Fabulas de Narizinho/A cigarra e a formiga

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A cigarra e a formiga


Houve uma joven cigarra, de côres rebrilhantes, que tinha por costume chiar ao pé dum formigueiro. Só parava quando cansadinna; e era então seu divertimento observar as formigas operosas, na eterna faina de abastecer as tulhas de Formigopolis.

Mas o bom tempo, afinal, passou, e vieram as chuvas finas de Setembro. Os animaes todos, arrepiados, passavam o dia cochilando nas tócas, á espera de que cessasse o horrivel chuvisqueiro.

A pobre cigarra, sem abrigo em seu galhinho secco, e mettida em grandes apuros, deliberou soccorrer-se de alguem.

Manquitolando, com uma asa a arrastar, dirigiu-se a Formigopolis. Bateu — tic, tic, tic...

Surge uma formiga friorenta, embrulhada em fichú de paina.

— Que quer você? pergunta ella, examinando a triste mendiga, suja de lama e a tossir, a tossir...

— Venho em busca de agasalho. A garôa não cessa e eu...

A formiga olhou-a d'alto a baixo, franziu a testa e disse:

— E que fazia você durante o bom tempo que não construia a sua casa?

A pobre cigarra, treme—tremendo, respondeu depois dum accesso de tosse:

— Eu cantava, bem sabe...

— Ah!... exclamou a formiga, recordando—se. Era você, então, quem cantava. nessa arvore secca, emquanto nós labutavamos para abastecer as tulhas?

— Isso mesmo, era eu...

— Pois entre, amiguinha! Nunca poderemos esquecer as boas horas que sua cantoria nos proporcionou. Aquelle chiado nos divertia e nos alliviava o trabalho. Diziamos sempre: que felicidade ter como vizinha a uma tão gentil cantora! Entre, pois, amiga, que aqui tem cama e mesa emquanto o mau tempo durar.

A cigarra entrou, sarou da tosse e voltou a ser a alegre cantora dos dias de sol quente e ceu azul. E durante toda a temporada chuvosa encheu o formigueiro de alegria com a vibração das suas musicas chiantes.

Mais tarde, quando o sol reappareceu e a cigarra partiu, confessaram as formiguinhas, saudosas, nunca terem passado uma estação das aguas mais divertida que aquella...

* * *

Já houve, entretanto, uma formiga má que não soube comprehender a cigarra e friamente a repelliu de sua porta.

Foi isso na Europa, em pleno inverno, quando a neve recobria o mundo com o seu cruel manto de gelo.

A cigarra, como de costume, cantara sem parar o estio inteiro, e o inverno viera pilhal-a desprovida de tudo, sem casa onde abrigar-se, nem folhinhas que comesse.

Desesperada, bateu á porta da formiga e pediu — emprestado, notem! — uns miseraveis restos de comida. Pagaria. Pagaria com juros altos, essa comida de emprestimo, logo que o tempo lh'o permittisse.

Mas a formiga era uma usuraria sem entranhas. Além disso, invejosa. Como não soubesse cantar tinha odio de morte á cigarra por vel-a querida de todos os seres.

— Que fazia você, durante o bom tempo?

— Eu... eu cantava!...

— Cantava? Pois dance agora! e fechou-lhe a porta no nariz.

Resultado: a cigarra alli morreu, entanguidinha; e quando regressou a primavera, o mundo apresentava um aspecto mais triste. E' que faltava na symphonia das cousas a nota estridente daquella cigarra morta em consequencia da avareza da formiga. No entanto, se a usuraria morresse, ninguem daria pela falta della!


Os artistaspoetas, pintores, musicossão as cigarras da humanidade.


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