Negrinha (4º milheiro)/Fitas da vida

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PERAMBULAVAMOS ao sabor da fantasia, pela noite a dentro, através das ruas feias do Braz, quando nos empolgou a attenção a silhueta escura duma pesada mole tijolacea, com ares de usina vasia de machinismos.

– Hospedaria de immigrantes.

– E' aqui, então...

Paramos a contemplal-a, com a imaginação já ás cabriolas. Era alli a porta do Oeste paulista – Chanaan onde o ouro espirra do solo; era alli a ante-sala da Terra Roxa – essa California do rubido, oasis côr de sangue coagulado, onde cresce a arvore do Brasil de amanhã, uma coisa melhor que o Brasil de hontem, luso e pêrro; ela alli o ninho da nova raça, o paulistano, de Arthur Neiva — liga, amalgama, juxtaposição de elementos ethnicos que temperam o néo-bandeirante industrial, anti-jéca, antimodorra, vencedor da vida á moda americana.

Onde pairam os nossos Walt Whitman, que não vêem estes aspectos novos do paiz, e os não põem em cantos?

Que chronica, que poema não daria aquella casa da Esperança e do Sonho?

Por ella passaram milhares de criaturas humanas, de todos os paizes e de todas as raças, miseraveis, sujas, com o estigma das privações impresso nas faces, mas refloridas de esperança ao calor do grande sonho da America. No fundo eram heroes, porque só os heroes esperam e sonham. Emigrar: não existe fortaleza maior do que esta. Só os fortes atrevem-se a tanto. A miseria da terra natal cança-os, e elles se atiram á aventura do desconhecido, fiando na paciencia dos musculos a victoria da vida. E vencem.

Ninguem, ao vel-os na Hospedaria, promiscuos , humildes, quasi musulmanos na surpresa da terra estranha, imagina o potencial de energias accumulado nelles e só á espera de ambiente propicio para explosões magnificas.

Cerebro e braço do progresso americano, gritam o Sézamo ás nossas riquezas adormecidas. Estados Unidos, Argentina, S. Paulo devem dois terços do que são a varredura humana, trazida a granel para aterrar vazios demographicos, de regiões novas. Mal caem aqui, transformam-se, florescem, dão de si a apojadura farta com que se aleita a Civilização.

Aquella Hospedaria... Casa do Amanhã — corredor do Futuro...

Por alli desfilam, inconscientes, os formadores duma raça nova.


Dei-me com um amigo director desta almanjarra, disse o meu companheiro, e delle ouvi muita coisa interessante, acontecida cá dentro. Sempre que passo por aqui avivam-se-me na memoria varios episodios suggestivos, e, entre elles, um, romantico, pathetico, que até parece arranjo para terceiro acto de dramalhão lacrimogeneo.

O romantismo, meu caro, existe na natureza, não é invenção dos Hugos; e agora que elle se fez cinema, posso assegurar-te que muitas vezes a vida plagia o cinema. escandalosamente.

Foi em 1906, mais ou menos. Chegára do Ceará, então flagellado pela secca, uma leva de retirantes, com destino á lavoura de café, na qual havia um cégo, velho de mais de sessenta annos. Na sua categoria dolorosa de indesejavel, por que cargas d'agua dera com os costados aqui ? Erro de expedição, evidentemente. Retirantes que emigram não merecem grande cuidado dos prepostos ao serviço. Vêm a granel, como carga incommoda que entope o navio e cheira mal. Não são passageiros, mas fardos de couro fresco com carne magra por dentro, a triste carne de trabalho, irmã da carne de canhão...

Interpellado o cégo por um funccionario da Hospedaria, explicou sua presença por engano de despacho. Destinavam-no ao Asylo dos Invalidos da Patria, no Rio, mas pregaram-lhe nas costas a papeleta do "Para o eito", e lá veiu. Não tinha olhos para se guiar, nem teve olhos alheios que o guiassem. Triste destino dos cacos de gente...

— Porque, para o Asylo dos Invalidos ? perguntou o funcionario. E' voluntario da Patria ?

— Sim, respondeu o cégo, fiz cinco annos de guerra no Paraguay e lá apanhei a doença que me poz a noite nos olhos. Depois que ceguei, cai no desamparo. Para que presta um cégo ? Um gato sarnento vale mais...

Pausou uns instantes, revirando nas orbitas os olhos esbranquiçados. Depois, continuou:

— Só havia no mundo um homem capaz de me soccorrer: o meu capitão. Mas, esse, perdi-o de vista. Se o encontrasse — tenho a certeza ! — até os olhos me era elle capaz de reviver. Que homem ! Minhas desgraças todas vêm de eu ter perdido meu capitão...

— Não tem familia ?

— Tenho uma menina — que eu não conheço... Quando veio ao mundo, já meus olhos eram trevas...

Baixou a cabeça encanecida, tomado de subita amargura.

— Daria o que me resta de vida para vel-a um instantinho, siquer. Só meu capitão...

Não concluiu. Percebera que o interlocutor já estava longe, attendendo ao serviço, e ali ficou, parado, immerso na tristeza infinita da sua noite sem estrellas.

O incidente, entretanto, impressionára o funccionario, que o levou ao conhecimento do director. O director da Immigração era, nesse tempo, o major Carlos, nobre figura de paulista dos bons tempos, providencia humanizada daquelle departamento. Ao saber que o cégo fôra um soldado de 70, interessou-se pelo caso e foi em pessoa procural-o. Encontrou-o immovel, immerso nas eternas scismas.

— Então, meu velho, é verdade que fizeste a campanha do Paraguay ?

O cégo ergueu a cabeça, tocado pela voz amiga.

— Verdade, sim, meu patrão. Fui soldado do 33.

— O 33, de S. Paulo ? Como. isso, se és do norte ? objectou o major.

— Verdade, sim. meu patrão. explicou o cégo. Vim do norte no 13 e, logo depois de chegar ao imperio do Lopes, entrei em fogo. Tivemos má sorte. Na batalha de Tuyuty nosso batalhão foi dizimado, como milharal em tempo de chuva de pedra. Salvamo-nos, eu e mais um punhado de camaradas. Fomos. então. incorporados ao 33 paulista. afim de preencher os claros, e nelle fiz o resto da campanha.

O major Carlos, tambem elle, era veterano do Paraguay, e por coincidencia servira no 33. Interessou-se. pois, vivamente. pela historia do cégo, pondo-se a interrogal-o a fundo.

— Quem era o teu capitão ?

O cégo suspirou.

— Meu capitão era um homem que se eu o encontrasse na vida até a vista era capaz de me restituir ! Mas não sei delle, perdi-o. para mal meu...

— Como se chamava ?

— Capitão Boucault.

O major, ao ouvir esse nome, sentiu electrizarem-se-lhe as carnes, num arrepio intenso ; dominou-se, porém, e prosseguiu :

— Conheci-o. Foi meu companheiro de regimento. Máo homem, por signal, duro para com os soldados, grosseiro...

O cégo, até alli vergado na attitude humilde do mendigo, ergueu o busto altivamente e com a indignação a fremir na voz, disse com firmeza :

— Páre ahi ! Não blaspheme ! O capitão Boucault era o mais leal dos homens, amigo, pae do soldado. Perto de mim ninguem o insulta ! Conheci-o em todos os momentos, acompanheio-o durante annos, no trabalho e no descanso. e nunca o vi praticar o menor acto de vileza !

O tom firme do cégo commoveu estranhamente o major. A miseria não conseguira romper no velho soldado as fibras heroicas da lealdade, e não ha espectaculo mais arrebatador do que o de uma lealdade assim vivedoira até aos limites extremos da desgraça. O major, quasi rendido, sobreesteve por um momento. Depois, friamente, proseguiu na experiencia :

— Enganas-te, meu velho. O capitão Boucault era um covarde !...

Um assomo de colera transformou as feições do cégo. Seus olhos, annuveados pela catarata, revolveram-se nas orbitas, num horrivel esforço para ver a cara do infame detractor. Seus dedos se crisparam e todo elle se retezeou como féra prestes a desferir o bote. Depois, sentindo pela primeira vez em toda a plenitude a infinita fragilidade dos cégos, recaiu em si, esmagado. A colera transfez-se-lhe em dôr, e a dôr assomou-lhe aos olhos sob fórma de lagrimas. E, lacrimejando, murmurou em voz apagada :

— Não se insulta assim um cégo...

Mal pronunciára estas palavras, sentiu-se apertado nos braços do major, tambem em lagrimas, que dizia :

— Abraça, amigo, abraça o teu velho capitão ! Sou eu o antigo capitão Boucault !..

Na duvida. aparvalhado ante o imprevisto desenlace, e como receioso duma insidia, o cégo vacillava.

— Duvidas ? exclamou o major. Duvidas de quem te salvou a nado na passagem do Tebiquary ?

A'quellas palavras magicas a identificação se fez, e, evanescido de duvidas, chorando como uma criança, o cégo abraçou-se com os joelhos do major Carlos Boucault, a exclamar, num desvario :

— Achei o o meu capitão ! Achei o meu pae ! Minhas desgraças acabaram-se !...


.. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. ..

E acabaram-se de facto.

Mettido num hospital, sob os auspicios do major, lá soffreu a operação da catarata, e readquiriu a vista.

Que impressão a sua, quando lhe tiraram a venda dos olhos ! Não se cansava de "ver", de matar as saudades da retina. Foi á janella e sorriu para a luz que inundava a natureza. Sorriu para as arvores, para o céo, para as flores do jardim. Resurreição!...

— Eu bem dizia ! exclamava a cada passo. eu bem dizia que se encontrasse o meu capitão... Posso agora, ver minha filha ! Que felicidade. meu Deus !...


E lá voltou para a terra dos verdes mares onde canta a jandaia. Voltou a nado — nadando em felicidade. A filha, a filha !...

— Eu não dizia? Eu não dizia que se encontrasse o meu capitão até a luz dos olhos me haveria de voltar ?

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