O Cuco: diferenças entre revisões

Wikisource, a biblioteca livre
Conteúdo apagado Conteúdo adicionado
Giro720 (discussão | contribs)
m nova página: {{navegar |obra={{subst:PAGENAME}} |autor=Artur de Azevedo |notas={{integra|conto=Contos em versos}} }} <poem> O Ponciano, rapagão bonito, Guarda-livros de muit...
 
Giro720 (discussão | contribs)
Sem resumo de edição
Linha 2: Linha 2:
|obra=O Cuco
|obra=O Cuco
|autor=Artur de Azevedo
|autor=Artur de Azevedo
|notas=
|notas={{integra|conto=[[Contos em versos]]}}
}}
}}


Não havia meio de conseguir que o Roberto ficasse uma noite em casa, fazendo companhia à senhora: havia de sair por força depois de jantar, sozinho, e só voltava às dez, às onze horas, e mesmo algumas vezes depois da meia-noite.
<poem>
O Ponciano, rapagão bonito,
Guarda-livros de muita habilidade,
Possuindo o invejável requisito
De uma caligrafia
A mais bela, talvez, que na cidade
E no comércio havia,
Empregou-se na casa importadora
De Praxedes, Couceiro & Companhia,
Casa de todo Maranhão credora,
Que, além de importadora, era importante,
E, se quebrasse um dia,
Muitas outras consigo arrastaria.


A senhora, que era uma santa, como todas as mulheres de maridos notívagos, não se lastimava, não pedia ao Roberto que a levasse consigo, não lhe perguntava, sequer, por onde tinha andado, quando o via chegar um pouco mais tarde, o que raras vezes acontecia, porque em regra, quando o cuco da sala de jantar dava dez horas, já ela, coitadinha!, estava ferrada no sono.
Do comércio figura dominante,
Praxedes, sócio principal da casa,
Tinha uma filha muito interessante.
O guarda-livros arrastava-lhe a asa.


{{separador}}
Começara o romance, o romancete
Num dia em que fez anos
E os festejou Praxedes co'um banquete,
Num belo sítio do Caminho Grande,
Sob os frondosos galhos veteranos


O cuco da sala de jantar era um dos mais curiosos que ficaram no Rio de Janeiro, do tempo em que foram moda: pertencera à avó de Roberto, e este por dinheiro nenhum se desfaria de tão preciosa relíquia de família, que era ao mesmo tempo saudosa recordação da infância.
Que secular mangueira inda hoje expande.
A mesa circular, sem cabeceira,
Rodeando o grosso tronco da mangueira,
Um belíssimo aspecto apresentava:
Reluzindo lá estava
O leitão infalível,
Com o seu sorriso irônico,
Expressivo, sardônico.
Sabeis de alguma coisa mais terrível
Do que o sorriso do leitão assado?
E nos olhos, coitado!
Lhe havia o cozinheiro colocado
Duas rodelas de limão, pilhéria
Que sempre faz sorrir a gente séria.
Dois soberbos perus de forno; tortas
De camarão, e um grande e majestoso
Camorim branco, peixe delicioso,
Que abre ao glutão do paraíso as portas;
Tainhas ouríchocas recheadas,
Magníficas pescadas,
E um presunto, um colosso,
Tendo enroladas a enfeitar-lhe o osso,
Tiras estreitas de papel dourado.


As horas eram dadas por um pássaro mecânico. Saía este da sua gaiola, abria o bico e punha-se a cantar lentamente: - "Cuco, cuco, cuco..." O Roberto, em criança, imitava-o a ponto de enganar as pessoas de casa.
Compoteiras de doce, encomendado
A Calafate e a Papo Rôto; frutas;
Vinho em garrafas brutas.
Amêndoas, nozes, queijos, o diabo.
Que se me meto a descrever aquilo,
Tão cedo não acabo!


{{separador}}
O Ponciano fora convidado:
Quis o velho Praxedes distingüi-lo.
Fazia gosto vê-lo
Convenientemente engravatado,
De calças brancas e chapéu de pêlo,
E uma sobrecasaca
Que estivera fechada um ano inteiro
E espalhava em redor um vago cheiro
De cânfora e alfavaca.


Uma noite foi o nosso herói ao Cassino Nacional, e deixou-se tentar por um amigo, que o convidou para cear com ele e duas ''chanteuses'', uma ''gommeuse'' e outra ''excentrique''.
Mal que o viu, Gabriela
(Gabriela a menina se chamava)
Lançou-lhe uma olhadela
Que a mais larga promessa lhe levava...
Como que os olhos dele e os olhos dela
Apenas esperavam
Encontrar-se; uma vez que se encontravam,
De modo tal os quatro se entendiam
Que, com tanto que ver, nada mais viam!


Depois da ceia, o amigo partiu com uma delas para Citera, vulgo Copacabana, e o Roberto foi obrigado a acompanhar a outra a uma pensão da Praia do Russel.
Apesar dos perigos,
Por ninguém o namoro foi notado.
Pois que o demônio as coisas sempre arranja.
Praxedes, ocupado,
Fazia sala aos ávidos amigos;
A mulher de Praxedes, nas cozinhas,
Inspecionava monstruosa canja
Onde flutuavam cinco ou seis galinhas
E um paio, um senhor paio,
E os convivas, olhando de soslaio
Para a mesa abundante e os seus tesouros
Não tinham atenção para namoros.
Quando todos à mesa se assentaram,
Ele e ela ficaram
Ao lado um do outro... por casualidade,
E durante três horas, pois três horas
Levou comendo toda aquela gente,
Entre as frases mais ternas e sonoras
Juraram pertencer-se mutuamente.
Quando na mesa havia só destroços,
Cascas, espinhas, ossos e caroços,
E o café fumegante
Circulou, - nesse instante,
Eram noivos Ponciano e Gabriela.


Quando ele deu por si, eram quase quatro horas da madrugada! Oh, diabo!, a essa hora nunca entrara no lar doméstico!
&mdash; Como, perguntou ela,
Nos poderemos escrever? Não vejo
Que o possamos fazer, e o meu desejo
É ter notícias tuas diariamente.
Respondeu ele: - Muito facilmente:
Quando a casa teu pai volta à noitinha
Traz consigo o Diário, por fortuna;
Escreverei com letra miudinha,
Na última coluna,
Alguma coisa que ninguém ler possa
Quando não esteja prevenido. - Bravo!
Que bela idéia e que ventura a nossa
Porém se esse conchavo
Serve para me dar notícias tuas,
Não te dará, meu bem, notícias minhas. -
Mas não esteve com uma nem com duas
O namorado, e disse:
&mdash; Temos um meio. - Qual? Não adivinhas?
Teu pai usa chapéu. . - Sim... que tolice! -
&mdash; Ouve o resto e verás que a idéia é boa;
Um pedacinho de papel à-toa
Tu meterás por baixo da carneira
Do chapéu de teu pai; dessa maneira
Me escreverás todos os dias... - úteis.
Oh!, precauções inúteis!
Durante um ano inteiro
O pai ludibriado
Serviu de inconsciente mensageiro
Aos amores da filha e do empregado.
&mdash; Até que um dia (tudo é transitório,
Até mesmo os chapéus) o negociante
Entrou de chapéu novo no escritório.


Meteu-se num tílburi, que lhe apareceu providencialmente, e voou para casa. Abriu a porta com toda a cautela e antes de subir a escada, tirou as botinas, para não fazer bulha.
Ponciano ficou febricitante!
Como saber qual era o chapeleiro
Em cujas mãos ficara o chapéu velho?
Muito inquieto, o brejeiro
Ao espírito em vão pediu conselho;
Dispunha-se, matreiro,
A sair pelas ruas, indagando
De chapeleiro em chapeleiro, quando
O chapeleiro apareceu!... Trazia
O papelinho que encontrado havia!
Atinara com tudo o impertinente
E indignado dizia:
&mdash; Sou pai de filhas!... venho prontamente
Denunciar uma patifaria!
O hipócrita queria
Mas era, bem se vê, cair em graça
A um medalhão da praça.


O seu quarto - seu e de sua esposa - era contíguo à sala de jantar tornava-se preciso atravessar esta para lá entrar.
O pai ficou furioso, e, francamente,

Não era o caso para menos; houve
Ele atravessou, mas, como estivesse no escuro, esbarrou numa cadeira, que caiu com estrondo.
Ralhos, ataques, maldições, et cetera;

Mas, enfim, felizmente
Logo ouviu o Roberto a senhora remexer-se na cama e disse consigo:
Ao céu bondoso aprouve

(O rapaz tinha tão bonita letra!)
&mdash; Sebo! lá acordei minha mulher!
Que não fosse a menina pro convento,

E a comédia acabasse em casamento.
Ela perguntou:
Ponciano hoje é sócio

Do sogro, e faz negócio.
&mdash; És tu, Roberto?
Deu-lhe uma filha o céu

Que é muito sua amiga
&mdash; Sim, sou eu, sinhazinha.
E está casa não casa;

Mas o ditoso pai não sai de casa
E o marido acrescentou para si:
(Aquilo é balda antiga)

Sem revistar o forro do chapéu.
&mdash; Felizmente não sabe que horas são.
</poem>

Mas, nisto, o cuco saiu da gaiola, e começou a cantar lentamente: "Cuco... cuco... cuco... cuco..."

&mdash; Estou perdido! - pensou o Roberto, mas uma idéia luminosa lhe atravessou de repente o cérebro, e quando o pássaro cantou pela quarta vez e voltou para a gaiola, ele continuou: "Cuco... cuco... cuco..." até completar onze cucos.

O próprio Roberto não sabia que ainda imitasse o pássaro com tanta perfeição.

&mdash; Onze horas - disse ele depois do décimo primeiro cuco -. Julguei que fosse mais cedo!

E começou a despir-se.

A santa senhora voltou-se para o outro lado e adormeceu de novo. Não deu pela coisa.


[[Categoria:Artur de Azevedo]]
[[Categoria:Artur de Azevedo]]

Revisão das 02h54min de 31 de agosto de 2007

Não havia meio de conseguir que o Roberto ficasse uma noite em casa, fazendo companhia à senhora: havia de sair por força depois de jantar, sozinho, e só voltava às dez, às onze horas, e mesmo algumas vezes depois da meia-noite.

A senhora, que era uma santa, como todas as mulheres de maridos notívagos, não se lastimava, não pedia ao Roberto que a levasse consigo, não lhe perguntava, sequer, por onde tinha andado, quando o via chegar um pouco mais tarde, o que raras vezes acontecia, porque em regra, quando o cuco da sala de jantar dava dez horas, já ela, coitadinha!, estava ferrada no sono.



O cuco da sala de jantar era um dos mais curiosos que ficaram no Rio de Janeiro, do tempo em que foram moda: pertencera à avó de Roberto, e este por dinheiro nenhum se desfaria de tão preciosa relíquia de família, que era ao mesmo tempo saudosa recordação da infância.

As horas eram dadas por um pássaro mecânico. Saía este da sua gaiola, abria o bico e punha-se a cantar lentamente: - "Cuco, cuco, cuco..." O Roberto, em criança, imitava-o a ponto de enganar as pessoas de casa.



Uma noite foi o nosso herói ao Cassino Nacional, e deixou-se tentar por um amigo, que o convidou para cear com ele e duas chanteuses, uma gommeuse e outra excentrique.

Depois da ceia, o amigo partiu com uma delas para Citera, vulgo Copacabana, e o Roberto foi obrigado a acompanhar a outra a uma pensão da Praia do Russel.

Quando ele deu por si, eram quase quatro horas da madrugada! Oh, diabo!, a essa hora nunca entrara no lar doméstico!

Meteu-se num tílburi, que lhe apareceu providencialmente, e voou para casa. Abriu a porta com toda a cautela e antes de subir a escada, tirou as botinas, para não fazer bulha.

O seu quarto - seu e de sua esposa - era contíguo à sala de jantar tornava-se preciso atravessar esta para lá entrar.

Ele atravessou, mas, como estivesse no escuro, esbarrou numa cadeira, que caiu com estrondo.

Logo ouviu o Roberto a senhora remexer-se na cama e disse consigo:

— Sebo! lá acordei minha mulher!

Ela perguntou:

— És tu, Roberto?

— Sim, sou eu, sinhazinha.

E o marido acrescentou para si:

— Felizmente não sabe que horas são.

Mas, nisto, o cuco saiu da gaiola, e começou a cantar lentamente: "Cuco... cuco... cuco... cuco..."

— Estou perdido! - pensou o Roberto, mas uma idéia luminosa lhe atravessou de repente o cérebro, e quando o pássaro cantou pela quarta vez e voltou para a gaiola, ele continuou: "Cuco... cuco... cuco..." até completar onze cucos.

O próprio Roberto não sabia que ainda imitasse o pássaro com tanta perfeição.

— Onze horas - disse ele depois do décimo primeiro cuco -. Julguei que fosse mais cedo!

E começou a despir-se.

A santa senhora voltou-se para o outro lado e adormeceu de novo. Não deu pela coisa.