Os Trabalhadores do Mar/Parte III/Livro III: diferenças entre revisões

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Revisão das 00h36min de 4 de maio de 2006

Terceira Parte- Livro Terceiro- A PARTIDA DO "CASHMERE"

<Os Trabalhadores do Mar

<Autor:Victor Hugo

Tradução: Machado de Assis

A ANGRAZINHA PRÓXIMA DA IGREJA

Saint-Sampson não pode estar apinhado de gente sem que Saint-Pierre-Port fique deserto. Uma coisa curiosa num ponto dado é uma bomba aspirante. As notícias correm depressa nas terras pequenas; ir ver o cano da Durande debaixo da janela de Mess Lethierry foi desde o romper do dia a grande ocupação de Guernesey. Qualquer outro acontecimento desaparecia diante desse. Eclipse da morte do decano de Saint-Asaph; já ninguém curava do Reverendo Ebenezer Caudray, nem da sua repentina riqueza, nem da sua partida no Cashmere. A máquina da Durande, trazida das Douvres, estava na ordem do dia. Ninguém acreditava. O naufrágio parecera extraordinário, mas o salvamento parecia impossível. Todos queriam ver com os seus próprios olhos. Todas as ocupações ficaram suspensas. Longas fileiras de burgueses em família, desde o vesin até o mess, homens, mulheres, gentlemen, mães com filhos e filhos com bonecas, dirigiam-se por todas as estradas para ver a coisa, em Bravées, e davam-se as costas a Saint-Pierre-Port.
Muitas lojas de Saint-Pierre-Port estavam fechadas; no Cominercial Arcade, estagnação absoluta de venda e de negócio; toda a atenção estava voltada para a Durande, nenhum mercador estreou, exceto um ourives que se maravilhava de ter vendido um anel de ouro para casamento - a uma espécie de homem que parecia muito apressado e que lhe perguntou onde morava o sr. decano.

As lojas que ficaram abertas eram os lugares de conversa onde se comentava ruidosamente o milagroso salvamento da máquina. Ninguém passeava na Hyvreuse, que se chama hoje, não se sabe por que, Cambridge-Park; ninguém em High Street, que se chamava então a Rua Grande, nem em Smith Street, que se chamava a Rua das Forjas; ninguém em Hauteville; a própria Esplanada estava deserta. Dissera-se um domingo. Uma alteza real, que ali fosse de visita, e passasse em revista a milícia de Ancresse, não despovoaria melhor a cidade. Todo aquele abalo a propósito de uma coisa à toa, como Gilliatt, fazia erguer os ombros aos homens graves e às pessoas corretas.
A igreja de Saint-Pierre-Port, tríplice carreta sobreposta com transepto e flecha, fica situada à beira da praia no fundo do porto quase sobre o desembarque. Dá a saudação aos que chegam e o adeus aos que saem. Aquela igreja é a maiúscula de uma longa linha que faz a fachada da cidade sobre o oceano
É ao mesmo tempo a paróquia de Saint-Pierre-Port e chefe de toda a ilha. Tem por pároco o sub-rogado do bispo, clergyman com plenos poderes.
O ancoradouro de Saint-Pierre-Port, hoje largo e magnífico porto, era naquela época, e ainda há dez anos, menos considerável que o ancoradouro de Saint-Sampson. Eram duas grossas paredes ciclópicas, curvas, partindo da praia a estibordo e bombordo e ligando-se quase na extremidade, onde havia um farolzinho branco.
Debaixo daquele farol uma garganta, que ainda tinha as duas argolas da corrente que a fechava na Idade Média, dava passagem aos navios. Imaginem uma unha de lagosta aberta, era o ancoradouro de Saint-Pierre-Port. Aquela tenaz tomava ao mar um pouco de água que obrigava a ficar tranqüila. Mas, com vento de leste, havia marulho na entrada, o porto ficava agitado, e era acertado não penetrar lá. Foi o que fez nesse dia o Cashemere, que ficou fora.
Os navios, quando soprava o leste, faziam isso que, no fim das contas, economizava as despesas do porto. Nesses casos, os bateleiros da cidade, tribo valente de marinheiros que o novo porto destituíra, iam tomar em seus barcos os viajantes, ou no cais, ou nas estações da praia, e os transportavam.
eles e às bagagens, muitas vezes com marés agitadas e sempre sem acidentes, aos navios que deviam sair. O vento de leste é um vento de flanco muito bom para ir à Inglaterra; o mar é agitado sem que o navio estremeça.
Quando o navio ficava no porto, todos embarcavam no porto; quando estava fora, podia-se escolher uma das costas vizinhas do ancoradouro do navio. Achavam-se em todas as angras bateleiros à vontade.
A Angrazinha era dessas. Aquele cais ficava próximo à cidade, mas tão solitário, que parecia longe. Devia a solidão às duas grandes penedias do forte de São Jorge que dominavam aquele sítio discreto.
Chegava-se à Angrazinha por caminhos diversos. O mais direto ia pela praia; tinha a vantagem de ir dar à cidade e à igreja em cinco minutos, e o inconveniente de ser coberto pela maré duas vezes por dia.
Outros caminhos, mais ou menos abruptos, mergulhavam nas anfractuosidade dos rochedos. A Angrazinha, mesmo em pleno dia, ficava numa penumbra. Grandes pedras amontoadas pendiam de todos os lados. Havia espessuras de espinhos, fazendo uma espécie de noite suave naquela desordem de rochas e vagas; nada mais aprazível do que aquela angra em tempo calmo, nada mais tumultuoso nas grossas águas. Havia pontas de galhos perpetuamente molhados pela escuma. Na primavera ficava cheia de flores, ninhos, perfumes, aves, borboletas e abelhas. Graças aos trabalhos recentes, essa selvajaria já não existe; foi substituída por belas linhas retas; há obras de pedreiro, cais, jardins; tudo foi derrubado; o gosto destruiu as extravagâncias da montanha e a incorreção dos rochedos.

O DESESPERO DIANTE DO DESESPERO

Era pouco menos de 10 horas da manhã: o quarto de hora antes, como se diz em Guernesey.
O povo, segundo todas as aparências, ia engrossando em Saint-Sampson. A população, febricitante de curiosidade, ia toda para o norte da ilha, de maneira que a Angrazinha, que fica ao sul, estava mais deserta que nunca.
Contudo, viam-se aí um bote e um remador. No bote havia um saco de viagem. O bateleiro parecia esperar.
Via-se ao largo o Cashemere ancorado, que, devendo partir lá para o meio-dia, não fazia nenhum movimento de aparelho.
O viandante que, de qualquer dos caminhos-escadas tivesse prestado o ouvido, ouviria um murmúrio de palavras na Angrazinha, e inclinando-se por cima, veria a alguma distância do bote, num recanto de pedras e galhos onde não podia penetrar o olhar do bateleiro, duas pessoas; um homem e uma mulher, Ebenezer e Déruchette.
Esses asilos obscuros das praias, que tentam as banhistas não são tão solitários como se pensa. Às vezes espreita-se e ouve-se de fora. Os que se refugiam podem ser facilmente acompanhados através das espessuras das vegetações, e graças à multiplicidade e entravamento dos atalhos. Os granitos e árvores que escondem o refugiado podem esconder também uma testemunha.
Déruchette e Ebenezer estavam de pé diante um do outro, com o olhar no olhar; tinham as mãos presas. Ebenezer estava calado.
Uma lágrima engrossada e presa entre os seus cílios hesitava em cair, e não caía.
A desolação e a paixão estavam impressas na fronte religiosa de Ebenezer. Havia também uma resignação pungente, hostil à fé , embora derivasse dela. Naquele rosto, simplesmente angélico até então, havia um começo de expressão fatal. Aquele que até então só meditara sobre o dogma, entrava a meditar sobre a sorte, meditação nociva ao padre. Nessa meditação decompõe-se a fé.
Nada perturba tanto o espírito como curvar-se ao peso do ignoto.
O homem é o paciente dos acontecimentos. A vida é um perpétuo sucesso, imposto ao homem. O homem não sabe de que lado virá a brusca descida do acaso. As catástrofes e as felicidades entram e saem como personagens inesperadas. Tem a sua fé, a sua órbita, a sua gravitação fora do homem. A virtude não traz a felicidade, o crime não traz a desgraça; a consciência tem uma lógica, a sorte tem outra; nenhuma coincidência. Nada pode ser previsto. Vivemos de atropelo. A consciência é a linha reta, a vida é o turbilhão.
O turbilhão atira à cabeça do homem caos negros e céus azuis. A sorte não tem a arte das transições. Às vezes a vida anda tão depressa que o homem mal distingue o intervalo de uma peripécia a outra e o laço de ontem e hoje. Ebenezer era um crente mesclado de raciocínio e um padre mesclado de paixão. As religiões celibat árias sabem o que fazem. Nada desfaz tanto o padre como amar uma mulher. Todas as espécies de nuvens ensombravam Ebenezer.
Contemplava demasiado Déruchette.
Aquelas duas criaturas idolatravam-se.
Havia na pálpebra de Ebenezer a muda adoração do desespero.
Déruchette dizia:
- Não há de partir. Não tenho força para vê-lo ir-se embora. Eu acreditava poder despedir-me, e não posso. Ninguém é obrigado a poder. Por que foi ontem ao jardim? Não devia ir, se queria ir-se embora. Nunca lhe falei. Amava-o, mas não o sabia. Somente, quando o Sr. Herodes leu a história de Rebeca, e que os seus olhos encontraram os meus, senti as faces em fogo, e disse comigo: Oh! Como Rebeca devia ter corado! Ontem se me dissessem que eu amaria o cura, ria-me. É o que há de terrível neste amor. Foi uma espécie de traição. Não me acautelei. Ia à igreja, via-o, acreditei que todos eram como eu. Não lhe faço censura alguma, nada fez para que eu o ame, não se deu a nenhum trabalho, olhava-me, não é culpa sua se olha para as outras pessoas, e o resultado é que eu o adoro. Eu nem reparava. Quando as suas mãos pegavam num livro, era uma luz; quando os outros pegavam nele, era apenas um livro. Às vezes levantava os olhos para mim. Falava dos arcanjos, e era o arcanjo. O que dizia, pensava-o eu logo. Antes de vê-lo não sei se acreditava em Deus. Depois que o vi tornei-me uma mulher qua faz as suas orações. Eu dizia a Doce: Veste-me depressa, não quero faltar ao ofício. E corria à igreja. Estar apaixonada por um homem é isto. Eu não o sabia. Dizia comigo: Como estou devota! Depois de vê-lo é que soube que eu não ia à igreja por causa de Deus. Ia vê-lo, é verdade. É formoso, fala bem, quando levanta os braços para o céu parece que tem o meu coração entre as suas duas mãos brancas. Eu estava louca. Ignoravao.
Quer que lhe diga a sua culpa? Foi entrar ontem no jardim e falar-me. Se nada me dissesse, eu nada saberia. Partiria, eu ficava triste, mas agora morrerei. Agora que eu sei que o amo não é possível que se vá embora. Em que pensa? Parece que não me ouve. Ebenezer respondeu:
- A senhora ouviu o que se disse ontem.
- Ai, sim!
- Que posso fazer?
Calaram-se um momento. Ebenezer continuou:
- Só uma coisa devo fazer agora. Partir.
- E eu morrer. Oh! Eu quisera que não houvesse mar e só houvesse o céu! Parece-me que isto arranjaria tudo, e a nossa partida seria a mesma. Não devia falar-me. Por que me falou? Que será agora de mim? Digo-lhe que hei de morrer. Há de ter ganho muito quando eu estiver no cemitério. OH! Tenho o coração despedaçado. Desventurada que sou! E meu tio não é mau, contudo.
Era a primeira vez na sua vida que Déruchette dizia, falando de Mess Lethierry, meu tio. Até então sempre dizia meu pai.
Ebenezer recuou um pouco e fez um sinal ao bateleíro. Ouviu-se o ruído de um croque nas pedras e o passo de um homem no bote.
- Não! Não! - gritou Déruchette.
Ebenezer aproximou-se dela.
- É preciso, Déruchette.
- Não, nunca! Por uma máquina! Será possível? Viu ontem aquele homem horrível? Não deve abandonar-me. Tem inteligência, há de achar um meio. Não é possível que me dissesse para vir aqui hoje, com a idéia de partir. Não lhe fiz nada. Não tem motivos de queixa de mim. É naquele navio que quer ir? Não quero. Não me deixe.
Não se abre o céu para torná-lo a fechar. Digo-lhe que há de ficar.
Demais, ainda não bateu a hora. Oh! Eu te amo!
E unindo-se a ele, cruzou-lhe os dez dedos por trás do pescoço, como para fazer com os seus braços enlaçados em Ebenezer e com as suas mãos juntas uma oração a Deus.
Ele deslaçou aquela cadeia delicada, que resistiu enquanto pode.
Déruchette caiu assentada numa ponta de rocha coberta de hera, levantando com um gesto maquinal a manga do vestido até o cotovelo, mostrando o seu delicioso braço nu, com uma luz afogada e pálida nos olhos fixos. O bote aproximava-se.
Ebenezer segurou-lhe a cabeça nas mãos; aquela virgem tinha o ar de uma viúva e aquele mancebo tinha o ar de um avo. Tocou-lhe os cabelos com uma espécie de precaução religiosa; fitou os olhos nela durante alguns instantes, depositou-lhe na fronte um desses beijos debaixo dos quais parece que deveria abrir uma estrela e, com uma voz que tremia na suprema angústia e onde se sentia a dilaceração da alma, disse-lhe esta palavra, a palavra das profundezas: Adeus!
Déruchette rompeu em soluços.
Neste momento ouviram uma voz lenta e grave que dizia:
- Por que motivo não se casam?
Ebenezer voltou a cabeça. Déruchette levantou os olhos.
Gilliatt estava diante deles.
Acabava de entrar por um atalho lateral.
Gilliatt já não era o mesmo homem da véspera. Tinha penteado os cabelos, fez a barba, calçou os sapatos, vestiu camisa branca de marinheiro com grandes colarinhos caídos, vestiu a roupa de marinheiro mais nova. Via-se um anel de ouro no dedo mínimo. Parecia profundamente calmo. Estava lívido.
Bronze que sofre, tal era aquele rosto.
Os dois olharam para ele estupefatos. Embora não se pudesse reconhece-lo, Déruchette reconheceu-o. Quanto às palavras que ele acabava de pronunciar, estavam tão longe do que eles pensavam nesse momento, que resvalaram-lhe no espírito.
Gilliatt continuou:
- Que necessidade é essa de se dizerem adeus? Casem-se. Embarquem depois.
Déruchette estremeceu da cabeça aos pés.
Gilliatt continuou:
- Miss Déruchette tem 21 anos. É senhora de sua vontade. Seu tio é apenas seu tio. Amam-se ...
Déruchette interrompeu docemente:
- Como é que o senhor está aqui?
- Casem-se - continuou Gilliatt.
Déruchette começava a perceber o que lhe dizia aquele homem.
Murmurou:
- O meu pobre tio ...
- Recusaria se o casamento estivesse por fazer - disse Gilliatt -, e consentirá quando o casamento estiver concluído. Demais, vão embarcar ambos. Quando voltarem, ele os perdoará.
Gilliatt acrescentou com um tom amargo:
- E depois, ele já não pensa senão em construir o vapor. Isso o distrairá durante a sua ausência. Tem Durande para consolá-lo.
- Eu não quisera balbuciou Déruchette num espanto misturado de alegria não quisera deixar pesares indo-me embora...
- Não durarão muito tempo os pesares - disse Gilliatt.
Ebenezer e Déruchette tiveram uma espécie de deslumbramento.
Tranqüilizaram-se. Na sua decrescente perturbação, iam entendendo as palavras de Gilliatt. Ainda havia alguma nuvem, mas a obrigação deles dois não era resistir ao conselho. Quem salva domina sempre. Fracas são as objeções, quando se trata de voltar ao Éden. Havia na atitude de Déruchette, imperceptivelmente apoiada em Ebenezer, alguma coisa que fazia causa comum com o que dizia Gilliatt. Quanto ao enigma da presença daquele homem e das suas palavras que, no espírito de Déruchette em particular, produziam muitas espécies de assombro, eram questões à parte. Aquele homem dizia-lhes: Casem-se. Era claro. Se houvesse uma responsabilidade, era ele quem a tomava sobre si. Déruchette sentia confusamente que, por diversas razões, ele tinha o direito de fazelo.
O que ele dizia de Mess Lethierry era verdade. Ebenezer, pensativo, murmurou:
- Um tio não é um pai.
Ebenezer sentia a corrupção de uma peripécia súbita e feliz. Os escrúpulos prováveis do padre fundiam-se e dissolviam-se naquele pobre coração apaixonado.
A voz de Gilliatt tornou-se- breve e dura; sentia-se nela umas pulsações de febre:
- Imediatamente. O Cashemere parte daqui a duas horas. Tem tempo, mas não de sobra; venham ambos.
Ebenezer examinava-o atentamente.
De súbito exclamou:
- Conheço-o. Foi o senhor quem me salvou a vida.
Gilliatt respondeu:
- Não creio.
- Lá adiante, na ponta dos Bancos.
- Não conheço esse lugar.
- No mesmo dia em que cheguei.
- Não percamos tempo - disse Gilliatt.
- E não me engano, o senhor é o homem de ontem à noite.
- Talvez.
- Como se chama?
Gilliatt alçou a voz:
- Ó do bote, espere-nos. Já voltamos. Miss, a senhora perguntoume por que motivo estava eu aqui, é simples, eu acompanhei-os.
A senhora tem 21 anos. Nesta terra quem chega à maioridade e depende de si casa-se em um quarto de hora. Tomemos o caminho da praia. Está praticável, a maré há de encher lá para o meio-dia.
Mas vamos já. Venham comigo.
Déruchette e Ebenezer pareciam consultar-se com o olhar.
Estavam de pé, juntinhos, sem mexer-se; pareciam ébrios. Há dessas tentações estranhas à beira desse abismo que se chama felicidade. Compreendiam, sem compreender.
- Ele se chama Gilliatt - disse Déruchette baixinho a Ebenezer.
Gilliatt continuou com uma espécie de autoridade:
- Que esperam? Já lhes disse que me acompanhassem.
- Aonde? - perguntou Ebenezer.
- Ali.
E Gilliatt mostrou com o dedo a torre da igreja. Os dois acompanharam- no.
Gilliatt ia adiante. O seu passo era firme. Os dois vacilavam.
À proporção que se aproximavam da torre, via-se despontar naqueles puros e belos rostos de Ebenezer e Déruchette alguma coisa que seria dentro de pouco tempo o sorriso. A proximidade da igreja iluminava-os. Nos olhos fundos de Gilliatt havia trevas.
Dissera-se um espectro levando duas almas ao paraíso.

Ebenezer e Déruchette não compreendiam muito o que se estava passando. A intervenção daquele homem era o ramo a que se agarra o afogado. Eles acompanhavam Gilliatt com a docilidade que o desespero tem para com a primeira pessoa que lhe aparece.
Quem se sente morrer não é difícil em aceitar os incidentes.
Déruchette, mais ignorante, era mais confiante. Ebenezer pensava.
Déruchette era maior. As formalidades do casamento inglês são simplíssima, sobretudo nos países autóctones onde os párocos tem quase um poder discricionário; mas o decano celebraria o casamento sem saber se o tio consentia? Havia uma questão nisto.
Contudo, podia-se tentar. Em todo o caso era uma delonga.
Mas quem era aquele homem? E se era ele quem, na véspera, foi declarado genro de Mess Lethierry, como explicar o que estava fazendo? Ele, que era o obstáculo, tornava-se a providência.
Ebenezer prestava-se a tudo, mas dava ao que se estava passando o consentimento tácito e rápido do homem que se sente salvo.
O caminho era desigual, às vezes molhado e difícil. Ebenezer, absorto, não prestava atenção aos charcos de água e às pedras. De quando em quando, Gilliatt voltava-se e dizia a Ebenezer: Cuidado com essas pedras, dê-lhe a mão.

A PREVIDÊNCIA DA ABNEGAÇÃO

Soavam 10 horas e meia quando eles entravam na igreja. Por causa da hora, e também por causa da solidão da cidade naquele dia, a igreja estava vazia.
No fundo, porém, perto da mesa que, nas igrejas reformadas, substitui o altar, havia três pessoas: eram o decano, o seu evangelista, e mais o lançador dos registros. O decano, que era o reverendo Jaquemin Herodes, estava assentado; o evangelista e o lançador estavam de pé.
O Livro, aberto, estava sobre a mesa.
Ao lado havia outro livro, era o registro da paróquia, igualmente aberto, e no qual um olhar atento poderia notar uma pagina escrita de fresco. Uma pena e um tinteiro ficavam ao lado do registro.
Vendo entrar o Reverendo Ebenezer Caudray, o Reverendo Jaquemin Herodes levantou-se.
- Esperava-o - disse ele. - Tudo está pronto.
O decano, com efeito, estava com o hábito de oficiante.
Ebenezer olhou para Gilliatt.
O Reverendo Herodes continuou:
- Estou às suas ordens, meu colega.
E fez-lhe uma cortesia.
A cortesia não foi nem para a esquerda nem para a direita. Era evidente, pela direção do raio visual do decano, que, para ele, só Ebenezer existia. Ebenezer era clergyman e gentleman. O decano não compreendia no seu cumprimento nem Déruchette, que estava ao seu lado, nem Gilliatt, que estava atrás. Havia no seu olhar um parêntese em que só Ebenezer era admitido. A manutenção destas distinções faz parte da boa ordem e consolida as sociedades.
O decano continuou com uma amenidade graciosamente altiva:
- Meu colega, faço-lhe o meu duplo cumprimento. Morreu-lhe o tio, e o senhor casa-se; fica rico por um lado e feliz por outro.
Demais, agora, graças a este vapor que vai ser restabelecido, Miss Lethierry também é rica, o que eu aprovo. Miss Lethierry nasceu nesta paróquia, verifiquei a data do nascimento no livro dos assentos. Miss Lethierry é maior e dispõe de si. Depois, seu tio, que é toda a sua família, consente. Querem casar-se já por causa da viagem, compreendo, mas sendo este casamento o do cura da paróquia, eu quisera mais alguma solenidade. Abrevio para fazer-lhes o gosto. O essencial pode fazer-se no sumário. O ato já está escrito no livro do registro que está aqui, e falta só por os nomes. Nos termos da lei e do costume, o casamento pode ser celebrado logo depois da inscrição. A declaração necessária para a licença já foi feita. Tomo a responsabilidade de uma pequena irregularidade, porque o pedido de licença devia ser previamente registrado sete dias antes; mas eu reconheço a necessidade e a urgência da partida. Seja. Vou casá-los. O meu evangelista será a testemunha do esposo; quanto à esposa. .
O decano voltou-se para Gilliatt.
Gilliatt fez um sinal de cabeça.
- Basta - disse o decano.
Ebenezer ficara imóvel. Déruchette era o êxtase petrificado.
O decano continuou:
- Há, porém, um obstáculo.
Déruchette fez um movimento.
O decano continuou:
- O enviado de Mess Lethierry, que aqui está presente, e pediu a licença e assinou a declaração no registro - e com o polegar da mão esquerda o decano indicou Gilliatt, o que o isentava de articular nenhum nome - o enviado de Mess Lethierry disse-me esta manhã que Mess Lethierry, por muito ocupado, não podia vir, e desejava que o casamento se fizesse incontinenti. Esse desejo, verbalmente expresso, não é suficiente. Não posso, por causa das dispensas e da irregularidade que tomo sobre mim, ir além disto sem informar-me de Mess Lethierry, a menos que me mostrem a assinatura dele. Qualquer que seja a minha boa vontade, não posso contentar-me com uma palavra que me repetem. Preciso de um escrito.
- Não sirva isto de empecilho - disse Gilliatt.
E apresentou ao decano um papel.
O decano pegou no papel, percorreu com um olhar, pareceu passar algumas linhas, sem dúvida, inúteis, e leu alto:
"Vai ter à casa do decano para arranjar as dispensas. Desejo que o casamento se faça o mais cedo possível, e já, será melhor."
Pôs o papel em cima da mesa e continuou:
- Assinado: "Lethierry". A coisa seria mais respeitosa se fosse dirigida a mim. Mas, como se trata de um colega, não exijo mais.
Ebenezer olhou de novo para Gilliatt. Há almas que se entendem.
Ebenezer sentia naquilo uma fraude; e não teve força, não teve mesmo idéia de denunciá-lo. Ou fosse obediência a um heroísmo latente que ele antevia, ou fosse que se lhe aturdisse a consciência pela ventura súbita, Ebenezer não teve palavras.
O decano tomou a pena e encheu, com o auxílio do lançador dos assentos, os claros da página escrita no livro, depois levantou-se, e com o gesto convidou Ebenezer e Déruchette a aproximar-se da mesa.
Começou a cerimônia.
Ebenezer e Déruchette estavam ao pé um do outro diante do ministro. Quem tiver sonhado que se está casando saberá o que eles sentiam.
Gilliatt estava a alguma distância na obscuridade dos pilares.
Déruchette, ao levantar-se da cama, desesperada, pensando no túmulo e no sudário, vestira-se de branco. Esta idéia de morte veio a propósito para as núpcias. O vestido branco fez dela uma noiva. Também os túmulos são esponsais.
Déruchette irradiava. Nunca foi o que era naquele instante.
Déruchette tinha o defeito de ser demasiado linda e não bastante formosa. A sua beleza pecava, se é pecar, por excesso de graça.
Déruchette em repouso, isto é, fora da paixão e da dor, já o dissemos , era sobretudo gentil. A transfiguração da moça encantadora é a virgem ideal. Déruchette, engrandecida pelo amor e pelo sofrimento, tinha tido esse progresso, deixem passar a palavra.
Tinha a mesma candura, com mais dignidade, a mesma frescura, com mais perfume. Era uma espécie de bonina que se torna lírio.
Tinha no rosto sinais de lágrimas estanques. Havia ainda talvez uma lágrima no canto do sorriso. As lágrimas estanques, vagamente visíveis, são um sombrio e doce ornato da felicidade.
O decano, de pé perto da mesa, pós um dedo na Bíblia aberta e perguntou em voz alta:
- Há oposição?
Ninguém respondeu.
- Amém - disse o decano.
Ebenezer e Déruchette deram um passo para o Reverendo Jaquemin Herodes.
O decano disse:
- Joe Ebenezer Caudray, queres esta mulher por tua esposa? Ebenezer respondeu:
- Quero.
O decano continuou:
-Durande Déruchette Lethierry, queres este homem por teu marido?
Déruchette, na agonia da alma demasiado feliz, como a da lâmpada demasiado cheia de óleo, murmurou em vez de pronunciar:
- Quero.
Então, segundo o belo rito do casamento anglicano, o decano olhou em roda de si, e fez na sombra da igreja esta solene pergunta:
- Quem dá esta mulher a este homem?
- Eu - disse Gilliatt.
Houve um momento de silêncio. Ebenezer e Déruchette sentiram uma vaga opressão através da sua felicidade.
O decano pós a mão direita de Déruchette na mão direita de Ebenezer, e Ebenezer disse a Déruchette:
- Déruchette, tomo-te por minha mulher, quer sejas melhor ou pior, mais rica ou mais pobre, doente ou com saúde, para amar-te até à morte, e dou-te a minha fé.
O decano pôs a mão direita de Ebenezer na mão direita de Déruchette, e Déruchette disse a Ebenezer:
- Ebenezer, tomo-te por meu marido, quer sejas melhor ou pior, mais rico ou mais pobre, doente ou com saúde, para amar-te e obedecer-te até à morte, e dou-te a minha fé.
O decano continuou: Onde está o anel?
Isto era o imprevisto. Ebenezer não tinha anel.
Gilliatt tirou o anel de ouro que tinha no dedo mínimo e apresentou ao decano. Era provavelmente o anel de casamento comprado de manhã ao ourives de Comercial Arcade.
O decano pós o anel no livro, depois entregou-o a Ebenezer.
Ebenezer pegou na mãozinha esquerda, trêmula, de Déruchette,meteu o anel no quarto dedo e disse:
- Desposo-te com este anel.
- Em nome do Padre, do Filho e do Espírito Santo disse o decano.
- Assim seja - disse o evangelista.
O decano alçou a voz:
- Estais casados.
- Assim seja - disse o evangelista.
O decano continuou:
- Oremos.
Ebenezer e Déruchette voltaram-se para a mesa e ajoelharam-se.
Gilliatt, que estava de pé, inclinou a cabeça.
Eles ajoelhavam-se diante de Deus, Gilliatt curvava-se ao destino.

PARA TUA MULHER QUANDO TE CASARES

Saindo da igreja viram o Cashemere que começava a aparelhar.
- Chegam a tempo - disse Gilliatt.
Seguiram pelo caminho da Angrazinha.
Os dois iam adiante, Gilliatt agora caminhava atrás.
Eram dois sonâmbulos. Mudara apenas o atordoamento. Não sabiam nem onde estavam nem o que faziam; apressavam-se maquinalmente, não se lembravam da existência de coisa alguma, sentiam-se um outro, não podiam ligar duas idéias. Não pode pensar quem está em êxtase como não pode nadar quem está numa torrente.
Pareciam ir penetrando num paraíso. Não se falavam, conversavam com a alma. Déruchette apertava contra si o braço de Ebenezer.
O passo de Gilliatt atrás deles fazia-lhes ver que ele estava presente.
Iam profundamente comovidos mas sem dizer palavra; o excesso da comoção transforma-se em estupefação. A deles era deliciosa, mas acabrunhava. Estavam casados. Adiavam o resto, esperavam voltar, o que Gilliatt fez era bem feito, eis tudo. O fundo desses dois corações agradecia-lhe ardente e vagamente.
Déruchette dizia consigo que havia alguma coisa para deslindar, mais tarde. Entretanto, aceitavam o fato. Sentiam-se à discrição daquele homem decisivo e súbito, que, por autoridade, fazia a felicidade deles dois.

Fazer-lhe perguntas, conversar com ele, era impossível. Eram de sobejo as impressões que se lhes precipitavam em cima ao mesmo tempo. Estavam engolfados; era perdoável.
Os fatos são às vezes uma saraiva. Crivam a criatura. Ensurdecem.
A precipitação dos incidentes, caindo em existências habitualmente calmas, tornam logo ininteligíveis os acontecimentos aos que os sofrem ou deles se aproveitam. Não se pode conhecer a sua própria ventura. Fica-se esmagado sem adivinhar, venturoso sem compreender. Déruchette, em particular, desde algumas horas recebera todas as comoções; primeiramente a fascinação, Ebenezer no jardim; depois o pesadelo, aquele monstro declarado seu marido; depois a desolação, o anjo abrindo as asas e prestes a partir; agora era a alegria, uma alegria inaudita, com um fundo indecifrável; o monstro dava-lhe o anjo; o casamento saía da agonia; o Gilliatt, catástrofe de ontem, salvação de hoje. Déruchette não compreendia nada. Era evidente que, desde manhã, Gilliatt não teve outra ocupação senão a de casá-los; fez tudo; respondeu por Mess Lethierry, falou ao decano, pediu licença, assinou a declaração necessária; eis aí como se realizou o casamento. Mas Déruchette não compreendia nada; demais, mesmo quando ela compreendesse o como, não compreenderia o porque.
Fechar os olhos, agradecer, mentalmente, esquecer aterra, e a vida, deixar-se levar para o céu por àquele bom demônio, eis o que lhe cumpria fazer. Esclarecer seria longo, agradecer não seria bastante.
Déruchette calava-se naquele doce embrutecimento da ventura.
Restava-lhe ainda algum pensamento, suficiente para guiá-la. Debaixo da água há pedaços de esponja que ficam brancos. Eles tinham a soma de lucidez necessária para distinguir o mar da terra e o Cashemere de qualquer outro navio.
Dentro de poucos minutos estavam eles na Angrazinha.
Ebenezer foi o primeiro a entrar no bote. No momento em que Déruchette ia acompanhá-lo, sentiu a sua manga docemente puxada.
Era Gilliatt que tinha posto um dedo numa dobra do vestido.
- Senhora - disse ele -, não esperava partir. Eu cuido que naturalmente há de precisar de vestidos e roupa. Achará a bordo do Cashemere um caixotinho com objetos de mulher.
Foi minha mãe quem mo deu. Era destinado à mulher com quem eu casasse. Consinta que lho ofereça.
Déruchette acordou a meio do sonho em que estava. Voltou-se para Gilliatt, em voz baixa e que mal se ouvia, continuou:
- Agora, não é para demorá-la, mas, olhe, eu creio que devo explicar-lhe uma coisa. No dia em que houve aquela desgraça, a senhora estava assentada na sala baixa, e disse umas palavras.
Não se lembra disso, é natural. Ninguém é obrigado a lembrar-se das palavras que diz. Mess Lethierry sofria muito. A verdade é que era um belo navio e prestimoso. O desastre aconteceu; a terra estava alvoroçada e compungida, são coisas que naturalmente se esquecem. Só havia aquele navio perdido na costa. Não se pode pensar sempre em um acidente. Somente o que eu queria dizer é que, como se dizia que ninguém era capaz de lá ir, eu fui. Diziam eles que era impossível; não era impossível aquilo. Agradeço-lhe o prestar-me atenção por alguns instantes. Compreende a senhora que se eu lá fui ao escolho, não foi para ofende-la. Demais, a coisa data de longe. Eu sei que está com pressa. Se houvesse tempo, falaríamos, recordaríamos, mas isso de nada serve. A coisa data de um dia em que caiu neve. E depois eu passei uma vez, e cuido te-la visto sorrir. É assim que tudo se explica. Quanto ao que se passou ontem, eu não tive tempo de ir a casa, acabava do trabalho, estava todo rasgado, mete-lhe medo, a senhora desmaiou, fiz mal, não se entra assim na casa dos outros, peço-lhe que me perdoe. É isto mais ou menos o que eu queria dizer-lhe. Vai partir. Tem um belo tempo. Acha justo que eu lhe fale, não? É o último minuto.
- Penso na caixinha - respondeu Déruchette - Por que não há de guardá-la para a sua mulher, quando se casar?
- Senhora - disse Gilliatt -, provavelmente eu não me casarei nunca.
- Pois é pena, porque é uma boa alma. Obrigada.
E Déruchette sorriu. Gilliatt retribuiu-lhe com outro sorriso.
Depois ajudou Déruchette a entrar no escaler.
Menos de um quarto de hora depois, o escaler onde iam Ebenezer e Déruchette atracava ao Cashemere.

A GRANDE TUMBA

Gilliatt seguiu pela praia, parou rapidamente em Saint-Pierre-Port, depois caminhou para Saint-Sampson ao longo do mar, fugindo aos encontros, evitando as estradas cheias de caminhantes, por culpa dele.
Desde muito tempo, como se sabe, Gilliatt tinha um modo de atravessar a terra em todos os sentidos sem ser visto por ninguém.
Conhecia os atalhos, fez para si itinerários isolados e em ziguezagues: tinha o hábito feroz do ente que não se julga estimado; andava de longe. Ainda criança, vendo pouco agasalho no rosto dos homens, tomou o costume, que depois tornou-se-lhe instinto, de andar sempre afastado.
Passou a Esplanada, depois a Salerie. De tempos a tempos, voltava- se e olhava para o Cashemere na barra, que lhe ficava por trás; e o Cashemere abria as velas. Havia pouco vento, Gilliatt ia mais depressa que o Cashemere. Gilliatt caminhava nas rochas extremas da praia, com a cabeça baixa. A maré começava a subir.
Em certo momento parou e, voltando as costas para o mar, contemplou durante alguns minutos, além dos rochedos que escondiam a estrada do Vale, uma moita de carvalhos. Eram os carvalhos do lugar chamado Basses Maisons. Foi ali, debaixo daquelas árvores, que outrora o dedo de Déruchette escreveu o nome Gilliatt na neve. Havia muito tempo que essa neve estava desfeita.
Prosseguiu o caminho.
O dia estava mais belo que nenhum outro naquele ano. A manhã tinha um que de nupcial. Era um desses dias vernais em que maio ostenta-se todo inteiro; a criação parecia não ter outro fim que dar uma festa e fazer a própria felicidade. Sob todos aqueles rumores, da floresta como da aldeia, da vaga como da atmosfera, sentiam-se uns sons de arrulho. As primeiras borboletas pousavam nas primeiras rosas. Tudo era novo na natureza, as ervas, os musgos, as rolhas, os perfumes, os raios. Parecia que o sol nunca tinha servido. Os seixos estavam lavados de fresco. A profunda canção das árvores era cantada por aves nascidas na véspera.
Era provável que a casquinha do Ovo quebrada pelo biquinho dessas aves ainda estivesse no ninho. Ensaios de asas rumorejavam nas folhas trêmulas. Cantavam o primeiro canto, davam o primeiro vôo. Era uma doce conversa de todos a um tempo, poupas, melharucos, pintassilgos, barbirruivos, pardais. Os lilases, os lírios, as dafries, as glicínias compunham nas moitas uma deliciosa variedade de cores. Uma linda lentilha aquática que há em Guernesey cobria as lagoas de uma toalha de esmeralda. Banhavam-se as alvéloas nas lagoas, onde costumam fazer tão graciosos ninhos.
Via-se o céu através de todas as falhas da vegetação. Algumas nuvens lascivas perseguiam-se no ar ondeando como ninfas. Como que se sentia a passagem de beijos mandados por bocas invisíveis. Nenhum velho muro deixava de ter, como um noivo, o seu ramalhete de girófleas. Os abrunheiros silvestres e os codessos estavam em flor; viam-se aqueles montinhos brancos luzindo e aqueles montinhos amarelos fulgurando através do cruzamento dos ramos.
A primavera atirava toda a sua prata e ouro no imenso cesto rasgado dos bosques. Os pimpolhos novos eram verdes de fresco.
Ouvia-se no ar um grito de saudação. Estio hospitaleiro abria a porta aos pássaros longínquos. Era a hora da chegada das andorinhas.
Os tirsos dos juncos orlavam os caminhos cavados, esperando os tirsos dos púriteiros. O belo e o lindo faziam boa vizinhan- ça: o soberbo contemplava-se pelo gracioso; o grande não tolhia o pequeno; não se perdia nenhuma nota do concerto; as magnificência microscópicas estavam em plano próprio naquela vasta beleza universal; distinguia-se tudo como numa água límpida.
Por toda a parte uma divina plenitude e um inturmescimento misterioso faziam adivinhar o esforço pânico e sagrado da seiva em ação. O que brilhava, brilhava mais; o que amava, amava melhor.
Havia um hino na flor e uma irradiação no ruído. Escutava-se a grande harmonia difusa. O que começava a despontar procurava o que começava a surdir. Uma turvação, que surgia de baixo, e vertia também de cima, agitava vagamente os corações, corruptíveis à influência espessa e subterrânea dos germes. A flor prometia obscuramente o fruto, todas as virgens cismavam, a reprodução dos seres, premeditada pela imensa alma da sombra, esboçava-se na irradiação das coisas. Era o universal noivado. A vida, que é a esposa, abraçava o infinito, que é o esposo. O dia estava claro, formoso e ardente; através das sebes, nas cercas, viam-se rir as crianças. Algumas jogavam a palheta. As macieiras, os pessegueiros, as cerejeiras, as pereiras cobriam os vergéis com os seus grossos tufos pálidos ou vermelhos. Na relva, as primaveras, as pervincas, as mil-rolhas, as margaridas, os amarílis, os jacintos, as violetas e as verônicas. As borragens azuis, os íris amarelos pululavam, com as belas estrelinhas cor-de-rosa que florescem sempre aos bandos e que por esse motivo chamam-se as companheiras.
Animálculos dourados corriam por entre as pedras. O saião florescente purpureava os tetos das cabanas. As operárias das colmeias andavam por fora. A abelha trabalhava. A extensão estava cheia do murmúrio dos mares e do zumbido das moscas. A natureza, permeável na primavera, estava úmida de voluptuosidade.
Quando Gilliatt chegou a Saint-Sampson, ainda a maré não enchera e ele pode atravessar a praia a pé seco, despercebido por trás dos cascos de navios no estaleiro. Um. cordão de pedras chatas, postas de espaço a espaço, auxiliava a passagem.
Gilliatt não foi observado. O povo estava do outro lado do porto, perto da saída, junto à casa de Lethierry. Aí andava o nome dele de boca em boca. Falava-se tanto dele que o não chegavam a ver.
Gilliatt passou escondido de algum modo pelo próprio rumor que causava.
Viu de longe a pança no lugar onde a amarrara, com o cano da máquina entre as quatro correntes, com um movimento de carpinteiros trabalhando, lineamentos confusos de pessoas que iam e vinham de um para outro lado, e ouviu a voz tonante e alegre de Mess Lethierry dando ordens.
Meteu-se pelas ruelas dentro.
Não havia ninguém por trás de Bravées, toda a curiosidade convergia para a frente. Gilliatt tomou o atalho que costeava o muro baixinho do jardim. Parou no ângulo onde estava a malva silvestre; tornou a ver a pedra onde costumava sentar-se; tornou a ver o banco de Déruchette. Olhava para o chão da alameda onde viu abraçarem-se as duas sombras, que tinham desaparecido.
Foi a caminho. Galgou a colina do castelo do Vale, desceu-a, e dirigiu-se para a casa mal-assombrada, onde morava.
O Houmet Paradis estava solitário.
A casa estava tal qual ele a deixara de manhã depois de vestir-se para ir a Saint-Pierre-Port.
Havia uma janela aberta. Via-se por ela o bagpipe pendurado em um prego da parede.
Via-se na mesa a pequena Bíblia, dada em agradecimento a Gilliatt por um desconhecido, que era Ebenezer.
A chave estava na porta. Gilliatt aproximou-se, pós a mão na chave, fechou a porta com duas voltas, pós a chave no bolso, e afastou-se.
Afastou-se, não para o lado de terra, mas para o lado do mar.
Atravessou diagonalmente o jardim, pelo lado mais curto, pisando os canteiros, mas tendo cuidado de poupar os sea kales que plantara por serem do gesto de Déruchette.
Galgou o parapeito e desceu aos arrecifes.
Continuou a andar, indo sempre para a frente, pela longa e estreita linha de cachopos que ligava a casa dele àquele grande obelisco de granito de pé, no meio do mar, que se chamava Corne de La Bete. Era ali que ficava a Cadeira Gild-HolmUr.
Passava de um recife a outro como um gigante caminha nos cabeços. Andar em uma crosta de recifes assemelha-se a andar na borda de um telhado.
Uma pescadora de rede que andava com os pés descalços, nos charcos que ficavam próximos, e voltava para a praia, gritou-lhe: Cuidado. A maré está enchendo.
Gilliatt continuou a andar. Chegando ao grande rochedo da ponta, que formava um pináculo no mar, parou. Acabava a terra. Era a extremidade do pequeno promontório.
Olhou.
Ao largo pescavam alguns barcos, com âncoras fora. Via-se de quando em quando naqueles barcos um gotejar de prata: eram as redes que saíam da água. O Cashemere ainda não estava na altura de Saint-Sampson; desenrolara a mesena. Estava entre Herm e Jethou.
Gilliatt torneou o rochedo. Chegou à beira da Cadeira Gild-Holm-Ur, ao pé dessa espécie de escada tosca que, menos de três meses antes, Ebenezer descera ajudado por ele.
Gilliatt subiu.
A maior parte dos degraus já estava debaixo da água. Apenas dois ou três estavam a seco. Gilliatt escalou-os.
Os degraus iam ter à Cadeira Gild-Holm-Ur. Chegou à cadeira, contemplou-a por um momento, apoiou a mão nos olhos e fe-la passar de uma a outra sobrancelha, gesto com que parece que se apaga o passado, depois assentou-se na cava da rocha, com o grande declive por trás de si, e o oceano aos pés.
O Cashemere, nesse momento, passava pela grande torre arredondada e imersa, defendida por um sargento e um canhão, e que marca na baía a metade do caminho entre Herm e Saint-Pierre-Port.
Nas fendas do rochedo tremiam algumas flores, por sobre a cabeça de Gilliatt. A água estava toda azul. O vento era de leste, havia pouca ressaca à roda de Serk, da qual em Guernesey só se vê a costa ocidental. Via-se ao longe a França corno uma bruma e a longa faixa amarela de areias de Carteret. De quando em quando passava uma borboleta branca. As borboletas gostam de passear sobre o mar.
Fraca era a brisa. Todo aquele azul, embaixo, e em cima estava imóvel. Nenhuma tremura agitava aquelas serpentes de um azul mais claro ou mais carregado, que marcavam na superfície do mar as torções latentes dos baixios.
O Cashemere, pouco impelido pelo vento, içou os cutelos para apanhar alguma brisa. Cobriu-se todo de panos. Mas o vento era de través, o efeito dos cutelos obrigava-o a costear de perto Guernesey.
Já tinha passado a baliza de Saint-Sampson. Atingia a colina do castelo do Vale. Estava quase próximo ao promontório da casa de Gilliatt.
Gilliatt via-o aproximar-se.
O ar e o mar estavam como que adormecidos. A maré enchia, não por meio de ondas, mas por inturnescimento. O nível da água ia se levantando sem palpitação. O vento do largo mar, extinto, assemelhava-se a um hálito de infante.
Ouviam-se na direção da porta de Saint-Sampson pequenos golpes surdos, que eram marteladas. Provavelmente eram os carpinteiros que levantavam guindastes e pranchas para tirar a máquina da pança. Esse rumor mal chegava a Gilliatt, por causa da massa de granito a que ele estava encostado.
O Cashemere aproximava-se com uma lentidão de fantasma.
Gilliatt esperava.
De súbito uma agitação da água e uma sensação de frio obrigaram-no a olhar para baixo. A água tocava-lhe os pés.
Gilliatt abaixou os olhos e levantou-os.
Cashemere estava perto.
O rochedo onde as chuvas tinham cavado a Cadeira Gild-Holm-Ur, era tão vertical, e havia tanta água naquele sítio, que os navios, podiam, em tempo de calma, passar ali a distância de algumas braças.
O Cashemere chegou. Surgiu, alçou-se. Parecia crescer sobre a água.
Foi como que um crescimento de sombra. Todo o aparelho destacou-se como massa negra, no céu azul, e no magnífico balanço do mar. As longas velas, por um instante sobrepostas ao sol, tornavam-se quase cor-de-rosa e tiveram uma transparência inefável.
As ondas tinham um murmúrio indistinto. Nenhum rumor perturbava o resvalar majestoso daquela massa. De terra via-se o que se passava a bordo como se lá se estivesse.
Cashemere roçou quase pela rocha.
O timoneiro estava no leme, um grumete trepava aos ovéns, alguns passageiros, encostados à amurada, contemplavam a serenidade do tempo, o capitão fumava. Mas não era nada disso o que Gilliatt contemplava.
Havia no tombadilho um lugar cheio de sol. Era para ali que ele olhava. Ali estavam Ebenezer e Déruchette. Estavam assentados debaixo daquela luz, ele juntinho dela. Contraíam-se graciosamente ao lado um do outro, como dois pássaros que se aquecem a um raio do meio dia, num desses bancos cobertos de um assento alcatroado que os navios bem preparados oferecem aos viajantes, e nos quais costuma ler-se, quando o navio é inglês: For ladies only . A cabeça de Déruchette caía sobre o ombro de Ebenezer, o braço de Ebenezer estava por trás da cintura de Déruchette, tinham as mãos agarradas uma à outra e os dedos entrelaçados nos dedos. As diferenças de um anjo a outro mostravam-se claramente naqueles dois delicados rostos feitos de inocência. Um era mais virginal, o outro mais sideral. Era expressivo aquele casto abraço, que encerrava o himeneu e o pudor. Aquele banco era já uma alcova e quase um ninho. Ao mesmo tempo, era uma glória; a doce glória do amor fugindo numa nuvem.
O silêncio era celeste.
O olhar de Ebenezer agradecia e contemplava; moviam-se os lábios de Déruchette; e nesse silêncio delicioso, como o vento vinha do lado oposto, no instante rápido em que o sloop resvalou a algumas toesas da Cadeira Cwild-Holm-Ur, Gilliatt ouvia a voz tema e delicada de Déruchette que dizia:
- Olha! Parece que há um homem no rochedo.
Cashemere deixou a ponta do promontório atrás de si, e mergulhou-se no franzido profundo das vagas. Em menos de um quarto de hora, mastros e velas assemelhavam-se a uma espécie de obelisco branco diminuindo no horizonte. Gilliatt tinha água até os joelhos.
Via o sloop afastar-se.
A brisa refrescava ao longe. Gilliatt pode ver o Cashemere içar os cutelos baixos para aproveitar o aumento do vento. O Cashmere já estava fora das águas de Gueresey. Gilliatt não tirava os olhos do navio.
A água chegava-lhe à cintura.
A maré levantava-se. O tempo corria.
As cotovias e os corvos marinhos esvoaçavam inquietos em roda dele. Dissera-se que procuravam adverti-lo. Talvez houvesse naqueles bandos alguma gaivota ainda das Douvres que o reconhecia.
Decorreu uma hora.
O vento do largo não soprava no porto, mas a diminuição do Cashemere era rápida. O sloop, segundo as aparências, ia a toda a força. Já estava quase na altura de Casquets.
Não havia espuma à roda do rochedo Gild-Holm-Ur, nenhuma vaga batia no granito. A água inchava vagarosamente. Já estava quase na altura dos ombros de Gilliatt.
Decorreu outra hora.
O Cashemere estava já além das águas de Aurigny. O rochedo Ortach escondeu-o por um momento. Ocultou-se atrás desse rochedo, e saiu depois, como de um eclipse. O sloop fugia para o norte. Já entrava no mar alto. Era apenas um ponto, tendo, por causa do sol, a cintilação de uma luz.
Os pássaros soltavam pios a Gilliatt.
Já não se via mais que a cabeça dele.
O mar subia com uma brandura sinistra.
Gilliatt, imóvel, olhava para o Cashemere que se desvanecia. A maré estava quase cheia. Caía a tarde. Por trás de Gilliatt, no porto, alguns barcos de pesca voltavam para terra.
Os olhos de Gilliatt, presos ao longe no sloop, estavam fixos.
Aqueles olhos fixos não se pareciam com coisa alguma que se possa ver na terra. Havia o inexprimível naquela pálpebra trágica e calma. O olhar continha toda a soma de tranqüilidade que deixa o sonho abortado; era a aceitação lúgubre de outro complemento.
Uma fuga de estrela deve ser acompanhada por olhares semelhantes.
De quando em quando a obscuridade celeste aparecia naquela pálpebra cujo raio visual estava fixo num ponto do espaço. Ao mesmo tempo em que a água infinita subia à roda do rochedo Gild-Holm-Ur, ia subindo a imensa tranqüilidade da sombra nos olhos profundos de Gilliatt.
O Cashemere, tornando-se imperceptível, era já uma mancha misturada à bruma. Para distingui-lo era preciso saber onde ele estava.
A pouco e pouco, aquela mancha, que já não era uma forma foi empalidecendo.
Depois diminuiu.
Depois dissipou-se.
No momento em que o navio dissipava-se no horizonte, a cabeça desaparecia debaixo da água. Tudo acabou; só restava o mar.