Viagens de Gulliver/Parte III/V

Wikisource, a biblioteca livre
Há oito anos que ele estava debruçado em cima de um projeto para extração de raios de sol a partir de pepinos.

[O autor é autorizado a visitar a grande academia de Lagado. Completa descrição da academia. As artes a que se dedicam os professores.]

Esta academia não é formada por um único edifício, mas tratava-se de uma série de várias construções de ambos os lados da rua, as quais tendo-se deteriorado, foram adquiridas e utilizadas para esse fim.

Eu fui recebido com muita atenção pelo administrador, e durante muitos dias visitei a academia. Em todos as salas havia um ou mais cientistas; e acredito que não estive em menos de quinhentas salas.

A primeira pessoa que conheci foi um homem de aspecto magro, com a cara e as mãos sujas de fuligem, usava cabelos e barbas longas, todo maltrapilho, e chamuscado em várias partes. Suas roupas, a camisa e a pele eram todos da mesma cor. Há oito anos que ele estava debruçado em cima de um projeto para extração de raios de sol a partir de pepinos, que deviam ser colocados em frascos de vidros hermeticamente fechados, e deixados aquecer ao ar livre nos verões inclementes e de forma natural.

Ele me contou, que não tinha dúvida, de que dentro de oito anos, ele conseguiria fornecer luz solar para os jardins do governador, a um custo razoável: mas ele se queixava que o seu estoque era baixo, e me pediu “que lhe oferecesse alguma coisa como estímulo à sua criatividade, especialmente porque esta tinha sido uma estação muito favorável para os pepinos.” Fiz questão de dar-lhe um presente, pois o meu senhor me havia favorecido com alguma soma para essa finalidade, porque ele conhecia a prática deles de pedir para todos aqueles que iam visitá-los.”

Fui para uma outra sala, porém quase recuei, pois um fedor horrível quase me dominou. O meu condutor me forçou a avançar, e me implorou quase em voz baixa “para que não fosse motivo de ofensa, pois poderiam ficar muito ressentidos,” e portanto não me atrevi tanto a ponto de acalmar o meu nariz. O cientista daquela sala era o estudante mais antigo da academia, seu rosto e sua barba eram amarelos pálidos, suas mãos e suas roupas cobertas de sujeira.

Quando fui apresentado a ele, ele me deu um forte abraço, cumprimento esse que eu poderia ter dispensado. As suas atividades, desde que chegou pela primeira vez na academia, era uma operação para reduzir o excremento humano ao seu alimento original, através da separação dos seus diversos componentes, removendo a tintura proveniente da bilis, fazendo exalar o mau cheiro, e removendo a saliva. Ele recebia cotas semanais da sociedade, de um recipiente repleto com excrementos humanos, aproximadamente a metade de um tonel dos que temos em Bristol.

Ví um outro trabalhando a calcinar gelo em pólvora; o qual também me mostrou um tratado escrito por ele relativamente à maleabilidade do fogo, que ele pensava em publicar.

Havia lá um arquiteto muito criativo, que havia pensado numa nova maneira de construir casas, começando pelo telhado, e trabalhando em sentido descendente até chegar a base, tendo ele me explicado, que práticas semelhantes eram feitas por insetos prudentes, tais como a abelha e a aranha.

Havia lá um homem que era cego de nascimento, que possuía vários aprendizes nas mesmas condições: a função deles era misturar as tintas para os pintores, os quais haviam aprendido com seus mestres a distinguir as diferenças de tons através do sentido e do olfato. Na verdade, tive a infelicidade de encontrá-los ainda naquela oportunidade com algumas deficiências em seus aprendizados, e o próprio professor ocasionalmente cometia alguns equívocos. Este artista era bastante estimulado e contava com a estima de toda a equipe.

Numa outra sala fiquei muito contente com um cientista que havia descoberto uma maneira de arar a terra utilizando porcos, com a finalidade de reduzir os custos de serviço, do rebanho e do trabalho.

O método era o seguinte: em um acre de solo você enterra, a quinze centímetros de distância e a vinte de profundidade, uma quantidade de bolinhas, tâmaras, castanhas, e outras frutas ou verduras que os animais gostam mais, depois você espalha seiscentos ou mais desse material pelo campo, onde, no prazo de alguns dias, eles irão penetrar por todo o terreno em busca de alimento, e tornando-os apropriados para a semeadura, e ao mesmo tempo em que é feita a adubação com esse esterco: é verdade que a experiência mostrou que o custo e o trabalho eram muito intensos e que eles tiveram pouco ou nenhum rendimento. Todavia, não há dúvida, de que esta invenção é suscetível de grande melhoria.

Fui para uma outra sala, onde as paredes e o teto estavam cobertos de teias de aranhas, com exceção de uma passagem estreita que o artista utilizava para entrar e sair. Ao entrar, ele gritou para mim em voz alta “para que tivesse cuidado com as teias.” Ele lamentava “o grande erro que o mundo havia permanecido durante tanto tempo, ao utilizar bichos-da-seda ao passo que tínhamos tantos insetos domésticos que eram muito superiores a ele, porque os bichos-da-seda sabiam como criar teias bem como tecê-las.”

Tendo ele proposto posteriormente, “que utilizando aranhas, poderia-se reduzir drasticamente o custo de coloração da seda,” tese essa que me convenci totalmente, quando ele me mostrou um vasto número de moscas lindamente coloridas, as quais ele utilizava para alimentar suas aranhas, e garantindo para nós “que as teias fariam a extração da tintura delas, e como ele as possuía de todas as tonalidades, ele tinha esperanças de satisfazer o gosto de todas as pessoas, assim que conseguisse encontrar o alimento adequado para as moscas, com base em determinadas gomas, óleos, e outras substâncias pegajosas, que oferecem força e resistência às teias.”

Havia lá um astrônomo, que havia assumido a tarefa de colocar um relógio de sol sobre um grande catavento na prefeitura da cidade, ajustando os movimentos anuais e diurnos da terra e do sol, de modo que atendam e coincidam com todos as revoluções do vento.

Eu havia me queixado de um pequeno acesso de cólica, quando o meu acompanhante me levou para uma sala onde ficava um grande médico, que era famoso por curar essa doença, com procedimentos contrários obtidos do próprio agente. Ele possuía um grande fole, que tinha um bocal longo e delgado feito de marfim: isso era introduzido até vinte centímetros dentro do ânus do paciente, e soprando com vento, ele afirmava que conseguia limpar o intestino deixando-o totalmente vazio como uma vesícula seca.

Porém, quando a doença era mais resistente e violenta, ele introduzia o bocal enquanto o fole estivesse cheio de ar, e descarregava dentro do corpo do paciente; em seguida, ele retirava o instrumento e tornava a enchê-lo, apertando fortemente o polegar contra o orifício do ânus do paciente, e isso era repetido três ou quatro vezes, os gases ocasionais começariam a serem expelidos, removendo as toxinas junto com eles, (como a água puxada por uma bomba), e o paciente se recuperava.

Eu o vi testar ambos os experimentos com um cachorro, mas não consegui distinguir nenhum diferença da experiência anterior. Com o último experimento o animal começou a evacuar, e de forma tão violenta que foi muito desagradável para mim e meu companheiro. O cachorro morreu ali mesmo, e nós deixamos o doutor que se esforçava para se recompor, usando os mesmos procedimentos.

Visitei muitas outras instalações, mas não vou incomodar o meu leitor com todas as curiosidades que observei, por causa da falta de tempo.

Com isto eu havia visto somente um lado da academia, o outro lado era reservado para os propagadores do estudo especulativo, do qual vou relatar alguma coisa, ao fazer a descrição de mais uma pessoa ilustre, denominada pelos seus colegas como “o artista universal.” Ele nos contou, “que durante trinta anos ele havia se dedicado à melhoria da vida humana.” Ele possuía duas grandes salas cheias de curiosidades maravilhosas, e cinquenta homens trabalhando.

Alguns deles estavam condensando ar em uma substância seca e tangível, extraindo o nitrogênio, e permitindo a filtragem das partículas aquosas ou fluidas; outros faziam estudos para o amolecimento do mármore, para que fossem utilizados em travesseiros e almofadas para alfinetes; outros petrificavam os cascos de um cavalo vivo, para impedir que eles atolassem.

O próprio artista estava naquele momento ocupado com dois grandes projetos, o primeiro, semear a terra com palha, onde afirmava ele que a virtude seminal estava contida, como demonstrou em diversos experimentos, os quais não fui habilidoso o bastante para compreender. O outro projeto era, utilizando uma certa composição de gomas, e vegetais, aplicados externamente, impedir o crescimento de lã nos cordeiros mais jovens, e ele esperava, num prazo de tempo razoável ampliar a raça de cordeiros pelados por todo o reino.

Fizemos um passeio para a outra parte da academia, onde, como já disse, moravam os cientistas de estudos especulativos.

O primeiro professor que encontrei, estava numa sala muito grande, com quarenta alunos em torno dele. Depois das saudações, tendo observado que eu olhava com curiosidade para um painel, que ocupava a maior parte tanto do comprimento como da largura da sala, disse ele, que “talvez eu pudesse gostar de vê-lo utilizando um projeto para a melhoria do conhecimento especulativo, por meio das operações práticas e mecânicas.”

Pois não demoraria muito para que o mundo compreendesse a sua utilidade, e se vangloriava que pensamento mais nobre e elevado jamais havia despontado na cabeça de qualquer outra pessoa. Todos sabiam como era trabalhoso o método atual para a conquista das artes e das ciências, ao passo que, graças às suas ideias, a pessoa mais ignorante, a um custo acessível, e com pouco esforço físico, poderia escrever livros de filosofia, poesia, política, direito, matemática, e teologia, sem necessidade de recorrer ao auxílio de um gênio ou através do estudo.”

Ele então me conduziu até o painel, que ficavam nas laterais, onde seus alunos permaneciam em fila. Ele tinha cinco metros quadrados, e estava colocado no meio da sala. As superfícies eram compostas por vários pedaços de madeira, aproximadamente do tamanho de um dado, porém alguns eram maiores que os outros. Todos eles eram ligados juntos por meio de finos arames. Esses pedaços de madeira eram cobertos, em cada quadrado, com papéis colados a eles, e sobre estes papéis estavam escritos todas as palavras do idioma deles, em seus mais diversos modos, tempos, e declinações, porém sem nenhuma ordem.

O professor então quis que eu “observasse, porque ele iria colocar seu mecanismo em funcionamento.” Os alunos, sob sua direção, seguravam cada um deles uma alça de ferro, das quais havia quarenta fixadas em torno das extremidades do painel, e dando-lhes uma volta súbita, toda a disposição das palavras se modificava totalmente. Pediu então para que trinta e seis dos garotos, lessem vagarosamente as diversas linhas, a medida que elas apareciam no painel, e quando eles encontravam três ou quatro palavras juntas que pudessem fazer parte de uma sentença, eles ditavam para os quatro garotos restantes, que eram os escreventes.

a medida que os pedaços de madeira quadrados se movimentavam de cima para baixo.

Esta operação foi repetida três ou quatro vezes, e em cada volta, o mecanismo era tão bem planejado, que as palavras se moviam para novos lugares, a medida que os pedaços de madeira quadrados se movimentavam de cima para baixo.

Seis horas por dia eram empregados pelos estudantes para realização desta tarefa, e o professor me mostrou vários volumes em grande formato, já colecionados, de frases incompletas, as quais ele pretendia montar, e além dessa riqueza de material, com a finalidade de oferecer ao mundo uma obra completa de todas as artes e ciências, as quais, todavia, poderiam ainda serem melhoradas, e em muito aceleradas, se o público criasse um fundo para construção e utilização de quinhentos painéis como aquele em Lagado, e obrigasse os diretores a contribuirem conjuntamente com suas inúmeras coleções.

Ele me garantiu que “naquela invenção havia utilizado todas a inteligência da sua juventude, que ele havia esgotado todo o vocabulário com o seu painel, e havia feito um cálculo rigoroso da proporção geral que havia nos livros entre os números de partículas, substantivos, e verbos, e outros componentes de uma oração.

Expressei meus reconhecimentos mais humildes à sua ilustre pessoa, pelo seu grande poder de comunicação, e prometi que “se algum dia tivesse a felicidade de retornar ao meu país natal, que eu lhe faria justiça, na qualidade de único inventor daquela máquina maravilhosa;” cuja forma e invenção eu desejaria registrar em papel, bem como na figura aqui anexada.

Disse a ele, que “embora fosse hábito de nossos eruditos da Europa roubar invenções uns dos outros, o qual tinha com isto pelo menos uma problemática, que se tornava controverso quem seria o verdadeiro autor do projeto, no entanto, eu tomaria certos cuidados, para que ele desfrutasse totalmente da honra, com a inexistência de qualquer competidor.”

Fomos em seguida para a escola de idiomas, onde três professores se sentaram com vistas a melhorar o seu país. O primeiro projeto era, a diminuição das frases, reduzindo os polissílabos em uma sílaba, e eliminando verbos e particípios, porque, na realidade, todas as coisas imagináveis nada mais são do que conceitos.

O outro projeto era, um plano para abolir inteiramente todas as palavras sejam elas quais forem, e isto era estimulado como grande vantagem do ponto de vista da saúde, bem como da brevidade. Pois acreditava-se, que toda palavra que falamos, de certa maneira, representa uma diminuição do nosso pulmão por efeito da corrosão, e consequentemente, contribui para a redução de nossas vidas.

Uma solução foi portanto proposta, “que sendo as palavras somente definições para coisas, seria mais conveniente que todas as pessoas levassem consigo tudo de que achassem necessário para expressar um negócio particular sobre o qual precisassem discorrer.”

E esta invenção certamente teria sido implantada, para grande comodidade bem como para o bem estar dos súditos, se as mulheres, aliadas às pessoas comuns e aos iletrados, não tivessem ameaçado levantar uma rebelião a menos que lhes fosse concedida a liberdade de falar com suas línguas, de acordo com os costumes de seus antepassados; tais inimigos perpétuos e irreconciliáveis com a ciência eram o povo vulgar.

Entretanto, a maioria dos mais sábios e eruditos aderiram ao novo projeto de se expressarem através das coisas, o qual apresentava apenas uma inconveniência de aprovação, que se os interesses de um homem fossem muito grandes, e muito variado, ele deveria ser obrigado, proporcionalmente, a carregar um grande saco de coisas nas suas costas, a menos que contratasse um ou dois criados para serví-lo.

Vi, muitas vezes, dois desses sábios quase afundando sob o peso de suas bagagens, a maneira de nossos mascates, que quando se encontram nas ruas, colocam no chão todas as suas coisas, abrem seus sacos, e ficam conversando durante horas, depois, voltam a guardar os utensílios, e ajudam uns ao outros para retomar as suas cargas, e se despedem.

Mas para conversações curtas, um homem poderia levar os objetos em seus bolsos, e debaixo de seus braços, o bastante para sua sobrevivência, e em sua casa, nada lhe poderia faltar. Portanto, a sala onde as pessoas encontravam aqueles que praticavam esta arte, estava cheia de objetos, prontos e indispensáveis, para fornecer material para este tipo de conversa artificial.

Uma outra grande vantagem proposta por esta invenção era, que isso servisse de idioma universal, para ser entendido por todas as nações civilizadas, e cujas mercadorias e utensílios geralmente são praticamente os mesmos, ou bem parecidos, de modo que seus usos pudessem ser facilmente compreendidos. E desse modo os embaixadores estariam qualificados para tratar com os príncipes estrangeiros, ou com os ministros de estado, para quem seus idiomas fossem completamente desconhecidos.

Estava eu numa escola de matemática, onde o mestre ensinava seus alunos segundo um método dificilmente imaginável por nós da Europa. A proposição e a demonstração eram escritas corretamente numa pastilha fina, com uma tinta feita de uma tintura encefálica. O estudante devia engolir isto com o estômago em jejum, e nos três dias seguintes, não comer nada exceto pão e água.

A medida que a pastilha era digerida, a tintura subia até a sua cabeça, levando a proposição junto com ela. Mas nenhum sucesso foi conseguido até o momento, em parte por algum erro no QUANTUM ou na composição, e em parte por causa da maldade dos garotos, os quais consideravam desagradáveis aquelas bolinhas, que eles geralmente colocavam de lado com a língua, e as disparavam para o alto, antes que elas começassem a funcionar, e nem se conseguiu convencê-los de fazer uma demorada abstinência, como exige a prescrição.

← Capítulo anterior Título do capítulo Capítulo seguinte →
Parte III, Capítulo IV Parte III, Capítulo V Parte III - Capítulo VI