Os Lusíadas/VIII: diferenças entre revisões
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m Os Lusíadas-Canto Oitavo movido para Os Lusíadas/VIII |
(Sem diferenças)
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Revisão das 21h52min de 4 de maio de 2006
Canto Oitavo
- 1
- Na primeira figura se detinha
- O Catual que vira estar pintada,
- Que por divisa um ramo na mão tinha,
- A barba branca, longa e penteada:
- "Quem era, e por que causa lhe convinha
- A divisa, que tem na mão tomada?"
- Paulo responde, cuja voz discreta
- O Mauritano sábio lhe interpreta.
-
- 2
- "Estas figuras todas que aparecem,
- Bravos em vista e feros nos aspectos,
- Mais bravos e mais feros se conhecem,
- Pela fama, nas obras e nos feitos:
- Antigos são, mas ainda resplandecem
- Colo nome, entre os engenhos mais perfeito
- Este que vês é Luso, donde a fama
- O nosso Reino Lusitânia chama.
-
- 3
- "Foi filho e companheiro do Tebano,
- Que tão diversas partes conquistou;
- Parece vindo ter ao ninho Hispano
- Seguindo as armas, que contino usou;
- Do Douro o Guadiana o campo ufano,
- Já dito Elísio, tanto o contentou,
- Que ali quis dar aos já cansados ossos
- Eterna sepultura, e nome aos nossos.
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- 4
- "O ramo que lhe vês para divisa,
- O verde tirso foi de Baco usado;
- O qual à nossa idade amostra e avisa
- Que foi seu companheiro e filho amido.
- Vês outro, que do Tejo a terra pisa,
- Depois de ter tão longo mar arado,
- Onde muros perpétuos edifica,
- E templo a Palas, que em memória fica?
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- 5
- "Ulisses é o que faz a santa casa
- A Deusa, que lhe dá língua facunda;
- Que, se lá na Ásia Tróia insigne abrasa,
- Cá na Europa Lisboa ingente funda."
- - "Quem será estoutro cá, que o campo arrasa
- De mortos, com presença furibunda?
- Grandes batalhas tem desbaratadas,
- Que as águias nas bandeiras tem pintadas."
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- 6
- Assim o Gentio diz.Responde o Gama:
- - "Este que vês, pastor já foi de gado;
- Viriato sabemos que se chama,
- Destro na lança mais que no cajado;
- Injuriada tem de Roma a f ama,
- Vencedor invencível afamado;
- Não tem com ele, não, nem ter puderam
- O primor que com Pirro já tiveram.
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- 7
- "Com força, não; com manha vergonhosa,
- A vida lhe tiraram que os espanta:
- Que o grande aperto, em gente ainda que honrosa,
- As vezes leis magnânimas quebranta.
- Outro está aqui que, contra a pátria irosa,
- Degradado, conosco se alevanta:
- Escolheu bem com quem se alevantasse,
- Para que eternamente se ilustrasse.
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- 8
- "Vês? conosco também vence as bandeiras
- Dessas aves de Júpiter validas;
- Que já naquele tempo as mais Guerreiras
- Gentes de nós souberam ser vencidas.
- Olha tão subtis artes e maneiras,
- Para adquirir os povos, tão fingidas,
- A fatídica Cerva que o avisa:
- Ele é Sertório, e ela a sua divisa.
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- 9
- "Olha estoutra bandeira, e vê pintado
- O grã progenitor dos Reis primeiros.
- Nós Úngaro o fazemos, porém nado
- Crêem ser em Lotaríngia os estrangeiros.
- Depois de ter com os Mouros superado,
- Galegos e Leoneses cavaleiros,
- A casa Santa passa o santo Henrique,
- Por que o tronco dos Reis se santifique."
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- 10
- "Quem é, me diz, este outro que me espanta,
- (Pergunta o Malabar maravilhado)
- Que tantos esquadrões, que gente tanta,
- Com tão pouca, tem roto e destroçado?
- Tantos muros aspérrimos quebranta,
- Tantas batalhas dá, nunca cansado,
- Tantas coroas tem por tantas partes
- A seus pés derribadas, e estandartes!"
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- 11
- - "Este é o primeiro Afonso, disse o Gama,
- Que todo Portugal aos Mouros toma;
- Por quem, no Estígio lago, jura a Fama
- De mais não celebrar nenhum de Roma.
- Este é aquele zeloso a quem Deus ama,
- Com cujo braço o Mouro inimigo doma,
- Para quem de seu Reino abaixa os muros,
- Nada deixando já para os futuros,
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- 12
- "Se César, se Alexandre Rei, tiveram
- Tão pequeno poder, tão pouca gente,
- Contra tantos inimigos quantos eram
- Os que desbaratava este excelente,
- Não creias que seus nomes se estendera
- Com glórias imortais tão largamente;
- Mas deixa os feitos seus inexplicáveis,
- Vê que os de seus vassalos são notáveis.
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- 13
- "Este que vês olhar com gesto irado
- Para o rompido aluno mal sofrido,
- Dizendo-lhe que o exército espalhado
- Recolha, e torne ao campo defendido;
- Torna o moço do velho acompanhado,
- Que vencedor o torna de vencido:
- Egas Moniz se chama o forte velho,
- Para leais vassalos claro espelho.
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- 14
- "Vê-lo cá vai com os filhos a entregar-se,
- A corda ao colo, nu de seda e pano,
- Porque não quis o moço sujeitar-se,
- Como ele prometera, ao Castelhano.
- Fez com siso e promessas levantar-se
- O cerco, que já estava soberano;
- Os filhos e mulher obriga à pena:
- Para que o senhor salve, a si condena.
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- 15
- "Não fez o Cônsul tanto, que cercado
- Foi nas forças Caudinas, de ignorante,
- Quando a passar por baixo foi forçado
- Do Samnítico jugo triunfante.
- Este, pelo seu povo injuriado,
- A si se entrega só, firme e constante;
- Estoutro a si, e os filhos naturais,
- E a consorte sem culpa, que dói mais.
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- 16
- "Vês este que, saindo da cilada,
- Dá sobre o Rei que cerca a vila forte?
- Já o Rei tem preso e a vila descercada:
- Ilustre feito, digno de Mavorte!
- Vê-lo cá vai pintado nesta armada,
- No mar também aos Mouros dando a morto,
- Tomando-lhe as galés, levando a glória
- Da primeira marítima vitória.
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- 17
- "É, Dom Fuas Roupinho, que na terra
- E no mar resplandece juntamente,
- Com o fogo que acendeu junto da serra
- De Abila, nas galés da Maura gente.
- Olha como, em tão justa e santa guerra,
- De acabar pelejando está contente:
- Das mãos dos Mouros entra a feliz alma,
- Triunfando, nos céus, com justa palma.
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- 18
- "Não vês um ajuntamento, de estrangeiro
- Trajo, sair da grande armada nova,
- Que ajuda a combater o Rei primeiro
- Lisboa, de si dando santa prova?
- Olha Henrique, famoso cavaleiro,
- A palma que lhe nasce junto à cova.
- Por eles mostra Deus milagre visto:
- Germanos são os mártires de Cristo.
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- 19
- "Um Sacerdote vê brandindo a espada
- Contra Arronches, que toma, por vingança
- De Leiria, que de antes foi tomada
- Por quem por Mafamede enresta a lança:
- É Teotónio, Prior.Mas vê cercada
- Santarém, e verás a segurança
- Da figura nos muros, que primeira
- Subindo, ergueu das Quinis a bandeira.
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- 20
- "Vê-lo cá, donde Sancho desbarata
- Os Mouros de Vandália em fera guerra;
- Os inimigos rompendo, o alferes mata
- E o Hispálico pendão derriba em terra:
- Mem Moniz é, que em si o valor retrata,
- Que o sepulcro do pai com os ossos cerra,
- Digno destas bandeiras, pois sem falta
- A contrária derriba e a sua exalta.
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- 21
- "Olha aquele que desce pela lança?
- Com as duas cabeças dos vigias,
- Onde a cilada esconde, com que alcança
- A cidade por manhas e ousadias.
- Ela por armas toma a semelhança
- Do cavaleiro, que as cabeças frias
- Na mão levava (feito nunca feito!)
- Giraldo Sem-pavor é o forte peito.
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- 22
- "Não vês um Castelhano, que agravado
- De Afonso nono rei, pelo ódio antigo
- Dos de Lara, com os Mouros é deitado,
- De Portugal fazendo-se inimigo?
- Abrantes vila toma, acompanhado
- Dos duros infiéis que traz consigo.
- Mas vê que um Português com pouca gente
- O desbarata e o prende ousadamente.
-
- 23
- "Martim Lopes se chama o cavaleiro,
- Que destes levar pode a palma e o louro.
- Mas olha um Eclesiástico guerreiro,
- Que em lança de aço torna o Bago de ouro.
- Vê-lo entre os duvidosos tão inteiro
- Em não negar batalha ao bravo Mouro;
- Olha o sinal no céu que lhe aparece,
- Com que nos poucos seus o esforço cresce.
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- 24
- "Vós? vão os Reis de Córdova e Sevilha
- Rotos, com os outros dois, e não de espaço.
- Rotos? mas antes mortos, maravilha
- Feita de Deus, que não de humano braço.
- Vês? já a vila de Alcáçare se humilha,
- Sem lhe valer defesa, ou muro de aço,
- A Dom Mateus, o Bispo de Lisboa,
- Que a coroa da palma ali coroa.
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- 25
- "Olha um Mestre que desce de Castela,
- Português de nação, como conquista
- A terra dos Algarves, e já nela
- Não acha quem por armas lhe resista;
- Com manha, esforço, e com benigna estrela,
- Vilas, castelos toma à escala vista.
- Vês Tavila tomada aos moradores,
- Em vingança dos sete caçadores!
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- 26
- "Vês? com bélica astúcia ao Mouro ganha
- Silves, que ele ganhou com força ingente:
- É Dom Paio Correia, cuja manha
- E grande esforço faz inveja à gente.
- Mas não passes os três que em França e Espanha
- Se fazem conhecer perpetuamente
- Em desafios, justas e torneios,
- Nelas deixando públicos troféus.
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- 27
- "Vê-los, com o nome vêm de aventureiros
- A Castela, onde o preço sós levaram
- Dos jogos de Belona verdadeiros,
- Que com dano de alguns se exercitaram.
- Vê mortos os soberbos cavaleiros,
- Que o principal dos três desafiaram,
- Que Gonçalo Ribeiro se nomeia,
- Que pode não temer a lei Leteia.
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- 28
- "Atenta num, que a fama tanto estende,
- Que de nenhum passado se contenta;
- Que a pátria, que de um fraco fio pende,
- Sobre seus duros ombros a sustenta.
- Não no vês tinto de ira, que reprende
- A vil desconfiança inerte e lenta
- Do povo, e faz que tome o doce freio
- De Rei seu natural, e não de alheio?
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- 29
- "Olha: por seu conselho e ousadia
- De Deus guiada só, e de santa estrela,
- Só pode o que impossível parecia:
- Vencer o povo ingente de Castela.
- Vês, por indústria, esforço e valentia,
- Outro estrago e vitória clara e bela,
- Na gente, assim feroz como infinita,
- Que entre o Tarteso e Goadiana habita?
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- 30
- "Mas não vês quase já desbaratado
- O poder Lusitano, pela ausência
- Do Capitão devoto, que, apartado
- Orando invoca a suma e trina Essência?
- Vê-lo com pressa já dos seus achado,
- Que lhe dizem que falta resistência
- Contra poder tamanho, e que viesse,
- Por que consigo esforço aos fracos desse?
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- 31
- "Mas olha com que santa confiança,
- - Que inda não era tempo, - respondia,
- Como quem tinha em Deus a seguraria
- Da vitória que logo lhe daria.
- Assim Pompílio, ouvindo que a possança
- Dos inimigos a terra lhe corria,
- A quem lhe a dura nova estava dando,
- -"Pois eu, responde, estou sacrificando." -
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- 32
- "Se quem com tanto esforço em Deus se atreve,
- Ouvir quiseres como se nomeia,
- Português Cipião chamar-se deve;
- Mas mais de Dom Nuno Alvares se arreia:
- Ditosa pátria que tal filho teve!
- Mas antes pai, que enquanto o Sol rodeia
- Este globo de Ceres e Netuno,
- Sempre suspirará por tal aluno.
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- 33
- "Na mesma guerra vê que presas ganha
- Estoutro Capitão de pouca gente;
- Comendadores vence e o gado apanha,
- Que levavam roubado ousadamente.
- Outra vez vê que a lança em sangue banha
- Destes, só por livrar com o amor ardente
- O preso amigo, preso por leal:
- Pêro Rodrigues é do Landroal.
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- 34
- "Olha este desleal o como paga
- O perjúrio que fez e vil engano:
- Gil Fernandes é de Elvas quem o estraga,
- E faz vir a passar o último dano:
- De Xerez rouba o campo, e quase alaga
- Com o sangue de seus donos Castelhano.
- Mas olha Rui Pereira, que com o rosto
- Faz escudo às galés, diante posto.
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- 35
- "Olha que dezessete Lusitanos,
- Neste outeiro subidos se defendem,
- Fortes, de quatrocentos Castelhanos,
- Que em derredor, pelos tomar, se estendem;
- Porém logo sentiram, com seus danos,
- Que não só se defendem, mas ofendem:
- Digno feito de ser no mundo eterno,
- Grande no tempo antigo e no moderno.
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- 36
- "Sabe-se antigamente que trezentos
- Já contra mil Romanos pelejaram,
- No tempo que os viris atrevimentos
- De Viriato tanto se ilustraram,
- E deles alcançando vencimentos
- Memoráveis, de herança nos deixaram
- Que os muitos, por ser poucos, não temamos:
- O que depois mil vezes amestramos.
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- 37
- "Olha cá dois infantes, Pedro e Henrique,
- Progénie generosa de Joane:
- Aquele faz que fama ilustre fique
- Dele em Germânia, com que a morte engane;
- Este, que ela nos mares o publique
- Por seu descobridor, e desengane
- De Ceita a Maura túmida vaidade,
- Primeiro entrando as portas da cidade.
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- 38
- "Vês o conde Dom Pedro, que sustenta
- Dois cercos contra toda a Barbaria?
- Vês, outro Conde está, que representa
- Em terra Marte, em forças e ousadia;
- De poder defender se não contenta
- Alcácere da ingente companhia;
- Mas do seu Rei defende a cara vida,
- Pondo por muro a sua, ali perdida.
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- 39
- "Outros muitos verias, que os pintores
- Aqui também por certo pintariam;
- Mas falta-lhe pincel, faltam-lhe cores,
- Honra, prémio, favor, que as artes criam:
- Culpa dos viciosos sucessores,
- Que degeneram, certo, e se desviam
- Do lustre e do valor dos seus passados,
- Em gostos e vaidades atolados.
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- 40
- "Aqueles pais ilustres que já deram
- Princípio à geração que deles pende,
- Pela virtude muito então fizeram,
- E por deixar a casa, que descende.
- Cegos, que dos trabalhos que tiveram,
- Se alta fama e rumor deles se estende,
- Escuros deixam sempre seus menores,
- Com lhe deixar descansos corruptores.
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- 41
- "Outros também há grandes e abastados,
- Sem nenhum tronco ilustre donde venham;
- Culpa de Reis, que às vezes a privados
- Dão mais que a mil, que esforço e saber tenham.
- Estes os seus não querem ver pintados,
- Crendo que cores vãs lhe não convenham,
- E, como a seu contrairo natural,
- A pintura, que fala, querem mal.
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- 42
- "Não nego que há contudo descendentes
- Do generoso tronco, e casa rica,
- Que com costumes altos e excelentes,
- Sustentam a nobreza que lhe fica;
- E se a luz dos antigos seus parentes
- Neles mais o valor não clarifica,
- Não falta ao menos, nem se faz escura.
- Mas destes acha poucos a pintura."
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- 43
- Assim está declarando os grandes feitos
- O Gama, que ali mostra a vária tinta,
- Que a douta mão tão claros, tão perfeitos,
- Do singular artífice ali pinta.
- Os olhos tinha prontos e direitos
- O Catual na história bem distinta;
- Mil vezes perguntava e mil ouvia
- As gostosas batalhas que ali via.
-
- 44
- Mas já a luz se mostrava duvidosa,
- Porque a a lâmpada grande se escondia
- Debaixo do Horizonte e luminosa
- Levava aos Antípodas o dia,
- Quando o Gentio e a gente generosa
- Dos Naires da nau forte se partia
- A buscar o repouso que descansa
- Os lassos animais, na noite mansa.
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- 45
- Entretanto os Arúspices famosos
- Na falsa opinião, que em sacrifícios
- Antevêem sempre os casos duvidosos,
- Por sinais diabólicos e indícios,
- Mandados do Rei próprio, estudiosos
- Exercitavam a arte e seus ofícios
- Sobre esta vinda desta gente estranha,
- Que às suas terras vem da ignota Espanha.
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- 46
- Sinal lhe mostra o Demo verdadeiro,
- De como a nova gente lhe seria
- Jugo perpétuo, eterno cativeiro,
- Destruição de gente, e de valia.
- Vai-se espantado o atónito agoureiro
- Dizer ao Rei (segundo o que entendia)
- Os sinais temerosos que alcançara
- Nas entranhas das vítimas que olhara.
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- 47
- A isto mais se ajunta que um devoto
- Sacerdote da lei de Mafamede,
- Dos ódios concebidos não remoto
- Contra a divina Fé, que tudo excede,
- Em forma do Profeta falso e noto,
- Que do filho da escrava Agar procede,
- Baco odioso em sonhos lhe aparece,
- Que de seus ódios ainda se não desse.
-
- 48
- E diz-lhe assim: "Guardai-vos, gente minha,
- Do mal que se aparelha pelo inimigo
- Que pelas águas úmidas caminha,
- Antes que esteis mais perto do perigo."
- Isto dizendo, acorda o Mouro asinha,
- Espantado do sonho; mas consigo
- Cuida que não é mais que sonho usado:
- Torna a dormir quieto e sossegado.
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- 49
- Torna Baco, dizendo: "Não conheces
- O grã legislador que a teus passados
- Tem mostrado o preceito a que obedeces,
- Sem o qual fôreis muitos batizados?
- Eu por ti, rudo, velo; e tu adormeces!
- Pois saberás que aqueles, que chegados
- De novo são, serão muito grande dano
- Da lei que eu dei ao néscio povo humano.
-
- 50
- "Enquanto é fraca a força desta gente,
- Ordena como em tudo se resista,
- Porque, quando o Sol sai, facilmente
- Se pode nele pôr a aguda vista;
- Porém, depois que sobe claro e ardente,
- Se agudeza dos olhos o conquista,
- Tão cega fica, quanto ficareis,
- Se raízes criar lhe não tolheis."
-
- 51
- Isto dito, ele e o sono se despede.
- Tremendo fica o atónito Agareno:
- Salta da cama, lume ao servos pede,
- Lavrando nele o fervido veneno.
- Tanto que a nova luz que ao Sol precede
- Mostrara rosto angélico e sereno,
- Convoca os principais da torpe seita,
- Aos quais do que sonhou dá conta estreita.
-
- 52
- Diversos pareceres e contrários
- Ali se dão , segundo o que entendiam;
- Astutas traições, enganos vários,
- Perfídias inventavam e teciam.
- Mas, deixando conselhos temerários,
- Destruição da gente pretendiam,
- Por manhas mais subtis e ardis melhores,
- Com peitas adquirindo os regedores;
-
- 53
- Com peitas, ouro, e dádivas secretas
- Conciliam da terra os principais,
- E com razões notáveis e discretas
- Mostram ser perdição dos naturais,
- Dizendo que são gentes inquietas,
- Que, os mares discorrendo ocidentais,
- Vivem só de piráticas rapinas,
- Sem Rei, sem leis humanas ou divinas
-
- 54
- Ó quanto deve o Rei que bem governa,
- De olhar que os conselheiros, ou privados,
- De consciência e de virtude interna
- E de sincero amor sejam dotados!
- Porque, como este posto na suprema
- Cadeira, pode mal dos apartados
- Negócios ter notícia mais inteira,
- Do que lhe der a língua conselheira.
-
- 55
- Nem tão pouco direi que tome tanto
- Em grosso a consciência limpa e certa,
- Que se enleve num pobre e humilde manto,
- Onde ambição acaso ande encoberta.
- E quando um bom em tudo é justo e santo,
- Em negócios do mundo pouco acerta,
- Que mal com eles poderá ter conta
- A quieta inocência, em só Deus pronta.
-
- 56
- Mas aqueles avaros Catuais,
- Que o Gentílico povo governavam,
- Induzidos das gentes infernais,
- O Português despacho dilatavam.
- Mas o Gama, que não pretende mais,
- De tudo quanto os Mouros ordenavam,
- Que levar a seu Rei um sinal certo
- Do mundo, que deixava descoberto.
-
- 57
- Nisto trabalha só; que bem sabia
- Que depois que levasse esta certeza,
- Armas, o naus, e gente mandaria
- Manuel, que exercita a suma alteza,
- Com que a seu jugo e lei someteria
- Das terras e do mar a redondeza;
- Que ele não era mais que um diligente
- Descobridor das terras do Oriente.
-
- 58
- Falar ao Rei gentio determina,
- Por que com seu despacho se tornasse,
- Que já sentia em tudo da malina
- Gente impedir-se quanto desejasse.
- O Rei, que da notícia falsa e indina
- Não era de espantar se se espantasse,
- Que tão crédulo era em seus agouros,
- E mais sendo afirmados pelos Mouros,
-
- 59
- Este temor lhe esfria o baixo peito.
- Por outra parte a força da cobiça,
- A quem por natureza está sujeito,
- Um desejo imortal lhe acende e atiça:
- Que bem vê que grandíssimo proveito
- Fará, se com verdade e com justiça
- O contrato fizer por longos anos,
- Que lhe comete o Rei dos Lusitanos.
-
- 60
- Sobre isto, nos conselhos que tomava,
- Achava muito contrários pareceres;
- Que naqueles com quem se aconselhava
- Executa o dinheiro seus poderes.
- O grande Capitão chamar mandava,
- A quem chegado disse: - "Se quiseres
- Confessar-me a verdade limpa e nua,
- Perdão alcançarás da culpa tua.
-
- 61
- Fala do Samorim ao Gama
- "Eu sou bem informado que a embaixada
- Que de teu Rei me deste, que é fingida;
- Porque nem tu tens Rei, nem pátria amada,
- Mas vagabundo vás passando a vida;
- Que quem da Hespéria última alongada,
- Rei ou senhor de insânia desmedida,
- Há de vir cometer com naus e frotas
- Tão incertas viagens e remotas?
-
- 62
- "E se de grandes Reinos poderosos
- O teu Rei tem a régia majestade,
- Que presentes me trazes valerosos,
- Sinais de tua incógnita verdade?
- Com peças e dons altos, sumptuosos,
- Se lia dos Reis altos a amizade;
- Que sinal nem penhor não é bastante
- As palavras dum vago navegante.
-
- 63
- "Se porventura vindes desterrados,
- Como já foram homens de alta sorte,
- Em meu Reino sereis agasalhados,
- Que toda a terra é pátria para o forte,;
- Ou se piratas sois ao mar usados,
- Dizei-mo sem temor de infâmia ou morte,
- Que por se sustentar em toda idade,
- Tudo faz a vital necessidade."
-
- 64
- Isto assim dito, o Gama, que já tinha
- Suspeitas das insídias que ordenava
- O Mallomético ódio, donde vinha
- Aquilo que tão mal o Rei cuidava,
- Com uma alta confiança, que convinha,
- Com que seguro crédito alcançava,
- Que Vénus Acidália lhe influía,
- Tais palavras do sábio peito abria:
-
- 65
- "Se os antigos delitos, que a malícia
- Humana cometeu na prisca idade,
- Não causaram que o vaso da niquícia,
- Açoute tão cruel da Cristandade,
- Viera pôr perpétua inimicícia
- Na geração de Adão, coa falsidade,
- Ó poderoso Rei da torpe seita,
- Não conceberas tu tão má suspeita.
-
- 66
- "Mas porque nenhum grande bem se alcança
- Sem grandes opressões, e em todo o feito
- Segue o temor os passos da esperança,
- Que em suor vive sempre de seu peito,
- Me mostras tu tão pouca confiança
- Desta minha verdade, sem respeito
- Das razões em contrário que acharias
- Se não cresses a quem não crer devias.
-
- 67
- "Porque, se eu de rapinas só vivesse,
- Undívago, ou da pátria desterrado,
- Como crês que tão longe me viesse
- Buscar assento incógnito e apartado?
- Por que esperanças, ou por que interesse
- Viria experimentando o mar irado,
- Os Antarcticos frios, e os ardores
- Que sofrem do Carneiro os moradores?
-
- 68
- "Se com grandes presentes de alta estima
- O crédito me pedes do que digo,
- Eu não vim mais que a achar o estranho clima
- Onde a natura pôs teu Reino antigo.
- Mas, se a Fortuna tanto me sublima
- Que eu torne à minha pátria e Reino amigo,
- Então verás o dom soberbo e rico,
- Com que minha tornada certifico.
-
- 69
- "Se te parece inopinado feito,
- Que Rei da última Hespéria a ti me mande,
- O coração sublime, o régio peito,
- Nenhum caso possível tem por grande.
- Bem parece que o nobre e grã conceito
- Do Lusitano espírito demande
- Maior crédito, e fé de mais alteza,
- Que creia dele tanta fortaleza.
-
- 70
- "Sabe que há muitos anos que os antigos
- Reis nossos firmemente propuseram
- De vencer os trabalhos e perigos,
- Que sempre às grandes coisas se opuseram;
- E, descobrindo os mares inimigos
- Do quieto descanso, pretenderam
- De saber que fim tinham, e onde estavam
- As derradeiras praias que lavavam.
-
- 71
- "Conceito digno foi do ramo claro
- Do venturoso Rei, que arou primeiro
- O mar, por ir deitar do ninho caro
- O morador de Abila derradeiro.
- Este, por sua indústria e engenho raro,
- Num madeiro ajuntando outro madeiro,
- Descobrir pôde a parte, que faz clara
- De Argos, da Hidra a luz, da Lebre e da Ara.
-
- 72
- "Crescendo com os sucessos bons primeiros
- No peito as ousadias, descobriram
- Pouco e pouco caminhos estrangeiros,
- Que uns, sucedendo aos outros, prosseguiram.
- De África os moradores derradeiros
- Austrais, que nunca as sete flamas viram,
- Foram vistos de nós, atrás deixando
- Quantos estão os Trópicos queimando.
-
- 73
- "Assim com firme peito, e com tamanho
- Propósito, vencemos a Fortuna,
- Até que nós no teu terreno estranho
- Viemos pôr a última coluna.
- Rompendo a força do líquido estanho,
- Da tempestade horrífica e importuna,
- A ti chegamos, de quem só queremos
- Sinal, que ao nosso Rei de ti levemos.
-
- 74
- "Esta é a verdade, Rei; que não faria
- Por tão incerto bem, tão fraco prémio,
- Qual, não sendo isto assim, esperar podia,
- Tão longo, tão fingido e vão proêmio;
- Mas antes descansar me deixaria
- No nunca descansado e fero grêmio
- Da madre Tethys, qual pirata inico,
- Dos trabalhos alheios feito rico.
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- 75
- "Assim que, ó Rei, se minha grã verdade
- Tens por qual é, sincera e não dobrada,
- Ajunta-me ao despacho brevidade,
- Não me impeças o gosto da tornada.
- E, se ainda te parece falsidade,
- Cuida bem na razão que está provada,
- Que com claro juízo pode ver-se,
- Que fácil é a verdade de entender-se."
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- 76
- A tento estava o Rei na segurança
- Com que provava o Gama o que dizia;
- Concebe dele certa confiança,
- Crédito firme em quanto proferia.
- Pondera das palavras a abastança,
- Julga na autoridade grão valia,
- Começa de julgar por enganados
- Os Catuais corruptos, mal julgados.
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- 77
- Juntamente a cobiça do proveito,
- Que espera do contrato Lusitano,
- O faz obedecer e ter respeito
- Com o Capitão, e não com o Mauro engano.
- Enfim ao Gama manda que direito
- As naus se vá, e, seguro de algum dano,
- Possa a terra mandar qualquer fazenda,
- Que pela especiaria troque e venda.
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- Que mande da fazenda, enfim, lhe manda,
- Que nos Reinos Gangéticos faleça;
- Se alguma traz idónea lá da banda
- Donde a terra se acaba e o mar começa.
- Já da real presença veneranda
- Se parte o Capitão, para onde peça
- Ao Catual, que dele tinha cargo,
- Embarcação, que a sua está de largo.
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- 79
- Embarcação que o leve às naus lhe pede;
- Mas o mau Regedor, que novos laços
- Lhe maquinava, nada lhe concede,
- Interpondo tardanças e embaraços.
- Com ele parte ao cais, por que o arrede
- Longe quanto puder dos régios paços,
- Onde, sem que seu Rei tenha notícia,
- Faça o que lhe ensinar sua malícia.
-
- 80
- Lá bem longe lhe diz que lhe daria
- Embarcação bastante em que partisse,
- Ou que para a luz crástina do dia
- Futuro sua partida diferisse.
- Já com tantas tardanças entendia
- O Gama, que o Gentio consentisse
- Na má tenção dos Mouros, torpe e fera,
- O que dele atéli não entendera.
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- 81
- Era este Catual um dos que estavam
- Corruptos pela Maumetana gente,
- O principal por quem se governavam
- As cidades do Samorim potente.
- Dele somente os Mouros esperavam
- Efeito a seus enganos torpemente.
- Ele, que no conceito vil conspira,
- De suas esperanças não delira.
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- 82
- O Gama com instância lhe requere
- Que o mande pôr nas naus, e não lhe vai;
- E que assim lhe mandara, lhe refere,
- O nobre sucessor de Perimal.
- Por que razão lhe impede e lhe difere
- A fazenda trazer de Portugal?
- Pois aquilo que os Reis já têm mandado
- Não pode ser por outrem derrogado.
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- 83
- Pouco obedece o Catual corrupto
- A tais palavras; antes revolvendo
- Na fantasia algum subtil e astuto
- Engano diabólico e estupendo,
- Ou como banhar possa o ferro bruto
- No sangue avorrecido, estava vendo;
- Ou como as naus em fogo lhe abrasasse,
- Por que nenhuma à pátria mais tornasse.
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- 84
- Que nenhum torne à pátria só pretende
- O conselho infernal dos Maumetanos,
- Por que não saiba nunca onde se estende
- A terra Eoa o Rei dos Lusitanos.
- Não parte o Gama enfim, que lho defende
- O Regedor dos bárbaros profanos;
- Nem sem licença sua ir-se podia,
- Que as almadias todas lhe tolhia.
-
- 85
- Aos brados o razões do Capitão
- Responde o Idolatra que mandasse -
- Chegar à terra as naus, que longo estão,
- Por que melhor dali fosse e tornasse.
- "Sinal é de inimigo e de ladrão,
- Que lá tão longe a frota se alargasse,
- Lhe diz, porque do certo e fido amigo
- É não temer do seu nenhum perigo."
-
- 86
- Nestas palavras o discreto Gama
- Enxerga bem que as naus deseja perto
- O Catual, por que com f erro e flama,
- Lhas assalte, por ódio descoberto.
- Em vários pensamentos se derrama;
- Fantasiando está remédio certo,
- Que desse a quanto mal se lhe ordenava;
- Tudo temia, tudo enfim cuidava.
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- 87
- Qual o reflexo lume do polido
- Espelho de aço, ou de cristal formoso,
- Que, do raio solar sendo ferido,
- Vai ferir noutra parte luminoso,
- E, sendo da ociosa mão movido
- Pela casa do moço curioso,
- Anda pelas paredes é telhado
- Trêmulo, aqui e ali, e dessossegado:
-
- 88
- Tal o vago juízo flutuava
- Do Gama preso, quando lhe lembrara
- Coelho, se por caso o esperava
- Na praia com os batéis, como ordenara.
- Logo secretamente lhe mandava,
- "Que se tornasse à frota, que deixara;
- Não fosse salteado dos enganos,
- Que esperava dos feros Maumetanos."
-
- 89
- Tal há de ser quem quer, com o dom de Marte,
- Imitar os ilustres e igualá-los:
- Voar com o pensamento a toda parte,
- Adivinhar perigos, e evitá-los:
- Com militar engenho e subtil arte
- Entender os inimigos, e enganá-los;
- Crer tudo, enfim, que nunca louvarei
- O Capitão que diga: "Não cuidei".
-
- 90
- Insiste o Malabar em tê-lo preso,
- Se não manda chegar a terra a armada;
- Ele constante, e de ira nobre aceso,
- Os ameaços seus não teme nada;
- Que antes quer sobre si tomar o peso
- De quanto mal a vil malícia ousada
- Lhe andar armando, que pôr em ventura
- A frota de seu Rei, que tem segura.
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- 91
- Aquela noite esteve ali detido,
- E parte do outro dia, quando ordena
- De se tornar ao Rei; mas impedido
- Foi da guarda que tinha, não pequena.
- Comete-lhe o Gentio outro partido,
- Temendo de seu Rei castigo ou pena,
- Se sabe esta malícia, a qual asinha
- Saberá, se mais tempo ali o detinha.
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- 92
- Diz-lhe "que mande vir toda a fazenda
- Vendível, que trazia, para a terra,
- Para que de vagar se troque e venda:
- Que quem não quer comércio, busca guerra.
- Posto que os maus propósitos entenda
- O Gama, que o danado peito encerra,
- Consente, porque sabe por verdade,
- Que compra com a fazenda a liberdade.
-
- 93
- Concertam-se que o negro mande dar
- Embarcações idóneas com que venha;
- Que os seus batéis não quer aventurar
- Onde lhos tome o inimigo, ou lhos detenha.
- Partem as almadias a buscar
- Mercadoria Hispana, que convenha.
- Escreve a seu irmão que lhe mandasse
- A fazenda com que se resgatasse.
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- 94
- Vem a fazenda a terra, aonde logo
- A agasalhou o infame Catual;
- Com ela ficam Álvaro e Diogo,
- Que a pudessem vender pelo que val.
- Se mais que obrigação, que mando e rogo
- No peito vil o prémio pode e val,
- Bem o mostra o Gentio a quem o entenda,
- Pois o Gama soltou pela fazenda.
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- 95
- Por ela o solta, crendo que ali tinha
- Penhor bastante, donde recebesse
- Interesse maior do que lhe vinha,
- Se o Capitão mais tempo detivesse.
- Ele, vendo que já lhe não convinha
- Tornar a terra, por que não pudesse
- Ser mais retido, sendo às naus chegado
- Nelas estar se deixa descansado.
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- 96
- Nas naus estar se deixa vagaroso,
- Até ver o que o tempo lhe descobre:
- Que não se fia já do cobiçoso
- Regedor corrompido e pouco nobre.
- Veja agora o juízo curioso
- Quanto no rico, assim como no pobre,
- Pode o vil interesse e sede inimiga
- Do dinheiro, que a tudo nos obriga.
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- 97
- A Polidoro mata o Ptei Treício,
- Só por ficar senhor do grão tesouro;
- Entra, pelo fortíssimo edifício,
- Com a filha de Acriso a chuva d'ouro;
- Pode tanto em Tarpeia avaro vício,
- Que, a troco do metal luzente e louro,
- Entrega aos inimigos a alta torre,
- Do qual quase afogada em pago morre.
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- 98
- Este rende munidas fortalezas,
- Faz tredores e falsos os amigos:
- Este a mais nobres faz fazer vilezas,
- E entrega Capitães aos inimigos;
- Este corrompe virginais purezas,
- Sem temer de honra ou fama alguns perigos:
- Este deprava às vezes as ciências,
- Os juízos cegando e as consciências;
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- 99
- Este interpreta mais que sutilmente.
- Os textos; este faz e desfaz leis;
- Este causa os perjúrios entre a gente,
- E mil vezes tiranos torna os Reis.
- Até os que só a Deus Onipotente
- Se dedicam, mil vezes ouvireis
- Que corrompe este encantador, e ilude;
- Mas não sem cor, contudo, de virtude.
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