas já o claro amador da Larisséia
- Adúltera inclinava os animais
- Lá pera o grande lago que rodeia
- Temistitão, nos fins Ocidentais;
- O grande ardor do Sol Favónio enfreia
- Co sopro que nos tanques naturais
- Encrespa a água serena e despertava
- Os lírios e jasmins, que a calma agrava,
-
- 2
- Quando as fermosas Ninfas, cos amantes
- Pela mão, já conformes e contentes,
- Subiam pera os paços radiantes
- E de metais ornados reluzentes,
- Mandados da Rainha, que abundantes
- Mesas d'altos manjares excelentes
- Lhe tinha aparelhados, que a fraqueza
- Restaurem da cansada natureza.
-
- 3
- Ali, em cadeiras ricas, cristalinas,
- Se assentam dous e dous, amante e dama;
- Noutras, à cabeceira, d'ouro finas,
- Está co a bela Deusa o claro Gama.
- De iguarias suaves e divinas,
- A quem não chega a Egípcia antiga fama ,
- Se acumulam os pratos de fulvo ouro,
- Trazidos lá do Atlântico tesouro.
-
- 4
- Os vinhos odoríferos, que acima
- Estão não só do Itálico Falerno
- Mas da Ambrósia, que Jove tanto estima
- Com todo o ajuntamento sempiterno,
- Nos vasos, onde em vão trabalha a lima,
- Crespas escumas erguem, que no interno
- Coração movem súbita alegria,
- Saltando co a mistura d'água fria.
-
- 5
- Mil práticas alegres se tocavam;
- Risos doces, sutis e argutos ditos,
- Que entre um e outro manjar se ale vantavam,
- Despertando os alegres apetitos;
- Músicos instrumentos não faltavam
- (Quais, no profundo Reino, os nus espritos
- Fizeram descansar da eterna pena)
- Cüa voz düa angélica Sirena.
-
- 6
- Cantava a bela Ninfa, e cos acentos,
- Que pelos altos paços vão soando,
- Em consonância igual, os instumentos
- Suaves vêm a um tempo conformando.
- Um súbito silêncio enfreia os ventos
- E faz ir docemente murmurando
- As águas, e nas casas naturais
- Adormecer os brutos animais.
-
- 7
- Com doce voz está subindo ao Céu
- Altos varões que estão por vir ao mundo,
- Cujas claras Ideias viu Proteu
- Num globo vão, diáfano, rotundo,
- Que Júpiter em dom lho concedeu
- Em sonhos, e despois no Reino fundo,
- Vaticinando, o disse, e na memória
- Recolheu logo a Ninfa a clara história.
-
- 8
- Matéria é de coturno, e não de soco,
- A que a Ninfa aprendeu no imenso lago;
- Qual Iopas não soube, ou Demodoco,
- Entre os Feaces um, outro em Cartago.
- Aqui, minha Calíope, te invoco
- Neste trabalho extremo, por que em pago
- Me tornes do que escrevo, e em vão pretendo,
- O gosto de escrever, que vou perdendo.
-
- 9
- Vão os anos descendo, e já do Estio
- Há pouco que passar até o Outono;
- A Fortuna me faz o engenho frio,
- Do qual já não me jacto nem me abono;
- Os desgostos me vão levando ao rio
- Do negro esquecimento e eterno sono.
- Mas tu me dá que cumpra, ó grão rainha
- Das Musas, co que quero à nação minha!
-
- 10
- Cantava a bela Deusa que viriam
- Do Tejo, pelo mar que o Gama abrira,
- Armadas que as ribeiras venceriam
- Por onde o Oceano Índico suspira;
- E que os Gentios Reis que não dariam
- A cerviz sua ao jugo, o ferro e ira
- Provariam do braço duro e forte,
- Até render-se a ele ou logo à morte.
-
- 11
- Cantava dum que tem nos Malabares
- Do sumo sacerdócio a dignidade,
- Que, só por não quebrar cos singulares
- Barões os nós que dera d'amizade,
- Sofrerá suas cidades e lugares,
- Com ferro, incêndios, ira e crueldade,
- Ver destruir do Samorim potente,
- Que tais ódios terá co a nova gente.
-
- 12
- E canta como lá se embarcaria
- Em Belém o remédio deste dano,
- Sem saber o que em si ao mar traria,
- O grão Pacheco, Aquiles Lusitano.
- O peso sentirão, quando entraria,
- O curvo lenho e o férvido Oceano,
- Quando mais n'água os troncos que gemerem
- Contra sua natureza se meterem.
-
- 13
- Mas, já chegado aos fins Orientais
- E deixado em ajuda do gentio Rei de
- Cochim, com poucos naturais,
- Nos braços do salgado e curvo rio
- Desbaratará os Naires infernais
- No passo Cambalão, tornando frio
- D'espanto o ardor imenso do Oriente,
- Que verá tanto obrar tão pouca gente.
-
- 14
- Chamará o Samorim mais gente nova;
- Virão Reis ===de] Bipur e de Tanor,
- Das serras de Narsinga, que alta prova
- Estarão prometendo a seu senhor;
- Fará que todo o Naire, enfim, se mova
- Que entre Calecu jaz e Cananor,
- D'ambas as Leis imigas pera a guerra:
- Mouros por mar, Gentios pola terra.
-
- 15
- E todos outra vez desbaratando,
- Por terra e mar, o grão Pacheco ousado,
- A grande multidão que irá matando
- A todo o Malabar terá admirado.
- Cometerá outra vez, não dilatando,
- O Gentio os combates, apressado,
- Injuriando os seus, fazendo votos
- Em vão aos Deuses vãos, surdos e imotos.
-
- 16
- Já não defenderá somente os passos,
- Mas queimar-lhe-á lugares, templos, casas;
- Aceso de ira, o Cão, não vendo lassos
- Aqueles que as cidades fazem rasas,
- Fará que os seus, de vida pouco escassos,
- Cometam o Pacheco, que tem asas,
- Por dous passos num tempo; mas voando
- Dum noutro, tudo irá desbaratando.
-
- 17
- Virá ali o Samorim, por que em pessoa
- Veja a batalha e os seus esforce e anime;
- Mas um tiro, que com zunido voa,
- De sangue o tingirá no andor sublime.
- Já não verá remédio ou manha boa
- Nem força que o Pacheco muito estime;
- Inventará traições e vãos venenos,
- Mas sempre (o Céu querendo) fará menos.
-
- 18
- Que tornará a vez sétima (cantava)
- Pelejar co invicto e forte Luso,
- A quem nenhum trabalho pesa e agrava;
- Mas, contudo, este só o fará confuso.
- Trará pera a batalha, horrenda e brava,
- Máquinas de madeiros fora de uso,
- Pera lhe abalroar as caravelas,
- Que até'li vão lhe fora cometê-las.
-
- 19
- Pela água levará serras de fogo
- Pera abrasar-lhe quanta armada tenha;
- Mas a militar arte e engenho logo
- Fará ser vã a braveza com que venha.
- - "Nenhum claro barão no Márcio jogo,
- Que nas asas da Fama se sustenha,
- Chega a este, que a palma a todos toma.
- E perdoe-me a ilustre Grécia ou Roma.
-
- 20
- "Porque tantas batalhas, sustentadas
- Com muito pouco mais de cem soldados,
- Com tantas manhas e artes inventadas,
- Tantos Cães não imbeles profligados,
- Ou parecerão fábulas sonhadas,
- Ou que os celestes Coros, invocados,
- Decerão a ajudá-lo e lhe darão
- Esforço, força, ardil e coração.
-
- 21
- "Aquele que nos campos Maratónios
- O grão poder de Dário estrui e rende,
- Ou quem, com quatro mil Lacedemónios,
- O passo de Termópilas defende,
- Nem o mancebo Cocles dos Ausónios,
- Que com todo o poder Tusco contende
- Em defensa da ponte, ou Quinto Fábio,
- Foi como este na guerra forte e sábio."
-
- 22
- Mas neste passo a Ninfa, o som canoro
- Abaxando, fez ronco e entristecido,
- Cantando em baxa voz, envolta em choro,
- O grande esforço mal agardecido.
- - "Ó Belisário (disse) que no coro
- Das Musas serás sempre engrandecido,
- Se em ti viste abatido o bravo Marte,
- Aqui tens com quem podes consolar-te!
-
- 23
- "Aqui tens companheiro, assi nos feitos
- Como no galardão injusto e duro;
- Em ti e nele veremos altos peitos
- A baxo estado vir, humilde e escuro.
- Morrer nos hospitais, em pobres leitos,
- Os que ao Rei e à Lei servem de muro!
- Isto fazem os Reis cuja vontade
- Manda mais que a justiça e que a verdade.
-
- 24
- "Isto fazem os Reis quando embebidos
- Nüa aparência branda que os contenta
- Dão os prémios, de Aiace merecidos,
- À língua vã de Ulisses, fraudulenta.
- Mas vingo-me: que os bens mal repartidos
- Por quem só doces sombras apresenta,
- Se não os dão a sábios cavaleiros,
- Dão-os logo a avarentos lisonjeiros.
-
- 25
- "Mas tu, de quem ficou tão mal pagado
- Um tal vassalo, ó Rei, só nisto inico,
- Se não és pera dar-lhe honroso estado,
- É ele pera dar-te um Reino rico.
- Enquanto for o mundo rodeado
- Dos Apolíneos raios, eu te fico
- Que ele seja entre a gente ilustre e claro,
- E tu nisto culpado por avaro.
-
- 26
- "Mas eis outro (cantava) intitulado
- Vem com nome real e traz consigo
- O filho, que no mar será ilustrado,
- Tanto como qualquer Romano antigo.
- Ambos darão com braço forte, armado,
- A Quíloa fértil, áspero castigo,
- Fazendo nela Rei leal e humano,
- Deitado fora o pérfido tirano.
-
- 27
- "Também farão Mombaça, que se arreia
- De casas sumptuosas e edifícios,
- Co ferro e fogo seu queimada e feia,
- Em pago dos passados malefícios.
- Despois, na costa da Índia, andando cheia
- De lenhos inimigos e artifícios
- Contra os Lusos, com velas e com remos
- O mancebo Lourenço fará extremos.
-
- 28
- "Das grandes naus do Samorim potente,
- Que encherão todo o mar, co a férrea pela,
- Que sai com trovão do cobre ardente,
- Fará pedaços leme, masto, vela.
- Despois, lançando arpéus ousadamente
- Na capitaina imiga, dentro nela
- Saltando o fará só com lança e espada
- De quatrocentos Mouros despejada.
-
- 29
- "Mas de Deus a escondida providência
- (Que ela só sabe o bem de que se serve)
- O porá onde esforço nem prudência
- Poderá haver que a vida lhe reserve.
- Em Chaúl, onde em sangue e resistência
- O mar todo com fogo e ferro ferve,
- Lhe farão que com vida se não saia
- As armadas de Egipto e de Cambaia.
-
- 30
- "Ali o poder de muitos inimigos
- (Que o grande esforço só com força rende),
- Os ventos que faltaram, e os perigos
- Do mar, que sobejaram, tudo o ofende.
- Aqui ressurjam todos os Antigos,
- A ver o nobre ardor que aqui se aprende:
- Outro Ceva verão, que, espedaçado,
- Não sabe ser rendido nem domado.
-
- 31
- "Com toda üa coxa fora, que em pedaços
- Lhe leva um cego tiro que passara,
- Se serve inda dos animosos braços
- E do grão coração que lhe ficara.
- Até que outro pelouro quebra os laços
- Com que co alma o corpo se liara:
- Ela, solta, voou da prisão fora
- Onde súbito se acha vencedora.
-
- 32
- "Vai-te, alma, em paz, da guerra turbulenta,
- Na qual tu mereceste paz serena!
- Que o corpo, que em pedaços se apresenta,
- Quem o gerou, vingança já lhe ordena:
- Que eu ouço retumbar a grão tormenta,
- Que vem já dar a dura e eterna pena,
- De esperas, basiliscos e trabucos,
- A Cambaicos cruéis e Mamelucos.
-
- 33
- "Eis vem o pai, com ânimo estupendo,
- Trazendo fúria e mágoa por antolhos,
- Com que o paterno amor lhe está movendo
- Fogo no coração, água nos olhos.
- A nobre ira lhe vinha prometendo
- Que o sangue fará dar pelos giolhos
- Nas inimigas naus; senti-lo-á o Nilo,
- Podê-lo-á o Indo ver e o Gange ouvi-lo.
-
- 34
- "Qual o touro cioso, que se ensaia
- Pera a crua peleja, os cornos tenta
- No tronco dum carvalho ou alta faia
- E, o ar ferindo, as forças experimenta:
- Tal, antes que no seio de Cambaia
- Entre Francisco irado, na opulenta
- Cidade de Dabul a espada afia,
- Abaxando-lhe a túmida ousadia.
-
- 35
- "E logo, entrando fero na enseada
- De Dio, ilustre em cercos e batalhas,
- Fará espalhar a fraca e grande armada
- De Calecu, que remos tem por malhas.
- A de Melique Iaz, acautelada,
- Cos pelouros que tu, Vulcano, espalhas,
- Fará ir ver o frio e fundo assento,
- Secreto leito do húmido elemento.
-
- 36
- "Mas a de Mir Hocém, que, abalroando,
- A fúria esperará dos vingadores,
- Verá braços e pernas ir nadando
- Sem corpos, pelo mar, de seus senhores.
- Raios de fogo irão representando,
- No cego ardor, os bravos domadores.
- Quanto ali sentirão olhos e ouvidos
- É fumo, ferro, flamas e alaridos.
-
- 37
- "Mas ah, que desta próspera vitória,
- Com que despois virá ao pátrio Tejo,
- Quási lhe roubará a famosa glória
- Um sucesso, que triste e negro vejo!
- O Cabo Tormentório, que a memória
- Cos ossos guardará, não terá pejo
- De tirar deste mundo aquele esprito,
- Que não tiraram toda a Índia e Egipto.
-
- 38
- "Ali, Cafres selvagens poderão
- O que destros imigos não puderam;
- E rudos paus tostados sós farão
- O que arcos e pelouros não fizeram.
- Ocultos os juízos de Deus são;
- As gentes vãs, que não nos entenderam,
- Chamam-lhe fado mau, fortuna escura,
- Sendo só providência de Deus pura.
-
- 39
- "Mas oh, que luz tamanha que abrir sinto
- (Dizia a Ninfa, e a voz alevantava)
- Lá no mar de Melinde, em sangue tinto
- Das cidades de Lamo, de Oja e Brava,
- Pelo Cunha também, que nunca extinto
- Será seu nome em todo o mar que lava
- As ilhas do Austro, e praias que se chamam
- De São Lourenço, e em todo o Sul se afamam!
-
- 40
- "Esta luz é do fogo e das luzentes
- Armas com que Albuquerque irá amansando
- De Ormuz os Párseos, por seu mal valentes,
- Que refusam o jugo honroso e brando.
- Ali verão as setas estridentes
- Reciprocar-se, a ponta no ar virando
- Contra quem as tirou; que Deus peleja
- Por quem estende a fé da Madre Igreja.
-
- 41
- "Ali do sal os montes não defendem
- De corrupção os corpos no combate,
- Que mortos pela praia e mar se estendem
- De Gerum, de Mazcate e Calaiate;
- Até que à força só de braço aprendem
- A abaxar a cerviz, onde se lhe ate
- Obrigação de dar o reino inico
- Das perlas de Barém tributo rico.
-
- 42
- "Que gloriosas palmas tecer vejo
- Com que Vitória a fronte lhe coroa,
- Quando, sem sombra vã de medo ou pejo,
- Toma a ilha ilustríssima de Goa!
- Despois, obedecendo ao duro ensejo,
- A deixa, e ocasião espera boa
- Com que a torne a tomar, que esforço e arte
- Vencerão a Fortuna e o próprio Marte.
-
- 43
- "Eis já sobr'ela torna e vai rompendo
- Por muros, fogo, lanças e pelouros,
- Abrindo com a espada o espesso e horrendo
- Esquadrão de Gentios e de Mouros.
- Irão soldados ínclitos fazendo
- Mais que liões famélicos e touros,
- Na luz que sempre celebrada e dina
- Será da Egípcia Santa Caterina.
-
- 44
- "Nem tu menos fugir poderás deste,
- Posto que rica e posto que assentada
- Lá no grémio da Aurora, onde naceste,
- Opulenta Malaca nomeada.
- As setas venenosas que fizeste,
- Os crises com que já te vejo armada,
- Malaios namorados, Jaus valentes,
- Todos farás ao Luso obedientes."
-
- 45
- Mais estanças cantara esta Sirena
- Em louvor do ilustríssimo Albuquerque,
- Mas alembrou-lhe üa ira que o condena,
- Posto que a fama sua o mundo cerque.
- O grande Capitão, que o fado ordena
- Que com trabalhos glória eterna merque,
- Mais há-de ser um brando companheiro
- Pera os seus, que juiz cruel e inteiro.
-
- 46
- Mas em tempo que fomes e asperezas,
- Doenças, frechas e trovões ardentes,
- A sazão e o lugar, fazem cruezas
- Nos soldados a tudo obedientes,
- Parece de selváticas brutezas,
- De peitos inumanos e insolentes,
- Dar extremo suplício pela culpa
- Que a fraca humanidade e Amor desculpa.
-
- 47
- Não será a culpa abominoso incesto
- Nem violento estupro em virgem pura,
- Nem menos adultério desonesto,
- Mas cüa escrava vil, lasciva e escura.
- Se o peito, ou de cioso, ou de modesto,
- Ou de usado a crueza fera e dura,
- Cos seus üa ira insana não refreia,
- Põe na fama alva noda negra e feia.
-
- 48
- Viu Alexandre Apeles namorado
- Da sua Campaspe, e deu-lha alegremente,
- Não sendo seu soldado exprimentado,
- Nem vendo-se num cerco duro e urgente.
- Sentiu Ciro que andava já abrasado
- Araspas, de Panteia, em fogo ardente,
- Que ele tomara em guarda, e prometia
- Que nenhum mau desejo o venceria;
-
- 49
- Mas, vendo o ilustre Persa que vencido
- Fora de Amor, que, enfim, não tem defensa,
- Levemente o perdoa, e foi servido
- Dele num caso grande, em recompensa.
- Per força, de Judita foi marido
- O férreo Balduíno; mas dispensa
- Carlos, pai dela, posto em causas grandes,
- Que viva e povoador seja de Frandes.
-
- 50
- Mas, prosseguindo a Ninfa o longo canto,
- De Soares cantava, que as bandeiras
- Faria tremular e pôr espanto
- Pelas roxas Arábicas ribeiras:
- - "Medina abominábil teme tanto,
- Quanto Meca e Gidá, co as derradeiras
- Praias de Abássia; Barborá se teme
- Do mal de que o empório Zeila geme.
-
- 51
- "A nobre ilha também de Taprobana,
- Já pelo nome antigo tão famosa
- Quanto agora soberba e soberana
- Pela cortiça cálida, cheirosa,
- Dela dará tributo à Lusitana
- Bandeira, quando, excelsa e gloriosa,
- Vencendo se erguerá na torre erguida,
- Em Columbo, dos próprios tão temida.
-
- 52
- "Também Sequeira, as ondas Eritreias
- Dividindo, abrirá novo caminho
- Pera ti, grande Império, que te arreias
- De seres de Candace e Sabá ninho.
- Maçuá, com cisternas de água cheias
- Verá, e o porto Arquico, ali vizinho;
- E fará descobir remotas Ilhas,
- Que dão ao mundo novas maravilhas.
-
- 53
- "Virá despois Meneses, cujo ferro
- Mais na Africa, que cá, terá provado;
- Castigará de Ormuz soberba o erro,
- Com lhe fazer tributo dar dobrado.
- Também tu, Gama, em pago do desterro
- Em que estás e serás inda tornado,
- Cos títulos de Conde e d'honras nobres
- Virás mandar a terra que descobres.
-
- 54
- "Mas aquela fatal necessidade
- De quem ninguém se exime dos humanos,
- Ilustrado co a Régia dignidade,
- Te tirará do mundo e seus enganos.
- Outro Meneses logo, cuja idade
- É maior na prudência que nos anos,
- Governará; e fará o ditoso Henrique
- Que perpétua memória dele fique.
-
- 55
- "Não vencerá somente os Malabares,
- Destruindo Panane com Coulete,
- Cometendo as bombardas, que, nos ares,
- Se vingam só do peito que as comete;
- Mas com virtudes, certo, singulares,
- Vence os imigos d'alma todos sete;
- De cobiça triunfa e incontinência,
- Que em tal idade é suma de excelência.
-
- 56
- "Mas, despois que as Estrelas o chamarem,
- Sucederás, ó forte Mascarenhas;
- E, se injustos o mando te tomarem,
- Prometo-te que fama eterna tenhas.
- Pera teus inimigos confessarem
- Teu valor alto, o fado quer que venhas
- A mandar, mais de palmas coroado,
- Que de fortuna justa acompanhado.
-
- 57
- "No reino de Bintão, que tantos danos
- Terá a Malaca muito tempo feitos,
- Num só dia as injúrias de mil anos
- Vingarás, co valor de ilustres peitos.
- Trabalhos e perigos inumanos,
- Abrolhos férreos mil, passos estreitos,
- Tranqueiras, baluartes, lanças, setas:
- Tudo fico que rompas e sometas.
-
- 58
- "Mas na Índia, cobiça e ambição,
- Que claramente põem aberto o rosto
- Contra Deus e Justiça, te farão
- Vitupério nenhum, mas só desgosto.
- Quem faz injúria vil e sem razão,
- Com forças e poder em que está posto,
- Não vence; que a vitória verdadeira
- É saber ter justiça nua e inteira.
-
- 59
- "Mas, contudo, não nego que Sampaio
- Será, no esforço, ilustre e assinalado,
- Mostrando-se no mar um fero raio,
- Que de inimigos mil verá coalhado.
- Em Bacanor fará cruel ensaio
- No Malabar, pera que, amedrontado,
- Despois a ser vencido dele venha
- Cutiale, com quanta armada tenha.
-
- 60
- "E não menos de Dio a fera frota,
- Que Chaúl temerá, de grande e ousada,
- Fará, co a vista só, perdida e rota,
- Por Heitor da Silveira e destroçada;
- Por Heitor Português, de quem se nota
- Que na costa Cambaica, sempre armada,
- Será aos Guzarates tanto dano,
- Quanto já foi aos Gregos o Troiano.
-
- 61
- "A Sampaio feroz sucederá
- Cunha, que longo tempo tem o leme:
- De Chale as torres altas erguerá,
- Enquanto Dio ilustre dele treme;
- O forte Baçaim se lhe dará,
- Não sem sangue, porém, que nele geme
- Melique, porque à força só de espada
- A tranqueira soberba vê tomada.
-
- 62
- "Trás este vem Noronha, cujo auspício
- De Dio os Rumes feros afugenta;
- Dio, que o peito e bélico exercício
- De António da Silveira bem sustenta.
- Fará em Noronha a morte o usado ofício,
- Quando um teu ramo, ó Gama, se exprimenta
- No governo do Império, cujo zelo
- Com medo o Roxo Mar fará amarelo.
-
- 63
- "Das mãos do teu Estêvão vem tomar
- As rédeas um, que já será ilustrado
- No Brasil, com vencer e castigar
- O pirata Francês, ao mar usado.
- Despois, Capitão-mor do Índico mar,
- O muro de Damão, soberbo e armado,
- Escala e primeiro entra a porta aberta,
- Que fogo e frechas mil terão coberta.
-
- 64
- "A este o Rei Cambaico soberbíssimo
- Fortaleza dará na rica Dio,
- Por que contra o Mogor poderosíssimo
- Lhe ajude a defender o senhorio.
- Despois irá com peito esforçadíssimo
- A tolher que não passe o Rei gentio
- De Calecu, que assi com quantos veio
- O fará retirar, de sangue cheio.
-
- 65
- "Destruirá a cidade Repelim,
- Pondo o seu Rei, com muitos, em fugida;
- E despois, junto ao Cabo Comorim,
- üa façanha faz esclarecida:
- A frota principal do Samorim,
- Que destruir o mundo não duvida,
- Vencerá co furor do ferro e fogo;
- Em si verá Beadala o Márcio jogo.
-
- 66
- "Tendo assi limpa a Índia dos imigos,
- Virá despois com ceptro a governá-Ia
- Sem que ache resistência nem perigos,
- Que todos tremem dele e nenhum fala.
- Só quis provar os ásperos castigos
- Baticalá, que vira já Beadala.
- De sangue e corpos mortos ficou cheia
- E de fogo e trovões desfeita e feia.
-
- 67
- "Este será Martinho, que de Marte
- O nome tem co as obras derivado;
- Tanto em armas ilustre em toda parte,
- Quanto, em conselho, sábio e bem cuidado.
- Suceder-lhe-á ali Castro, que o estandarte
- Português terá sempre levantado,
- Conforme sucessor ao sucedido,
- Que um ergue Dio, outro o defende erguido.
-
- 68
- "Persas feroces, Abassis e Rumes,
- Que trazido de Roma o nome têm,
- Vários de gestos, vários de costumes
- (Que mil nações ao cerco feras vêm),
- Farão dos Céus ao mundo vãos queixumes
- Porque uns poucos a terra lhe detêm.
- Em sangue Português, juram, descridos,
- De banhar os bigodes retorcidos.
-
- 69
- "Basiliscos medonhos e liões,
- Trabucos feros, minas encobertas,
- Sustenta Mascarenhas cos barões
- Que tão ledos as mortes têm por certas;
- Até que, nas maiores opressões,
- Castro libertador, fazendo ofertas
- Das vidas de seus filhos, quer que fiquem
- Com fama eterna e a Deus se sacrifiquem.
-
- 70
- "Fernando, um deles, ramo da alta pranta,
- Onde o violento fogo, com ruido,
- Em pedaços os muros no ar levanta,
- Será ali arrebatado e ao Céu subido.
- Álvaro, quando o Inverno o mundo espanta
- E tem o caminho húmido impedido,
- Abrindo-o, vence as ondas e os perigos,
- Os ventos e despois os inimigos.
-
- 71
- "Eis vem despois o pai, que as ondas corta
- Co restante da gente Lusitana,
- E com força e saber, que mais importa,
- Batalha dá felice e soberana.
- Uns, paredes subindo, escusam porta;
- Outros a abrem na fera esquadra insana.
- Feitos farão tão dinos de memória
- Que não caibam em verso ou larga história.
-
- 72
- "Este, despois, em campo se apresenta,
- Vencedor forte e intrépido, ao possante
- Rei de Cambaia e a vista lhe amedrenta
- Da fera multidão quadrupedante.
- Não menos suas terras mal sustenta
- O Hidalcão, do braço triunfante
- Que castigando vai Dabul na costa;
- Nem lhe escapou Pondá, no sertão posta.
-
- 73
- "Estes e outros Barões, por várias partes,
- Dinos todos de fama e maravilha,
- Fazendo-se na terra bravos Martes,
- Virão lograr os gostos desta Ilha,
- Varrendo triunfantes estandartes
- Pelas ondas que corta a aguda quilha;
- E acharão estas Ninfas e estas mesas,
- Que glórias e honras são de árduas empresas."
-
- 74
- Assi cantava a Ninfa; e as outras todas,
- Com sonoroso aplauso, vozes davam,
- Com que festejam as alegres vodas
- Que com tanto prazer se celebravam.
- - "Por mais que da Fortuna andem as rodas
- (Nüa cônsona voz todas soavam),
- Não vos hão-de faltar, gente famosa,
- Honra, valor e fama gloriosa."
-
- 75
- Despois que a corporal necessidade
- Se satisfez do mantimento nobre,
- E na harmonia e doce suavidade
- Viram os altos feitos que descobre,
- Tétis, de graça ornada e gravidade,
- Pera que com mais alta glória dobre
- As festas deste alegre e claro dia,
- Pera o felice Gama assi dizia:
-
- 76
- - "Faz-te mercê, barão, a Sapiência
- Suprema de, cos olhos corporais,
- Veres o que não pode a vã ciência
- Dos errados e míseros mortais.
- Sigue-me firme e forte, com prudência,
- Por este monte espesso, tu cos mais."
- Assi lhe diz e o guia por um mato
- Árduo, difícil, duro a humano trato.
-
- 77
- Não andam muito que no erguido cume
- Se acharam, onde um campo se esmaltava
- De esmeraldas, rubis, tais que presume
- A vista que divino chão pisava.
- Aqui um globo vêm no ar, que o lume
- Claríssimo por ele penetrava,
- De modo que o seu centro está evidente,
- Como a sua superfícia, claramente.
-
- 78
- Qual a matéria seja não se enxerga,
- Mas enxerga-se bem que está composto
- De vários orbes, que a Divina verga
- Compôs, e um centro a todos só tem posto.
- Volvendo, ora se abaxe, agora se erga,
- Nunca s'ergue ou se abaxa, e um mesmo rosto
- Por toda a parte tem; e em toda a parte
- Começa e acaba, enfim, por divina arte,
-
- 79
- Uniforme, perfeito, em si sustido,
- Qual, enfim, o Arquetipo que o criou.
- Vendo o Gama este globo, comovido
- De espanto e de desejo ali ficou.
- Diz-lhe a Deusa: - "O transunto, reduzido
- Em pequeno volume, aqui te dou
- Do Mundo aos olhos teus, pera que vejas
- Por onde vás e irás e o que desejas.
-
- 80
- "Vês aqui a grande máquina do Mundo,
- Etérea e elemental, que fabricada
- Assi foi do Saber, alto e profundo,
- Que é sem princípio e meta limitada.
- Quem cerca em derredor este rotundo
- Globo e sua superfícia tão limada,
- É Deus: mas o que é Deus, ninguém o entende,
- Que a tanto o engenho humano não se estende.
-
- 81
- "Este orbe que, primeiro, vai cercando
- Os outros mais pequenos que em si tem,
- Que está com luz tão clara radiando
- Que a vista cega e a mente vil também,
- Empíreo se nomeia, onde logrando
- Puras almas estão daquele Bem
- Tamanho, que ele só se entende e alcança,
- De quem não há no mundo semelhança.
-
- 82
- "Aqui, só verdadeiros, gloriosos
- Divos estão, porque eu, Saturno e Jano,
- Júpiter, Juno, fomos fabulosos,
- Fingidos de mortal e cego engano.
- Só pera fazer versos deleitosos
- Servimos; e, se mais o trato humano
- Nos pode dar, é só que o nome nosso
- Nestas estrelas pôs o engenho vosso.
-
- 83
- "E também, porque a santa Providência,
- Que em Júpiter aqui se representa,
- Por espíritos mil que têm prudência
- Governa o Mundo todo que sustenta
- (Ensina-lo a profética ciência,
- Em muitos dos exemplos que apresenta);
- Os que são bons, guiando, favorecem,
- Os maus, em quanto podem, nos empecem;
-
- 84
- "Quer logo aqui a pintura que varia
- Agora deleitando, ora ensinando,
- Dar-lhe nomes que a antiga Poesia
- A seus Deuses já dera, fabulando;
- Que os Anjos de celeste companhia
- Deuses o sacro verso está chamando,
- Nem nega que esse nome preminente
- Também aos maus se dá, mas falsamente.
-
- 85
- "Enfim que o Sumo Deus, que por segundas
- Causas obra no Mundo, tudo manda.
- E tornando a contar-te das profundas
- Obras da Mão Divina veneranda,
- Debaxo deste círculo onde as mundas
- Almas divinas gozam, que não anda,
- Outro corre, tão leve e tão ligeiro
- Que não se enxerga: é o Móbile primeiro.
-
- 86
- "Com este rapto e grande movimento
- Vão todos os que dentro tem no seio;
- Por obra deste, o Sol, andando a tento,
- O dia e noite faz, com curso alheio.
- Debaxo deste leve, anda outro lento,
- Tão lento e sojugado a duro freio,
- Que enquanto Febo, de luz nunca escasso,
- Duzentos cursos faz, dá ele um passo.
-
- 87
- "Olha estoutro debaxo, que esmaltado
- De corpos lisos anda e radiantes,
- Que também nele tem curso ordenado
- E nos seus axes correm cintilantes.
- Bem vês como se veste e faz ornado
- Co largo Cinto d, ouro, que estelantes
- Animais doze traz afigurados,
- Apousentos de Febo limitados.
-
- 88
- "Olha por outras partes a pintura
- Que as Estrelas fulgentes vão fazendo:
- Olha a Carreta, atenta a Cinosura,
- Andrómeda e seu pai, e o Drago horrendo;
- Vê de Cassiopeia a fermosura
- E do Orionte o gesto turbulento;
- Olha o Cisne morrendo que suspira,
- A Lebre e os Cães, a Nau e a doce Lira.
-
- 89
- "Debaxo deste grande Firmamento,
- Vês o céu de Saturno, Deus antigo;
- Júpiter logo faz o movimento,
- E Marte abaxo, bélico inimigo;
- O claro Olho do céu, no quarto assento,
- E Vénus, que os amores traz consigo;
- Mercúrio, de eloquência soberana;
- Com três rostos, debaxo vai Diana.
-
- 90
- "Em todos estes orbes, diferente
- Curso verás, nuns grave e noutros leve;
- Ora fogem do Centro longamente,
- Ora da Terra estão caminho breve,
- Bem como quis o Padre omnipotente,
- Que o fogo fez e o ar, o vento e neve,
- Os quais verás que jazem mais a dentro
- E tem co Mar a Terra por seu centro.
-
- 91
- "Neste centro, pousada dos humanos,
- Que não somente, ousados, se contentam
- De sofrerem da terra firme os danos,
- Mas inda o mar instábil exprimentam,
- Verás as várias partes, que os insanos
- Mares dividem, onde se apousentam
- Várias nações que mandam vários Reis,
- Vários costumes seus e várias leis.
-
- 92
- "Vês Europa Cristã, mais alta e clara
- Que as outras em polícia e fortaleza.
- Vês África, dos bens do mundo avara,
- Inculta e toda cheia de bruteza;
- Co Cabo que até'aqui se vos negara,
- Que assentou pera o Austro a Natureza.
- Olha essa terra toda, que se habita
- Dessa gente sem Lei, quási infinita.
-
- 93
- "Vê do Benomotapa o grande império,
- De selvática gente, negra e nua,
- Onde Gonçalo morte e vitupério
- Padecerá, pola Fé santa sua.
- Nace por este incógnito Hemispério
- O metal por que mais a gente sua.
- Vê que do lago donde se derrama
- O Nilo, também vindo está Cuama.
-
- 94
- "Olha as casas dos negros, como estão
- Sem portas, confiados, em seus ninhos,
- Na justiça real e defensão
- E na fidelidade dos vizinhos;
- Olha deles a bruta multidão,
- Qual bando espesso e negro de estorninhos,
- Combaterá em Sofala a fortaleza, Que
- defenderá Nhaia com destreza.
-
- 95
- "Olha lá as alagoas donde o Nilo
- Nace, que não souberam os antigos;
- Vê-lo rega, gerando o crocodilo,
- Os povos Abassis, de Crista amigos;
- Olha como sem muros (novo estilo)
- Se defendem milhor dos inimigos;
- Vê Méroe, que ilha foi de antiga fama,
- Que ora dos naturais Nobá se chama.
-
- 96
- "Nesta remota terra um filho teu
- Nas armas contra os Turcos será claro;
- Há-de ser Dom Cristóvão o nome seu;
- Mas contra o fim fatal não há reparo.
- Vê cá a costa do mar, onde te deu
- Melinde hospício gasalhoso e caro;
- O Rapto rio nota, que o romance
- Da terra chama Obi; entra em Quilmance.
-
- 97
- "O Cabo vê já Arómata chamado,
- E agora Guardafú, dos moradores,
- Onde começa a boca do afamado
- Mar Roxo, que do fundo toma as cores;
- Este como limite está lançado
- Que divide Asia de Africa; e as milhores
- Povoações que a parte Africa tem
- Maçuá são, Arquico e Suaquém.
-
- 98
- "Vês o extremo Suez, que antigamente
- Dizem que foi dos Héroas a cidade
- (Outros dizem que Arsínoe), e ao presente
- Tem das frotas do Egipto a potestade.
- Olha as águas nas quais abriu patente
- Estrada o grão Mousés na antiga idade.
- Ásia começa aqui, que se apresenta
- Em terras grande, em reinos opulenta.
-
- 99
- "Olha o monte Sinai, que se ennobrece
- Co sepulcro de Santa Caterina;
- Olha Toro e Gidá, que lhe falece
- Água das fontes, doce e cristalina;
- Olha as portas do Estreito, que fenece
- No reino da seca Ádem, que confina
- Com a serra d'Arzira, pedra viva,
- Onde chuva dos céus se não deriva.
-
- 100
- "Olha as Arábias três, que tanta terra
- Tomam, todas da gente vaga e baça,
- Donde vêm os cavalos pera a guerra,
- Ligeiros e feroces, de alta raça;
- Olha a costa que corrre, até que cera
- Outro Estreito de Pérsia, e faz a traça
- O Cabo que co nome se apelida
- Da cidade Fartaque, ali sabida.
-
- 101
- "Olha Dófar, insigne porque manda
- O mais cheiroso incenso pera as aras;
- Mas atenta: já cá destoutra banda
- De Roçalgate, e praias sempre avaras,
- Começa o reino Ormuz, que todo se anda
- Pelas ribeiras que inda serão claras
- Quando as galés do Turco e fera armada
- Virem de Castelbranco nua a espada.
-
- 102
- "Olha o Cabo Asaboro, que chamado
- Agora é Moçandão, dos navegantes;
- Por aqui entra o lago que é fechado
- De Arábia e Pérsias terras abundantes.
- Atenta a ilha Barém, que o fundo ornado
- Tem das suas perlas ricas, e imitantes
- A cor da Aurora; e vê na água salgada
- Ter o Tígris e Eufrates üa entrada.
-
- 103
- "Olha da grande Pérsia o império nobre,
- Sempre posto no campo e nos cavalos,
- Que se injuria de usar fundido cobre
- E de não ter das armas sempre os calos.
- Mas vê a ilha Gerum, como descobre
- O que fazem do tempo os intervalos,
- Que da cidade Armuza, que ali esteve,
- Ela o nome despois e a glória teve.
-
- 104
- "Aqui de Dom Filipe de Meneses
- Se mostrará a virtude, em armas clara,
- Quando, com muito poucos Portugueses,
- Os muitos Párseos vencerá de Lara.
- Virão provar os golpes e reveses
- De Dom Pedro de Sousa, que provara
- Já seu braço em Ampaza, que deixada
- Terá por terra, à força só de espada.
-
- 105
- "Mas deixemos o Estreito e o conhecido
- Cabo de Jasque, dito já Carpela,
- Com todo o seu terreno mal querido
- Da Natura e dos dões usados dela;
- Carmânia teve já por apelido.
- Mas vês o fermoso Indo, que daquela
- Altura nace, junto à qual, também
- Doutra altura correndo o Gange vem?
-
- 106
- "Olha a terra de Ulcinde, fertilíssima,
- E de Jáquete a íntima enseada;
- Do mar a enchente súbita, grandíssima,
- E a vazante, que foge apressurada.
- A terra de Cambaia vê, riquíssima,
- Onde do mar o seio faz entrada;
- Cidades outras mil, que vou passando,
- A vós outros aqui se estão guardando.
-
- 107
- "Vês corre a costa célebre Indiana
- Pera o Sul, até o Cabo Comori,
- Já chamado Cori, que Taprobana
- (Que ora é Ceilão) defronte tem de si.
- Por este mar a gente Lusitana,
- Que com armas virá despois de ti,
- Terá vitórias, terras e cidades,
- Nas quais hão-de viver muitas idades.
-
- 108
- "As províncias que entre um e o outro rio
- Vês, com várias nações, são infinitas:
- Um reino Mahometa, outro Gentio,
- A quem tem o Demónio leis escritas.
- Olha que de Narsinga o senhorio
- Tem as relíquias santas e benditas
- Do corpo de Tomé, barão sagrado,
- Que a Jesu Cristo teve a mão no lado.
-
- 109
- "Aqui a cidade foi que se chamava
- Meliapor, fermosa, grande e rica;
- Os Ídolos antigos adorava
- Como inda agora faz a gente inica.
- Longe do mar naquele tempo estava,
- Quando a Fé, que no mundo se pubrica,
- Tomé vinha prègando, e já passara
- Províncias mil do mundo, que ensinara.
-
- 110
- "Chegado aqui, pregando e junto dando
- A doentes saúde, a mortos vida,
- Acaso traz um dia o mar, vagando,
- Um lenho de grandeza desmedida.
- Deseja o Rei, que andava edificando,
- Fazer dele madeira; e não duvida
- Poder tirá-lo a terra, com possantes
- Forças d' homens, de engenhos, de alifantes.
-
- 111
- "Era tão grande o peso do madeiro
- Que, só pera abalar-se, nada abasta;
- Mas o núncio de Cristo verdadeiro
- Menos trabalho em tal negócio gasta:
- Ata o cordão que traz, por derradeiro,
- No tronco, e fàcilmente o leva e arrasta
- Pera onde faça um sumptuoso templo
- Que ficasse aos futuros por exemplo.
-
- 112
- "Sabia bem que se com fé formada
- Mandar a um monte surdo que se mova,
- Que obedecerá logo à voz sagrada,
- Que assi lho ensinou Cristo, e ele o prova.
- A gente ficou disto alvoraçada;
- Os Brâmenes o têm por cousa nova;
- Vendo os milagres, vendo a santidade,
- Hão medo de perder autoridade.
-
- 113
- "São estes sacerdotes dos Gentios
- Em quem mais penetrado tinha enveja;
- Buscam maneiras mil, buscam desvios,
- Com que Tomé não se ouça, ou morto seja.
- O principal, que ao peito traz os fios,
- Um caso horrendo faz, que o mundo veja
- Que inimiga não há, tão dura e fera,
- Como a virtude falsa, da sincera.
-
- 114
- "Um filho próprio mata, e logo acusa
- De homicídio Tomé, que era inocente;
- Dá falsas testemunhas, como se usa;
- Condenaram-no a morte brevemente.
- O Santo, que não vê milhor escusa
- Que apelar pera o Padre omnipotente,
- Quer, diante do Rei e dos senhores,
- Que se faça um milagre dos maiores.
-
- 115
- "O corpo morto manda ser trazido,
- Que res===s]ucite e seja perguntado
- Quem foi seu matador, e será crido
- Por testemunho, o seu, mais aprovado.
- Viram todos o moço vivo, erguido,
- Em nome de Jesu crucificado:
- Dá graças a Tomé, que lhe deu vida,
- E descobre seu pai ser homicida.
-
- 116
- "Este milagre fez tamanho espanto
- Que o Rei se banha logo na água santa,
- E muitos após ele; um beija o manto,
- Outro louvor do Deus de Tomé canta.
- Os Brâmenes se encheram de ódio tanto,
- Com seu veneno os morde enveja tanta,
- Que, persuadindo a isso o povo rudo,
- Determinam matá-lo, em fim de tudo.
-
- 117
- "Um dia que pregando ao povo estava,
- Fingiram entre a gente um arruído.
- (Já Cristo neste tempo lhe ordenava
- Que, padecendo, fosse ao Céu subido);
- A multidão das pedras que voava
- No Santo dá, já a tudo oferecido;
- Um dos maus, por fartar-se mais depressa,
- Com crua lança o peito lhe atravessa.
-
- 118
- "Choraram-te, Tomé, o Gange e o Indo;
- Chorou-te toda a terra que pisaste;
- Mais te choram as almas que vestindo
- Se iam da santa Fé que lhe ensinaste.
- Mas os Anjos do Céu, cantando e rindo,
- Te recebem na glória que ganhaste.
- Pedimos-te que a Deus ajuda peças
- Com que os teus Lusitanos favoreças.
-
- 119
- "E vós outros que os nomes usurpais
- De mandados de Deus, como Tomé,
- Dizei: se sois mandados, como estais
- Sem irdes a pregar a santa Fé?
- Olhai que, se sois Sal e vos danais
- Na pátria, onde profeta ninguém é,
- Com que se salgarão em nossos dias
- (Infiéis deixo) tantas heresias?
-
- 120
- "Mas passo esta matéria perigosa
- E tornemos à costa debuxada.
- Já com esta cidade tão famosa
- Se faz curva a Gangética enseada;
- Corre Narsinga, rica e poderosa;
- Corre Orixa, de roupas abastada;
- No fundo da enseada, o ilustre rio
- Ganges vem ao salgado senhorio;
-
- 121
- "Ganges, no qual os seus habitadores
- Morrem banhados, tendo por certeza
- Que, inda que sejam grandes pecadores,
- Esta água santa os lava e dá pureza.
- Vê Catigão, cidade das milhores
- De Bengala província, que se preza
- De abundante. Mas olha que está posta
- Pera o Austro, daqui virada, a costa.
-
- 122
- "Olha o reino Arracão; olha o assento
- De Pegu, que já monstros povoaram,
- Monstros filhos do feio ajuntamento
- Düa mulher e um cão, que sós se acharam.
- Aqui soante arame no instrumento
- Da geração costumam, o que usaram
- Por manha da Rainha que, inventando
- Tal uso, deitou fora o error nefando.
-
- 123
- "Olha Tavai cidade, onde começa
- De Sião largo o império tão comprido;
- Tenassari, Quedá, que é só cabeça
- Das que pimenta ali têm produzido.
- Mais avante fareis que se conheça
- Malaca por empório ennobrecido,
- Onde toda a província do mar grande
- Suas mercadorias ricas mande.
-
- 124
- "Dizem que desta terra co as possantes
- Ondas o mar, entrando, dividiu
- A nobre ilha Samatra, que já d'antes
- Juntas ambas a gente antiga viu.
- Quersoneso foi dita; e das prestantes
- Veias d'ouro que a terra produziu,
- 'Aurea', por epitéto lhe ajuntaram;
- Alguns que fosse Ofir imaginaram.
-
- 125
- "Mas, na ponta da terra, Cingapura
- Verás, onde o caminho às naus se estreita;
- Daqui tornando a costa à Cinosura,
- Se encurva e pera a Aurora se endireita.
- Vês Pam, Patane, reinos, e a longura
- De Sião, que estes e outros mais sujeita;
- Olha o rio Menão, que se derrama
- Do grande lago que Chiamai se chama.
-
- 126
- Vês neste grão terreno os diferentes
- Nomes de mil nações, nunca sabidas:
- Os Laos, em terra e número potentes;
- Avás, Bramás, por serras tão compridas;
- Vê nos remotos montes outras gentes,
- Que Gueos se chamam, de selvages vidas;
- Humana carne comem, mas a sua
- Pintam com ferro ardente, usança crua.
-
- 127
- "Vês, passa por Camboja Mecom rio,
- Que capitão das águas se interpreta;
- Tantas recebe d' outro só no Estio,
- Que alaga os campos largos e inquieta;
- Tem as enchentes quais o Nilo frio;
- A gente dele crê, como indiscreta,
- Que pena e glória têm, despois de morte,
- Os brutos animais de toda sorte.
-
- 128
- "Este receberá, plácido e brando,
- No seu regaço os Cantos que molhados
- Vêm do naufrágio triste e miserando,
- Dos procelosos baxos escapados,
- Das fomes, dos perigos grandes, quando
- Será o injusto mando executado
- Naquele cuja Lira sonorosa
- Será mais afamada que ditosa.
-
- 129
- "Vês, corre a costa que Champá se chama,
- Cuja mata é do pau cheiroso ornada;
- Vês Cauchichina está, de escura fama,
- E de Ainão vê a incógnita enseada;
- Aqui o soberbo Império, que se afama
- Com terras e riqueza não cuidada,
- Da China corre, e ocupa o senhorio
- Desde o Trópico ardente ao Cinto frio.
-
- 130
- "Olha o muro e edifício nunca crido,
- Que entre um império e o outro se edifica,
- Certíssimo sinal, e conhecido,
- Da potência real, soberba e rica.
- Estes, o Rei que têm, não foi nacido
- Príncipe, nem dos pais aos filhos fica,
- Mas elegem aquele que é famoso
- Por cavaleiro, sábio e virtuoso.
-
- 131
- "Inda outra muita terra se te esconde
- Até que venha o tempo de mostrar-se;
- Mas não deixes no mar as Ilhas onde
- A Natureza quis mais afamar-se:
- Esta, meia escondida, que responde
- De longe à China, donde vem buscar-se,
- É Japão, onde nace a prata fina,
- Que ilustrada será co a Lei divina.
-
- 132
- "Olha cá pelos mares do Oriente
- Ás infinitas Ilhas espalhadas:
- Vê Tidore e Ternate, co fervente
- Cume, que lança as flamas ondeadas.
- As árvores verás do cravo ardente,
- Co sangue Português inda compradas.
- Aqui há as áureas aves, que não decem
- Nunca à terra e só mortas aparecem.
-
- 133
- "Olha de Banda as Ilhas, que se esmaltam
- Da vária cor que pinta o roxo fruto;
- Às aves variadas, que ali saltam,
- Da verde noz tomando seu tributo.
- Olha também Bornéu, onde não faltam
- Lágrimas no licor coalhado e enxuto
- Das árvores, que cânfora é chamado,
- Com que da Ilha o nome é celebrado.
-
- 134
- "Ali também Timor, que o lenho manda
- Sândalo, salutífero e cheiroso;
- Olha a Sunda, tão larga que üa banda
- Esconde pera o Sul dificultoso;
- A gente do Sertão, que as terras anda,
- Um rio diz que tem miraculoso,
- Que, por onde ele só, sem outro, vai,
- Converte em pedra o pau que nele cai.
-
- 135
- "Vê naquela que o tempo tornou Ilha,
- Que também flamas trémulas vapora,
- A fonte que óleo mana, e a maravilha
- Do cheiroso licor que o tronco chora,
- - Cheiroso, mais que quanto estila a filha
- De Ciniras na Arábia, onde ela mora;
- E vê que, tendo quanto as outras têm,
- Branda seda e fino ouro dá também.
-
- 136
- "Olha, em Ceilão, que o monte se alevanta
- Tanto que as nuvens passa ou a vista engana;
- Os naturais o têm por cousa santa,
- Pola pedra onde está a pegada humana.
- Nas ilhas de Maldiva nace a pranta
- No profundo das águas, soberana,
- Cujo pomo contra o veneno urgente
- É tido por antídoto excelente.
-
- 137
- "Verás defronte estar do Roxo Estreito
- Socotorá, co amaro aloé famosa;
- Outras ilhas, no mar também sujeito
- A vós, na costa de África arenosa,
- Onde sai do cheiro mais perfeito
- A massa, ao mundo oculta e preciosa.
- De São Lourenço vê a Ilha afamada,
- Que Madagáscar é dalguns chamada.
-
- 138
- "Eis aqui as novas partes do Oriente
- Que vós outros agora ao mundo dais,
- Abrindo a porta ao vasto mar patente,
- Que com tão forte peito navegais.
- Mas é também razão que, no Ponente,
- Dum Lusitano um feito inda vejais,
- Que, de seu Rei mostrando-se agravado,
- Caminho há-de fazer nunca cuidado.
-
- 139
- "Vedes a grande terra que contina
- Vai de Calisto ao seu contrário Pólo,
- Que soberba a fará a luzente mina
- Do metal que a cor tem do louro Apolo.
- Castela, vossa amiga, será dina
- De lançar-lhe o colar ao rudo colo.
- Varias províncias tem de várias gentes,
- Em ritos e costumes, diferentes.
-
- 140
- "Mas cá onde mais se alarga, ali tereis
- Parte também, co pau vermelho nota;
- De Santa Cruz o nome lhe poreis;
- Descobri-la-á a primeira vossa frota.
- Ao longo desta costa, que tereis,
- Irá buscando a parte mais remota
- O Magalhães, no feito, com verdade,
- Português, porém não na lealdade.
-
- 141
- "Dês que passar a via mais que meia
- Que ao Antártico Pólo vai da Linha,
- Düa estatura quási giganteia
- Homens verá, da terra ali vizinha;
- E mais avante o Estreito que se arreia
- Co nome dele agora, o qual caminha
- Pera outro mar e terra que fica onde
- Com suas frias asas o Austro a esconde.
-
- 142
- "Até'aqui Portugueses concedido
- Vos é saberdes os futuros feitos
- Que, pelo mar que já deixais sabido,
- Virão fazer barões de fortes peitos.
- Agora, pois que tendes aprendido
- Trabalhos que vos façam ser aceitos
- As eternas esposas e fermosas,
- Que coroas vos tecem gloriosas,
-
- 143
- "Podeis-vos embarcar, que tendes vento
- E mar tranquilo, pera a pátria amada."
- Assi lhe disse; e logo movimento
- Fazem da Ilha alegre e namorada.
- Levam refresco e nobre mantimento;
- Levam a companhia desejada
- Das Ninfas, que hão-de ter eternamente,
- Por mais tempo que o Sol o mundo aquente.
-
- 144
- Assi foram cortando o mar sereno,
- Com vento sempre manso e nunca irado,
- Até que houveram vista do terreno
- Em que naceram, sempre desejado.
- Entraram pela foz do Tejo ameno,
- E à sua pátria e Rei temido e amado
- O prémio e glória dão por que mandou,
- E com títulos novos se ilustrou.
-
- 145
- Nô mais, Musa, nô mais, que a Lira tenho
- Destemperada e a voz enrouquecida,
- E não do canto, mas de ver que venho
- Cantar a gente surda e endurecida.
- O favor com que mais se acende o engenho
- Não no dá a pátria, não, que está metida
- No gosto da cobiça e na rudeza
- Düa austera, apagada e vil tristeza.
-
- 146
- E não sei por que influxo de Destino
- Não tem um ledo orgulho e geral gosto,
- Que os ânimos levanta de contino
- A ter pera trabalhos ledo o rosto.
- Por isso vós, ó Rei, que por divino
- Conselho estais no régio sólio posto,
- Olhai que sois (e vede as outras gentes)
- Senhor só de vassalos excelentes.
-
- 147
- Olhai que ledos vão, por várias vias,
- Quais rompentes liões e bravos touros,
- Dando os corpos a fomes e vigias,
- A ferro, a fogo, a setas e pelouros,
- A quentes regiões, a plagas frias,
- A golpes de Idolátras e de Mouros,
- A perigos incógnitos do mundo,
- A naufrágios, a pexes, ao profundo.
-
- 148
- Por vos servir, a tudo aparelhados;
- De vós tão longe, sempre obedientes;
- A quaisquer vossos ásperos mandados,
- Sem dar reposta, prontos e contentes.
- Só com saber que são de vós olhados,
- Demónios infernais, negros e ardentes,
- Cometerão convosco, e não duvido
- Que vencedor vos façam, não vencido.
-
- 149
- Favorecei-os logo, e alegrai-os
- Com a presença e leda humanidade;
- De rigorosas leis desalivai-os,
- Que assi se abre o caminho à santidade.
- Os mais exprimentados levantai-os,
- Se, com a experiência, têm bondade
- Pera vosso conselho, pois que sabem
- O como, o quando, e onde as cousas cabem.
-
- 150
- Todos favorecei em seus ofícios,
- Segundo têm das vidas o talento;
- Tenham Religiosos exercícios
- De rogarem, por vosso regimento,
- Com jejuns, disciplina, pelos vícios
- Comuns; toda ambição terão por vento,
- Que o bom Religioso verdadeiro
- Glória vã não pretende nem dinheiro.
-
- 151
- Os Cavaleiros tende em muita estima,
- Pois com seu sangue intrépido e fervente
- Estendem não sòmente a Lei de cima,
- Mas inda vosso Império preminente.
- Pois aqueles que a tão remoto clima
- Vos vão servir, com passo diligente,
- Dous inimigos vencem: uns, os vivos,
- E (o que é mais) os trabalhos excessivos.
-
- 152
- Fazei, Senhor, que nunca os admirados
- Alemães, Galos, Ítalos e Ingleses,
- Possam dizer que são pera mandados,
- Mais que pera mandar, os Portugueses.
- Tomai conselho só d'exprimentados
- Que viram largos anos, largos meses,
- Que, posto que em cientes muito cabe.
- Mais em particular o experto sabe.
-
- 153
- De Formião, filósofo elegante,
- Vereis como Anibal escarnecia,
- Quando das artes bélicas, diante
- Dele, com larga voz tratava e lia.
- A disciplina militar prestante
- Não se aprende, Senhor, na fantasia,
- Sonhando, imaginando ou estudando,
- Senão vendo, tratando e pelejando.
-
- 154
- Mas eu que falo, humilde, baxo e rudo,
- De vós não conhecido nem sonhado?
- Da boca dos pequenos sei, contudo,
- Que o louvor sai às vezes acabado.
- Tem me falta na vida honesto estudo,
- Com longa experiência misturado,
- Nem engenho, que aqui vereis presente,
- Cousas que juntas se acham raramente.
-
- 155
- Pera servir-vos, braço às armas feito,
- Pera cantar-vos, mente às Musas dada;
- Só me falece ser a vós aceito,
- De quem virtude deve ser prezada.
- Se me isto o Céu concede, e o vosso peito
- Dina empresa tomar de ser cantada,
- Como a pres[s]aga mente vaticina
- Olhando a vossa inclinação divina,
-
- 156
- Ou fazendo que, mais que a de Medusa,
- A vista vossa tema o monte Atlante,
- Ou rompendo nos campos de Ampelusa
- Os muros de Marrocos e Trudante,
- A minha já estimada e leda Musa
- Fico que em todo o mundo de vós cante,
- De sorte que Alexandro em vós se veja,
- Sem à dita de Aquiles ter enveja.
- Fim
- -------------------------------oOo-------------------------------