Sermão do Mandato (1655): diferenças entre revisões

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É o que ponderou S. Paulo naquelas palavras: ''Nusquam angelos apprehendit, sed semen Abrahae apprehendit''<ref>"''Em nenhum lugar tomou aos anjos, mas tomou a descendência de Abraão (Hebr 2, 16).''"</ref>, cujo fundo e energia não acho tão declarada nos expositores como ele pede. Dizem que nusquam é o mesmo que nunquam ou nequaquam, mas nusquam não é simples negação, nem advérbio de tempo, senão de lugar, e propriamente quer dizer: em nenhuma parte. Pois, por que diz S. Paulo que não tomou Deus a natureza angélica em nenhuma parte, nusquam? Porque tinha Deus nove partes em que a tomar: três na primeira hierarquia, três na segunda e três na terceira. E essa foi a maravilha do mistério da Encarnação, que por tomar Deus a natureza humana, deixasse em tantas partes a angélica. Na primeira hierarquia deixou serafins, querubins, tronos; na segunda deixou potestades, principados, dominações; na terceira deixou virtudes, arcanjos, anjos; e no homem, que era o décimo, último e ínfimo lugar, onde jazia Jacó, ali tomou a nossa natureza caída, para a levantar, e enferma, para lhe dar saúde, que foi o fim para que tanto se abateu e desceu. Estando el-rei Ezequias mortalmente enfermo, prometeu-lhe o profeta Isaías a vida em nome de Deus; e em testemunho de que a promessa era divina, deu-lhe, por sinal no céu, que o sol tornaria atrás dez linhas, ou dez degraus, e assim sucedeu: ''Et reversus est sol decem lineis per gradus quos descenderat''<ref>"''E retrocedeu o sol dez linhas pelos graus por onde tinha descido (Is 38, 8).''"</ref>. E por que tornou o sol atrás dez linhas, ou dez degraus, e não onze, ou nove, senão dez, nem mais nem menos sinaladamente? Porque naquele prodígio, verdadeiramente grande, se significava outro maior, que era o da Encarnação do Verbo, na qual, assim como o sol, estando no zênite - que não podia ser de outra sorte - tornou atrás dez linhas, até se pôr nos horizontes da terra, assim Deus, desde o mais alto de sua majestade infinita, desceu outras dez linhas até se pôr na última e ínfima da natureza humana, e assim como fez aquele estupendo prodígio por amor de Ezequias, e em benefício da sua saúde, assim obrou o da Encarnação muito mais estupendo, por amor dos homens e para saúde dos homens: Qui propter nos homines, et propter nostram salutem descendit de caelis, et incarnatus est.
É o que ponderou S. Paulo naquelas palavras: ''Nusquam angelos apprehendit, sed semen Abrahae apprehendit''<ref>"''Em nenhum lugar tomou aos anjos, mas tomou a descendência de Abraão (Hebr 2, 16).''"</ref>, cujo fundo e energia não acho tão declarada nos expositores como ele pede. Dizem que nusquam é o mesmo que nunquam ou nequaquam, mas nusquam não é simples negação, nem advérbio de tempo, senão de lugar, e propriamente quer dizer: em nenhuma parte. Pois, por que diz S. Paulo que não tomou Deus a natureza angélica em nenhuma parte, nusquam? Porque tinha Deus nove partes em que a tomar: três na primeira hierarquia, três na segunda e três na terceira. E essa foi a maravilha do mistério da Encarnação, que por tomar Deus a natureza humana, deixasse em tantas partes a angélica. Na primeira hierarquia deixou serafins, querubins, tronos; na segunda deixou potestades, principados, dominações; na terceira deixou virtudes, arcanjos, anjos; e no homem, que era o décimo, último e ínfimo lugar, onde jazia Jacó, ali tomou a nossa natureza caída, para a levantar, e enferma, para lhe dar saúde, que foi o fim para que tanto se abateu e desceu. Estando el-rei Ezequias mortalmente enfermo, prometeu-lhe o profeta Isaías a vida em nome de Deus; e em testemunho de que a promessa era divina, deu-lhe, por sinal no céu, que o sol tornaria atrás dez linhas, ou dez degraus, e assim sucedeu: ''Et reversus est sol decem lineis per gradus quos descenderat''<ref>"''E retrocedeu o sol dez linhas pelos graus por onde tinha descido (Is 38, 8).''"</ref>. E por que tornou o sol atrás dez linhas, ou dez degraus, e não onze, ou nove, senão dez, nem mais nem menos sinaladamente? Porque naquele prodígio, verdadeiramente grande, se significava outro maior, que era o da Encarnação do Verbo, na qual, assim como o sol, estando no zênite - que não podia ser de outra sorte - tornou atrás dez linhas, até se pôr nos horizontes da terra, assim Deus, desde o mais alto de sua majestade infinita, desceu outras dez linhas até se pôr na última e ínfima da natureza humana, e assim como fez aquele estupendo prodígio por amor de Ezequias, e em benefício da sua saúde, assim obrou o da Encarnação muito mais estupendo, por amor dos homens e para saúde dos homens: Qui propter nos homines, et propter nostram salutem descendit de caelis, et incarnatus est.


== § IV ==

O pasmo e o horror dos discípulos de Cristo no Cenáculo. O assombro de Jacó e a reverência de Pedro. Quando se fez Deus homem e quando se fez servo? As duas metáforas ou comparações de São Paulo. Por que diz o apóstolo do terceiro céu que quando Cristo se fez servo não cuidou nem teve para si que a sua divindade não era sua?

Isto é o que neste dia se obrou em Nazaré. Mudemos agora a cena, e ponhamo-nos no Cenáculo de Jerusalém, e veremos com quanta maior razão se pode dizer daquele lugar: Terribilis est locus iste <ref>"''Quão terrível é este lugar (Gên 27, 17)!''"</ref>! Despe-se Cristo das roupas exteriores, cinge-se com uma toalha, deita água em uma bacia com suas próprias mãos: entende-se destas ações, que quer lavar os pés aos discípulos. E qual foi, com esta vista, o assombro, o pasmo, o horror com que as mesmas paredes do Cenáculo parece que tremiam? Não estava aqui Jacó, mas estava Pedro, o qual mais fora de si que no Tabor, exclamou, dizendo: Domine, tu mihi lavas pedes (Jo 13, 6)? Vós, Senhor, a mim lavar os pés? - Eternamente não consentirei tal coisa: Non lavabis mihi pedes in aeternum (Jo 13, 8). Já neste primeiro movimento se vê quanto vai de dia a dia, e de mistério a mistério. Comparai-me a S. Pedro com Jacó. Jacó, depois que viu a escada, e que Deus havia de descer por ela, desejava sumamente que descesse, e enquanto tardava a vir, lhe parecia uma eternidade: Donec veniret desiderium collium aeternorum <ref>"''Até que venha o desejo dos outeiros eternos (Gên 49, 26).
''"</ref>. Pelo contrário, Pedro, vendo que Cristo lhe quer lavar os pés, não sofre nem consente em tal ação, antes diz resolutamente que a não consentirá por toda a eternidade: Non lavabis mihi pedes in aeternum. - Se isto era amor e reverência de Cristo em Pedro, também Jacó o reverenciava e arnava muito. Pois, se Jacó deseja que Deus desça e se abata a se fazer homem, por que não consente Pedro que se abata a lhe lavar os pés? Por isso mesmo. Porque tanto vai de um abatimento a outro abatimento. Encarnar Deus, era fazer-se homem; lavar os pés aos homens era fazer-se servo; encarnar era vestir-se da nossa humanidade; fazer-se servo dos homens era despir-se da sua divindade.

Não me atrevera a dizer tanto se S. Paulo o não tivera dito, e ainda muito mais. É passo muitas vezes ouvido, mas que terá que explicar até o fim do mundo: Qui cum in forma Dei esset, non rapinam arbitratus est esse se aequalem Deo, sed semetipsum exinanivit formam servi accipiens, in similitudinem hominum factus, et habitu inventus ut homo <ref>"''0 qual, tendo a natureza de Deus, não julgou que fosse nele uma usurpação o ser igual a Deus; mas ele se aniquilou a si mesmo, tomando a natureza de servo, fazendo-se semelhante aos homens, e sendo reconhecido na condição como homem (Flp 2, 6 s).''"</ref>. Quer dizer: que sendo o Verbo Eterno igual ao Padre em tudo, se fez, e se desfez. Se fez porque, sendo Deus, se fez homem: ln similitudinem hominum factus, et habitu inventus ut homo; e se desfez porque, sendo Deus e homem, se fez servo, e, fazendo-se servo, se desfez e aniquilou a si mesmo: Exinanivit semetipsum, formam servi accipiens. Agora pergunto: quando se fez Deus homem, e quando se fez servo? Fez-se homem na Encarnação, e fez-se servo no lavatório dos pés. Logo, na Encarnação se fez e no lavatório se desfez. Muitos autores entendem todo este texto só da Encarnação, e que o fazer-se Deus homem foi juntamente fazer-se servo. Mas esta interpretação é imprópria, por não dizer injuriosa à natureza humana. O ser homem é indiferente, ou para ser servo ou para ser senhor; e Cristo, enquanto homem, não só foi Senhor, senão grande Senhor. Assim o disse o anjo no mesmo dia da Encarnação, anunciando que, enquanto Deus, seria Filho do Altíssimo, e, enquanto homem, herdeiro do cetro de seu pai Davi. Nesta suposição falou sempre o mesmo Cristo: Non est servus major domino suo. Si me persecuti sunt, et vos persequentur <ref>"''Não é o servo maior do que seu senhor. Se eles me perseguiram a mim, também vos hão de perseguir a vós (Jo 15, 20).''"</ref>; e hoje, depois do mesmo ato do lavatório: Vos vocatis me Magister et Domine, et bene dicitis: sum etenim <ref>"''Vós chamais-me Mestre e Senhor, e dizeis bem, porque o sou (Jo 13, 13).''"</ref>. Nem encontram, antes confirmam esta distinção as mesmas palavras de São Paulo, as quais dizem que tomou o Senhor a forma de servo, não fazendo-se, senão feito homem: Formam servi accipiens, in similitudinem hominum factus - porque, feito homem na Encarnação, tomou a forma de servo, lavando os pés aos homens. Expressa e esquisitamente Dioniso Alexandrino: Jesus Christus, Dominus et Deus apostolorum, cum accipisset ,formam servi, surgit a coena, et ponit vestimenta sua, et linteo praecinxit se: haec est forma servi. A baixeza do servo não é obra ou injúria da natureza, senão da fortuna. A natureza a todos os homens fez iguais: a fortuna é a que fez os altos, os baixos e os baixíssimos, quais são os servos. E esta foi a fineza do amor de Cristo hoje sobre a do dia e obra da Encarnação. Quando se fez homem tomou as condições da natureza; quando se fez servo e lavou os pés aos homens, tomou as baixezas da fortuna. Aquilo foi fazer-se, e isto desfazer-se: Exinanivit semetipsum, formam servi accipiens.

Com duas comparações ou metáforas, declara S. Paulo este fazer-se e desfazer-se: com metáfora da roupa que se veste e se despe, e com metáfora do vaso que se enche e se vaza. Com metáfora da roupa que se veste e se despe: Habitu inventus ut homo <ref>"''Sendo reconhecido na condição como homem (Flp 2, 7).''"</ref>; com metáfora do vaso que se enche e vaza: Exinanivit semetipsum <ref>"''Mas ele se aniquilou a si mesmo (Flp 2, 7 ).''"</ref> e ambas as metáforas parece que as tomou S. Paulo do mesmo ato do lavatório em que estamos. . A da roupa enquanto se despe: Ponit vestimenta sua <ref>"''Depôs suas vestiduras (Jo 13, 4).''"</ref> - e a do vaso enquanto se vaza: Mittit aquam in pelvim <ref>"''Lançou água numa bacia (Jo 13, 5).''"</ref>. E por que usou S. Paulo destas duas metáforas e destas duas comparações? Porque só com elas podia mostrar a diferença deste ato e deste dia ao ato e ao dia da Encarnação. No dia e ato da Encarnação, fazendo-se Deus homem, Deus vestiu-se da humanidade, porque a uniu a si, e se cobriu com ela; e a humanidade, que era um vaso de barro pequeno e estreito, ficou cheia de Deus, porque Deus a encheu com toda a imensidade de seu ser: Quia ín ipso inhabitat omnis plenitudo divinitatis corporaliter <ref>"''Porque nele habita toda a plenitude da divindade corporalmente (Col. 2, 9).''"</ref>. E, sendo isto o que se fez no dia da Encarnação, tudo isto - quanto à vista dos olhos humanos - se desfez no dia e no ato de hoje. Porque, lançando-se Cristo aos pés dos homens, e tais homens, e fazendo-se servo seu, e servo em ministério tão vil e tão abatido, parece que Deus se despira outra vez da humanidade de que estava vestido, desunindo-se dela, e que a mesma humanidade, que estava cheia de Deus, perdida a união com a divindade, ficara totalmente vazia: Exinanivtt semetipsum, formam servi accipiens <ref>"''Mas ele se aniquilou a si mesmo, tomando a natureza de servo (Flp 2, 7).''"</ref>. E foi isto assim como parece? Não. Mas, posto que a humanidade de Cristo por este ato não perdeu a união com a divindade, nem deixou de estar tão cheia de Deus como dantes estava, abaixar-se, porém, e pôr-se em estado tão abatido, que o parecesse ou pudesse parecer aos homens, foi uma diferença tão notável e tão estupenda, que só o mesmo S. Paulo a pode ponderar e encarecer. Agora entra o mais profundo pensamento das suas palavras.

Non rapinam arbitratus est esse se aequalem Deo, sed semetipsum exinanivit, formam serv accipiens (Flp 2, 6 s). O fazer-se Cristo servo, sendo Deus - diz S.Paulo - não foi porque cuidasse ou tivesse para si o mesmo Cristo que a sua divindade não era sua, senão alheia, como se a tivesse roubado ao Padre. Pois Cristo podia cuidar nem ter para si que a sua divindade não era sua? Claro está que não podia ter para si uma coisa tão contrária à verdade, nem cuidar o que era tão alheio de todo o pensamento. Por que diz logo o Apóstolo do terceiro céu que, quando Cristo se fez servo, não cuidou nem teve para si que a sua divindade não era sua? Porque foi tal ato o de Cristo se abater aos pés dos homens, que podiam os mesmos homens cuidar que Cristo o cuidara assim. Homem que tanto se abate, ou não é Deus, ou, se foi Deus alguma hora, tem deixado de o ser, ou, se ainda é Deus, deve de cuidar sem dúvida que o não é, porque, sendo Deus, e tendo para si que é Deus, não se podia abater a coisa tão baixa. E como o ato foi alheio de quem o fazia, que os homens podiam entrar em tal pensamento, que, ou cuidassem que Cristo não era Deus, ou cuidassem que o mesmo Cristo cuidou que o não era, por isso pondera e adverte S. Paulo primeiro que tudo que, quando Cristo se abateu à baixeza de servo, não foi porque cuidasse ou tivesse para si que não era Deus: Non rapinam arbitratus est esse se aequalem Deo, sed semetipsum exinanivit, formam servi accipiens.É o que também advertiu e ponderou o nosso evangelista, na prefação com que entrou a narrar este mesmo ato. Por isso disse que, quando o Senhor começou a lavar os pés dos discípulos, sabia que era Deus, e que nas mesmas mãos com que lhes lavava os pés, tinha o poder de tudo: Sciens quia a Deo exivit, et ad Deum vadit, et quia omnia dedit ei Pater in manus, caepit lavare pedes discipolorum <ref>"''Sabendo que ele saíra de Deus, e ia para Deus, e que o Pai depositara em suas mãos todas as coisas, começou a lavar os pés aos discípulos (Jo 13, 3. 5).''"</ref>. Crendo pois S. Pedro firmissimamente esta verdade - que por isso disse: Domine, tu mihi <ref>"''Senhor, tu a mim (Jo 13, 6)?''"</ref>? que muito é que, sendo aquele grande piloto, que nunca perdeu o tino nas maiores tempestades, e se atreveu a caminhar a pé sobre as mesmas ondas do mar, agora areasse e se afogasse em tão pouca água, como a daquela bacia, e não pudesse tomar pé na profundidade imensa de tão tremendo mistério?


== Notas ==
== Notas ==

Revisão das 18h42min de 29 de fevereiro de 2008

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Existe na Wikipédia um artigo relacionado com Sermão do Mandato (1655).

Concorrendo no mesmo dia o da Encarnação. Ano de 1655.

Pregado na Misericórdia de Lisboa, às 11 da manhã.

"Sciens quia a Deo exivit, et ad Deum vadit: Cum dilexisset suos, in finem dilexit eos" [1].

§ I

No ano presente concorrem e se ajuntam no mesmo dia os dois maiores mistérios e os dois maiores dias: o dia da Encarnação do Verbo e o dia da partida do mesmo Verbo Encarnado. O que dizem os dias e o que declaram as noites. A competição do Amor divino consigo mesmo e a justa dos gigantes. Argumento do sermão: foi maior o amor de Cristo no dia da Encarnação ou no dia da partida?


Grande dia! Grande amor! Depois que o Eterno se fez temporal, também o amor divino tem dias. O evangelista S. João querendo-nos declarar a grandeza e grandezas do mesmo amor neste dia, a primeira coisa que ponderou, com tão alto juízo como o seu, foi ser um dia antes de outro dia: Ante diem festum Paschae[2]. Tanto pode acrescentar quilates ao amor a reflexão ou circunstância dos dias! E que farei eu? Dois dias hei de combinar também hoje, mas não o dia de antes com o dia de depois, senão o dia de depois com o dia de antes; e não livremente ou por eleição própria e minha, senão por obrigação forçosa dos mesmos dias. Assim como depois de longo círculo de anos se encontram e ajuntam dois planetas a fazer uma conjunção magna, assim no ano presente concorrem e se ajuntam hoje no mesmo dia os dois maiores mistérios e os dois maiores dias: o dia da Encarnação do Verbo, e o dia da partida do mesmo Verbo encarnado. O dia da Encarnação do Verbo: Sciens quia a Deo exivit[3] - que foi o princípio com seu amor para com os homens: cum dilexisset suos[4] - e a partida do mesmo Verbo encarnado: Et ad Deum vadit[5] - que foi o fim sem fim do mesmo amor: In finem dilexit eos[6].


0 real profeta Davi, antevendo em espírito estes dois dias, diz que o dia de hoje fala com o dia da Encarnação, e o dia da Encarnação com o dia de hoje, e que ambos se entendem entre si, e se respondem um ao outro: Dies diei eructat verbum[7]. Assim explica este famoso texto Santo Agostinho[8]. E se perguntarmos que é o que falam estes dias, que devem de ser coisas muito dignas de se ouvir e saber, responde o mesmo Davi que as noites dos mesmos dias nos dirão e declararão o que eles falam: Dies diei eructat Verbum, et nox nocti indicat scientiam[9]. Pois as noites, que são escuras, nos hão de declarar o que dizem os dias? Sim. Porque os mistérios do dia de hoje, e do dia da Encarnação, ambos se celebraram nas noites dos mesmos dias. Tanto silêncio e reverência era devido à majestade de tão divinos mistérios! Os do dia da Encarnação de noite: Cum quietum silentium contineret omnia, et nox in suo cursu medium iter haberet[10] - e os do dia de hoje também de noite: Et coena facta[11]. As luzes a que se há de ver toda esta famosa representação são as da fé; os lugares, um cenáculo grande em Jerusalém, e uma casa humilde, mas real, em Nazaré. E a questão ou problema, qual será? Se foi maior o amor de Cristo no dia da Encarnação ou no dia de hoje.


Posto, pois, um dia defronte do outro dia, e um mistério à vista de outro mistério, e um amor competindo com outro amor, é certo que nunca o amor divino se viu em mais glorioso teatro, pois sai a competir consigo mesmo. Nas outras comparações do amor divino com o amor dos homens, ou seja com o amor dos irmãos, ou com o amor dos pais, ou com o amor dos filhos, ou com o amor dos esposos, ou com o amor dos amigos - que deve ser o maior de todos ainda que saia vencedor o amor de Cristo, sempre fica agravado na vitória, porque entra afrontado na competência. Só hoje, se vencer, será vencedor glorioso, porque tem competidor igual, e se vencerá a si mesmo. Quando Davi saiu a desafio com o gigante, mediu-lhe o gigante com os olhos a estatura, e, posto que não duvidava da vitória, na desigualdade de tão inferior combatente teve por injuriosa a batalha. Do mesmo modo, e com mais verdade, Cristo. Quando o seu amor se compara com outro amor, compete o gigante com Davi; mas quando se compara o amor de Cristo com o amor do mesmo Cristo, como fazemos hoje, é competir o gigante com o gigante. Assim o disse ou cantou o mesmo Davi: Exultavit ut gigas ad currendam viam[12]. Entrou Cristo na estacada como gigante. E que fez? Justou consigo mesmo. A primeira carreira foi do céu para a terra: A summo caelo egressio ejus[13]; a segunda carreira foi da terra para o céu: Et occursus ejus usque ad summum ejus[14]: e neste encontro se cerrou a justa, e se quebraram as lanças um e outro amor. É em verso de Davi o mesmo que diz a prosa do nosso Evangelho. A primeira carreira: A summo caelo egressio ejus - foi no dia da Encarnação, quando o Verbo saiu do Padre: a Deo exivit; a segunda carreira: Et occursus ejus usque ad summum ejus - foi no dia de hoje, quando o mesmo Verbo tornou para o Padre: Et ad Deum vadit. Na primeira carreira, amor: Cum dilexisset suos[15]; e na segunda também amor: In finem dilexit eos[16]. O dilexisset e o dilexit distingue os dias: o dilexisset declara um amor, e o dilexit outro; mas nem juntos, nem divididos sinalam a vitória, nem resolvem qual foi maior. Esta famosa decisão entre os maiores combatentes que jamais se viram, havemos de ver hoje. Assistir-nos-á com a graça quem foi presente em um e outro dia, e quem teve a maior parte em um e outro mistério, que foi a Mãe do mesmo amor: Mater pulchrae dilectionis[17]. Mas como invocaremos seu favor e patrocínio? Com as mesmas palavras com que também hoje a invocou o anjo: Ave gratia plena.

§ II

O amor de Cristo quanto à substância e quanto aos efeitos. Os extremos do amor de Cristo no dia da Encarnação e no dia da partida. Comparando-se os efeitos Deuses dois dias, afirma o autor que maiores foram os extremos do dia da partida que os do dia da Encarnação.

Cum dilexisset, dilexit.

Nestas palavras - como dizia - deixou o Evangelista indecisa a nossa questão, porque não disse: como amasse mais amou menos, nem como amasse menos amou mais, senão como amasse amou. Distinguiu somente os tempos, e pelos tempos o amor, sem preferência porém, ou vantagem nem do amor passado ao presente, nem do presente ao passado. Falou S. João como divino teólogo, e não só como quem tecia a história, mas como quem compunha o panegírico do amor de Cristo. Quanto à substância do amor, Cristo, Senhor nosso, tanto nos amou no dia da Encarnação, como no dia de hoje, e em todos os dias da sua vida, porque o seu amor é amor perfeito, e não fora seu, se assim não fora. O amor dos homens, ou míngua,ou cresce, ou pára; o de Cristo nem pode minguar, nem crescer, nem parar, porque é, foi, e será sempre amor perfeito, e por isso sempre o mesmo, e sem alteração nem mudança. Ama Cristo enquanto homem, como ama enquanto Deus. Perguntam os teólogos: como ama Deus a uns mais e a outros menos, se o seu amor - o qual se não distingue da sua essência - é sempre um só e o mesmo, infinito, simplicíssimo e imutável? E respondem que a diferença ou desigualdade não está no amor, senão nos efeitos, porque a uns sujeitos faz Deus maiores bens que a outros. Os homens amamos os objetos pelo bem que tem: Deus ama-os pelo bem que lhes faz. E assim como julgamos a maioria do amor de Deus belos efeitos, assim havemos de julgar também a do amor de Cristo. Este é o fundamento sólido e certo sobre que excitamos a nossa questão, e estes os termos de igual certeza, com que a havemos de resolver. Nem daqui deve inferir ou cuidar a rudeza do nosso entendimento que seria menos afetuoso, ou menos amoroso, este modo de amar de Cristo, porque assim como em Deus o fazer o bem se chama amor efetivo, e o querê-lo fazer amor afetivo, assim no amor de Cristo os afetos foram a causa dos efeitos que veremos, e os efeitos a demonstração dos afetos.

Vindo, pois, aos efeitos e demonstrações de um e outro amor no dia de hoje e no dia da Encarnação, parece que assim no número, como no modo, os esteve medindo e proporcionando o mesmo amor, que neles se quis igualar e vencer. O Concílio Niceno, no Símbolo da Fé, ponderando o amor de Cristo na Encarnação, reduz os efeitos dele a dois extremos: descer do céu e fazer-se homem: Qui propter nos homines, et propter nostram salutem descendit de caelis. Et incarnatus est ex Maria Virgine, et homo facctus est[18]. Isto diz o Espírito Santo no Concílio, falando do dia da Encarnação. E falando do dia de hoje, que é o que diz e pondera o mesmo Espírito Santo no Evangelho? Outros dois efeitos e outros dois extremos: lavar os pés aos homens, e deixar-se no Santíssimo Sacramento: Et coena facta, coepit lavare pedes discipulorum[19]. Supostos de uma e outra parte este par de extremos, uns e outros não só admiráveis mas estupendos, comparando-se o amor de Cristo, e competindo-se em uns e outros, que diremos ou que podemos dizer? Sem temeridade nem temor, digo e afirmo que maiores foram os extremos do dia de hoje que os do dia da Encarnação. E por quê? Porque, se no dia da Encarnação foi grande extremo de amor descer Deus do céu à terra: Descendit de coelis - muito maior extremo foi no dia de hoje lavar Cristo os pés aos homens: Coepit lavare pedes discipulorum. E se foi grande extremo de amor no dia da Encarnação fazer-se Deus homem: Et homo factus est - muito maior extremo foi no dia de hoje deixar Cristo seu corpo no Sacramento para que o comessem os homens, como fez na Ceia: Et coena facta. - Estes serão os dois pontos do nosso discurso, em que ele descobrirá muito mais do que aparece no que está dito.

§ III

Estranheza da exclamação de Jacó quando viu em sonhos aquela famosa escada que chegava da terra até o céu, pela qual subiam e desciam anjos. Como se há de entender o dito de Davi, quando afirma que Deus tinha feito o homem pouco menor que os anjos. O estupendo prodígio que fez Deus por amor de el-rei Ezequias em benefício de sua saúde, e o prodígio da Encarnação.


Tão grande e tão prodigiosa coisa foi descer Deus em Pessoa do céu à terra que, visto de muito longe este mistério, não só causava admiração e espanto ao entendimento, mas horror e assombro à mesma fé. Viu Jacó em sonhos aquela famosa escada que chegava da terra até o céu, pela qual subiam e desciam anjos, encostado e inclinado Deus no alto dela, e, assombrado do que via, acordou com um grito, dizendo: Terribilis est locus iste (Gen. 28, 17)! Ó que terrível, ó que temeroso lugar! - De vários modos se costuma ponderar a estranheza deste dito. Eu só noto que nem a vista podia causar horror, nem a novidade espanto. O que só poderia causar horror a Jacó era ver que os que subiam e desciam fossem somente anjos, e que nem ele, que estava no baixo da escada, subisse, nem Deus, que estava no alto, descesse, com que se demonstrava uma grande separação entre Deus e o homem, como aquela de que disse Abraão ao avarento: Inter nos et vos chaos magnum firmatum est[20]. E posto que hoje esta apreensão seria para nós de grande horror, porque sabemos o contrário, naquele tempo nem podia causar horror pela vista, nem espanto pela novidade, como dizia, porque tudo o que Jacó viu, e tudo o que mostrava significar o que via, era o mesmo que ele e os demais supunham. Até o tempo de Jacó, e ainda depois, no tempo da lei escrita, nunca Deus prometeu aos homens o céu, senão tudo prêmios da terra. E daqui nasceu aquela parêmia ou provérbio: Caelum caeli Domino; terram autem dedit Filiis hominum[21]: que o céu era para Deus, e a terra para os homens. Logo não se podia assombrar nem espantar Jacó de que ele, sendo homem, e estando na terra, não subisse pela escada, e, muito menos, de que Deus, sendo Deus, e estando no céu, não descesse. Pois, se Jacó não tinha que admirar nem que estranhar no seu sonho, de que acordou com tanto horror e tão notável assombro?


Acordou assombrado Jacó, não do que vira, senão do que na mesma visão Deus lhe revelara.Revelou Deus a Jacó que naquela escada era significado o mistério altíssimo da Encarnação do Verbo, e que para ele, Jacó, os outros homens poderem subir ao céu, ele, Deus, havia de descer do céu à terra: Qui propter nos homines, et propter nostram salutem descendit de caelis[22]. E vendo Jacó que a majestade suprema de Deus, deixando do modo que o podia deixar o trono do empíreo, havia de descer em pessoa do céu à terra, a revelação desta estupenda novidade, que nunca entrou na imaginação humana, lhe causou no mesmo sono tal horror e assombro, que acordou tremendo e gritando: Terribilis est locus iste[23]! Duas coisas viu Jacó no que viu, que muito e com muita razão lhe assombraram, não a vista, senão o entendimento. E quais foram? A primeira que, sendo a escada para descer Deus, a descida era muito maior que a escada. Pois a descida maior que a escada? Sim. Porque a escada chegava da terra ao céu, que é distância limitada, e a descida era de Deus ao homem, que é distância infinita. E vendo unir dois extremos infinitamente distantes, quem, ainda estando muito em si, não ficaria atônito e assombrado? A segunda causa, e não menor, do mesmo assombro, foi que por meio da Encarnação do Verbo, assim revelada a Jacó, vinha a conseguir muito mais o menor anjo do que a soberba de Lúcifer tinha afetado. Porque Lúcifer quis ser igual a Deus, e fazendo-se Deus homem, ficava Deus por este lado sendo inferior ao menor anjo. Este foi o grande mistério - diz Santo Agostinho - por que os anjos da escada uns desciam, outros subiam. Como Deus estava no alto da escada, e Jacó ao pé dela, os anjos que ficavam da parte de Deus desciam, e os que ficavam da parte de Jacó subiam, e este subir e descer não era ato ou movimento da vontade dos mesmos anjos, senão ordem e constituição da sua própria natureza. Os da parte superior da escada, onde estava Deus, desciam, porque todos os anjos são muito inferiores a Deus; e os da parte inferior, onde estava Jacó, subiam, porque estes mesmos são muito superiores ao homem. E como os anjos são superiores ao homem, e Deus não havia de tomar a natureza angélica, senão a humana, isto era o que assombrava a Jacó, e lhe parecia coisa terrível: que Deus houvesse de descer, e abater-se tanto, que ficasse por esta parte muito inferior a qualquer anjo.


Lá disse Davi que Deus tinha feito ao homem pouco menor que os anjos: Minuisti eum paulo minus ab angelis (Sl 8, 6). Mas isto se entende no domínio, e não na natureza, porque deu Deus a Adão o senhorio e império de todos os animais da terra, do mar e do ar, como logo declarou o mesmo profeta: Minuisti eum paulo minus ab angelis; gloria et honore coronasti eum; et constituisti eum super opera manuum tuarum. Omnia subjecisti sub pedibus ejus, oves et boves, insuper et pecora campi, volucres caeli, et pisces maris[24]. De maneira que no domínio e uso de todas as coisas criadas para serviço seu nos três elementos, é o homem pouco menor que os anjos; porém, no ser e nobreza natural, não só quanto à parte do barro, em que aparentamos com os brutos, senão ainda quanto à parte espiritual da alma e suas potências, em que imitamos a natureza angélica, não é o homem pouco menor, senão muito menor e muito inferior a qualquer anjo, e tanto quanto for de mais superior hierarquia. A escada de Jacó tinha nove degraus, que são as nove ordens de criaturas racionais que há entre Deus e o homem, as quais por outro nome chamamos nove coros dos anjos, e todos estes degraus desceu Deus, e os deixou e passou por eles, para se unir com a natureza humana, que jazia em Jacó, abaixo de todos.


É o que ponderou S. Paulo naquelas palavras: Nusquam angelos apprehendit, sed semen Abrahae apprehendit[25], cujo fundo e energia não acho tão declarada nos expositores como ele pede. Dizem que nusquam é o mesmo que nunquam ou nequaquam, mas nusquam não é simples negação, nem advérbio de tempo, senão de lugar, e propriamente quer dizer: em nenhuma parte. Pois, por que diz S. Paulo que não tomou Deus a natureza angélica em nenhuma parte, nusquam? Porque tinha Deus nove partes em que a tomar: três na primeira hierarquia, três na segunda e três na terceira. E essa foi a maravilha do mistério da Encarnação, que por tomar Deus a natureza humana, deixasse em tantas partes a angélica. Na primeira hierarquia deixou serafins, querubins, tronos; na segunda deixou potestades, principados, dominações; na terceira deixou virtudes, arcanjos, anjos; e no homem, que era o décimo, último e ínfimo lugar, onde jazia Jacó, ali tomou a nossa natureza caída, para a levantar, e enferma, para lhe dar saúde, que foi o fim para que tanto se abateu e desceu. Estando el-rei Ezequias mortalmente enfermo, prometeu-lhe o profeta Isaías a vida em nome de Deus; e em testemunho de que a promessa era divina, deu-lhe, por sinal no céu, que o sol tornaria atrás dez linhas, ou dez degraus, e assim sucedeu: Et reversus est sol decem lineis per gradus quos descenderat[26]. E por que tornou o sol atrás dez linhas, ou dez degraus, e não onze, ou nove, senão dez, nem mais nem menos sinaladamente? Porque naquele prodígio, verdadeiramente grande, se significava outro maior, que era o da Encarnação do Verbo, na qual, assim como o sol, estando no zênite - que não podia ser de outra sorte - tornou atrás dez linhas, até se pôr nos horizontes da terra, assim Deus, desde o mais alto de sua majestade infinita, desceu outras dez linhas até se pôr na última e ínfima da natureza humana, e assim como fez aquele estupendo prodígio por amor de Ezequias, e em benefício da sua saúde, assim obrou o da Encarnação muito mais estupendo, por amor dos homens e para saúde dos homens: Qui propter nos homines, et propter nostram salutem descendit de caelis, et incarnatus est.

§ IV

O pasmo e o horror dos discípulos de Cristo no Cenáculo. O assombro de Jacó e a reverência de Pedro. Quando se fez Deus homem e quando se fez servo? As duas metáforas ou comparações de São Paulo. Por que diz o apóstolo do terceiro céu que quando Cristo se fez servo não cuidou nem teve para si que a sua divindade não era sua?

Isto é o que neste dia se obrou em Nazaré. Mudemos agora a cena, e ponhamo-nos no Cenáculo de Jerusalém, e veremos com quanta maior razão se pode dizer daquele lugar: Terribilis est locus iste [27]! Despe-se Cristo das roupas exteriores, cinge-se com uma toalha, deita água em uma bacia com suas próprias mãos: entende-se destas ações, que quer lavar os pés aos discípulos. E qual foi, com esta vista, o assombro, o pasmo, o horror com que as mesmas paredes do Cenáculo parece que tremiam? Não estava aqui Jacó, mas estava Pedro, o qual mais fora de si que no Tabor, exclamou, dizendo: Domine, tu mihi lavas pedes (Jo 13, 6)? Vós, Senhor, a mim lavar os pés? - Eternamente não consentirei tal coisa: Non lavabis mihi pedes in aeternum (Jo 13, 8). Já neste primeiro movimento se vê quanto vai de dia a dia, e de mistério a mistério. Comparai-me a S. Pedro com Jacó. Jacó, depois que viu a escada, e que Deus havia de descer por ela, desejava sumamente que descesse, e enquanto tardava a vir, lhe parecia uma eternidade: Donec veniret desiderium collium aeternorum [28]. Pelo contrário, Pedro, vendo que Cristo lhe quer lavar os pés, não sofre nem consente em tal ação, antes diz resolutamente que a não consentirá por toda a eternidade: Non lavabis mihi pedes in aeternum. - Se isto era amor e reverência de Cristo em Pedro, também Jacó o reverenciava e arnava muito. Pois, se Jacó deseja que Deus desça e se abata a se fazer homem, por que não consente Pedro que se abata a lhe lavar os pés? Por isso mesmo. Porque tanto vai de um abatimento a outro abatimento. Encarnar Deus, era fazer-se homem; lavar os pés aos homens era fazer-se servo; encarnar era vestir-se da nossa humanidade; fazer-se servo dos homens era despir-se da sua divindade.

Não me atrevera a dizer tanto se S. Paulo o não tivera dito, e ainda muito mais. É passo muitas vezes ouvido, mas que terá que explicar até o fim do mundo: Qui cum in forma Dei esset, non rapinam arbitratus est esse se aequalem Deo, sed semetipsum exinanivit formam servi accipiens, in similitudinem hominum factus, et habitu inventus ut homo [29]. Quer dizer: que sendo o Verbo Eterno igual ao Padre em tudo, se fez, e se desfez. Se fez porque, sendo Deus, se fez homem: ln similitudinem hominum factus, et habitu inventus ut homo; e se desfez porque, sendo Deus e homem, se fez servo, e, fazendo-se servo, se desfez e aniquilou a si mesmo: Exinanivit semetipsum, formam servi accipiens. Agora pergunto: quando se fez Deus homem, e quando se fez servo? Fez-se homem na Encarnação, e fez-se servo no lavatório dos pés. Logo, na Encarnação se fez e no lavatório se desfez. Muitos autores entendem todo este texto só da Encarnação, e que o fazer-se Deus homem foi juntamente fazer-se servo. Mas esta interpretação é imprópria, por não dizer injuriosa à natureza humana. O ser homem é indiferente, ou para ser servo ou para ser senhor; e Cristo, enquanto homem, não só foi Senhor, senão grande Senhor. Assim o disse o anjo no mesmo dia da Encarnação, anunciando que, enquanto Deus, seria Filho do Altíssimo, e, enquanto homem, herdeiro do cetro de seu pai Davi. Nesta suposição falou sempre o mesmo Cristo: Non est servus major domino suo. Si me persecuti sunt, et vos persequentur [30]; e hoje, depois do mesmo ato do lavatório: Vos vocatis me Magister et Domine, et bene dicitis: sum etenim [31]. Nem encontram, antes confirmam esta distinção as mesmas palavras de São Paulo, as quais dizem que tomou o Senhor a forma de servo, não fazendo-se, senão feito homem: Formam servi accipiens, in similitudinem hominum factus - porque, feito homem na Encarnação, tomou a forma de servo, lavando os pés aos homens. Expressa e esquisitamente Dioniso Alexandrino: Jesus Christus, Dominus et Deus apostolorum, cum accipisset ,formam servi, surgit a coena, et ponit vestimenta sua, et linteo praecinxit se: haec est forma servi. A baixeza do servo não é obra ou injúria da natureza, senão da fortuna. A natureza a todos os homens fez iguais: a fortuna é a que fez os altos, os baixos e os baixíssimos, quais são os servos. E esta foi a fineza do amor de Cristo hoje sobre a do dia e obra da Encarnação. Quando se fez homem tomou as condições da natureza; quando se fez servo e lavou os pés aos homens, tomou as baixezas da fortuna. Aquilo foi fazer-se, e isto desfazer-se: Exinanivit semetipsum, formam servi accipiens.

Com duas comparações ou metáforas, declara S. Paulo este fazer-se e desfazer-se: com metáfora da roupa que se veste e se despe, e com metáfora do vaso que se enche e se vaza. Com metáfora da roupa que se veste e se despe: Habitu inventus ut homo [32]; com metáfora do vaso que se enche e vaza: Exinanivit semetipsum [33] e ambas as metáforas parece que as tomou S. Paulo do mesmo ato do lavatório em que estamos. . A da roupa enquanto se despe: Ponit vestimenta sua [34] - e a do vaso enquanto se vaza: Mittit aquam in pelvim [35]. E por que usou S. Paulo destas duas metáforas e destas duas comparações? Porque só com elas podia mostrar a diferença deste ato e deste dia ao ato e ao dia da Encarnação. No dia e ato da Encarnação, fazendo-se Deus homem, Deus vestiu-se da humanidade, porque a uniu a si, e se cobriu com ela; e a humanidade, que era um vaso de barro pequeno e estreito, ficou cheia de Deus, porque Deus a encheu com toda a imensidade de seu ser: Quia ín ipso inhabitat omnis plenitudo divinitatis corporaliter [36]. E, sendo isto o que se fez no dia da Encarnação, tudo isto - quanto à vista dos olhos humanos - se desfez no dia e no ato de hoje. Porque, lançando-se Cristo aos pés dos homens, e tais homens, e fazendo-se servo seu, e servo em ministério tão vil e tão abatido, parece que Deus se despira outra vez da humanidade de que estava vestido, desunindo-se dela, e que a mesma humanidade, que estava cheia de Deus, perdida a união com a divindade, ficara totalmente vazia: Exinanivtt semetipsum, formam servi accipiens [37]. E foi isto assim como parece? Não. Mas, posto que a humanidade de Cristo por este ato não perdeu a união com a divindade, nem deixou de estar tão cheia de Deus como dantes estava, abaixar-se, porém, e pôr-se em estado tão abatido, que o parecesse ou pudesse parecer aos homens, foi uma diferença tão notável e tão estupenda, que só o mesmo S. Paulo a pode ponderar e encarecer. Agora entra o mais profundo pensamento das suas palavras.

Non rapinam arbitratus est esse se aequalem Deo, sed semetipsum exinanivit, formam serv accipiens (Flp 2, 6 s). O fazer-se Cristo servo, sendo Deus - diz S.Paulo - não foi porque cuidasse ou tivesse para si o mesmo Cristo que a sua divindade não era sua, senão alheia, como se a tivesse roubado ao Padre. Pois Cristo podia cuidar nem ter para si que a sua divindade não era sua? Claro está que não podia ter para si uma coisa tão contrária à verdade, nem cuidar o que era tão alheio de todo o pensamento. Por que diz logo o Apóstolo do terceiro céu que, quando Cristo se fez servo, não cuidou nem teve para si que a sua divindade não era sua? Porque foi tal ato o de Cristo se abater aos pés dos homens, que podiam os mesmos homens cuidar que Cristo o cuidara assim. Homem que tanto se abate, ou não é Deus, ou, se foi Deus alguma hora, tem deixado de o ser, ou, se ainda é Deus, deve de cuidar sem dúvida que o não é, porque, sendo Deus, e tendo para si que é Deus, não se podia abater a coisa tão baixa. E como o ato foi alheio de quem o fazia, que os homens podiam entrar em tal pensamento, que, ou cuidassem que Cristo não era Deus, ou cuidassem que o mesmo Cristo cuidou que o não era, por isso pondera e adverte S. Paulo primeiro que tudo que, quando Cristo se abateu à baixeza de servo, não foi porque cuidasse ou tivesse para si que não era Deus: Non rapinam arbitratus est esse se aequalem Deo, sed semetipsum exinanivit, formam servi accipiens.É o que também advertiu e ponderou o nosso evangelista, na prefação com que entrou a narrar este mesmo ato. Por isso disse que, quando o Senhor começou a lavar os pés dos discípulos, sabia que era Deus, e que nas mesmas mãos com que lhes lavava os pés, tinha o poder de tudo: Sciens quia a Deo exivit, et ad Deum vadit, et quia omnia dedit ei Pater in manus, caepit lavare pedes discipolorum [38]. Crendo pois S. Pedro firmissimamente esta verdade - que por isso disse: Domine, tu mihi [39]? que muito é que, sendo aquele grande piloto, que nunca perdeu o tino nas maiores tempestades, e se atreveu a caminhar a pé sobre as mesmas ondas do mar, agora areasse e se afogasse em tão pouca água, como a daquela bacia, e não pudesse tomar pé na profundidade imensa de tão tremendo mistério?

Notas

  1. "Sabendo Jesus que saíra de Deus e ia para Deus, como tinha amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim (Jo 13, 1. 3)".
  2. "Antes do dia da festa da Páscoa (Jo 13, 1)".
  3. "Sabendo que ele saíra de Deus (Ibid. 3)"
  4. "Como tinha amado os seus (Ibid. 1)".
  5. "E ia para Deus (Ibid. 3)".
  6. "Amou-os até ao fim (Ibid. 3)".
  7. "Um dia diz uma palavra a outro dia (Sl 18, 3)"
  8. August. Serm. 22 de Nativit.
  9. "Um dia diz uma palavra a outro dia, e uma noite mostra sabedoria a outra noite (Sl 18, 3)"
  10. "Quando tudo repousava num profundo silêncio, e a noite estava no meio do seu curso (Sab 18, 14)"
  11. "E acabada a ceia (Jo 13, 2)"
  12. "Deu saltos como gigante para correr o caminho (Sl 18, 6)"
  13. "A sua saída é desde uma extremidade do céu (Sl 18, 7)"
  14. "E corre até à outra extremidade dele (Sl 18, 7)"
  15. "Como tinha amado os seus (Jo 13, 1)"
  16. "Amou-os até ao fim (Jo 13, 1)"
  17. "Mãe do amor formoso (Eclo 24, 24)"
  18. Que por nós homens, e pela nossa salvação, desceu dos céus, e se fez homem, nascendo de Maria Virgem.
  19. "E acabada a ceia, começou a lavar os pés aos discípulos (Jo 13, 2. 5)"
  20. "Entre nós e vós está firmado um grande abismo (Lc 16, 26)."
  21. "O mais alto dos céus é para o Senhor; mas a terra a deu aos filhos dos homens (Sl 114, 16)."
  22. Que de nós homens, e pela nossa salvação, desceu dos céus.
  23. "Quão terrível é este lugar (Gên. 28, 17)!"
  24. "Pouco menor o fizeste que os anjos, de glória e de honra o coroaste. E tu o puseste sobre as obras das tuas mãos. Todas as coisas sujeitaste debaixo de seus pés: as ovelhas e as vacas todas, e, além destes, os outros animais do campo, as aves do céu e os peixes do mar (Sl 8, 6, 7 ss)"
  25. "Em nenhum lugar tomou aos anjos, mas tomou a descendência de Abraão (Hebr 2, 16)."
  26. "E retrocedeu o sol dez linhas pelos graus por onde tinha descido (Is 38, 8)."
  27. "Quão terrível é este lugar (Gên 27, 17)!"
  28. "Até que venha o desejo dos outeiros eternos (Gên 49, 26). "
  29. "0 qual, tendo a natureza de Deus, não julgou que fosse nele uma usurpação o ser igual a Deus; mas ele se aniquilou a si mesmo, tomando a natureza de servo, fazendo-se semelhante aos homens, e sendo reconhecido na condição como homem (Flp 2, 6 s)."
  30. "Não é o servo maior do que seu senhor. Se eles me perseguiram a mim, também vos hão de perseguir a vós (Jo 15, 20)."
  31. "Vós chamais-me Mestre e Senhor, e dizeis bem, porque o sou (Jo 13, 13)."
  32. "Sendo reconhecido na condição como homem (Flp 2, 7)."
  33. "Mas ele se aniquilou a si mesmo (Flp 2, 7 )."
  34. "Depôs suas vestiduras (Jo 13, 4)."
  35. "Lançou água numa bacia (Jo 13, 5)."
  36. "Porque nele habita toda a plenitude da divindade corporalmente (Col. 2, 9)."
  37. "Mas ele se aniquilou a si mesmo, tomando a natureza de servo (Flp 2, 7)."
  38. "Sabendo que ele saíra de Deus, e ia para Deus, e que o Pai depositara em suas mãos todas as coisas, começou a lavar os pés aos discípulos (Jo 13, 3. 5)."
  39. "Senhor, tu a mim (Jo 13, 6)?"