Sermão do Mandato (1655): diferenças entre revisões
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Posto, pois, um dia defronte do outro dia, e um mistério à vista de outro mistério, e um amor competindo com outro amor, é certo que nunca o amor divino se viu em mais glorioso teatro, pois sai a competir consigo mesmo. Nas outras comparações do amor divino com o amor dos homens, ou seja com o amor dos irmãos, ou com o amor dos pais, ou com o amor dos filhos, ou com o amor dos esposos, ou com o amor dos amigos - que deve ser o maior de todos ainda que saia vencedor o amor de Cristo, sempre fica agravado na vitória, porque entra afrontado na competência. Só hoje, se vencer, será vencedor glorioso, porque tem competidor igual, e se vencerá a si mesmo. Quando Davi saiu a desafio com o gigante, mediu-lhe o gigante com os olhos a estatura, e, posto que não duvidava da vitória, na desigualdade de tão inferior combatente teve por injuriosa a batalha. Do mesmo modo, e com mais verdade, Cristo. Quando o seu amor se compara com outro amor, compete o gigante com Davi; mas quando se compara o amor de Cristo com o amor do mesmo Cristo, como fazemos hoje, é competir o gigante com o gigante. Assim o disse ou cantou o mesmo Davi: ''Exultavit ut gigas ad currendam viam''<ref>"''Deu saltos como gigante para correr o caminho (Sl 18, 6)''"</ref>. Entrou Cristo na estacada como gigante. E que fez? Justou consigo mesmo. A primeira carreira foi do céu para a terra: ''A summo caelo egressio ejus''<ref>"''A sua saída é desde uma extremidade do céu (Sl 18, 7)''"</ref>; a segunda carreira foi da terra para o céu: ''Et occursus ejus usque ad summum ejus''<ref>"''E corre até à outra extremidade dele (Sl 18, 7)''"</ref>: e neste encontro se cerrou a justa, e se quebraram as lanças um e outro amor. É em verso de Davi o mesmo que diz a prosa do nosso Evangelho. A primeira carreira: A summo caelo egressio ejus - foi no dia da Encarnação, quando o Verbo saiu do Padre: a Deo exivit; a segunda carreira: Et occursus ejus usque ad summum ejus - foi no dia de hoje, quando o mesmo Verbo tornou para o Padre: Et ad Deum vadit. Na primeira carreira, amor: ''Cum dilexisset suos''<ref>"''Como tinha amado os seus (Jo 13, 1)''"</ref>; e na segunda também amor: ''In finem dilexit eos''<ref>"''Amou-os até ao fim (Jo 13, 1)''"</ref>. O dilexisset e o dilexit distingue os dias: o dilexisset declara um amor, e o dilexit outro; mas nem juntos, nem divididos sinalam a vitória, nem resolvem qual foi maior. Esta famosa decisão entre os maiores combatentes que jamais se viram, havemos de ver hoje. Assistir-nos-á com a graça quem foi presente em um e outro dia, e quem teve a maior parte em um e outro mistério, que foi a Mãe do mesmo amor: ''Mater pulchrae dilectionis''<ref>"''Mãe do amor formoso (Eclo 24, 24)''"</ref>. Mas como invocaremos seu favor e patrocínio? Com as mesmas palavras com que também hoje a invocou o anjo: Ave gratia plena. |
Posto, pois, um dia defronte do outro dia, e um mistério à vista de outro mistério, e um amor competindo com outro amor, é certo que nunca o amor divino se viu em mais glorioso teatro, pois sai a competir consigo mesmo. Nas outras comparações do amor divino com o amor dos homens, ou seja com o amor dos irmãos, ou com o amor dos pais, ou com o amor dos filhos, ou com o amor dos esposos, ou com o amor dos amigos - que deve ser o maior de todos ainda que saia vencedor o amor de Cristo, sempre fica agravado na vitória, porque entra afrontado na competência. Só hoje, se vencer, será vencedor glorioso, porque tem competidor igual, e se vencerá a si mesmo. Quando Davi saiu a desafio com o gigante, mediu-lhe o gigante com os olhos a estatura, e, posto que não duvidava da vitória, na desigualdade de tão inferior combatente teve por injuriosa a batalha. Do mesmo modo, e com mais verdade, Cristo. Quando o seu amor se compara com outro amor, compete o gigante com Davi; mas quando se compara o amor de Cristo com o amor do mesmo Cristo, como fazemos hoje, é competir o gigante com o gigante. Assim o disse ou cantou o mesmo Davi: ''Exultavit ut gigas ad currendam viam''<ref>"''Deu saltos como gigante para correr o caminho (Sl 18, 6)''"</ref>. Entrou Cristo na estacada como gigante. E que fez? Justou consigo mesmo. A primeira carreira foi do céu para a terra: ''A summo caelo egressio ejus''<ref>"''A sua saída é desde uma extremidade do céu (Sl 18, 7)''"</ref>; a segunda carreira foi da terra para o céu: ''Et occursus ejus usque ad summum ejus''<ref>"''E corre até à outra extremidade dele (Sl 18, 7)''"</ref>: e neste encontro se cerrou a justa, e se quebraram as lanças um e outro amor. É em verso de Davi o mesmo que diz a prosa do nosso Evangelho. A primeira carreira: A summo caelo egressio ejus - foi no dia da Encarnação, quando o Verbo saiu do Padre: a Deo exivit; a segunda carreira: Et occursus ejus usque ad summum ejus - foi no dia de hoje, quando o mesmo Verbo tornou para o Padre: Et ad Deum vadit. Na primeira carreira, amor: ''Cum dilexisset suos''<ref>"''Como tinha amado os seus (Jo 13, 1)''"</ref>; e na segunda também amor: ''In finem dilexit eos''<ref>"''Amou-os até ao fim (Jo 13, 1)''"</ref>. O dilexisset e o dilexit distingue os dias: o dilexisset declara um amor, e o dilexit outro; mas nem juntos, nem divididos sinalam a vitória, nem resolvem qual foi maior. Esta famosa decisão entre os maiores combatentes que jamais se viram, havemos de ver hoje. Assistir-nos-á com a graça quem foi presente em um e outro dia, e quem teve a maior parte em um e outro mistério, que foi a Mãe do mesmo amor: ''Mater pulchrae dilectionis''<ref>"''Mãe do amor formoso (Eclo 24, 24)''"</ref>. Mas como invocaremos seu favor e patrocínio? Com as mesmas palavras com que também hoje a invocou o anjo: Ave gratia plena. |
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== § II == |
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O amor de Cristo quanto à substância e quanto aos efeitos. Os extremos do amor de Cristo no dia da Encarnação e no dia da partida. Comparando-se os efeitos Deuses dois dias, afirma o autor que maiores foram os extremos do dia da partida que os do dia da Encarnação. |
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:''Cum dilexisset, dilexit.'' |
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Nestas palavras - como dizia - deixou o Evangelista indecisa a nossa questão, porque não disse: como amasse mais amou menos, nem como amasse menos amou mais, senão como amasse amou. Distinguiu somente os tempos, e pelos tempos o amor, sem preferência porém, ou vantagem nem do amor passado ao presente, nem do presente ao passado. Falou S. João como divino teólogo, e não só como quem tecia a história, mas como quem compunha o panegírico do amor de Cristo. Quanto à substância do amor, Cristo, Senhor nosso, tanto nos amou no dia da Encarnação, como no dia de hoje, e em todos os dias da sua vida, porque o seu amor é amor perfeito, e não fora seu, se assim não fora. O amor dos homens, ou míngua,ou cresce, ou pára; o de Cristo nem pode minguar, nem crescer, nem parar, porque é, foi, e será sempre amor perfeito, e por isso sempre o mesmo, e sem alteração nem mudança. Ama Cristo enquanto homem, como ama enquanto Deus. Perguntam os teólogos: como ama Deus a uns mais e a outros menos, se o seu amor - o qual se não distingue da sua essência - é sempre um só e o mesmo, infinito, simplicíssimo e imutável? E respondem que a diferença ou desigualdade não está no amor, senão nos efeitos, porque a uns sujeitos faz Deus maiores bens que a outros. Os homens amamos os objetos pelo bem que tem: Deus ama-os pelo bem que lhes faz. E assim como julgamos a maioria do amor de Deus belos efeitos, assim havemos de julgar também a do amor de Cristo. Este é o fundamento sólido e certo sobre que excitamos a nossa questão, e estes os termos de igual certeza, com que a havemos de resolver. Nem daqui deve inferir ou cuidar a rudeza do nosso entendimento que seria menos afetuoso, ou menos amoroso, este modo de amar de Cristo, porque assim como em Deus o fazer o bem se chama amor efetivo, e o querê-lo fazer amor afetivo, assim no amor de Cristo os afetos foram a causa dos efeitos que veremos, e os efeitos a demonstração dos afetos. |
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Vindo, pois, aos efeitos e demonstrações de um e outro amor no dia de hoje e no dia da Encarnação, parece que assim no número, como no modo, os esteve medindo e proporcionando o mesmo amor, que neles se quis igualar e vencer. O Concílio Niceno, no Símbolo da Fé, ponderando o amor de Cristo na Encarnação, reduz os efeitos dele a dois extremos: descer do céu e fazer-se homem: ''Qui propter nos homines, et propter nostram salutem descendit de caelis. Et incarnatus est ex Maria Virgine, et homo facctus est''<ref>Que por nós homens, e pela nossa salvação, desceu dos céus, e se fez homem, nascendo de Maria Virgem.</ref>. Isto diz o Espírito Santo no Concílio, falando do dia da Encarnação. E falando do dia de hoje, que é o que diz e pondera o mesmo Espírito Santo no Evangelho? Outros dois efeitos e outros dois extremos: lavar os pés aos homens, e deixar-se no Santíssimo Sacramento: ''Et coena facta, coepit lavare pedes discipulorum''<ref>"''E acabada a ceia, começou a lavar os pés aos discípulos (Jo 13, 2. 5)''"</ref>. Supostos de uma e outra parte este par de extremos, uns e outros não só admiráveis mas estupendos, comparando-se o amor de Cristo, e competindo-se em uns e outros, que diremos ou que podemos dizer? Sem temeridade nem temor, digo e afirmo que maiores foram os extremos do dia de hoje que os do dia da Encarnação. E por quê? Porque, se no dia da Encarnação foi grande extremo de amor descer Deus do céu à terra: Descendit de coelis - muito maior extremo foi no dia de hoje lavar Cristo os pés aos homens: Coepit lavare pedes discipulorum. E se foi grande extremo de amor no dia da Encarnação fazer-se Deus homem: Et homo factus est - muito maior extremo foi no dia de hoje deixar Cristo seu corpo no Sacramento para que o comessem os homens, como fez na Ceia: Et coena facta. - Estes serão os dois pontos do nosso discurso, em que ele descobrirá muito mais do que aparece no que está dito. |
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Revisão das 16h39min de 27 de fevereiro de 2008
Concorrendo no mesmo dia o da Encarnação. Ano de 1655.
Pregado na Misericórdia de Lisboa, às 11 da manhã.
"Sciens quia a Deo exivit, et ad Deum vadit: Cum dilexisset suos, in finem dilexit eos" [1].
§ I
No ano presente concorrem e se ajuntam no mesmo dia os dois maiores mistérios e os dois maiores dias: o dia da Encarnação do Verbo e o dia da partida do mesmo Verbo Encarnado. O que dizem os dias e o que declaram as noites. A competição do Amor divino consigo mesmo e a justa dos gigantes. Argumento do sermão: foi maior o amor de Cristo no dia da Encarnação ou no dia da partida?
Grande dia! Grande amor! Depois que o Eterno se fez temporal, também o amor divino tem dias. O evangelista S. João querendo-nos declarar a grandeza e grandezas do mesmo amor neste dia, a primeira coisa que ponderou, com tão alto juízo como o seu, foi ser um dia antes de outro dia: Ante diem festum Paschae[2]. Tanto pode acrescentar quilates ao amor a reflexão ou circunstância dos dias! E que farei eu? Dois dias hei de combinar também hoje, mas não o dia de antes com o dia de depois, senão o dia de depois com o dia de antes; e não livremente ou por eleição própria e minha, senão por obrigação forçosa dos mesmos dias. Assim como depois de longo círculo de anos se encontram e ajuntam dois planetas a fazer uma conjunção magna, assim no ano presente concorrem e se ajuntam hoje no mesmo dia os dois maiores mistérios e os dois maiores dias: o dia da Encarnação do Verbo, e o dia da partida do mesmo Verbo encarnado. O dia da Encarnação do Verbo: Sciens quia a Deo exivit[3] - que foi o princípio com seu amor para com os homens: cum dilexisset suos[4] - e a partida do mesmo Verbo encarnado: Et ad Deum vadit[5] - que foi o fim sem fim do mesmo amor: In finem dilexit eos[6].
0 real profeta Davi, antevendo em espírito estes dois dias, diz que o dia de hoje fala com o dia da Encarnação, e o dia da Encarnação com o dia de hoje, e que ambos se entendem entre si, e se respondem um ao outro: Dies diei eructat verbum[7]. Assim explica este famoso texto Santo Agostinho[8]. E se perguntarmos que é o que falam estes dias, que devem de ser coisas muito dignas de se ouvir e saber, responde o mesmo Davi que as noites dos mesmos dias nos dirão e declararão o que eles falam: Dies diei eructat Verbum, et nox nocti indicat scientiam[9]. Pois as noites, que são escuras, nos hão de declarar o que dizem os dias? Sim. Porque os mistérios do dia de hoje, e do dia da Encarnação, ambos se celebraram nas noites dos mesmos dias. Tanto silêncio e reverência era devido à majestade de tão divinos mistérios! Os do dia da Encarnação de noite: Cum quietum silentium contineret omnia, et nox in suo cursu medium iter haberet[10] - e os do dia de hoje também de noite: Et coena facta[11]. As luzes a que se há de ver toda esta famosa representação são as da fé; os lugares, um cenáculo grande em Jerusalém, e uma casa humilde, mas real, em Nazaré. E a questão ou problema, qual será? Se foi maior o amor de Cristo no dia da Encarnação ou no dia de hoje.
Posto, pois, um dia defronte do outro dia, e um mistério à vista de outro mistério, e um amor competindo com outro amor, é certo que nunca o amor divino se viu em mais glorioso teatro, pois sai a competir consigo mesmo. Nas outras comparações do amor divino com o amor dos homens, ou seja com o amor dos irmãos, ou com o amor dos pais, ou com o amor dos filhos, ou com o amor dos esposos, ou com o amor dos amigos - que deve ser o maior de todos ainda que saia vencedor o amor de Cristo, sempre fica agravado na vitória, porque entra afrontado na competência. Só hoje, se vencer, será vencedor glorioso, porque tem competidor igual, e se vencerá a si mesmo. Quando Davi saiu a desafio com o gigante, mediu-lhe o gigante com os olhos a estatura, e, posto que não duvidava da vitória, na desigualdade de tão inferior combatente teve por injuriosa a batalha. Do mesmo modo, e com mais verdade, Cristo. Quando o seu amor se compara com outro amor, compete o gigante com Davi; mas quando se compara o amor de Cristo com o amor do mesmo Cristo, como fazemos hoje, é competir o gigante com o gigante. Assim o disse ou cantou o mesmo Davi: Exultavit ut gigas ad currendam viam[12]. Entrou Cristo na estacada como gigante. E que fez? Justou consigo mesmo. A primeira carreira foi do céu para a terra: A summo caelo egressio ejus[13]; a segunda carreira foi da terra para o céu: Et occursus ejus usque ad summum ejus[14]: e neste encontro se cerrou a justa, e se quebraram as lanças um e outro amor. É em verso de Davi o mesmo que diz a prosa do nosso Evangelho. A primeira carreira: A summo caelo egressio ejus - foi no dia da Encarnação, quando o Verbo saiu do Padre: a Deo exivit; a segunda carreira: Et occursus ejus usque ad summum ejus - foi no dia de hoje, quando o mesmo Verbo tornou para o Padre: Et ad Deum vadit. Na primeira carreira, amor: Cum dilexisset suos[15]; e na segunda também amor: In finem dilexit eos[16]. O dilexisset e o dilexit distingue os dias: o dilexisset declara um amor, e o dilexit outro; mas nem juntos, nem divididos sinalam a vitória, nem resolvem qual foi maior. Esta famosa decisão entre os maiores combatentes que jamais se viram, havemos de ver hoje. Assistir-nos-á com a graça quem foi presente em um e outro dia, e quem teve a maior parte em um e outro mistério, que foi a Mãe do mesmo amor: Mater pulchrae dilectionis[17]. Mas como invocaremos seu favor e patrocínio? Com as mesmas palavras com que também hoje a invocou o anjo: Ave gratia plena.
§ II
O amor de Cristo quanto à substância e quanto aos efeitos. Os extremos do amor de Cristo no dia da Encarnação e no dia da partida. Comparando-se os efeitos Deuses dois dias, afirma o autor que maiores foram os extremos do dia da partida que os do dia da Encarnação.
- Cum dilexisset, dilexit.
Nestas palavras - como dizia - deixou o Evangelista indecisa a nossa questão, porque não disse: como amasse mais amou menos, nem como amasse menos amou mais, senão como amasse amou. Distinguiu somente os tempos, e pelos tempos o amor, sem preferência porém, ou vantagem nem do amor passado ao presente, nem do presente ao passado. Falou S. João como divino teólogo, e não só como quem tecia a história, mas como quem compunha o panegírico do amor de Cristo. Quanto à substância do amor, Cristo, Senhor nosso, tanto nos amou no dia da Encarnação, como no dia de hoje, e em todos os dias da sua vida, porque o seu amor é amor perfeito, e não fora seu, se assim não fora. O amor dos homens, ou míngua,ou cresce, ou pára; o de Cristo nem pode minguar, nem crescer, nem parar, porque é, foi, e será sempre amor perfeito, e por isso sempre o mesmo, e sem alteração nem mudança. Ama Cristo enquanto homem, como ama enquanto Deus. Perguntam os teólogos: como ama Deus a uns mais e a outros menos, se o seu amor - o qual se não distingue da sua essência - é sempre um só e o mesmo, infinito, simplicíssimo e imutável? E respondem que a diferença ou desigualdade não está no amor, senão nos efeitos, porque a uns sujeitos faz Deus maiores bens que a outros. Os homens amamos os objetos pelo bem que tem: Deus ama-os pelo bem que lhes faz. E assim como julgamos a maioria do amor de Deus belos efeitos, assim havemos de julgar também a do amor de Cristo. Este é o fundamento sólido e certo sobre que excitamos a nossa questão, e estes os termos de igual certeza, com que a havemos de resolver. Nem daqui deve inferir ou cuidar a rudeza do nosso entendimento que seria menos afetuoso, ou menos amoroso, este modo de amar de Cristo, porque assim como em Deus o fazer o bem se chama amor efetivo, e o querê-lo fazer amor afetivo, assim no amor de Cristo os afetos foram a causa dos efeitos que veremos, e os efeitos a demonstração dos afetos.
Vindo, pois, aos efeitos e demonstrações de um e outro amor no dia de hoje e no dia da Encarnação, parece que assim no número, como no modo, os esteve medindo e proporcionando o mesmo amor, que neles se quis igualar e vencer. O Concílio Niceno, no Símbolo da Fé, ponderando o amor de Cristo na Encarnação, reduz os efeitos dele a dois extremos: descer do céu e fazer-se homem: Qui propter nos homines, et propter nostram salutem descendit de caelis. Et incarnatus est ex Maria Virgine, et homo facctus est[18]. Isto diz o Espírito Santo no Concílio, falando do dia da Encarnação. E falando do dia de hoje, que é o que diz e pondera o mesmo Espírito Santo no Evangelho? Outros dois efeitos e outros dois extremos: lavar os pés aos homens, e deixar-se no Santíssimo Sacramento: Et coena facta, coepit lavare pedes discipulorum[19]. Supostos de uma e outra parte este par de extremos, uns e outros não só admiráveis mas estupendos, comparando-se o amor de Cristo, e competindo-se em uns e outros, que diremos ou que podemos dizer? Sem temeridade nem temor, digo e afirmo que maiores foram os extremos do dia de hoje que os do dia da Encarnação. E por quê? Porque, se no dia da Encarnação foi grande extremo de amor descer Deus do céu à terra: Descendit de coelis - muito maior extremo foi no dia de hoje lavar Cristo os pés aos homens: Coepit lavare pedes discipulorum. E se foi grande extremo de amor no dia da Encarnação fazer-se Deus homem: Et homo factus est - muito maior extremo foi no dia de hoje deixar Cristo seu corpo no Sacramento para que o comessem os homens, como fez na Ceia: Et coena facta. - Estes serão os dois pontos do nosso discurso, em que ele descobrirá muito mais do que aparece no que está dito.
Notas
- ↑ "Sabendo Jesus que saíra de Deus e ia para Deus, como tinha amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim (Jo 13, 1. 3)".
- ↑ "Antes do dia da festa da Páscoa (Jo 13, 1)".
- ↑ "Sabendo que ele saíra de Deus (Ibid. 3)"
- ↑ "Como tinha amado os seus (Ibid. 1)".
- ↑ "E ia para Deus (Ibid. 3)".
- ↑ "Amou-os até ao fim (Ibid. 3)".
- ↑ "Um dia diz uma palavra a outro dia (Sl 18, 3)"
- ↑ August. Serm. 22 de Nativit.
- ↑ "Um dia diz uma palavra a outro dia, e uma noite mostra sabedoria a outra noite (Sl 18, 3)"
- ↑ "Quando tudo repousava num profundo silêncio, e a noite estava no meio do seu curso (Sab 18, 14)"
- ↑ "E acabada a ceia (Jo 13, 2)"
- ↑ "Deu saltos como gigante para correr o caminho (Sl 18, 6)"
- ↑ "A sua saída é desde uma extremidade do céu (Sl 18, 7)"
- ↑ "E corre até à outra extremidade dele (Sl 18, 7)"
- ↑ "Como tinha amado os seus (Jo 13, 1)"
- ↑ "Amou-os até ao fim (Jo 13, 1)"
- ↑ "Mãe do amor formoso (Eclo 24, 24)"
- ↑ Que por nós homens, e pela nossa salvação, desceu dos céus, e se fez homem, nascendo de Maria Virgem.
- ↑ "E acabada a ceia, começou a lavar os pés aos discípulos (Jo 13, 2. 5)"
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