Quem Ele Era?: diferenças entre revisões

Wikisource, a biblioteca livre
Conteúdo apagado Conteúdo adicionado
Giro720 (discussão | contribs)
m nova página: {{navegar |obra={{subst:PAGENAME}} |autor=Artur de Azevedo |notas= }} Foi num teatro que começaram as nossas relações. Estávamos na platéia, sentados ao pé u...
 
Giro720 (discussão | contribs)
mSem resumo de edição
 
Linha 4: Linha 4:
|notas=
|notas=
}}
}}




Foi num teatro que começaram as nossas relações. Estávamos na platéia, sentados ao pé um do outro.
Foi num teatro que começaram as nossas relações. Estávamos na platéia, sentados ao pé um do outro.

Edição atual desde as 02h35min de 1 de setembro de 2007

Foi num teatro que começaram as nossas relações. Estávamos na platéia, sentados ao pé um do outro.

Ele interessava-se muito pelo espetáculo, e de vez em quando me fazia ao ouvido algumas observações críticas, tratando-me pelo meu nome.

Eu estava um tanto contrariado: não gosto de conversar com pessoas que não conheço; mas o meu vizinho da platéia me parecia um homem tão simples, que no meu espírito não se formou nenhuma prevenção desairosa a seu respeito.

— Veja como o F. está representando mal! - disse-me ele, referindo-se a um ator que na realidade metia os pés pelas mãos. - É pena que o F. seja tão mau artista, sendo tão bom rapaz!

— Conhece-o?

— Há muitos anos... desde criança... somos amigos... um excelente guarda-livros, que poderia ganhar um ordenadão numa boa casa, mas prefere ser ator, para fazer esta figura que se está vendo!

Acabado o espetáculo, entrei num botequim para tomar chocolate, e lá estava o nosso homem, que me queria obrigar a sentar-me junto dele; agradeci-lhe o obséquio e tomei lugar noutra mesa.

Daí a instantes entrou o ator, o tal que não queria ser guarda-livros, e sentou-se perto de mim.

Perguntei imediatamente:

— Você sabe me dizer quem é aquele sujeito?

— Não sei. Conheço-o de vista há longos anos... somos velhos camaradas... tratamo-nos por tu... mas ignoro como se chama e qual seja a sua ocupação.

— É singular!

— É, não há dúvida; mas a vida carioca tem destas coisas...



Depois disso, eu encontrava constantemente o desconhecido nas ruas nos teatros, nos bondes, nas festas, em toda parte, sempre sozinho e apressado, como se tivesse muito que fazer.

A princípio cumprimentava-me com certa reserva cerimoniosa; mas pouco a pouco os nossos repetidos encontros o familiarizaram comigo, e ele começou a usar de um diminutivo afetuoso:

— Adeus, Arturzinho... - ou do latim macarrônico: - Adeus, Arturibus!

Como nos encontrássemos num leilão (ele freqüentava muito os leilões, mas não comprava nada), apresentou-me, graciosamente, ao respeitável conselheiro B, a quem perguntei depois:

— O conselheiro faz-me um obséquio?

— Estou às suas ordens.

— Diz-me quem é aquele cavalheiro que nos apresentou um ao outro?

— Oh! o senhor não o conhece?

— Não.

— Nem eu! - Há muitos anos lhe falo... trata-me com certa intimidade... mas não sei como se chama nem quem é.

— Deveras?

— Isso pouco me tem importado, porque vejo que ele se dá com o mundo inteiro.

E de todas as pessoas a quem me dirigia para saber, pelo menos, o nome do "meu amigo", ouvia a mesma indefectível resposta:

— Conheço-o há muitos anos, mas não sei quem é.



O seu tipo nada tinha de característico nem de anormal. Ele vestia-se de um modo que nenhuma indicação poderia fornecer sobre a sua vida ou sobre os seus hábitos. A última vez que o vi, ele trazia, aparentemente, a mesma sobrecasaca, as mesmas calças brancas e o mesmo chapéu alto com que estava aquela noite no teatro.

Bem quisera eu perguntar-lhe: - Como te chamas? - e seria esse um meio infalível de saber o seu nome todo; mas isso é lá pergunta que um homem possa fazer a um camarada que há vinte anos o trata por tu...

Um dia lancei mão de um ardil:

— Tens aí um dos teus cartões de visita para a minha coleção? Estou reunindo num álbum os cartões de todos os meus amigos.

— Cartões de visita? Nunca os tive! Nunca me submeti a essa ridícula exigência da vida social. Sou um boêmio. - Adeus, Arturibus.



E era, efetivamente, um boêmio.

Entretanto, dispunha de recursos, não pedia nada a ninguém e, de vez em quando, fazia longas que eu o supunha morto.

Quando já estava esquecido, reaparecia, sempre com as suas calças brancas, a sua sobrecasaca, o seu chapéu alto e sozinho sempre, dizendo que tinha feito um viajão.



Uma vez, passando por certa rua desta cidade, vi grande ajuntamento de povo às portas de uma farmácia.

Curioso, como toda a gente, perguntei o que tinha havido.

Era um homem que, passando por ali, entrara incomodado e falecera subitamente de uma síncope cardíaca. Estavam à espera da carrocinha que devia levá-lo para o Necrotério.

Entrei na farmácia e reconheci que o morto era ele, o meu misterioso amigo.

O farmacêutico, homem já maduro, conhecia-o tanto como eu.

— Conhecemo-nos há longos anos - disse-me ele. - Tratava-me por tu, não me passava pela porta que não me dissesse: - Adeus, Joãozinho! - mas nunca lhe soube o nome, nem o emprego, nem a residência.

Entre os circunstantes, muitos o conheciam de vista; nenhum ligava o nome à pessoa.



O cadáver foi removido para o Necrotério.

— Até que afinal vou saber quem ele era! A identidade do morto há de ser reconhecida pela polícia.

Pois não foi. A polícia nem ao menos descobriu o domicílio do meu amigo, e, por mais estranho que isto pareça, a verdade é que figurou no obituário como "um desconhecido de 50 anos presumíveis".

Quem ele era?