Fabulas de Esopo/Vida de Esopo
Esopo, Fabulador antigo e famosissimo, segundo as mais opiniões foi natural de Phrygia, Provincia de Asia. As feições do corpo erão mais monstruosas que humanas, porque além de ter o rostro feio e deforme, o corpo pequeno, a cabeza grande e fóra de proporção, era zambro, corcovado e sobre tudo tartamudo. Mas como a natureza a cada hum deo particular dote, foi Esopo dotado de tão agudo engenho, que com a alteza delle se lhe apagarão bastantemente todas as faltas corporaes.
Sendo captivo por Gregos, veio a Athenas, onde servia a hum Cidadão rico, por nome Aristes, com outros em huma horta de cavar e adubiar: onde como todos o maltratassem e desprezassem, e o maioral dos trabalhadores lhe désse muitas pancadas, queixava-se Esopo, dizendo que faria queixumes daquelle aggravo a seu senhor Aristes, e de outros crimes que no maioral tinha notado, o qual com este medo se adiantou, e persuadio a Aristes, que para quietação de seus escravos tirasse a Esopo de entre elles, e que o vendesse. Fêlo Aristes assm, e o vendeo a hum mercador grosso forasteiro, que huma casa, onde tinha outros muitos, que, quando o virão, tiverão asco de andar em sua companhia. Hum dizia que era bom aquelle escravo para fazer callar meninos, outros que para servir em casa de homem cioso, e outras muitas cousas desta maneira.
Acaso mandárão em presente ao mercador hum prato de figos formosos, que elle estimou por serem fóra de tempo, e mandou-os pôr a bom recado, para comer em principio do jantar. Tres escravos tentados da gula se conjurárão para comerem os figos, e pôrem a Esopo a culpa, crendo que culpado por tres testemunhas não poderia defender-se. Assim os comêrão com muita festa, zombando do pobre innocente, que com açoutes os havia de pagar. Chegada a hora de comer, pedio o Senhor os figos, e foi-lhe respondido (como tinhão concertado) que Esopo os comera todos. Indignou-se o Senhor, e chamando-o lhe disse: Animal feio e bruto, que atrevimento foi o teu em comeres os figos, que mandei guardar para mim? E com isto o mandou despir para ser açoutado. O pobre Esopo não sabendo que fizesse, porque a lingua não o deixava desculpar em breve, e a colera do Senhor não dava tregoas nem espaço, remetteo com huma panella de agua, que acaso estava ao fogo, e bebendo quantidade della muito quente, metteo os dedos na boca, com que revolveo o estomago, e a tornou a lançar clara, mostrando estar em jejum, com o qual feito desmentio seus accusadores. Maravilhado o Senhor desta industria, e vendo sua innocencia, obrigou os outros a que fizessem o mesmo, e como se cumprisse, os que comèrão figos, os vomitárão com a agua juntamente, e forão por isso, e pelo falso testemunho castigados.
Convinha ao mercador partir-se dalli tres jornadas, onde se havia de embarcar para a ilha de Samos, e faltando-lhe bestas de carga, foi forçado repartir o fato pelos escravos. Mas como Esopo era pequeno e fraco, deo-lhe a escolher a carga, que se atrevesse a levar. Era o mais pezado fardo de todos huma canastra grande cheia de mantiniento, a qual elle escolheo, rindo-se todos, e cuidando que não poderia levala: partírão seu caminho, e como no fim da primeira jornada comessem, alliviárão hum pedaço a canastra, com que ficou igual dos outros; mas ao segundo dia a despejárão de todo, e levando-a vazia, conhecêrão todos o seu erro, e a manha discreta, com que Esopo escolheo a carga.
Embarcou-se o mercador, e chegou a Samos, onde poz sua fazenda em almoeda, e os escravos juntamente. Estavão em huns alpendres, onde a feira se fazia, Esopo com dous companheiros, e ninguem fazia delle caso para o comprar, inda que muitos o olhavão por riso. Chegou hum Cidadão, e perguntou a hum dos companheiros que sabia fazer para o comprar? Respondeo-lhe: Senhor, tenho muitas partes, sei pensar cavallos bem, e servir em tudo o de casa, sou grande hortelão e bom lavrador, e em toda a cousa de campo ninguem me fará vantagem; tambem sou bom ferrador, alveitar, e entendo de ferreiro. Com isto chegou a outro, e perguntou-lhe o mesmo, respondeo: Eu, Senhor, sou destro em todas as cousas necessarias, e nenhuma me mandarão fazer, a que não dê bom expediente. Correndo mais adiante, perguntou a Esopo que sabia? Respondeo: Eu nada sei, porque como meus parceiros tomárão o saber de tudo, não me ficou que saber a mim. Disto rírão muito todos os presentes, e hum Philosopho, por nome Xanto, que alli passeava, o comprou e levou para sua casa: o qual como hum dia com seu novo escravo fosse passear por huma horta, o hortelão lhe fez esta pergunta: Dizei-me, Senhor, que razão ha para que cresção e sejão sempre viçosas as hervas, que esta terra cria, e as que eu semeio, cavo, rego e adubio, se murchem mais prestes, e fructifiquem menos. Ficou atalhado o Philosopho, e não soube responder; o que Esopo vendo, lhe disse de parte, que elle satisfaria á pergunta, por tanto que lhe commettesse a cargo o dar resposta; então o Philosopho disse contra o hortelão: Não he dúvida essa para se pôr a hum homem como eu, este escravo, que aqui vem, responderá a ella; e logo lhe mandou que respondesse. A razão da dúvida, disse Esopo, he esta: As hervas, que a terra voluntariamente produz, são filhas suas, e como taes as cria e conserva; as que vós semeais são enteadas, que a madrasta nunca com tanto gosto as alimenta: por tanto não he de espantar, se nos próprios filhos se enxerga vantagem no mimo, e criação differente dos enteados. Satisfez-se o hortelão, e espantou-se o Philosopho do engenho e agudeza do criado.
Tinha Xauto muitos discípulos mens graves, e costumavão huns a outros banquetear-se. Quiz Xanto dar-lhes hum banquete, e porque tinha a mulher aspera, e pouco affeiçoada a obedecer-lhe, nem querer agazalhar os hospedes, depois de comprar o necessário, encarregou a Esopo de concertar a casa e a meza. Aconteceo que chegando-se as horas da cea começou elle a preparar seu aposento, e com muita limpeza, ordenou a meza, e poz nella algumas cousas, antes que os convidados viessem, nem seu amo. Era tempo frio, e havia na casa hum brazeiro grande com fogo, ao qual a mulher chegou aquentar-se carregada e de mão semblante, e encostou-se ao longo delle, com as costas para a za . Esopo lhe pedio quizesse olhar para a meza, não lha descompozesse algum cão ou gato; ella disse que o faria: segunda vez lhe rogou o mesmo, e que virasse o rosto para vêr; do que ella indignada respondeo, que andasse em má hora, e não fosse importuno, que também tinha os olhos detraz. Calouse Esopo, foi-se, e tornando dahi a pedaço, como a achasse dormindo, mansamente descobrio o lugar, em que ella disse que os olhos estavão. Não tardou muito Xanto com seus hospedes, que entrando no aposento virão muito bem quanto mal composta a mulher estava, e ficou affrontado o Philosopho, e perguntando a causa a Esopo, elle lhe contou o que se sara de que se indignou mais; e acordada a senhora, se foi muito vergonhosa, e com grande odio contra Esopo.
Corridamente agasalhou Xanto seus discipulos, e logo propoz de lançar de casa Esopo: mas sendo convidado delles outra vez, e ceando largamente, como se esquentasse com o vinho mais do necessário, começou a fallar demasias, e entre ellas affirmou que beberia o mar todo: contradisserão os discípulos, e elle porfiou, até que apostárão grande somma de dinheiro, e Xanto deo de sinal o seu annel. Ao outro dia, resfriado já do furor, achou o annel menos, e perguntou por elle. Respondeo Esopo: Como Senhor, não vos lembra que o déstes hontem de sinal sobre a aposta que fizestes de beberdes o mar todo? Como he possivel, disse Xanto, que eu fizesse tal proposta, quem póde beber o mar? Isso não sei, disse Esopo, mas vós apostastes. Ficou Xanto confuso da aposta que fizera, sem lhe poder achar sahida, até que Esopo vendo-o tão triste, lhe disse: Senhor, não vos agasteis, descançai, que eu vos tirarei dessa affronta, e farei que ganheis o dinheiro. Alegrou-se com isto Xanto, e vindo o dia limitado, vierão os discipulos a dizer-lhe que cumprisse o que ficara , ou dando-se por vencido pagasse o dinheiro. Xanto respondeo que era contente, e informado por seu escravo do que havia de fazer, se foi com elles á borda do mar, onde pozera a meza e copos, estando em roda a gente toda da Ilha, que se abalou a ver maravilha tamanha, como era querer hum homem recolher o mar em seu estomago. Prestes todo o necessario, começou Xanto a fallar ao povo, dizendo: Varões de Samos, eu apostei com estes discipulos que havia hoje de beber este mar todo; respondão elles se he verdade, e se bebendo-o eu, cumprirei o promettido, e elles se darão por vencidos? Todos respondêrão que sim. Disse então Xanto: Pois que assim he, e eu fiquei de beber o mar, prestes estou a cumprilo; mas elles hão de cerrar primeiro todos o rios, que no mar entrão, e entupir-lhes as bocas, porque eu me obriguei a beber o mar, mas não a multidão de rios, que entrão nelle; por tanto se querem que eu cumpra o que fiquei, he forçoso que elles primeiro impidão a corrente de quantos rios fazem para aqui seu curso. Não souberão responder os discipulos a isto, e o povo louvou muito a resposta do Philosopho, e todos o derão por livre da aposta, e tornou para casa mais acreditado que d’antes. Outros muitos casos succedêrão a Esopo com Xanto, que deixo por brevidade, até que veio a ser livre, e governar a Samos, onde compoz em lingua grega este volume de Fabulas.
Depois, como o Rei Creso de Lydia quizesse conquistar Samos, por seu conselho e industria se defendêrão os visinhos muito tempo: porém vendo-se muito apertados, e que Creso offerecia a paz, se lhe entregassem Esopo; derão-lho, ainda que Creso não guardou depois palavra, como Esopo antes tinha adivinhado, e logo os poz em sujeição. Não quiz Creso matar a Esopo, antes o tinha em sua casa favorecido, porque se ajudava muitas vezes de seu conselho e habilidade.
Viveo Esopo em Lydia muito favorecido, e depois correo toda a Grecia, onde ihe succedêrão varios casos, que aqui se não contão. Mas em todas as partes, por sua fama e sabedoria o venerárão, só em Delphos não usárão com elle esta cortezia e primor. E conhecendo ter errado, porque elle não os affrontasse infamando-os e divulgando em Grecia sua descortezia, determinárão matalo, e accrescentando hum mal a outro, lhe levantárão certo falso testemunho, porque o condemnárão a ser despenhado: e com muita brevidade, sem lhe valer allegar sua innocencia, foi posto sobre o cume de huma alta roca, e lançado dalli, chegou a baixo em mil pedaços. Todas as Cidades gregas sentirão muito a sua morte, e pouco tardou que Delphos foi destruida em vingança, segundo dizem, desta injustiça e traição.