Filomena Borges/VIII

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Foram dar com os ossos a Córdoba, num destroço de castelo árabe, construído à margem de um braço do Guadalquivir, ainda nos tempos do domínio muçulmano, e em cujas ruínas aboletavam-se agora os pescadores do lugar e um ou outro gitano, que a fome e a fadiga trouxessem de rastros até aí.

Filomena ficou arrebatada: confessou que o lugar não podia ser melhor para uma lua de mel e resolveu instalar-se nas ruínas.

— Que?! exclamou o Borges, assustando-se. Ficar aqui?! Ficar neste covil de vagabundos?!... Ora, qual! A mulher com certeza estava gracejando!

— Não! disse ela, sem se alterar, não gracejo, nem admito que te queiras fazer insensível a estas magnificências do belo! Olha! Contempla estas abóbadas lascadas pelo tempo! Vê como tudo isto é esplêndido! como tudo isto é maravilhoso! Onde irias tu descobrir um lugar mais propício aos nossos amores?

Borges ainda tentou despersuadi-la de semelhante idéia. Opôs-lhe os mais sensatos argumentos — apresentou-lhe com todo o peso de seu bom senso os inconvenientes que os esperavam — o sol, a chuva, os mosquitos, os insetos venenosos, talvez a morte nas mãos daqueles bárbaros! — Filomena que pensasse um instante, que refletisse um momento, antes de dar aquele passo! Porém nada obteve — a mulher não cedia uma polegada; e o infeliz, disfarçando o seu desgosto e auxiliado pelo cantonalista, procurou entrar em bom acordo com os pescadores.

Tudo arranjado pelo melhor que foi possível, o estalajadeiro descansou um pouco, depois embolsou a recompensa de seus trabalhos e a indenização de seus prejuízos, abraçou o suposto correligionário, jurou ainda uma vez que estaria sempre disposto a derramar a última gota de sangue pela pátria e afinal retirou-se.

O Borges então cuidou de resignar-se às circunstâncias. Aquele capricho da mulher não poderia deitar muito longe!... Que a deixassem lá com as suas ruínas, o primeiro pé d’água que caísse havia de ensiná-la!...

Contudo, aí ficaram três semanas, expostos ao sol e ao sereno, quase ao relento, alimentando-se sabe Deus como, e dormindo sob as velhas abóbadas lascadas e cheias de verdura. Felizmente tinham consigo alguma roupa, uma boa mala e ainda bastante dinheiro.

Foi aí, nesse canto ignorado da velha Espanha despojada, ao ciciar das brisas do Guadalquivir e à sombra murmurosa dos gigantescos loureiros e dos sicômoros, que Filomena se identificou pela primeira vem com o marido. E fê-lo sem a mais leve reserva, nem o mais ligeiro rebuço, chegando até a amá-lo com transporte, com delírio, chamando-lhe "seu raptor, seu amante!" refugiando-se nos braços dele, cheia de ternura e de medo, unidos, sobressaltados, como dois criminosos que ardessem na chama da mesma paixão clandestina.

O bom homem não desejava melhor; "assim não fosse ela tão caprichosa!"

Filomena agora o obrigava a longos passeios por entre canaviais bravios, por entre matagais de cactus, escolhendo lugares difíceis, quase intransitáveis, onde às vezes era preciso que ele a carregasse nos ombros para vadear pequenos regatos, coalhados de nenúfares, ou levá-la ao colo pelo meio de barrancos perigosos, cobertos de limo e salsas espinhosas. Outras vezes lhes sucedia perderem-se, e os dois tinham de descansar sobre a relva, sofrendo sede e fome, sempre foragidos, evitando as vistas de quem quer que fosse, como se fugissem de inimigos implacáveis.

Borges, temendo contrariá-la, submetia-se a tudo isso de cara alegre. Fingia desfrutar o mesmo encanto que ela desfrutava; fazia-se entusiasmado pela natureza, amando as águas do regato, admirando os passarinhos, correndo atrás das borboletas e deitando-se de bruços à beira do rio; o queixo na palma das mãos, a balbuciar versos; os olhos perdidos no serpentear monótono da corrente.

Mas no fundo sentia-se muito pouco à vontade e extremamente contrariado. — Por que não haveria sua mulher de ser como as outras?... Seria tão bom que os dois, àquela hora, estivessem gozando juntos, numa boa casa, em plena segurança e em plena dignidade do lar, a mais completa e a mais doce felicidade a que tinham direito por todos os motivos! Oh! ele, porém, amava-a tanto, tanto, que seria capaz de todos os sacrifícios para vê-la alegre e satisfeita! — Além de que, Filomena com o tempo havia de mudar de gênio!... Estava ainda muito moça, muito cheia de fantasias, porém tinha o principal, que era — boa índole e bom coração.

E ele subordinava-se, abafando os seus ressentimentos, sem um olhar de queixa, sem um gesto de desgosto, sem nunca desmentir aquele bom humor primitivo, aquela mesma condescendência delicada e simples, aquela mesma extrema amizade leal e generosa.

Mas os caprichos de Filomena multiplicavam-se a cada momento. Era já a idéia de acompanhar os pescadores ao rio, à noite, munidos de archotes e vestidos como eles; era já a fantasia de uma caçada pela Serra-Morena, em horas de calor, ou então a mania de uma pastoreada nos vales sombrios e pacíficos, acompanhando o gado, a cantarem de mãos dadas pelas ribanceiras, ou então deitados na grama. nos braços um do outro, à espera que o sol acabasse de descer no horizonte a sua escadaria de fogo.

De repente veio-lhe uma febre de viajar &mdashviajar muito, sem destino, não pelas cidades muito conhecidas e palmilhadas cotidianamente por centenas de estrangeiros taciturnos, encapotados nos seus ulters, de binóculo em bandolina e chapéu de sol encapado de verniz. — Não! Nada disso! Queria lugares totalmente imprevistos, que ainda não tivessem sido muito decantados pelos poetas como a sua Itália e que lhe deparassem comoções inesperadas.

— Queria os verdadeiros perigos, as fadigas dos desertos arenosos, a cólera dos simouns, o risco das florestas virgens, as jornadas por ínvios sertões desconhecidos, os horizontes eternos e as longas noites perdidas nos cumes silenciosos das montanhas, ouvindo o sanhudo sibilar dos ventos e os roncos desesperados das feras que têm fome!

O Borges sentiu um calafrio percorrer-lhe o corpo inteiro ao receber dos lábios da mulher aquela terrível sentença.

— Precisamos de uma vida mais agitada! explicou ela, vendo o gesto surpreso do marido.

— Mais agitada?!... Oh!... balbuciou este.

— Sim! mais agitada! Sinto-me morrer de inação! Basta de repouso! É preciso dar começo a uma nova existência!

O Borges esteve a perder os sentidos.

— Pois agora é que ia principiar o exercício?! pensou ele numa verdadeira vagabundagem?! ... Mas então que não será ela?!

— Se até aqui descansei, qual não será minha pobre vida de hoje em diante?!...

Filomena não percebeu o sobressalto do marido, porque estava já a cismar no Oriente.

Julgava-o numa desordem de impressões recebidas de Antony Rich, René Menard e principalmente de Lady Anna Brunt, cuja originalidade e cujo espírito másculo a fascinavam. Não lhe era estranho também o Dicionário Arqueológico de E. Bosc, e por mais de uma vez folheara o itinerário do dr. Emilio lsambert.

Com todo esse combustível a fumegar-lhe dentro da cabeça, via-se já dentro das muralhas venerandas de Jerusalém; sonhava o consagrado Sinai, a Abissínia, Malta, a Núbia e — o Egito.

O Egito! O longo e tortuoso Egito, cheio de passado e deslumbrante de tristeza.

Imaginava-se já de sandálias e bombachas de brocado, assentada à japonesa no dorso empírico de um camelo, ao lado do Borges, que sumido no seu albornoz característico, as mãos esquecidas sobre o adequado kandyjar, e também de canelas em cruz, toscanejava orientalmente sobre o macio shedad. À imitação de sua querida Lady Brunt, sentia-se já preada por um formidável ghazu e conduzida aventurosamente ao castelo de Djot.

No dia seguinte estavam de partida.