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Eurico, o Presbítero/XIII

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"Ao sopé daquele monte um penhasco defendido
pela natureza e não por arte, dilatando‑se vasto,
resguarda uma caverna inteiramente inexpugnável
para qualquer ardil de inimigos."

Monge De Silos: Chronicon, c. 3º.


A vitória do Críssus assegurara aos árabes a conquista da Espanha inteira, porque o desalento entrara em todos os corações, e o terror quebrara todos os brios. O Duque de Cantábria, Pelágio, fora o único em cuja alma não morrera inteiramente a esperança. Errante pelos cerros quase inacessíveis que se elevam no extremo oriental da Galécia, e que, passando ao norte da Cartaginense, vão encontrar­‑se no vulto gigante dos Pireneus, o mancebo não dobrara a cerviz ao fado cruel que pesava sobre seus irmãos. Poucos o haviam seguido naquela vida quase selvagem: mas esses poucos eram homens a quem a aura da liberdade parecia a única atmosfera em que os seus pul­mões robustos poderiam resfolegar; homens a cujos olhos as afrontas da cruz derribada do cimo das catedrais seria espetáculo incrível e insuportável. Uma caverna servia de paço ao jovem rei das monta­nhas e de templo ao Crucificado. Os domínios de Pelágio eram as serranias e os vales profundos onde, porventura, até então nunca soara a voz humana. O urso ferocíssimo, o javali indomável, a leve corça abasteciam a grosseira mesa desses godos a quem a desgraça e a vida dura das solidões fizera mais feros, mais indomáveis e mais ligeiros do que eles. Às vezes, Pelágio e os seus soldados desciam das montanhas para largas correrias, semelhantes à tempestade noturna, e, como a tempestade, passava elas tendas dos árabes ou pelas aldeias, despovoadas de cristãos, onde os infiéis começavam a fazer assento. Alta noite ouvia‑se aí um gemer de moribundos, via‑se o brilhar do incêndio. Era o bulcão do deserto que rugia por lá. Ao amanhecer tudo estava tranqüilo; porque, bem como a procela, Pelágio era repentino e destruidor, e só escrevia na terra com os caracteres sanguinolentos de ruínas e mortes a notícia da sua quase invisível passagem.

Não assim Teodomiro. Depois da batalha, os restos das tiufadias desbaratadas haviam‑no proclamado sucessor de Roderico. Era de ferro e de espinhos a coroa que se lhe oferecia sobre a campa do império godo. Aceitou‑a; porque em aceitá‑la havia mais abnegação que orgulho. Enquanto Tárique, rendida Tolentum, subjugava uma parte da Cartaginense, Muça, o amir de África, desembarcando nas costas da Espanha com um novo exército, rendia Híspalis e, atra­vessando o Ana, submetia ao jugo do califa todo o ocidente da penín­sula ibérica. As relíquias do exército godo que não haviam podido resistir a Tárique, muito menos poderiam impedir a passagem do amir. Assim, Teodomiro, ajuntando esses soldados dispersos, aco­lhera‑se às serranias de Ilipula, na extremidade oriental da Bética. Muça, porém, enviara contra ele seu filho Abdulaziz, um dos mais famosos guerreiros do Islame. Apesar da superioridade do exército árabe, a luta fora longa e terrível. Teodomiro sucumbira por fim; mas, posto que vencido, o seu valor obrigara os muçulmanos a conce­derem‑lhe vantajosas condições de paz. Os vastos domínios que ainda possuía foram‑lhe conservados, reconhecendo ele a suprema­cia do amir, e os godos puderam, ao menos nesse canto da Bética, achar uma parte da segurança e repouso que faltava no resto da Espanha, onde o alfanje da conquista assinalava todas as frontes com o ferrete da servidão e reduzia a montões de ruínas as cidades, nas quais o espírito do cristianismo e da liberdade ousava relutar contra o domínio do califa e contra a religião do Alcorão.

Teodomiro reinou largo tempo nos distritos orientais da Bética, mas abandonado pelos mais nobres guerreiros, para quem a paz com os infiéis seria incomportável desonra. As montanhas das Astúrias eram o verdadeiro e único refúgio da independência goda. Em volta de Pelágio, ajuntavam‑se todos os homens esforçados que não tinham ainda desesperado da Providência e da própria espada. Muitos deles adormeceram para sempre nas solidões daqueles agrestes esconderi­jos, sem que vissem verificar‑se as suas esperanças; outros, porém, saudaram ainda a aurora do dia da vingança e puderam dizer, mor­rendo: ‑ "A Espanha será salva!"

Era passado um ano depois da batalha do Crissus. O número dos companheiros de Pelágio aumentava diariamente com os homens generosos que, depois da paz de Teodomiro com os árabes, deixavam este, para salvarem a sua independência nos fraguedos das Astúrias e da Cantábria. Esses contínuos socorros fortaleciam a constância do moço guerreiro, que via crescer e sussurrar a torrente dos invasores em volta das suas montanhas. Abdulaziz, o valente filho de Muça, subjugara a Lusitânia e a Cartaginense e, saqueando as cidades opu­lentas do norte que lhe abriam as portas, metia a ferro e fogo as que tentavam resistir‑lhe. Os rolos de fumo que se alevantavam das povoações incediadas mostravam aos cavaleiros de Pelágio que já pelos campos góticos flutuava triunfante o estandarte de Maomé. Rugindo de cólera ao contemplarem este espetáculo, apertavam contra o peito a cruz das espadas. Então, sentiam escorregarem‑lhe as lágrimas pelas faces tostadas, e descer‑lhes com elas aos seios da alma a resignação e a esperança na piedade de Deus.

Debaixo de semblante severo, mas sereno, Pelágio sabia esconder a amargura que lhe trasbordava de coração. No viço da juventude, o espírito lhe encanecera em meio dos dolorosos sucessos da sua ainda tão curta vida. A todas as mágoas comuns se lhe acrescen­tavam outras particulares, porventura mais pungentes. A maior par­te dos seus companheiros haviam trazido para as Astúrias os pais decrépitos, os filhos e as esposas, todos aqueles por quem repartiam os afetos do seu coração. Ele, porém, não pudera salvar uma irmã que adorava e que Favila, expirando, entregara em seus braços para que fosse o defensor e o abrigo da que ficava órfã no mundo. Ao sair de Tárraco, para se ir ajuntar à hoste de Roderico, o mancebo deixara Hermengarda nos paços paternos, encomendada à guarda de alguns velhos bucelários de seu pai. Quando, depois da batalha junto do Críssus, se acolhera às montanhas, onde só podia conservar a liberdade, Pelágio avisara sua irmã do lugar em que existia e lhe comunicara todos os meios de penetrar naquela quase inacessível guarida. A resposta de Hermengarda foi digna de uma neta dos godos: dizia‑lhe que brevemente seria com ele; porque preferia um covil de feras habitado por Pelágio às delícias de Tárraco, sobre a qual não tardaria, talvez, a pesar o férreo jugo dos muçulmanos. Com os bucelários que lhe deixara, ela ia atravessar a Espanha, encaminhando‑se a Légío, onde devia chegar dentro de poucos dias.

Essa carta de Hermengarda produzira cruéis receios no ânimo do mancebo. Sabia que os árabes derramados já pela Galécia, não tardariam a envolver na torrente das suas assolações a antiga cidade romana: ele, que experimentara qual era a fúria dos guerreiros do oriente, compadecia‑se das vãs esperanças de resistência que os habi­tantes de Légio alimentavam ainda. De feito, um dia em que enviara alguns cavaleiros pelos diversos caminhos que Hermengarda poderia seguir na sua arriscada e longa peregrinação, estes voltaram sobre a tarde com uma bem triste nova. Os árabes, capitaneados por Abdula­ziz, haviam chegado junto aos muros daquela forte povoação, e poucas horas lhes tinham bastado para hastearem nas suas torres o estan­darte de Maomé e para passarem à espada os seus defensores. Deixando aí uma das tribos berberes, o exército dos conquistadores guiara rapidamente para a Tarraconense, e os esculcas godos haviam esca­pado a custo aos almogaures árabes, desaparecendo entre os desvios das serras e espreitando das apertadas portelas o caminho que seguia a multidão dos infiéis, os quais lhes pareceu dirigirem‑se para o lado do célebre mosteiro da Virgem Dolorosa. Quanto à irmã de Pelágio, nenhuns vestígios haviam encontrado da sua passagem: nenhuma esperança traziam.

Tais foram as novas que os cavaleiros enviados aos vales além de Légio deram ao moço guerreiro, que já os esperava impaciente em uma das gargantas do Vínio. Cheio de tristeza, Pelágio voltou então para a sua morada selvática, para o esconderijo pelo qual havia tanto tempo trocara os paços paternos da esplêndida Tárraco. Du­rante muitas horas, no meio do denso nevoeiro acamado sobre as encostas, pelas sendas tortuosas das montanhas, os cavalpiros que seguiam o duque de Cantábria não ousaram quebrar‑lhe o doloroso silêncio. Apenas, pela calada da noite negra e fria, soava lá ao longe o ruído do Sália, de cujas margens por vezes se aproximavam. O sussurrar, porém, da corrente, amortecido de quando em quando pela distância confundia‑se com o ramalhar nas sarças do lobo que fugia e com o brando rugir dos pinhais, balouçados pela bafagem do vento. Estes sons vagos e confusos respondiam ao tropear dos ginetes, gal­gando as serras ou descendo lentamente e enfileirados à borda dos precipícios. O nevoeiro, mergulhando‑se nestes branqueava‑lhes os seios e revelava a sua existência, deixando entre uns e outros como uma fita tortuosa e escura que ia morrer mui perto no breve horizonte, encurtado pela cerração e pelas trevas.

Tarde, já bem tarde, uma luz baça e duvidosa bruxuleou sem brilho adiante dos cavaleiros, que haviam rodeado as montanhas, fazendo um largo semicírculo. Naquele momento transpunham uma garganta medonha. Pelo contrário de outros lugares que tinham atravessado, aqui as serras erguiam‑se quase a prumo de uma e de outra parte da estreita passagem. Por meio dela sentia‑se o ruído de torrente caudal, que parecia vir da banda da luz que se via em distância, e o nevoeiro, cada vez mais cerrado, pendurava‑se em orvalho na barba espessa dos guerreiros e nos cabelos que lhes on­deavam pelos ombros, saindo de sob os elmos.

Seguindo o curso do ribeiro, a cavalgada chegou, por fim, a um vale mais amplo, mas também rodeado de serras, ruja sombra gigante seria fácil perceber, apesar da cerração, a quem olhasse atentamente em roda. A luz que parecia guiar os cavaleiros, a princípio duvidosa, tênue, sumindo‑se a espaços, crescia rapidamente e era já um grande clarão, que refletia pelos penhascos, visíveis para um e outro lado, e cintilava no dorso da corrente. Um grito de esculca veio quebrar o silêncio dos caminhantes, que durante tantas horas não tinham proferido uma única sílaba.

As palavras ‑ Covadonga e Pelágio! ‑ repetidas pelos cavaleiros da frente responderam à voz do esculca, que em pé e quedo sobre um outerinho, os deixou passar avante. Em breve chegaram ao termo da sua viagem. O vale findava em extensa penedia cortada a pique. À direita uma subida íngreme, talhada na pedra viva, conduzia a um arco irregular aberto nas rochas. Era a claridade do fogo aceso de­baixo dele a que se derramava no vale e que ainda ia alumiar frouxa­mente o passo estreito que os cavaleiros haviam atravessado. Encos­tadas aos rochedos e dispersas junto à raiz daquela muralha altíssima, estavam derramadas muitas choupanas, grosseiramente construídas de mal acepilhados troncos e cobertas de ramos e colmo. Em frente de várias delas ainda fumegava o brasido das fogueiras noturnas daquela espécie de arraial, onde ciciava o respirar compassado dos que dormiam. Ao pé da primeira e mais extensa choupana, Pelágio descavalgou; os mais seguiram o seu exemplo.

‑ Gutislo! ‑ bradou um dos cavaleiros, cujo elmo se distinguia dos demais, porque era o único em cuja superfície negra e baça não reverberava o clarão avermelhado dos carvões acesos que ainda res­tavam de uma grande fogueira, junto da subida íngreme que guiava à caverna.

Um homem agigantado e de fera catadura saiu da choupana murmurando sons mal articulados e que pareciam de agastamento. Dos recém‑vindos os principais começaram a subir vagarosamente a senda fragosa que tinham ante si enquanto Gutislo recolhia os gine­tes, que mal se podiam menear de cansados, e os simples bucelários se derramavam pelas tendas erguidas junto dos penhascos.

Os cavaleiros chegaram ao topo da subida. A caverna de Cova­donga, o palácio do duque de Cantábria, estava patente. Da esquerda, em vasta lareira, ardia um grosso cepo de sobreiro, que conservava tépida e enxuta a atmosfera, naturalmente fria e úmida: da direita, pelas quebras angulosas das rochas, viam‑se deitados capacetes, saios de malha e muitas armas ofensivas. Escabelos grosseiros, mesas de carvalho e alguns leitos de peles de animais silvestres, amontoadas sobre a cortiça que servia de pavimento, completavam o adereço daquele rude aposento. Todavia, as armas polidas, ordenadas em feixes, e as estalactites seculares, penduradas do teto, reverberando o clarão da fogueira, davam ao topo da lapa um aspecto esplêndido que de algum modo assemelhava esta habitação de feras a uma sala de armas de paços afortalezados.

É alta noite: os cavaleiros que haviam acompanhado Pelágio dormem profundamente, estirados nos pobres leitos da gruta. Quem ouvisse os nomes desses rudes soldados saberia quais eram os restos da mais ilustre nobreza goda: eram muitos daqueles que, havia poucos meses, nos paços magníficos de Toletum passavam as noites em festas, os dias em banquetes e que, depois de existência deleitosa, esperavam ir dormir, sob as arcarias das criptas das catedrais, nos túmulos soberbos de seus avós. E todavia, a conquista reduziu‑os à vida de bár­baros e fê‑los retroceder aos costumes duros e ferozes dos companhei­ros de Teodorico e de Ataúlfo, aos hábitos de rudeza dos primitivos visígodos.

O moço duque de Cantábria vela, porém. Assentado em um esca­belo junto do lar aceso, com a face encostada ao punho, deixa balouçar a sua alma em tempestade de dolorosos pensamentos, lembrando‑se de Hermengarda. Por mais de uma hora, Pelágio se conservara nesta situação, quando, ao voltar a cabeça, viu que mais alguém velava, como ele. O cavaleiro que ao chegarem chamara por Gutislo, em pé por detrás do escabelo, com os braços cruzados e os olhos fitos na chama, parecia meditar profundamente. No seu aspecto havia o que quer que fosse tenebroso e sinistro.

‑ Como assim! ‑ exclamou o mancebo ‑ ainda não buscastes o repouso? Depois de tão larga correria, não imaginava achar‑vos ao pé de mim, que velo porque a amargura não consente que o sono me cerre as pálpebras. Tendes, acaso, uma irmã querida, uma esposa que muito ameis, por quem devais tremer, e que, talvez, neste momento seja vítima das paixões desenfreadas dos infiéis?

‑ Não tenho ninguém no mundo ‑ respondeu o cavaleiro, cujo aspecto se carregou ainda mais ao ouvir estas últimas palavras: ‑ mas não pode aquele cujo coração é ermo desses afetos ser também infeliz?

‑ Infelizes são todos os moradores de Covadonga ‑ acudiu Pe­lágio: ‑ mas o que à desventura comum ajunta receios bem fundados pela honra ou, ao menos, pela vida daqueles que muito amou é mil vezes mais desventurado.

‑ Duque de Cantábria, quando tiverdes medida por onde aferir ao certo o meu e o vosso coração podereis falar assim.

‑ Tê‑la‑ia, talvez, se conhecesse a história da vossa vida: mas vós a cobris de impenetrável mistério.

‑ Porque é o segredo mais santo da minha alma ‑ interrompeu com veemência o cavaleiro; ‑ segredo que esta boca nunca revelará na terra.

‑ Nem eu o exijo: longe de mim tal intento. A carta que me trouxestes de Teodomíro me assegura que sois um nobre gardingo: tanto bastou para que vos recebesse entre aqueles com quem reparto a minha caverna de foragido. Nunca vos perguntei, sequer, por que abandonastes um homem que de suas palavras vejo vos amava como irmão.

‑ Oh! quanto a isso, dir‑vo‑lo‑ei ‑ atalhou de novo o guerreiro, pondo a mão sobre o punho da espada. ‑ Foi porque eu o cria um anjo de virtude e esforço, e ele era apenas um homem! Foi porque a paz que pactuou com os muçulmanos, honrosa aos olhos do vulgo, era, a meus olhos, infâmia. Paz com o infiel? Ao cristão só cabe fazê‑la quando dormir ao lado dele sono perpétuo no campo de batalha; quando, ao lado um do outro, esperarem ambos que as aves do céu venham banquetear‑se em seus cadáveres. Antes disso não a compreendo. Disse‑lho, sem cólera, sem injúrias, ao abandoná‑lo para sempre. Nesse momento algumas lágrimas correram destes olhos; porque a alma de Teodomiro era a última em que morava um afeto que respondesse aos meus: era o último templo em que me sorria a esperança!

E as lágrimas que ele dizia haver derramado nessa triste sepa­ração corriam, de novo, quatro a quatro pelas faces do guerreiro.

Apenas o gardingo proferira estas derradeiras palavras, o clarão avermelhado da lareira bateu subitamente no vulto agigantado de Gutislo, que surgira à boca da gruta e parecia hesitar se devia ou não interromper o diálogo dos dois guerreiros.

‑ Velho lobo do Hermínio, aproxima‑te - disse Pelágio em tom de gracejo, como que tentando afastar as tristes idéias que lhe oprimiam o espírito. ‑ Que buscas a tais desoras? Tiveste, acaso, em sonhos saudades das barrocas das tuas serras nevadas, e creste que Covadonga era o antro de teu irmão, o javali?

‑ O caçador das montanhas ‑ replicou o lusitano, na sua linguagem pinturesca de bárbaro ‑ não estaria aqui, se a saudade dos lugares em que nasceu lhe morasse no coração. Os homens de além do mar mataram‑lhe ou cativaram‑lhe mulher e filhos quando estes, por seu mal, num dia em que ele perseguia nos cimos da serra os lobos ferozes, ousaram descer com o rebanho aos vales do Munda. Por isso te segui eu, ó godo: tu derramas o sangue dos homens de além do mar, e eu quero derramá‑lo também.

‑ A que vens, pois aqui? ‑ replicou Pelágio, a quem as palavras do celta traziam de novo ao espírito a lembrança de que também ele era, talvez, órfão de irmã querida.

‑ A dizer‑te que um desconhecido chegou ao vale. Repete não sei que nome godo, como o teu; de Hermengarda, me parece. Pede para te falar.

‑ Onde está ele? ‑ exclamou Pelágio, em cujos olhos brilhara a esperança misturada de temor. ‑ Que venha! oh, que venha breve!

E, alevantando‑se, encaminhou‑se ligeiro para a entrada da gru­ta, de onde Gutislo outra vez desaparecera. Antes, porém, que aí chegasse, um velho, cujos trajos desordenados, rotos e cobertos de lodo davam indícios de ter atravessado largo espaço das serranias, entrou na caverna e, arrojando‑se aos pés do duque de Cantábria, rompeu em soluços, sem poder proferir palavra.

Num relance Pelágio o conhecera.

‑ Aldefonso! onde está Hermengarda? Bucelário! onde está a filha do teu patrono?

O velho tentou responder; porém não pôde, e continuou a soluçar.

‑ Entendo‑te: é morta! Nunca mais te verei, minha pobre irmã! ‑ murmurou o mancebo, escondendo o rosto entre as mãos.

Ao gardingo, que durante esta cena se conservara imóvel, fugiu um gemido abafado. Depois, levou o punho cerrado à fronte, como se quisesse conter aí uma idéia dolorosa que tentava resfolegar.

Houve largo espaço de temeroso silêncio. O velho quebrou‑o por fim:

‑ Não; não é morta! Mas, porventura, ainda o seu fado é mais horrível. Jaz cativa em poder dos infiéis. Não me foi dado salvá‑la, e não quis morrer sem vos dar esta nova cruel. Agora...

Um brado de Pelágio atalhou as palavras do bucelário sufocadas pelo choro.

‑ As minhas armas e o meu cavalo! Que me dêem o meu franquisque! Velho vilíssimo, já que não soubeste deixar‑te despe­daçar junto dela, dize, ao menos, onde poderei encontrar os pagãos que cativaram Hermengarda.

Lavado em lágrimas, o ancião narrou‑lhe em breves palavras os sucessos que se haviam passado no mosteiro da Virgem Dolorosa. Ele tinha feito tudo para a resolver a tentar a fuga. "Ainda na cripta fatal ‑ concluiu Aldefonso ‑ através das grades que me embargavam os passos, por vós, pelas cinzas de vosso pai, lhe supli­quei de joelhos que me acompanhasse. Os velhos bucelários de Favila, no meio do tumulto, a teriam, talvez, posto em salvo! Sorriu, porém, das minhas esperanças e conservou‑se firme no seu propósito. Mas Deus tinha ordenado que, em vez de obter o martírio, caísse nas mãos dos agarenos. De todos os que vínhamos em sua guarda, só eu, acaso, pude escapar, misturado com os soldados da Transfretana. Assim, segui por algum tempo os árabes, que se encaminham para o lado de Segisamon. Ao anoitecer, embrenhei‑me nas montanhas. Um pastor que encontrei me serviu de guia, até que cheguei aos pés de meu senhor para lhe pedir a morte e para lhe jurar que estou inocente."

‑ De pé, cavaleiros! Aos infiéis, em nome de Cristo! ‑ gritou o duque de Cantábria, com uma voz que retumbou nas profundezas da caverna.

Habituados às súbitas arrancadas noturnas contra os árabes, quando vagueavam em correrias longínquas, os companheiros de Pelágio ergueram‑se de salto, ainda mal despertos, e por uma espécie de instinto lançaram mão das armas penduradas por cima das suas cabeças. Era solene e tremendo o espetáculo que apresentava a gruta naquele alçar repentino de tantos homens, no brilho das armas que relampagueavam à luz da fogueira e tiniam umas nas outras. Entre­tanto Pelágio ordenava a Gutislo que despertasse os homens de ar­mas espalhados pelas choupanas do vale e fizesse dar o sinal de encavalgar. Era necessário partir.

No meio, porém, da revolta, havia alguém que se conservava quedo e que parecia tranqüilo. Era o gardingo desconhecido. En­costado à parede anfractuosa da gruta e demudado o gesto, con­templava aquela cena com o vago olhar de quem alongara o pen­samento para mui longe dali. Enquanto todos os demais cavaleiros rodeavam Pelágio, indagando inquietos a causa daquele súbito ape­lidar para uma correria noturna, ele só ficara imóvel e como indi­ferente ao tumulto que as vozes do duque de Cantábria tinham excitado entre os guerreiros.

‑ Qual de vós outros, cavaleiros ‑ dizia Pelágio aos que o rodeavam ‑ duvidará um momento de que, se um mensageiro chegasse e lhe dissesse: "vossa esposa, vossa filha, vossa irmã caiu em poder de infiéis" eu hesitasse em ir ajudá‑lo a arrancar essa vítima querida à bruteza cruel dos pagãos? Nenhum; porque mais de uma vez tenho arriscado a vida para curar saudades e amarguras dos dester­rados como eu. Deu‑me o céu uma irmã; deu‑me o último suspiro de meu pai uma filha; deu‑me a ternura por essa virgem, cuja ima­gem vive eterna neste coração virgem como ela, uma esposa. Quando a triste inocente vinha abrigar‑se à sombra do escudo de seu irmão, os infiéis roubaram‑na. Viúvo e órfão, apelo para os últimos corações generosos da Espanha. Por Deus, que me ajudeis a salvar a minha pobre Hermengarda. Como tua filha Brunilde, ela é formosa, Gu­desteu! Como tua esposa Elvira, ela é boa e carinhosa, Algemiro! Como tua irmã, Múnio, ela é inocente e pura. Godos, por tudo quanto amais, salvai‑a, salvai‑a a mesquinha!

O nobre esforço do mancebo desaparecera ante a idéia dolorosa da sorte que a Providência reservara à desventurada filha de Favila. Ele estendia as mãos unidas para os cavaleiros, como uma criança tímida que implora compaixão.

‑ Partamos! ‑ exclamaram ao mesmo tempo os nobres foragidos. ‑ Tua irmã será salva ou nenhum de nós voltará mais à gruta de Covadonga!

Uma voz trêmula, mas retumbante, trovejou por detrás deles:

‑ Não partireis daqui!

Voltaram‑se. Era o gardingo.

‑ Quem o ordena? ‑ bradou Pelágio, com toda a energia que esta inesperada resistência despertara subitamente nele.

‑ Um homem ‑ replicou o desconhecido, atravessando o círculo dos guerreiros que rodeavam o duque de Cantábria e lançando em volta olhos altivos; ‑ um homem cujo coração é há longo tempo morto, porque as paixões o queimaram; mas cuja inteligência por isso mesmo é mais fria. Quantos sois vós? Quantos bucelários dormem pelas tendas desse vale? Apenas alguns centenares de lanças poderiam, ao todo, transpor convosco os passos das serras. Os infiéis e os renegados que os servem quantos são? Se podeis contar as estrelas que ora recamam o céu, podereis dizer‑me o número deles. Tu, Pelágio, braço de ferro, coração de bronze, quem és tu? O guardador das últimas esperanças da cruz e da pátria. Quem te deu, pois, o direito de correres a morte certa? Quem te deu o direito de apagar no sangue dos últimos godos o único facho que alumia as trevas do futuro da escravizada Espanha?

‑ E a ti ‑ interrompeu furioso e arrancando meia espada o violento Sancion ‑ quem te incumbe de nos dizeres: não saireis daqui? Quem és tu, que, vindo não sei de onde, pretendes dominar como senhor aqueles que só obedecem a Deus?

O desconhecido olhou para o movimento ameaçador de Sancion, e pelo rosto passou‑lhe um sorriso desdenhoso. Cruzou os braços e respondeu com voz lenta e solene:

‑ Por minha boca falaram milhares de godos que gemem no cativeiro e que voltam de contínuo os olhos para os cerros das Astú­rias, onde apenas fulgura tênue o santo fogo da liberdade: falaram por minha boca as aras do Senhor calcadas pelos pés dos pagãos, as imagens de Cristo derribadas no lodo, os muros enegrecidos das cida­des incendiadas. É isto tudo que voz diz: ‑ não saireis daqui! - Perguntas quem sou? Dir‑to‑ei. O último homem que, junto do Críssus, viu, combatendo, a face dos árabes vencedores, enquanto os valentes fugiam; o homem que tentou morrer com a pátria, e que a mão de Deus salvou para neste momento vos dizer: não saireis daqui! Queres saber quem eu sou? Lê, Pelágio, o que escreveu aí Teodomiro. Dize‑lhe depois qual é o meu nome.

E, tirando da escarcela uma tira de pergaminho dobrada, abriu‑a e entregou‑a a Pelágio,

O duque de Cantábria correu‑a pelos olhos e, deixando‑a cair em terra, murmurou: ‑ "Meu Deus, o cavaleiro negro!"

Os godos apinhados em roda recuaram alguns passos e houve um momento de ansioso silêncio.

‑ Anjo, ou demônio, que nos explicas um mistério por outro mistério ‑ exclamou, enfim, Pelágio visivelmente perturbado: ‑ cristãos e árabes lembram‑se ainda das tuas incríveis façanhas nas margens do Críssus. Mil vezes eu próprio tenho dito: dez como ele haveriam salvado o império de Teodorico! Devemos obedecer‑te, se és um homem, como dizes, porque vales mais que nós. Se és o anjo que preside aos fados da Espanha, mais submisso ainda será o nosso obedecer. Mas, que mal te fez minha desgraçada irmã?...

‑ Que mal me fez tua irmã? ‑ atalhou com veemência o gardingo. ‑ Nenhum! ... E quem te disse que não quero, que não posso salvá‑la, eu, que não sou anjo, que sou, como tu, um homem? Quais de entre vós ‑ prosseguiu, voltando‑se para os cavaleiros que o rodeavam ‑ sois neste mundo sós e não tendes quem na morte regue com lágrimas a terra que vos cobrir? Quais de vós sois, como‑eu, desterrados no meio do gênero humano? Que os órfãos de coração ergam a destra para o céu, onde só há um seio que lhes receba os gemidos de amargura, o seio imenso de Deus!

Doze guerreiros, e entre eles o fero Sancion, alevantaram a destra para o ar à voz imperiosa do gardingo.

‑ A cavalo! ‑ gritou este, apertando o largo cinto da espada e enfiando no braço a férrea cadeia do franquisque. ‑ Pelágio! se dentro de oito dias não houvermos voltado, ora a Deus por nós, que teremos dormido o nosso último sono, e chora por tua irmã, cujo cativeiro já ninguém, provavelmente, quebrará, senão o anjo da morte. Partamos!

Proferindo estas palavras, o gardingo atravessou rapidamente a caverna e desapareceu nas trevas exteriores: os doze guerreiros escolhidos seguiram‑no maquinalmente, porque os seus meneios e gestos os tinham fascinado, ao lembrarem‑se de que este homem era o cavaleiro negro. O duque de Cantábria, subjugado também pela espécie de mistério solene que cercava todas as ações deste ente extraordinário, nem ousou perguntar‑lhe por que meio intentava salvar Hermengarda. Todavia uma vez íntima e irresistivel lhe dizia: "resigna‑te e confia". Confiado e resignado esperou, portanto, o cumprimento das promessas do incógnito gardingo.